Diego dos Anjos Azizi[1]
Resumo: O presente texto pretende tratar do conceito de juízo (jugement) nos Ensaios de Michel de Montaigne e mostrar como esse conceito – que pode indicar um ato, uma faculdade, uma qualidade, em suma, a sede da vida intelectual, moral e psicológica – se torna central, não apenas no pensamento montaigniano, mas também na história da filosofia posterior. Para isso, o texto se inicia com uma investigação do próprio conceito de juízo, a partir de suas raízes gregas na lógica estoica de Crísipo, como ele foi apropriado pela filosofia aristotélica e medieval, e, posteriormente, como Montaigne reformula seu significado, expandindo-o e introduzindo-o na filosofia moderna, modificando radicalmente o próprio pressuposto do ato humano de filosofar. Em última instância, o texto busca responder à pergunta: o que significa juízo, nos Ensaios, e qual é a sua importância para a filosofia moderna?
Palavras-chave: Montaigne. Juízo. Ensaios. Filosofia Moderna.
Introdução
Ao lermos os Ensaios, nós nos deparamos com a frequente ocorrência da palavra jugement (julgamento, juízo) [2]. São 248 ocorrências da palavra no singular e 12 no plural (jugements)[3]. É inegável que a palavra e, por extensão, o conceito de juízo desempenhe um papel fundamental na filosofia montaigniana. O conceito de juízo passa a se tornar central nas filosofias que começam a aparecer, durante o século XVI, no Ocidente, e perpassa toda a filosofia até nossos dias. Ele sai de Montaigne, passa por Descartes, Locke, Hume, Espinosa, chega a Kant e Wolff; é ressignificado por Bolzano, recepcionado por Frege, Husserl, Arendt e Russell, dentre muitas outras e outros.
Entretanto, a acepção corrente do termo, aquela que vem quase que imediatamente em nossas mentes, ao recepcionarmos a palavra “juízo”, provém de Frege. O juízo, para ele, seria o reconhecimento da verdade de um pensamento ou uma proposição (Cf. Frege, 2018). Desde Descartes até a filosofia contemporânea, as reflexões sobre os enunciados declarativos (afirmações e negações) tornaram-se fundamentais para o desenvolvimento tanto da epistemologia quanto da lógica. As declarações, ou seja, as afirmações ou negações contidas nas sentenças são a contraparte linguística da noção de juízo, fundamental para a compreensão e a comunicação de verdades objetivas. Não é a minha intenção aqui fazer uma história do conceito de juízo, no pensamento ocidental, nem elucidar o que significa o juízo em sua acepção fregiana, muito menos avaliar se esse conceito é o mais adequado para resolver alguns problemas fundamentais do pensamento e da linguagem. A intenção é evidenciar que não se pode deixar de lado sua importância capital, no desenvolvimento da filosofia moderna, desde o século XVI até nossos dias, e que ele é introduzido com uma importância central nos Ensaios de Montaigne.
Mas, afinal, o que é esse juízo (jugement), tão importante conceito para a filosofia moderna, que Montaigne exercita, expõe e introduz dialeticamente, nos Ensaios, e que mudará a forma de se fazer filosofia, na modernidade? “O juízo é o mais central e mais importante termo e conceito psicológico nos Ensaios. Ele pode indicar um ato, uma faculdade, uma qualidade e, frequentemente, a sede de toda a vida intelectual, moral e psicológica” (La Charité, 1968, p. 142). Obviamente, entre Montaigne e Frege, há compreensões absolutamente distintas sobre o que seja o juízo. Em Montaigne, há a ênfase no aspecto subjetivo do juízo, enquanto, em Frege, o importante é sua objetividade. Claro que Montaigne não inventa a palavra jugement, tampouco descobre pela primeira vez o juízo como uma sentença e proposição declarativa. Mas compreende o juízo de outra forma, de maneira nova, moderna, fazendo do seu exercício o objeto privilegiado da filosofia. Como La Charité identificou, na passagem acima, o juízo em Montaigne é polissêmico. Não se reduz a um ato psicológico, nem ao seu conteúdo, a uma faculdade ou uma qualidade: o juízo compreende todos esses elementos e vai além.
