Animalidade humana e naturalismo realista em Alasdair MacIntyre

 

José Elielton de Sousa[1]

 

 

Resumo: O filósofo neoaristotélico, Alasdair MacIntyre, propõe, em Dependent Rational Animals (1999), uma ética das virtudes naturalista, ancorada na identidade animal do ser humano, juntamente com a vulnerabilidade e dependência às quais estamos submetidos, enquanto animais biologicamente constituídos. Ele reconhece que, ao usar o termo “bem” como referência direta ao florescimento dos membros de algumas espécies animais ou vegetais enquanto membros dessas espécies, está oferendo uma interpretação naturalista do bem, mas não deixa claro com que tipo de naturalismo está comprometido, não fornecendo maiores explicações sobre o que entende por bem natural, nem apresentando detalhes acerca de como resolver essa questão da relação entre o bem e suas propriedades naturais. Assim, cabe interrogar que tipo de naturalismo MacIntyre endossa. Seu naturalismo atende aos requisitos mínimos de uma proposta naturalista neoaristotélico atualizada? Essas são algumas das questões a serem analisadas no decorrer deste texto.

 

Palavras-Chave: Alasdair MacIntyre. Animalidade humana. Naturalismo Realista.

 

Introdução

O contexto do Antropoceno nos impõe a necessidade de restituir a animalitas como uma noção eticamente relevante, investigando a animalidade do anthropos, bem como a sua relação com as outras formas de vida com as quais partilhamos o mesmo ambiente e destino. Nesse sentido, o naturalismo ético parece ser um importante instrumento teórico, pois nos permite repensar a relação entre os humanos, os demais animais e a natureza – especialmente em questões como a identidade humana animal, as propriedades naturais da normatividade humana, a continuidade entre ética e natureza – sob uma base “científica” ou naturalista do mundo.

O naturalismo ético (doravante denominado apenas naturalismo) tem uma longa história, remetendo-nos ao mundo grego, especialmente a Aristóteles, e aos debates sobre o caráter natural da moralidade. Aqueles que defendem essa hipótese pertencem à tradição da lei natural e, como tal, podem ser vistos como naturalistas éticos, ou seja, endossam a ideia de que viver uma vida boa significa viver de acordo com a natureza humana, sendo tal conduta encontrada no mundo natural através do uso da razão. Contudo, o naturalismo pode ter vários significados, desde posições realistas, como as que defendem que há fatos morais objetivos e independentes da mente, sujeitos à investigação científica, a posições antirrealistas, as quais consideram que as propriedades morais não existem da mesma forma que as naturais, não sendo passíveis de serem identificadas (Faria, 2018).

Uma das posições naturalistas mais influentes é o neo-aristotelismo, visão segundo a qual a natureza humana é normativa, de tal modo que ser moralmente bom é aperfeiçoar sua própria natureza. A maioria dos neoaristotélicos são partidários da ética das virtudes (Anscombe, 1958; MacIntyre, 2007, 1999; McDowell, 1994; Hursthouse, 1999; Foot, 2001), uma abordagem ética que entende a noção de virtudes como fundamental para o empreendimento ético, cuja ideia de vida boa é essencialmente uma vida virtuosa. Para essa perspectiva, o valor de uma ação moral diz respeito à vontade do sujeito, quando esta é reta e esclarecida e ele está suficientemente informado sobre a natureza de seus desejos e sobre os seus objetos. As virtudes são compreendidas como “[...]as disposições do caráter moral do sujeito ou como as formas de orientação da sua vontade” (Canto-Sperber, 2004, p. 59). Assim, a ética das virtudes se interessa prioritariamente pelo caráter virtuoso do ser humano e por suas motivações íntimas, buscando “[...]uma explicação das virtudes que é autossustentada e central antes que derivada ou meramente complementar à teoria moral” (Slote, 2000, p. 327).

Entre os neoaristotélicos, o filósofo escocês Alasdair MacIntyre[2] propõe, em Dependent Rational Animals (1999), uma ética das virtudes naturalista, ancorada no reconhecimento da identidade animal do ser humano, juntamente com a vulnerabilidade e dependência às quais estamos submetidos, enquanto animais biologicamente constituídos. MacIntyre tematiza a relação entre animalidade e racionalidade humanas, em termos contínuos, reconhecendo que as práticas sociais e os bens humanos que lhes são inerentes não são apenas expressões culturais, todavia trazem consigo elementos que são próprios da espécie humana enquanto uma espécie animal. Isso implicar dizer que a capacidade de florescimento não é uma característica exclusivamente humana: o conceito de florescimento é aplicável também a membros de diferentes espécies de animais e plantas.

