Tempo maquínico: contribuição para uma ritmologia do Capital

 

Guilherme Foscolo[1]

 

Resumo: Trata-se de pensar o ritmo da modernidade como resultado da dinâmica sociotécnica do Capital. Argumenta-se que a contínua transformação dos meios de produção e a disseminação de novas tecnologias tornam cada vez mais sintomáticas sensações de aceleração e estagnação – as quais reportam a um mesmo regime de temporalidade, aqui nomeado de “maquínico”. Atribui-se à sociotécnica capitalista um efeito específico de programação dos nossos corpos, sensações e percepção. Por fim, propõe-se a análise de Stimmungen como uma ferramenta teórica que poderia facilitar a detecção de respostas estéticas úteis para a caracterização de distintos regimes sociotécnicos/de temporalidade.

 

Palavras-chave: Ritmo. Modernidade. Estética. Stimmung. Filosofia da História.

 

Daí o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de trabalho se converte no meio infalível de transformar todo o tempo de vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital (Marx, O Capital).

 

Introdução

Ritmo: a palavra possui uma fortuna que permite transitar da sua acepção “moderna” – enquanto configuração de movimentos (des)ordenados no tempo – para a sua acepção original, resgatada da antiguidade grega por Émile Benveniste (1976), enquanto configuração dos elementos também no espaço.[2] “Por onde exista interação entre um lugar, um tempo e um dispêndio de energia”, assevera Henri Lefebvre (2021, p. 68), “[...] existe ritmo”. À vida moderna, a ela sempre nos referimos como um barulhento devir, uma shakespeariana tempestade de som e fúria: os ruídos vêm das ruas, dos carros e suas buzinas, e há ainda os aviões, helicópteros, as máquinas (de lavar roupas, da construção civil, o trem e o metrô), o aparelho de TV e o rádio – hoje substituídos pelos smartphones, diante dos quais as vozes das massas se convertem em uma estática apaziguadora de fundo. A dinâmica rítmica da modernidade – ou a modernidade enquanto ritmo – remete ao movimento de destruição/renovação de um tipo de urbanidade que se cumpriu como mundo.

Sobre essa característica marcadamente moderna da mudança enquanto única constante, Marx e Engels (2007, p. 43) escrevem: na vida moderna, “[...] tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar”. Baudelaire (1996, p. 26), em O Pintor da Vida Moderna, frisa que “[...] a modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a outra metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”. E, claro, Benjamin descreve o progresso na modernidade numa famosa passagem em Sobre o Conceito de História:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (Benjamin, 1994, p. 226).

 

Essa sensação de aceleração se liga diretamente à pervasividade de uma nova disponibilidade tecnológica, e que, como veremos, já se faz sentir ao menos desde o início da era moderna. No século XIX, ela será cristalizada em um novo tipo de ansiedade humana em “estar no mundo”, e provoca como resposta uma obsessão com a captura desse mundo em aceleração. A primeira parte deste texto buscará, assim, “isolar” e localizar essa obsessão em seu horizonte de cristalização – através da análise de algumas obras de Jacques Louis-David, Honoré de Balzac e Francisco de Goya. A partir daí, essa ansiedade passará a se manifestar em sucessivos experimentos artísticos de captura, descrição, organização ou reorganização da passagem do tempo – não por acaso, foi no início do século XX que, nos EUA, a música explodiu numa pletora de gêneros e subgêneros.[3] Em Silêncio, John Cage – aluno de Arnold Schoenberg e uma das figuras mais importantes da vanguarda musical, no finado século XX – nos dá uma pista do que pode estar ocorrendo:

Onde quer que estejamos, o que ouvimos é majoritariamente ruído. Quando o ignoramos, ele nos perturba. Quando o ouvimos, nós o achamos fascinante. O som de um caminhão a cinquenta milhas por hora. A estática entre as estações. Chuva. Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais. Todo estúdio de cinema tem uma biblioteca de “efeitos sonoros” gravados em filme. Com um fonógrafo de filme, hoje é possível controlar a amplitude e a frequência de qualquer desses sons e dar a eles ritmos dentro ou além do alcance da imaginação. Com quatro fonógrafos de filme, podemos compor e executar um quarteto para motor explosivo, vento, batimento cardíaco e deslizamento de terra[4] (Cage, 1961, p. 3).

 

Se levarmos suas palavras a sério, todas as experiências musicais do século XX passam a nos comunicar algo em comum: elas também constituem tentativas de domesticação do ruído, de se orquestrar o ritmo da vida moderna e, por conseguinte – do mundo. Atesta isso, por exemplo, o experimentalismo em jazz de George Gershwin, na década de 1920, como tornam evidente, por exemplo, Rhapsody in Blue (1924) ou An American in Paris (1928) – ambas inspiradas por uma viagem de trem para Boston:

Foi no trem, com seus ritmos de aço, seu chocalhar estridente que muitas vezes é tão estimulante para um compositor… eu frequentemente ouço música no coração do próprio ruído. E então de repente ouvi — e até mesmo vi no papel — a construção completa da rapsódia do começo ao fim... eu a ouço como uma espécie de caleidoscópio musical da América — do nosso vasto caldeirão cultural, da nossa vitalidade nacional sem igual, da nossa loucura metropolitana[5] (Ron, 1998, s/p).