1 Breves considerações sobre o conceito de juízo na história da filosofia ocidental
A filosofia escolástica, amplamente ancorada nos escritos de Aristóteles, procurou soluções para problemas relativos ao significado de sentenças declarativas, e diversas teorias foram construídas para lidar com esse problema, seja a doutrina tomista, seja a teoria da existência objetiva, seja ainda a teoria dos atos mentais e do realismo lógico (Cf. Nuchelmans, 1983, p. 9-35). Contudo, todas essas teorias estavam ancoradas em uma consideração dos atos proposicionais e, portanto, relativas à lógica e à linguagem, com vistas à objetividade do conhecimento verdadeiro. É já um lugar comum na história da filosofia a passagem dessas reflexões sobre as sentenças e proposições declarativas, do pensamento escolástico ao moderno, tendo em Descartes o próximo passo rumo ao esclarecimento do que consiste em um juízo e o que torna uma sentença declarativa significativa. Porém, entre os escolásticos, Descartes e o posterior desenvolvimento das teorias do juízo, até nossos dias, está a figura de Montaigne, o qual desempenha um papel fundamental, amplamente esquecido, mas que diretamente influenciou todo o desenvolvimento posterior filosófico no Ocidente. Devemos ter em mente que, mesmo que em nosso tempo Montaigne ainda apareça modestamente, nas considerações sobre a influência de seu pensamento no desenvolvimento das filosofias modernas ocidentais, ele foi bastante lido e assimilado por seus contemporâneos e, também, pelas correntes filosóficas que foram se constituindo, ao longo dos séculos XVII e XVIII[4].
Na epistemologia e na lógica da antiguidade clássica, a primeira ocorrência clara (pelo menos a partir dos textos que ainda sobreviveram) da definição do conceito de juízo é dada por Crísipo[5], filósofo do século III a.C., oriundo do estoicismo primitivo, tendo sido discípulo de Cleantes e, possivelmente, ouvido lições do próprio Zenão. Crísipo fundou a lógica estoica e utilizou a palavra aksioma para definir o que hoje entendemos por juízo. Para ele, o juízo seria diferente de outros enunciados, como os imperativos, os emotivos etc. Ele define juízo como um enunciado completo precedido por um ato de vontade (pragma autoteles), o qual resulta da predicação de algo na forma de uma sentença completa que pode ser confirmada ou negada e, portanto, ser verdadeira (aksioma alethes) ou falsa (aksioma pseudos). A palavra aksioma tem origem na palavra aksios, que significa algo digno ou merecedor, em última instância, de um valor[6]. O juízo pode ser entendido, enfim, como um princípio ou uma proposição considerada digna de aceitação ou negação (digna de uma atribuição de valor).
Em Aristóteles, temos a forma que se tornou a mais consagrada de se compreender o juízo, a saber, como uma predicação, ou seja, em estrita ligação com a estrutura gramatical da língua organizada em sujeito e predicado. O juízo (as proposições), em Aristóteles, significa afirmar ou negar uma coisa de outra coisa, de modo que há quatro tipos de proposições fundamentais (ou seja, juízos) que mudam, de acordo com seus valores (afirmação ou negação). Temos as universais afirmativas: Todo S é P (A); as universais negativas: Nenhum S é P (E); as particulares afirmativas: Algum S é P (I); as particulares negativas: Algum S não é P (O)[7]. O que temos de forma consagrada e continuada, ao longo de toda a filosofia antiga e medieval, sobre a teoria do juízo, é a de matriz aristotélica, oriunda de sua lógica proposicional.
René Descartes, no século XVII, irá rejeitar o modo aristotélico de conceber o que seja um juízo (iudicare, em latim), já que, para ele, o juízo é um ato da vontade. Em linhas gerais, ele sustenta que o entendimento (nosso intelecto) tem como função (e ação) perceber e apresentar ideias, mas estas precisam ser associadas ou dissociadas, para compor juízos. Em um ato separado, o ato da vontade, elas são afirmadas ou negadas. As ideias são o conteúdo dos juízos apresentados pelo entendimento e o juízo é o resultado de suas afirmações ou negações depois de associadas ou dissociadas. “Todo juízo supõe, portanto, ideias que o entendimento percebe e uma vontade que as afirma ou nega[8]” (Gilson, 2009, p. XXI).
2 O conceito de juízo nos Ensaios de Montaigne
Sabemos que, em Montaigne, o uso do termo jugement é amplo e plural. Esse termo deriva do termo latino iudicamentum, que é o substantivo derivado do verbo iudicare, o qual significa julgar ou dar um veredito. Iudicare tem origem na palavra latina iudex, que significa juiz. Iudex, por sua vez, é composta de duas partes: ius, que significa lei (e, também, justiça) e dex, derivado do verbo dicere, que significa dizer ou declarar. Iudicare, por conseguinte, está relacionado com o “dizer a lei” ou “declarar o justo”, ou seja, enunciar um julgamento para decidir sobre um assunto. Montaigne frequentemente relaciona o termo jugement com o termo discours, o que pode indicar uma relação direta entre o ato de julgar (juízo como faculdade e ação de ajuizar) e o produto discursivo desse ato, ou seja, a sentença e a proposição.