MacIntyre ressalta que, ao usar o termo “bem” como referência direta ao florescimento dos membros de algumas espécies animal ou vegetal enquanto membros dessas espécies, está oferecendo uma interpretação naturalista do bem. Contudo, ele não deixa claro com que tipo de naturalismo está comprometido, não fornecendo maiores explicações sobre o que entende por bem natural e nem apresentando detalhes acerca de como resolver essa questão da relação entre o bem e suas propriedades naturais. Assim, cabe-nos interrogar que tipo de naturalismo MacIntyre endossa. Seu naturalismo atende aos requisitos mínimos de uma proposta naturalista neoaristotélica atualizada? Essas são algumas das questões que analisaremos no decorrer desse texto.

 

1 O naturalismo ético neoaristotélico

O naturalismo tem como ponto de partida a ideia de que a ética pode ser entendida nos termos das ciências naturais. Nesse sentido, “[...]uma forma mais específica de fazer isso é dizer que as propriedades morais (tais como bondade e retidão) são idênticas às propriedades ‘naturais’, isto é, as propriedades que figuram em descrições ou explicações científicas das coisas” (Rachels, 2000, p. 74). E a tarefa de um naturalista consiste, então, em fornecer credenciais racionais para nossas crenças sobre quais traços de caráter são virtudes, submetendo-os ao escrutínio reflexivo e à justificação racional.

O naturalismo também é um termo geralmente utilizado para versões compatibilizadas de naturalismo e realismo moral. Ao proceder dessa forma, “[...]tal posição assume a estratégia metodológica do naturalista e a condição ontológica do realista em moral como uma poderosa combinação tanto para a defesa de fatos morais objetivos, quanto para a explicação da relação entre propriedades morais e propriedades naturais” (Barbosa, 2015, p. 39-40). O naturalismo procura, por isso, explicar o fenômeno moral recorrendo a fatos naturais, buscando justificar e analisar questões relacionadas ao valor moral sob uma base “científica” ou naturalista do mundo.

Nessa linha, o naturalismo pode ser definido com base em duas propriedades: (a) propriedades éticas como a bondade das pessoas, traços de caráter e outras coisas porque a correção ou a incorreção das ações são propriedades naturais do mesmo tipo que as propriedades investigadas pelas ciências e (b) elas [propriedades éticas] devem ser investigadas da mesma forma que geralmente investigamos as propriedades pela ciência (Sturgeon, 2006, p. 92). Contudo, essa ainda é uma definição preliminar do naturalismo, pois uma compreensão mais exata depende do que cada partidário concebe por propriedades naturais, a forma adequada de investigar tais propriedades, o que deve contar como uma visão naturalista de mundo. Acontece que, de fato, essas noções-chave foram entendidas de diferentes formas no debate sobre o naturalismo ético, como é o caso dos neoaristotélicos, os quais o compreendem sob uma perspectiva metafísica.

Na perspectiva neoaristotélica, o naturalismo vem sendo explorado por inúmeros pensadores e pensadoras como base de fundamentação para uma ética das virtudes naturalista. A reabilitação da ética das virtudes, no debate moral contemporâneo, embora possa retroceder a Elizabeth Anscombe, se deve ao trabalho de nomes como Michael Thompson, John McDowell, Philippa Foot, Rosalind Hursthouse e Alasdair MacIntyre. O ponto de partida do naturalismo neoaristotélico é a ideia de que a natureza humana é normativa, de tal maneira que ser moralmente bom é aperfeiçoar sua própria natureza. Nesse sentido, os seres humanos são uma espécie de animal social para o qual existe uma forma característica, cujo pleno florescimento serve de parâmetro para avaliar o quão bem um indivíduo particular realiza esse modo de vida humano (Brown, 2008, p. 1).

Recorrendo a Aristóteles, o naturalismo neoaristotélico apoia-se numa concepção de natureza humana segundo a qual os seres humanos têm uma natureza específica que determina, de forma apropriada, seus fins e metas. Trata-se de um esquema que compreende, por um lado, a natureza humana tal como é, em estado bruto, movida por desejos e paixões ainda não instruídos; a natureza humana tal como poderia ser, se realizasse sua essência ou seu verdadeiro fim; e, por outro lado, um conjunto de preceitos éticos que possibilitam a passagem de um estado não instruído para um estado de natureza humana instruída. Temos, pois, um esquema tríplice no qual a natureza humana em estado natural é inicialmente discrepante e discordante dos preceitos da ética e precisa ser transformada pela educação e experiência da razão prática em natureza humana como ela poderia ser se realizasse o seu telos. Essa concepção de natureza humana pressupõe, portanto, a passagem de seu estado natural (não instruído) para um estado humano educado (instruído), durante a qual o ser humano vai descobrindo sua própria essência (MacIntyre, 2007, p. 52).

Nessa perspectiva, o domínio ético é um espaço de razões a que acedemos através da educação moral e que enquadra os hábitos de pensamento e de ação que constituem a nossa segunda natureza, no âmbito da qual a realidade se manifesta dotada de sentido e valor. A natureza humana é em larga medida segunda natureza, a qual é constituída não apenas por conta das potencialidades com que nascemos, mas também por conta do processo educativo. Assim, “[...] dada a noção de segunda natureza, podemos dizer que o modo como as nossas vidas são moldadas pela razão é natural, mesmo negando que a estrutura do espaço das razões possa ser integrada na estrutura do domínio da lei” (McDowell 1994, p. 87-88). O naturalismo neoaristotélico pode ser compreendido, por conseguinte, como uma teoria acerca do caráter normativo da natureza humana e do bem humano como realização dessa natureza.

Christopher Toner (2008, p. 234-236) formula quatro requisitos mínimos para que uma concepção naturalista seja considerada plausivelmente neoaristotélica:

1)   As normas naturais devem ser intrinsecamente capazes de motivar o portador da natureza;

2)    As normas naturais devem ser intrinsecamente capazes de justificar-se perante o portador da natureza;

3)    As normas naturais devem estar ancoradas e expressar a natureza humana universal;

4)    A primeira e a segunda natureza devem estar relacionadas de modo que a segunda seja uma consequência natural da primeira e de forma que, em nossa constituição aquilo que é dado (primeiro) como natural, tende a uma segunda natureza eticamente madura.

Nesse sentido, os dois primeiros requisitos estão relacionados ao caráter normativo da natureza humana e à sua capacidade de estabelecer e justificar desejos e valores moralmente bons com base em normas naturais. Os outros têm como pano de fundo uma concepção de natureza humana universal, capaz não apenas de expressar os compromissos desta ou daquela cultura em particular, porém, explicar a própria moralidade e seu caráter específico, como também justificá-la racionalmente.

 

2 Animalidade humana, florescimento e virtudes em Alasdair MacIntyre

O naturalismo de MacIntyre tem como ponto de partida uma abordagem da animalidade e da racionalidade humanas em termos contínuos: “[...] a identidade humana é primariamente, ainda que não unicamente, corporal e, portanto, identidade animal; e é por referência a essa identidade que as continuidades de nossas relações com os outros são parcialmente definidas” (MacIntyre, 1999, p. 8). Nossos corpos são corpos animais com identidade e continuidade de corpos animais, pois “[...] embora transcendamos algumas das limitações de outros animais inteligentes, nós nunca nos separamos inteiramente daquilo que partilhamos com eles” (MacIntyre, 1999, p. 8). Na verdade, “[...] a capacidade para transcender essas limitações depende em parte de algumas dessas características animais, entre elas o caráter de sua identidade” (MacIntyre, 1999, p. 8).

Assim, todo o nosso comportamento corporal inicial em relação ao mundo é originariamente um comportamento animal. A segunda natureza que formamos culturalmente, com o uso da linguagem, inclui um conjunto de transformações somente parciais de nossa primeira natureza animal. Há uma relação de continuidade entre a primeira natureza (animal) e a segunda natureza (educada), na qual a segunda natureza fornece razões que motivam ou justificam o desenvolvimento de cada indivíduo em particular. É que nunca nos tornamos totalmente independentes de nossa natureza e herança animal, pois “[...] continuamos seres animais com identidades animais” (MacIntyre, 1999, p. 49).

Mesmo o processo de aquisição da linguagem se apoia num conhecimento interpretativo mais fundamental e primário, anterior ao uso da linguagem, o qual não tem e nem precisa ter uma justificativa inferencial. Existe uma distinção pré-linguística elementar entre verdade e falsidade incorporada nas mudanças de crenças que surgem como respostas imediatas de nossas percepções e provocam mudanças nas nossas crenças. A aquisição da linguagem nos capacita a caracterizar e a refletir sobre como fazer nossas distinções pré-linguísticas e não linguísticas em formas inteiramente novas, mas há uma importante continuidade entre as capacidades pré-linguísticas e linguísticas: “[...] a primeira providencia matéria para a caracterização pelo exercício da última e, em assim fazendo, estabelece constrangimentos na aplicação dos conceitos de verdade e falsidade que são providenciados pela e na linguagem” (MacIntyre, 1999, p. 36-37).