O que fica evidente é que o juízo, como sede da vida intelectual, moral e psicológica, possui um caráter necessariamente discursivo, e isso não é sem razão, dado o fato de que Montaigne, como bem se sabe, era um magistrado, um juiz, e tinha como ofício, justamente, julgar. O caráter jurídico da palavra impregna o próprio conceito filosófico que Montaigne constrói, em seus Ensaios. Que fique bem claro que Montaigne não é um filósofo analítico, assim, a definição de seus conceitos não é tão rígida, exclusiva e objetiva. Por muitas vezes, ele utiliza sinônimos, para se referir a uma faculdade específica, mas o contexto sempre nos permite identificar sobre o que ele está falando. Faz parte da nova figura de sua filosofia o caráter fortuito e acidental de seu pensamento – esse é seu método –, o que pode levar a entender que seu pensamento é contraditório, inconsequente, paradoxal (em um sentido negativo)[9]. Contudo, “[...] o texto, na medida exata do que afirma, é um exemplo da fidelidade pela qual aquilo que comunica é sempre conforme o que pensa [...]” (Eva, 2007, p. 187).
Como já frisara Montaigne, ele pode se contradizer, mas nunca contradiz a verdade. Digo isso, pois é possível, em algumas passagens, vê-lo usando os termos sens, entendement, raison, intelligence, veuë, conscience como possuindo (esporadicamente) o mesmo sentido de jugement. Esses são os termos psicológicos primários contidos nos Ensaios, mas, como observa bem La Charité, apesar de esses termos poderem ser entendidos como sinônimos, em um campo semântico desenhado especificamente para cada conceito,
Montaigne parece manter certas distinções básicas entre eles; substituições frequentes dos termos devem ser o resultado de diferenças semânticas e ideacionais. Além disso, a associação de vários termos psicológicos dentro de uma única sentença implica gradações, por mais mínimas que elas sejam (La Charité, 1968, p. 1).
Há, contudo, um detalhe que não podemos deixar passar despercebido. Nem Villey e Saulnier, nem Thibaudet e Rat[10] atentaram para o fato de que Montaigne muda a forma como compreende o juízo e substitui a palavra jugement nas edições mais tardias dos Ensaios. Conforme já é bem conhecido dentro dos estudos clássicos sobre Montaigne, Pierre Villey sustenta que Montaigne vai evoluindo[11] seus Ensaios, na medida em que vai amadurecendo e mantendo contato com outras fontes. Villey afirma que Montaigne, por volta de 1576, teria entrado em uma “crise cética”, por conta da leitura que fez das Hipotiposes pirrônicas, de Sexto Empírico. Os ensaios “Apologia de Raymond Sebond” (II, 12) e “Da presunção” (II, 17), principalmente, professam uma crítica ao juízo que, posteriormente, Montaigne parece abandonar.
Villey identifica que, em 1576, Montaigne não apenas lê Sexto Empírico, mas fica imerso no modo de vida filosófico do ceticismo, mesma época em que manda cunhar uma medalha com a frase Que sais-Je? (que se tornaria o mote de sua filosofia), e podemos ver explicitamente essa influência tanto na “Apologia” (principalmente nas partes redigidas por volta de 1576) quanto em “Da presunção”. Em suas primeiras redações, Montaigne deixa clara a incapacidade da razão e do juízo para decidirem sobre a verdade e a falsidade de qualquer coisa que seja e, portanto, as toma como faculdades inseguras e quase inúteis. Mas Donald Frame identifica uma mudança, na postura de Montaigne, após 1578-1579 (que seria um período de superação de sua crise cética, segundo Villey), na qual, aparentemente, ninguém havia reparado antes. Em seu artigo intitulado “Jugement et sens dans le chapitre ‘De la presumption’”, de 1983, Frame descobre que Montaigne substitui o termo jugement pelo termo sens, em várias ocasiões, e isso muda completamente a forma como enxergamos o significado dessas duas faculdades.
Na última edição dos Ensaios, de 1588, ainda com Montaigne vivo, já identificamos essa alteração, a qual permanece tanto no exemplar de Bordeaux (uma cópia da última edição, com anotações à mão do próprio Montaigne, que foram adicionadas às edições posteriores) quanto na edição de 1595, organizada por Marie de Gournay, sua herdeira intelectual, com substanciais adições e correções. Um exemplo disso vemos na seguinte citação: na primeira edição, de 1580, Montaigne diz:
[A] Em suma, para voltar a mim, a única coisa pela qual me valorizo um pouco é algo em que homem nunca se considerou falho: meu elogio é banal, comum e vulgar, pois quem jamais pensou ter falta de juízo (avoir faute de jugement)? Seria uma proposição que implicaria em si mesma uma contradição: nesse assunto acusar-se seria escusar-se; e condenar-se seria absolver-se[12].
Já no exemplar de Bordeaux, lemos o seguinte:
[A] Em suma, para voltar a mim, a única coisa pela qual me valorizo um pouco é algo em que homem nunca se considerou falho: meu elogio é banal, comum e vulgar, pois quem jamais pensou ter falta de senso (avoir faute de sens)? Seria uma proposição que implicaria em si mesma uma contradição, [C] é uma doença que nunca está onde ela vê a si mesma; é muito tenaz e intensa, mas que no entanto o primeiro raio da visão do paciente atravessa e dissipa, como o olhar do sol a um nevoeiro opaco; [A] nesse assunto acusar-se seria escusar-se; e condenar-se seria absolver-se (Montaigne, II, 17, 2000, p. 486, negritos meus).