Nesse sentido, grande parte do que temos de animal inteligente em nós não é especificamente humano, uma vez que, mesmo quando usamos a linguagem reflexivamente para proferir sentenças bem-formadas sobre o que aprendemos por meio das nossas percepções, ainda nos apoiamos, até certo ponto, em capacidades naturais anteriores ao uso de nossos poderes linguísticos. É que expressamos, em nossas crenças, exatamente os mesmos tipos de reconhecimentos, discriminações e exercícios de atenção perceptual nos quais certos tipos de animais não humanos também se apoiam e dão expressão em suas crenças que lhes guiam as ações (MacIntyre, 1999, p. 40).

Desse ponto de vista, algumas das razões porque os seres humanos necessitam das virtudes são compartilhadas com outras espécies animais, as quais também têm razões pré-linguísticas para ação, que se estendem para além da nutrição e reprodução, porque alguns desses “simples animais” já são guiados por uma forma de raciocínio prático que se manifesta no fato de que assumir isto é uma razão para fazer aquilo, “[...] um tipo de raciocínio que é caracterizado por analogia com o entendimento humano, de modo que algumas das condições pré-linguísticas necessárias para o desenvolvimento da racionalidade humana sejam satisfeitas” (MacIntyre, 1999, p. 60).

As fontes principais do naturalismo macintyriano são Aristóteles e Darwin. Aristóteles não teria cometido o erro de separar a racionalidade humana de sua animalidade, atribuindo capacidade phronética, tanto a alguns animais não humanos, como aos seres humanos. Com Darwin deveríamos ter apreendido que a história humana, antes de qualquer coisa, é “[...] a história natural de uma espécie animal a mais e que sempre pode ser necessário, e muitas vezes o é, compará-la com histórias de algumas outras espécies animais” (MacIntyre, 1999, p. 11-12). Ao contrário da maioria dos aristotélicos, ao mencionar Darwin e o naturalismo moderno pós-darwiniano, MacIntyre “[...] reconhece acertadamente que não é possível falar de biologia sem levar em consideração o darwinismo, pois qualquer consideração substantiva do florescimento humano deve levar em consideração sua biologia animal” (Glackin, 2008, p. 293).

MacIntyre pensa a relação humano/animal em termos continuum e não como cesura ontológica, pois, apesar de transcender sua condição animal inicial, os seres humanos nunca se separam inteiramente do que eles têm em comum com os demais animais. Na verdade, há continuidade e semelhança entre aspectos das atividades inteligentes de animais não humanos e a racionalidade prática dos seres humanos dotados de linguagem (MacIntyre, 1999, p. 13). O vínculo entre o pré-linguístico e o linguístico, fundamental para se compreender a linguagem humana, põe em questão a única linha clara entre aqueles que possuem linguagem e aqueles que não a possuem. É que o exercício de alguns desses poderes pré-linguísticos provê o que, nos seres humanos, se torna material crucial para a linguagem, e “[...] em nenhum lugar esse vínculo entre o linguístico e o pré-linguístico é mais notável do que na relação entre razões pré-linguísticas para ação e os tipos de razão para ação tornada possível somente pela posse da linguagem” (MacIntyre, 1999, p. 51).

Por conseguinte, reconhecer que existem essas pré-condições animais para a racionalidade humana exige que pensemos as relações dos seres humanos com membros de outras espécies inteligentes, não nos termos de uma única linha divisória entre “eles” e “nós”, contudo, numa perspectiva escalonar: em um extremo dessa escala existem tipos de animais para os quais a percepção sensorial não é mais que a recepção de informação sem conteúdo conceitual; no outro extremo, existem os animais cujas percepções são, em parte, o resultado de uma investigação intencional e atenta e cujos comportamentos mudam para ajustar-se segundo o verdadeiro e o falso (MacIntyre, 1999, p. 57).

Não há dúvida de que o ser humano ocupa um lugar superior nessa escala e que ele se distingue dos demais animais tanto pelo uso da linguagem quanto também pela capacidade de empregar essa linguagem em casos específicos. Entretanto, observa MacIntyre, isso não elimina o que partilhamos com outras espécies animais, “[...] não apenas no que diz respeito à animalidade corporal, mas também quanto às formas de vida” (MacIntyre, 1999, p. 58).