Frame identifica nessas sutis adições e modificações uma mudança na forma como Montaigne concebe a capacidade do juízo. Na “Apologia”, Montaigne concebe o juízo como uma faculdade tão falível, tão incapaz de decidir sobre a verdade e a falsidade, seja do conhecimento, seja da moral, tão alterada, artificial e deslocada de seu lugar natural, que é perturbada passivamente por uma série de fatores externos e internos à consciência humana, não sendo por isso confiável. “[A] Por certo pagamos extraordinariamente caro essa bela razão de que nos vangloriamos e essa capacidade de julgar e conhecer, se as adquirimos à custa desse número infinito de paixões a que estamos incessantemente expostos” (Montaigne, II, 12, 2000, p. 230).
Na época de sua chamada “crise cética”, Montaigne concebe o juízo como uma faculdade perturbável, alterável, tanto por influências externas (as coisas do mundo) quanto internas (as paixões), o que torna nossa capacidade de julgar pouco confiável. Tudo pode modificá-la, desde as coisas mais mínimas quanto os grandes acontecimentos, sejam febres, doenças, guerras, bebedeiras, paixões. O juízo, pois, não consegue operar com autonomia a sua função: a de determinar a verdade e a falsidade de nossos conhecimentos, sejam científicos, sejam morais. “[A] Não se deve deixar ao julgamento de cada um o conhecimento de seu dever; é preciso prescrevê-lo, não deixar que ele o escolha segundo seu discernimento” (Montaigne, II, 12, 2000, p. 232).
Fica claro, ao se ler os Ensaios, que o juízo é uma faculdade avaliativa e valorativa e que, por volta de 1578 ou 1579, Montaigne reavalia sua posição quanto a ele. Por volta dessa época, segundo Frame, o filósofo começa a perceber que, em sua crítica cética à razão, ao juízo, ao conhecimento, enfim, é a própria atividade do juízo que volta contra si mesmo as suas armas. Se Kant, na Crítica da Razão Pura, submete a razão ao tribunal da própria razão, Montaigne submete seu juízo ao tribunal do próprio juízo, mesmo que, a princípio, ele não estivesse consciente disso. Ao fazer isso, pode identificar qual sua função, quais seus limites e seus alcances e a melhor forma de excedê-los. “[A] Pois estabelecer a medida de nossa capacidade de conhecer e julgar a dificuldade das coisas é uma ciência grande e extrema [...]” (Montaigne, II, 12, 2000, p. 254).
Contudo, pelo menos na fase mais madura de Montaigne, o juízo parece possuir a capacidade que inicialmente lhe tinha sido negada no nosso texto: que é reconhecer a sua própria fraqueza ou ausência e a do seu possuidor. Numa passagem anterior deste mesmo capítulo, Montaigne afirma explícita ou implicitamente várias vezes que o julgamento nos permite mesmo ver a verdade [...]; de 1578-1580 em diante, esta é uma das suas ideias constantes (Frame, 1983, p. 211).
O que Montaigne faz, então, é se tornar consciente desse movimento. Marcel Conche (1996, p. 60) ressalta que “[...] a função do juízo não é o conhecimento. É simplesmente ordenar nossa ação e nossa vida no presente vivo, ao fio dos acontecimentos”. Isto está muito próximo do que Frame afirma sobre o “eu” (self) ser um tipo de pater familias, o qual dirige e controla as faculdades. Assim, é a partir do juízo que podemos nos despojar de nossos preconceitos, avaliar e valorar as coisas por nós mesmos e exercer a autocrítica. Por isso, Montaigne muda de ideia, já não podendo mais sustentar a crítica do juízo que faz na “Apologia” ou em “Da presunção”, em suas versões iniciais.
Em “Da experiência”, texto que fecha o último livro dos Ensaios, é evidente o papel que o juízo ocupa em sua filosofia, muito diferente daquele sustentado na época de sua “crise cética”. “[B] O juízo ocupa em mim cátedra de mestre – pelo menos se esforça zelosamente para isso; deixa meus apetites seguirem seu curso, tanto o ódio como a amizade, inclusive a que tenho por mim mesmo, sem com isso alterar-se nem corromper-se” (Montaigne, III, 13, 2001, p. 437). Por isso a mudança, no exemplar de Bordeaux, em “Da presunção”, de jugement para sens, sendo este último uma faculdade próxima do juízo, mas sem sua capacidade de autocrítica. Sens, um tipo de senso comum, sem a autocrítica do juízo seria insensé. “[A] Seja como for, mesmo sem advertência de outrem vejo bem o pouco que tudo isso vale e pesa, e a loucura de meu projeto. Já é bastante que meu julgamento não se atrapalhe, julgamento cujos ensaios estão aqui [...]” (Montaigne, II, 17, 2000, p. 481).
Se os Ensaios se configuram como uma pintura de si – e Montaigne enfatiza que o que está fazendo é um ensaio de seus juízos –, logo, esse si que é pintado pode nos levar a concluir que ele não é nada mais que seus juízos. Os juízos seriam o “eu” que aparece, quase que fenomenologicamente, no ato ensaístico. Montaigne se descreve na medida em que seus juízos vão aparecendo para si, enquanto atos e produtos desses atos. No entanto, afirmar que os juízos são o “eu” pode parecer uma afirmação muito forte. É possível notar, ao longo dos Ensaios, que, apesar de o juízo ocupar um lugar central em suas reflexões e ser a faculdade que ordena e organiza todas as outras (e os dados trazidos por elas), ele não funciona sozinho.
Não é exclusivamente o juízo que alcança a identidade e o conhecimento do “eu”. A memória, a consciência (moral), a imaginação, a razão, o senso e o espírito (esprit) fazem parte da aventura da descoberta e do conhecimento de si mesmo. Apesar de o juízo ser a mais individual das faculdades, e seu modelo funcionar sem a influência do mundo exterior, na pura solitude consigo mesmo, ele precisa também daquilo que nos traz o mundo. O juízo, em Montaigne, não é uma faculdade solipsista, pois, se assim fosse, estaria fechado em si mesmo e não teria sobre o que ajuizar. Para ele, a conquista da identidade só pode ser guiada pelo exercício do juízo, mas não exclusivamente por ele. O espírito (esprit) também possui um lugar de grande relevância na reflexão montaigniana, já que ele representa o oposto do juízo: se este opera a partir de uma relação interna consigo mesmo, aquele é essencialmente aberto e funciona através da confrontação com a exterioridade. Se o juízo é a base da autonomia do indivíduo, o espírito é o que possibilita a consideração da diferença. É a faculdade que permite ao “eu” se abrir ao novo, à discussão, à disputa[13]. Mas, claro, também deve ser acompanhada da ordenação do juízo.
Como sustenta Sérgio Cardoso, o Renascimento europeu do século XVI visava a uma construção ética do humano exemplar, a partir da ideia de excelência que promoveria uma vida feliz, assumindo uma “[...] significação civilizatória de alcance universalista” (Cardoso, 2010, p. 258). O que conhecemos como a aspiração do humanismo renascentista, a busca da humanização do humano em função de uma elevação espiritual e moral ancorada nas artes, na educação erudita, no refinamento dos costumes, por intermédio da frequentação das letras e dos saberes da antiguidade clássica greco-romana, não encontramos em Montaigne[14]. Nos Ensaios, não vemos modelos de exemplaridade os quais deveríamos imitar para nos tornarmos excelentes. Não há nenhuma possibilidade de identidade universal repetível, atingível, através da emulação da experiência das pessoas exemplares. O ser humano é contingente e acidental, singular, irrepetível, fortuito.
E o ponto extremo deste percurso parece, então, evidenciar-se na crítica de Montaigne, que também ela se deixa levar ao extremo, sinalizando, para além do horizonte humanista da erudição e da imitação emulativa, uma nova figura da cultura (cujo emblema vemos na forma interrogativa e reflexiva do “ensaio”) e também uma nova disciplina da vida moral: a do “homme suffisant”, ética e intelectualmente “capaz”, destituído de princípios, normas e paradigmas de ação já bem estabelecidos, desafiado a encontrar em si mesmo arrimo para seus julgamentos e decisões de ordem prática (Cardoso, 2010, p. 263).
Para além das preocupações epistemológicas, o juízo visa a ordenar (ou reordenar) os significados do mundo, com base no discurso, por uma preocupação, prioritariamente, moral. É em vista da pergunta “O que é o humano” que o juízo de Montaigne exerce sua atividade em companhia das outras faculdades para, assim, a partir da vida singular de um sujeito imperfeito, viver a melhor vida possível de ser vivida, vida livre, vigorosa, que se dá o direito de pensar livremente. “[B] Tanto nos submeteram às cordas que já não temos livres os passos” (Montaigne, I, 26, 2002, p. 226). É o direito de viver uma vida suficiente, uma vida que satisfaça quem a vive e que seja o bastante para um ser humano que atingiu o conhecimento de si.
Montaigne é um tipo de moralista. Quando ele diz: ‘Os outros formam o homem, eu o descrevo (III, 2, 610 B), ele concisamente expressa o que é essencial: nomeadamente, que seus Ensaios não raciocinam normativamente sobre como as coisas deveriam ser, mas sim sobre como elas são de fato. [...] Ao invés de se preocupar com o que o homem pode se tornar, Montaigne se preocupa com a descoberta do que o homem é em geral: uma essência ordinária, humanitas no sentido do que é muito humano e temperamental, uma criatura de variedade surpreendente que é mais provável de se esconder do que vir à tona através de sua cultura ética, social e até religiosa (Friedrich, 1991, p. 3).