É que, para MacIntyre, o nosso desenvolvimento enquanto espécie, os bens concretos que almejamos em nossas diferentes atividades sociais, isto é, o modo como florescemos enquanto seres humanos não é uma característica exclusivamente nossa – o florescimento é um conceito aplicável igualmente a membros de diferentes espécies de animais e plantas (MacIntyre, 1999, p. 64). A capacidade de identificar perigos e ameaças às quais determinada espécie animal está exposta pressupõe uma determinada noção do que seja o florescimento daquela espécie, do que significa o florescimento dessa determinada espécie e, consequentemente, dos bens particulares a serem obtidos em diferentes tipos de atividades nas quais seus membros estão inseridos, em diferentes estágios de suas vidas, para seu desenvolvimento natural e seu bem-estar. Análogo à ação humana, dizer que uma determinada espécie animal tem razões para agir é dizer que quando ela percebe que, agindo intencionalmente, de uma forma x ou y, ela alcançará algum bem particular. Assim, quando aludimos ao florescimento de uma determinada espécie animal, quer humana, quer não, usamos o verbo “florescer” no mesmo sentido. O que é florescer não é, obviamente, o mesmo para cada espécie particular, todavia é um e o mesmo conceito de florescer que encontra aplicação em membros de diferentes espécies de animais: “[...] estes são exemplos de expressões unívocas e não analógicas” (MacIntyre, 1999, p. 64).

De acordo MacIntyre, o florescimento é uma questão de fato e, enquanto tal, podemos encontrar respostas em diversos campos científicos. A biologia e a ecologia têm esclarecido certos temas preliminares cujo conhecimento é necessário para formular algumas explicações: a distinção entre aqueles ambientes nos quais florescem os membros de algumas espécies e aqueles em que não chegam a florescer, assim como a distinção, dentro de uma população particular, entre os indivíduos ou grupos que florescem e os que não florescem. Segundo MacIntyre (1999, p. 65), “[...] estabelecer bem estas distinções envolve identificar as várias características necessárias para que um indivíduo ou população de uma espécie particular floresça neste ou noutro ambiente particular, neste ou noutro estágio de seu desenvolvimento”. Florescer enquanto membro de uma espécie envolve, portanto, uma dimensão objetiva, na medida em que é possível determinar, recorrendo a fatos empíricos, as condições necessárias para que o florescimento de uma determinada espécie ocorra.

Contudo, apesar de ser uma questão de fato, o significado do florescimento humano varia conforme o contexto, pois só podemos tratar do florescimento de um indivíduo quando este desenvolve “[...] as capacidades próprias do raciocinador prático independente” (MacIntyre, 1999, p. 77). A despeito de outros seres vivos florescerem, o que é próprio e exclusivo do florescimento humano é o desenvolvimento dessa independência. Nesse sentido, o ser humano precisa aprender a ver a si mesmo como raciocinador prático, tanto em relação aos seus bens específicos enquanto tais, quanto em relação à melhor ação a ser realizada em situações concretas e à melhor forma de viver, pois, “[...] sem aprender isso, ele não floresce” (MacIntyre, 1999, p. 67).

MacIntyre ressalta, entretanto, que esse processo de deliberação racional exige que os seres humanos, diferentemente dos demais animais, passem por uma etapa a mais, na qual eles aprendem a separar-se de seus desejos; sem essa habilidade, não seria possível mapear o progresso do estágio mais inicial da criança à condição de um adulto capaz de fazer julgamentos independentes. Segundo ele, para desenvolver suas faculdades como raciocinador prático independente e, portanto, florescer enquanto membro de sua espécie, cada indivíduo deve passar de uma situação inicial de mero aprendiz para um nível onde tenha condições de fazer seus próprios julgamentos, de forma independente, a respeito do bem – julgamentos que “[...] podemos justificar racionalmente para nós mesmo e para os outros como oferecendo boas razões para agir de uma determinada maneira e não de outra” (MacIntyre, 1999, p. 71).

Quando menciona esse traço fundamental da espécie humana, que é a racionalidade prática, cujo exercício torna possível modos especificamente humanos de florescer, MacIntyre reconhece que está se referindo ao exercício da racionalidade humana em contextos culturais e econômicos muito distintos. O que significa florescer varia de um contexto para outro, porém, “[...] em cada contexto é como alguém exercita de um modo relevante as capacidades de um raciocinador prático independente que suas potencialidades para florescer de uma forma especificamente humana são desenvolvidas” (MacIntyre, 1999, p. 77).