O juízo, afinal, é uma das faculdades, senão a faculdade central que atua no papel mais importante para o conhecimento do “eu”. “Em suma, o juízo, assim como o discours é, ainda mais, o principal candidato para a faculdade central na visão de Montaigne sobre a alma; mas dificilmente pode ser dito que ele representa o próprio je (eu)” (Frame, 1976, p. 202). Apesar de Frame defender, no fim de seu artigo, que a razão (e não o juízo) é a mais forte candidata (enquanto raison raisonnable e não raison raisonnante) para a posição central no direcionamento do “eu”, acredito que as posições de La Charité (1968) e de Compayré (1908), que colocam o juízo no centro das faculdades e das atividades em busca do autoconhecimento, sejam mais acertadas (tendo em vista que o próprio Montaigne afirma que seus Ensaios são ensaios de seu juízo).
Como visto no ensaio “Da educação das crianças”, Montaigne defende que o estudo da filosofia deve guiar a instrução dos alunos desde o desmame: “[A] a filosofia, que como formadora dos julgamentos e dos costumes será sua principal lição [...]” (Montaigne, I, 26, 2002, p. 246). É a filosofia a atividade formadora de nossos juízos, e o principal objetivo da educação é educar nosso juízo. A verdadeira educação, para Montaigne, se distingue do mero aprender aquilo que já foi pensado, dito e feito, como a educação tradicional de sua época. A verdadeira educação, para ele, não é um simples exercício da memória que se serve dos sábios antigos, para emprestar deles suas ideias. A formação do próprio juízo implica saber o que fazer com aquilo que aprendemos dos antigos, para formarmos o nosso próprio pensamento. Esse é o ponto culminante da pedagogia de Montaigne. Aprender a julgar é o fim supremo da educação.
Julgar é, antes de mais nada, pensar por si mesmo, sustentar opiniões que são nossas; é indagar pela verdade através do esforço da reflexão pessoal. Julgar é pensar corretamente, para ver claramente em todas as questões que possam se apresentar, graças à compreensão clara que pertence a uma mente não distorcida. Julgar bem, finalmente, é estar apto para agir bem (Compayré, 1908, p. 66).
Se o homem é mais provável de se esconder do que se mostrar, por meio de sua cultura, é o exercício do juízo que o trará para a luz, para o esclarecimento de si e também dos outros. A filosofia
[...] passa a se caracterizar essencialmente não apenas pelo conjunto de teses que advoga, mas pela ação concreta mediante a qual o juízo lhes confere significado, um traço também presente na empresa cartesiana de inovar relativamente à filosofia que o precede, eventualmente inaugural de um hábito recorrente em filósofos posteriores (Eva, 2007, p. 209).
Em última instância, a filosofia deve formar o juízo para a finalidade de viver bem. É o juízo conduzido pela filosofia enquanto maneira de viver.
Julgar, estudar o eu (self), requer recorrência, retenção e repetição. O juízo deve permanecer fixo sobre seu objeto, codificar elementos díspares e recalcitrantes e analisar mudanças recorrentes à medida em que ocorrem. Assim que um novo fato ou uma nova faceta da identidade psicológica e moral de alguém é descoberto, deve-se compará-lo com o autoconhecimento já existente e averiguar sua devida relação e grau de importância. O ser de alguém escapa da desintegração dentro da análise atemporal e não-espacial do juízo (La Charité, 1968, p. 81).
Segundo La Charité, o exercício do juízo impede o ser de alguém de se desintegrar. Saber viver é não se desintegrar, enquanto sujeito, em um mundo alheio que o aliena de si.
Claro que o conceito de juízo, como eu já observei, não foi inventado por Montaigne. Contudo, o que vemos em sua filosofia é o papel central que o juízo, não apenas em seu sentido assertivo e epistemológico (ou seja, juízo como proposições que podem ser afirmadas ou negadas, logo, ser verdadeiras ou falsas), mas, fundamentalmente, como sede da vida psicológica e moral do sujeito, opera na organização das faculdades que compõem o “eu”, a partir de sua vontade. Montaigne substitui o modo de fazer contemplativo, tradicional, da filosofia e inaugura um novo ato filosófico no qual o juízo opera um papel fundamental. Se a contemplação nos aproxima de uma atividade divina (como vemos, por exemplo, em Aristóteles), já que nossa mente pretende ultrapassar o limite espaço-temporal do mundo humano e atingir o âmbito eterno e imutável do divino, o juízo é a sujeição da coisa em si, tornando-a própria de alguém.
Diferente da contemplação, o juízo é humano, uma atividade puramente humana e preocupada somente com o que é humano. Os Ensaios são sobre seres humanos e a ação humana: neles, Montaigne encontra o próprio humano enquanto tal. Ele o considera “puramente”, julgando-o como é em si mesmo, sem relação com qualquer outra coisa. Julgar dentro da hierarquia tradicional, por contraste, é julgar pelo padrão do que está acima. O homem está entre o divino e o bestial e julga a si mesmo pelo padrão divino. Julgar o homem como ele é em si mesmo e identificar o juízo como a atividade definidora do humano é mudar tudo sobre o que significa ser humano (Hartle, 2013, p. 65).