Não obstante, saber em que consiste o florescimento requer uma investigação conceitual e valorativa, pois florescer significa sempre florescer em virtude de possuir tal e tal conjunto de características, pois quando afirmamos que um indivíduo, grupo ou população florescem, queremos dizer algo mais e não apenas que possuem aquelas características descritas. É que florescer significa sempre florescer em virtude da posse de certo conjunto de características e, nesse sentido, “[...] o conceito de florescimento se assemelha a outros conceitos que implicam a aplicação do conceito mais fundamental de bem (‘florescer’ se traduz como eu zen e bene vivere)” (MacIntyre, 1999, p. 65).

Como neoaristotélico, MacIntyre considera que existem, pelo menos, três diferentes formas de atribuição do bem:

a) como meio para atingir outro bem que é um bem em si: possuir certas habilidades, dispor de certas oportunidades, estar no lugar certo e na hora certa, são exemplos desse tipo de bem, pois permitem ao indivíduo ter, fazer ou alcançar outros bens;

b) em função de uma atividade ou prática socialmente estabelecida: julgar como bom um agente e sua ação em função dos bens intrínsecos dessa prática que se busca por si mesmos, de acordo com as circunstâncias sociais – esses bens são adquiridos através da participação nessas práticas concretas;

c) como membro da espécie humana: faz-se necessário, assim, distinguir entre o que faz com que certos bens sejam bens, e bens valiosos por si mesmos, do que faz com que, para um determinado indivíduo ou sociedade, em determinada situação concreta, seja bom convertê-los em objetos de consideração prática.

O juízo sobre o que é melhor para a vida de um indivíduo ou comunidade – a melhor maneira de ordenar seus bens –, não apenas enquanto agente que participa de uma ou outra atividade em uma ou outra comunidade, mas também enquanto ser humano, ilustra a terceira forma de atribuição do bem. Este é, portanto, um juízo sobre o florescimento humano, sua finalidade última, seu telos (MacIntyre, 1999, p. 65-67).

 

3 O naturalismo realista macintyriano

Diante do exposto, não resta dúvida de que MacIntyre é um naturalista. Mas que tipo de naturalismo o filósofo endossa? Seu naturalismo atende aos quatro requisitos mínimos exigidos pelo naturalismo neoaristotélico anteriormente mencionados?

Antes de mais nada, vale a pena notar que MacIntyre vincula explicitamente seu naturalismo à tradição da lei natural, na medida em que, quanto ao florescimento humano, as normas funcionam como prescrições negativas da lei natural e atuam como limite ao tipo de vida em que esse telos humano é alcançado: “[...] as normas, que são os preceitos negativos da lei natural, não fazem mais do que pôr limites a este tipo de vida e, ao fazê-lo, definem parcialmente o tipo de bondade a que se aspira” (MacIntyre, 1990, p. 139). Nesse sentido, “[...] progredir tanto na investigação moral como na vida moral é, portanto, progredir na compreensão de todos os diversos aspectos dessa vida: é entender as normas, os preceitos, as virtudes, as paixões e as ações como partes de um único todo” (MacIntyre, 1990, p. 139).

A concepção de lei natural em MacIntyre é profundamente devedora de Tomás de Aquino, especialmente de sua distinção de lei enquanto princípio regulador:

[...] os preceitos da lei natural são aqueles preceitos promulgados por Deus através da razão, cuja não conformidade impede os seres humanos de alcançar o bem comum[3]. Entretanto, os preceitos da lei natural são mais do que normas, pois entre eles estão aqueles preceitos que nos ordenam a fazer o que as virtudes exigem de nós (MacIntyre, 1999, p. 111).

 

É um fator distintivo dessa concepção de lei natural fundamentar a existência de normas que não admitem exceção, em uma natureza de caráter teleológico que inclui o caráter biológico, racional e social do ser humano. MacIntyre adere a essa concepção de lei natural, “[...] não simplesmente se remetendo ao que Santo Tomás expõe como lei natural, mas apresentando uma explicação desenvolvida do Aquinate sobre ela” (Cézar, 2009, p. 229-230).

Dessa maneira, “[...] os preceitos da lei natural são vistos como direcionando-nos para os fins estabelecidos para nós por nossa natureza, como articulações de nossas inclinações naturais, e são, portanto, perfeitamente adequados para motivar quem os compreende a segui-los” (Toner, 2008, p. 241). As inclinações naturais dão origem a preceitos quando um agente passa a compreender e a apropriar-se de sua própria natureza, a tornar seus os fins estabelecidos por sua natureza. Conforme MacIntyre, “[...] o bem humano só pode ser alcançado através de uma forma de vida cujos preceitos positivos e negativos da lei natural governam nossas relações” (MacIntyre, 1994, p. 173). Assim, ao compreender as normas naturais nos termos estabelecidos pela lei natural, MacIntyre se compromete fortemente com o naturalismo neoaristotélico, reconhecendo o caráter normativo da natureza humana e sua capacidade de instaurar e justificar desejos e valores moralmente bons com base em normas naturais (Toner, 2008, p. 241).

Quanto ao caráter universal da natureza humana, MacIntyre opera com uma visão essencialista do ser humano derivada de Aristóteles e Tomás de Aquino, cujo conceito de ser humano é funcional: “[...] os argumentos morais dentro da tradição aristotélica clássica – tanto em sua versão grega como medieval – envolvem pelo menos um conceito funcional central, o conceito de homem compreendido como ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou função essencial” (MacIntyre, 2007, p. 58). Nessa tradição, uma forma natural implica ou inclui a função própria do ser que a possui, cuja realização é seu verdadeiro bem, o qual se orienta e se adquire através das virtudes (Fuller, 1998, p. 5).

Assim, dizer que “x” é bom (donde “x” pode ser, entre outras coisas, uma pessoa ou um animal, ou uma política ou circunstância) é afirmar que é o tipo de “x” que alguém escolheria se quisesse um x para a finalidade para a qual normalmente se quer “x”. O pressuposto desse uso de “bom” é que todo tipo de objeto que seja apropriado para se dizer que é bom ou ruim – pessoas e atos inclusive – tem, de fato, alguma finalidade ou função específica. Dizer que algo é bom, portanto, é fazer igualmente uma declaração factual. Dizer que determinado ato é justo ou certo é considerar que ele é o que um homem bom faria em tal situação; por conseguinte, esse tipo de declaração também é factual. Dentro dessa tradição, pode-se sustentar que as declarações morais e normativas são verdadeiras ou falsas exatamente como se pode dizer de todas as outras declarações factuais (MacIntyre, 2007, p. 59).

Como herdeiro dessa tradição teórica, MacIntyre vê o ser humano individual como “[...] uma unidade na qual os diferentes aspectos de sua existência espiritual e social estão organizados segundo uma ordenação hierárquica em um modo de vida unificado” (MacIntyre, 1990, p. 143). Apesar de cada um desses diferentes aspectos da existência humana ter sua própria importância, “[...] as virtudes que informam conjuntamente as ações de um eu integrado são também as virtudes da comunidade política bem ordenada” (MacIntyre, 1990, p. 143). Nesse sentido, nossos traços de caráter específicos são vinculados instrumentalmente por necessidades naturais, cuja habilidade de bom raciocinador prático e, ao mesmo tempo, a força normativa do bom raciocínio prático são informados pelo conteúdo moral das virtudes. Na medida em que vai progredindo na busca pela realização de seu telos, o indivíduo vai percebendo que sua concepção subjetiva de bem está integrada a concepções mais abrangentes de bem, pois ele é não apenas um eu pessoal, mas também um ser social e biologicamente constituído.

Trata‐se, portanto, de uma tentativa de fundamentação da moralidade num naturalismo realista, uma vez que faz assentar a justificação da moralidade em fatos acerca da vida humana que tornam necessárias certas ações morais. É que o naturalismo de MacIntyre parece comprometê-lo com algumas teses básicas do realismo moral, quais sejam, (1) a ideia de que os predicados morais se referem a propriedades morais, de modo que os enunciados morais representam fatos morais, (2) que algumas dessas proposições morais são, de fato, verdadeiras, (3) que essas propriedades morais possuem a mesma natureza básica de outras propriedades (Väyrynem, 2008, p. 1). Os naturalistas realistas sustentam que propriedades morais existem e possuem a mesma natureza básica de outras propriedades, não havendo uma distinção especial entre predicados morais e predicados descritivos ordinários, pois as afirmações morais expressam crenças comuns que têm a mesma natureza básica de outras crenças. As propriedades morais são, por isso, propriedades naturais.