Considerações finais
Montaigne associa diretamente o juízo a uma subjetividade singular, ponto arquimediano, crivo pelo qual as proposições deverão passar. Essa associação direta e necessária que Montaigne faz entre os juízos e um “eu” inaugura uma forma de se compreender esses enunciados e proposições, os quais, antes de mais nada, são produtos de uma subjetividade específica, demasiadamente humana. Ele escreve, explicitamente, que os ensaios que escreve são ensaios de seus juízos (ou julgamentos):
[A] O julgamento é um instrumento para todos os assuntos, e se imiscui por toda parte. Por causa disso, nos ensaios que faço aqui, emprego nisso toda espécie de oportunidade. Se é um assunto de que nada entendo, por isso mesmo ensaio-o, sondando o vau de bem longe; e depois, achando-o fundo demais para minha estatura, mantenho-me na margem; e esse reconhecimento de não poder passar para o outro lado é uma característica de sua ação, e mesmo das que mais o envaidecem. Por vezes, em um assunto vão e sem valor, procuro ver se ele encontrará com que lhe dar corpo, e com que o apoiar e escorar. Por vezes passeio-o por um assunto nobre e repisado, no qual nada tem a descobrir por si, estando o caminho tão trilhado que ele só pode caminhar sobre as pegadas de outrem. Então atua escolhendo o caminho que lhe parece o melhor e, entre mil veredas, diz que esta, ou aquela, foi a mais bem escolhida. Tomo da fortuna o primeiro argumento. Eles me são igualmente bons. Mas nunca me proponho apresentá-los inteiros. [C] Pois não vejo o todo de coisa alguma; tampouco o vêem os que nos prometem mostrá-lo. De cem membros e rostos que cada coisa tem, tomo um, ora pra somente roçá-lo, ora para examinar-lhe a superfície; e às vezes para pinçá-lo até o osso. Faço-lhe um furo, não o mais largo, porém o mais fundo que sei. E quase sempre gosto de captá-los por algum ângulo inusitado. Arriscar-me-ia a tratar a fundo alguma matéria, se me conhecesse menos. Semeando aqui uma palavra, ali uma outra, retalhos tirados de sua peça, separados, sem intenção e sem compromisso, não estou obrigado a fazê-lo bem nem a limitar a mim mesmo, sem variar quando me aprouver; e render-me à dúvida e incerteza, e à minha forma principal, que é a ignorância (Montaigne, I, 50, 2002, p. 448-449).
Com Montaigne, o que nasce é a figura do sujeito judicativo e a consciência de que não pode haver juízos sem um “eu” que os produza. Se o juízo pode nos apresentar as distinções entre o verdadeiro e o falso (como é, também, para Descartes), em Montaigne, essa instância judicativa capaz de distinguir o verdadeiro e o falso é particular, pessoal, subjetiva. Os Ensaios se configuram, por conseguinte, em exercícios de juízos produzidos por um sujeito judicativo humano. “[...] para chegar a isso, será preciso o concurso do julgamento e da vontade; o julgamento, ato intelectual em que o indivíduo se olha, por sua vez, e se compara; a vontade, ato formador ou transformador, pelo qual o indivíduo regula sua vida” (Starobinski, 1992, p. 24).
A filosofia, após a instauração dessa subjetividade ajuizadora, nunca será mais a mesma. Montaigne associa a vontade de se descrever e se examinar à ação de seu juízo e, antes de Descartes, associa essas duas faculdades (unidas na lógica estoica de Crísipo e ausente na lógica proposicional de Aristóteles). Montaigne ressignifica a função do juízo na filosofia e abre um caminho que Descartes irá desbravar com maestria. Ao introduzir o juízo no centro de seus Ensaios, não o limitando à sua instância lógico-proposicional, Montaigne humaniza o humano e a própria filosofia, instaurando o pressuposto da finitude humana como o fundamento do próprio ato de filosofar. É o próprio pressuposto filosófico moderno que Montaigne institui, ao conceber, a partir da reflexão sobre seu próprio juízo, os limites e os alcances daquilo que a humana condição pode alcançar. Com isso se abre um mundo.
Michel de Montaigne's Essays as Exercises of Judgment
Abstract: This text aims to address the concept of judgment (jugement) in Michel de Montaigne's Essays and to show how this concept - which can indicate an act, a faculty, a quality, in short, the seat of intellectual, moral, and psychological life - becomes central not only in Montaigne's thought but also in the subsequent history of philosophy. To do so, the text begins with an investigation of the concept of judgment itself, starting from its Greek roots in the Stoic logic of Chrysippus, how it was appropriated by Aristotelian and medieval philosophy, and subsequently, how Montaigne reformulates its meaning, expanding and introducing it into modern philosophy by radically modifying the very assumption of the human act of philosophizing. Ultimately, the text seeks to answer the question: what does 'judgment' mean in the Essays and what is its significance for modern philosophy?