MacIntyre endossa, então, um tipo de naturalismo realista, no qual o ser humano é compreendido como animal racional e dotado de corpo e também como animal social e mutuamente dependente, de sorte que nossas ações, assim como nossos corpos, têm antecedentes animais que informam nosso comportamento ético (Knight, 2008, p. 326-327). A força de seu naturalismo decorre do fato de que, embora concorde com a centralidade da segunda natureza, ele a concebe como desenvolvimento e consequência natural da primeira natureza dos animais racionais e dependentes que somos nós. Além disso, ao concebê-las em termos contínuos, MacIntyre evita o recurso a algo “externo” à própria natureza humana para justificação normativa, apontando as virtudes, enquanto características adquiridas que preparam os seres humanos para o exercício da racionalidade prática para a qual a natureza humana partilhada os dirige, como essenciais para o florescimento humano. Com isso, seu naturalismo parece satisfazer os quatro requisitos (anteriormente mencionados) necessários para se formular um naturalismo neoaristotélico atualizado e ir além ao se comprometer também com algumas teses básicas do realismo moral.

 

Considerações finais

Como vimos, o naturalismo neoaristotélico, uma das posições mais influentes no debate moral contemporâneo, concebe a natureza humana em termos normativos, de tal maneira que ser moralmente bom é aperfeiçoar sua própria natureza. Os naturalistas neoaristotélicos estão comprometidos com quatro requisitos mínimos, a saber, que as normas naturais devem ser intrinsecamente capazes de motivar o portador da natureza e justificar-se perante tal portador, que tais normas devem estar ancoradas e expressar a natureza humana universal e que a primeira e a segunda natureza devem estar relacionadas, de sorte que a segunda seja uma consequência natural da primeira, e de forma que, em nossa constituição, aquilo que é dado (primeiro) como natural tende a uma segunda natureza eticamente madura.

MacIntyre não apenas se reconhece como um naturalista neoaristotélico, como se compromete fortemente com tal posição teórica, ao propor uma ética das virtudes naturalista, ancorada no reconhecimento da identidade animal do ser humano, juntamente com a vulnerabilidade e dependência às quais estamos submetidos, enquanto animais biologicamente constituídos, tematizando a relação entre animalidade e racionalidade humanas em termos contínuos. O florescimento é um conceito biológico, aplicável tanto ao ser humano quanto a diversas espécies animais e vegetais. Nesse sentido, as características requeridas para que o florescimento ocorra são características naturais, inerentes à constituição biológica de cada espécie. Por conseguinte, as virtudes, enquanto características essenciais ao florescimento humano, são entendidas também em termos naturalistas.

MacIntyre busca fundamentar a moralidade num tipo de naturalismo realista, na medida em que faz assentar a justificação da moralidade em fatos acerca da vida humana que tornam necessárias certas ações morais. E com isso, seu naturalismo está comprometido com algumas teses básicas do realismo moral, especialmente aquelas que tratam da relação entre propriedades morais e propriedades naturais, predicados morais e fatos morais, propriedades morais e outras propriedades descritivas. MacIntyre endossa, pois, um tipo de naturalismo realista, no qual o ser humano é compreendido como animal racional e dotado de corpo e também como animal social e mutuamente dependente, de modo que nossas ações, tal como nossos corpos, têm antecedentes animais que informam nosso comportamento ético. Contudo, seu naturalismo não se prende às teias do naturalismo científico, não reduzindo o trabalho teórico no âmbito moral a uma descrição empírica de certos dados e comportamentos (Carvalho, 2010, p. 167).

 

Human animality and realistic naturalism in Alasdair MacIntyre

Abstract: Neo-Aristotelian philosopher, Alasdair MacIntyre, proposes, in Dependent Rational Animals (1999), a naturalistic virtue ethics, anchored in the animal identity of human beings, together with the vulnerability and dependence to which we are subjected, as biologically constituted animals. He recognizes that, by using the term “good” as a direct reference to the flourishing of members of some animal or plant species as members of those species, he is offering a naturalistic interpretation of the good, but he does not make clear what kind of naturalism he is committed to, not providing further explanations about what is understood by natural good and not presenting details about how to resolve this issue of the relationship between the good and its natural properties. So, we must ask what kind of naturalism does MacIntyre endorse. Does his naturalism meet the minimum requirements of an updated neo-Aristotelian naturalist proposal? These are some of the questions that we will analyze throughout this text.

 

Key-Work: Alasdair MacIntyre. Human animality. Realistic Naturalism.

 

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Recebido: 17/04/2024 – Aprovado: 20/05/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, PI - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5288-0703. E-mail: jose_elielton@yahoo.com.br.

[2] Sobre o giro tomista na filosofia de Alasdair MacIntyre, ver Lutz 2004; Sousa 2015.

[3] Sobre esse caráter fortemente metafísico da concepção de lei natural, em MacIntyre, ver Sousa, 2017; Gonçalves, 2018.