Keywords: Montaigne. Judgment. Essays. Modern Philosophy.
Referências
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Recebido: 07/05/2024 – Aprovado: 20/06/2024 – Publicado: 12/08/2024
[1] Professor de Pós-Graduação no Centro Universitário Assunção, São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5645-2925. Email: diegoazizi1@gmail.com.
[2] Estou usando o termo “juízo” como tradução de jugement, em francês, e judgment, em inglês. O campo semântico do português aceita tanto “juízo” quanto “julgamento” e, enquanto sinônimos, significam tanto o ato de julgar, a faculdade do juízo, quanto os julgamentos em um tribunal, por exemplo. Ora emprego “juízo”, ora “julgamento”, de acordo com as exigências semânticas das sentenças. Na filosofia feita em português, os termos convencionaram-se a ser usados, também, como sinônimos.
[3] No compêndio que organiza as passagens de Montaigne, em que jugement é mencionado, o Repértoire des idées de Montaigne, de Eva Marcu (1965), a palavra aparece 212 vezes. Por ser uma obra de 1965, creio ser muito mais complicado de identificar as ocorrências do que nos tempos atuais. Ao buscar no site do Project Montaigne da Universidade de Chicago, identificamos 248 ocorrências de jugement. Cf. https://www.lib.uchicago.edu/efts/ARTFL/projects/montaigne/.
[4] Para uma visão detalhada sobre a influência e a assimilação do pensamento de Montaigne, no mundo moderno ocidental, conferir a magistral obra de Warren Boutcher: The school of Montaigne in early modern Europe (2 v.). Oxford: Oxford University Press, 2017.
[5] Curioso observar que Crísipo tinha a fama de ter escrito muitas obras, segundo Diôgenes Laêrtios, “[...] tratando repetidamente do mesmo assunto, escrevendo tudo o que lhe ocorria, fazendo muitas correções e citando inúmeros testemunhos” (2008, p. 222-223). O primeiro filósofo (segundo consta) a definir precisamente o que é um juízo parece fazer algo muito parecido (claro, dadas as devidas proporções) com o que Montaigne faz, em seus Ensaios.
[6] “Um ato intelectual de afirmação (συγκατάθεσισ), o qual deve ser identificado com um ato interno de formular um juízo com pretensões de verdade. Os estoicos formularam o termo aksioma a partir do verbo τοάξιουσθαι or άθετεΐσθαι [‘aceitar’ or ‘rejeitar’]” (Gajda-Krynicka, 2019, p. 22 [nota 3]).
[7] Uma formulazinha que aprendi nas aulas de lógica, para decorar as letras das quatro proposições categóricas, é a de que A e I são afirmativas, pois estão dentro da palavra “AfIrmo” e E e O são negativas pois estão dentro da palavra “nEgO”.
[8] Convém notar que, para Descartes (e, claro, para Montaigne), o juízo não é somente um conceito lógico e epistemológico relacionado apenas às proposições e à estrutura gramatical da língua, mas também e, fundamentalmente, associado à faculdade da vontade, como são os aksiomas de Crísipo. Podemos identificar pequenos elementos (e, em algumas ocasiões, enormes), nas filosofias modernas, que retomam muitos conceitos oriundos do estoicismo grego, a fim de se contrapor às ideias amplamente difundidas dos aristotélicos.
[9] Para um estudo sobre a importância do paradoxo como arte de pensamento e escrita, como método e instrumento de investigação, cf. Eva (2007, pp. 184-205).
[10] Editores das edições mais completas e destacadas dos Ensaios em francês.
[11] Alguns comentadores não gostam da palavra “evolução” e preferem usar a palavra “sequência”, para se referir aos Ensaios. Eu não tenho problema algum em aceitar que as posições, o estilo, as leituras e as experiências de Montaigne evoluem, na medida em que os Ensaios vão sendo escritos e complementados. Trata-se de evolução, não no sentido de progresso, mas no sentido de uma modificação com vistas à adequação de suas posições para o momento presente, para aquilo que vale para o Montaigne, em sua atualidade vital.
[12] Retiro essa citação do artigo de Frame (1983, p. 210).
[13] Não tenho condições de analisar o conceito de espírito, neste trabalho, mas, ao ler os ensaios I, 10 e III, 12, podemos identificar esse caráter aberto do esprit.
[14] Sérgio Cardoso (2010, p. 261) nos lembra muito bem que essa inspiração letrada e erudita de construção e humanização do humano provoca reações e avisos aos seus possíveis excessos. À retórica vazia, erudição vaidosa e pedante que deriva desse movimento humanista, surgiam já alguns alertas e ataques, como os de Leon Battista Alberti, Erasmo de Roterdã, Petrarca, Pico della Mirandola etc.