 

O que parece ocorrer é um “transbordamento” rítmico – resultante da torrente que se impõe enquanto novo modo de produção, de sua contínua transformação dos meios de produção e disseminação de novas tecnologias – e que torna cada vez mais sintomáticos efeitos de ressonância e ruído, sincronia e assincronia. “A mercadoria arrasta tudo”, enfatiza Lefebvre (2021, p. 57):

[...] o espaço (social) e o tempo (social), dominados pelas trocas, se tornam o tempo e o espaço dos mercados; incorporam-se nos produtos, [...] incluindo ritmos. O cotidiano se estabelece, criando exigências, horários, transportes, em resumo, sua organização repetitiva.

 

Descrever a relação entre o desenvolvimento de novas tecnologias/meios de produção, o acúmulo de Capital e as sensações de aceleração/estagnação – com o que o ritmo das fábricas se confunde com o ritmo da própria vida – é do que trata o segundo momento do texto: a essa temporalidade que se liga fundamentalmente a um regime tecnológico específico de produção e repetição dou o nome de “tempo maquínico”. Argumento, então, através do conceito de tecnopoiesis, como tal regime rítmico – o qual Harry Harootunian (2017) afirma impor “uma ritmologia universal” – reflete de volta para os nossos corpos a programação do modo de produção do qual se retroalimenta – o Capitalismo. Por fim, proponho a análise de Stimmungen como um instrumento teórico, o qual possibilitaria a detecção de respostas estéticas úteis para a caracterização de distintos horizontes sociotécnicos/regimes de temporalidade.

 

1 Sintoma

Em 1790, Jacques-Louis David – amigo próximo de Jean-Paul Marat e Maximilien de Robespierre, e que se tornaria o pintor mais conhecido da Revolução Francesa – inicia a pintura de O Juramento da Quadra de Tênis (Le Serment du Jeu de Paume), obra encomendada pelo Clube dos Jacobinos, para imortalizar o juramento assinado pelos representantes do Terceiro Estado. A história é conhecida, mas cabe uma sinopse: em 20 de junho de 1789, os (algo em torno de) seiscentos representantes do Terceiro Estado – já radicalizados em uma Assembleia Nacional – foram trancados, por determinação de Luís XVI, do lado de fora do salão onde normalmente se reuniam em Versailles. O local mais próximo com tamanho suficiente para abrigar a Assembleia era uma quadra de tênis – para onde foram e juraram não se separar até que uma nova Constituição fosse redigida. Na prática, a Assembleia Nacional se estabelecia, assim, como único governo legítimo da França – o que forçou Luís XVI, após algumas fracassadas tentativas de acabar com a crise, a extinguir os Estados Gerais e reconhecê-la como Assembleia Nacional Constituinte.

Com o agravamento da crise, Luís XVI aumentou a presença de sua guarda em Paris e, especialmente, no Palácio de Versailles. Em 12 de julho, a Assembleia se reuniu sob rumores de que o Rei planejava usar a guarda suíça para sufocá-la – o que resultou em protestos das massas nas ruas de Paris, com a conivência da própria guarda francesa. A população parisiense havia então constituído uma milícia própria, com o objetivo de proteger a Assembleia – a invasão do Les Invalides e, posteriormente, a tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, trataram-se ambos de esforços dessa milícia para se armar; o resultado, como se sabe, foi a própria Revolução Francesa. De volta a Jacques-Louis David: um estudo detalhado da obra é por ele apresentado no Salão de1791 (Figura 1).

 

Figura 1 – Jacques-Louis David, O Juramento da Quadra de Tênis, 1791

Fonte: Musée National du Château de Versailles/Wikicommons

 

David não poderia prever que, em 1792, já não existiria a unidade que a pintura deveria simbolizar: a Assembleia Nacional Constituinte se dividiria entre conservadores e jacobinos – e alguns dos heróis presentes em seu estudo para o Salão de 1791 já seriam vistos, então, como contrarrevolucionários. No curso da Revolução, Jean-Sylvain Bailly (presidente da Assembleia Nacional, é a figura que ocupa o centro do estudo), Maximilien de Robespierre (à direita, com as duas mãos ao peito), o conde de Mirabeau (a figura em primeiro plano à direita, olhando para cima), Antoine Barnave (logo acima de Mirabeau, com o braço estendido para Bailly), Saint-Étienne (o protestante à direita das três figuras que se abraçam em primeiro plano) e tantos outros seriam assassinados ou condenados pelo tribunal revolucionário e decapitados, e isso em uma rapidez espantosa, o que tornou impossível a conclusão da obra (uma exceção foi Emmanuel-Joseph Sieyès, assentado logo abaixo de Bailly, talvez o único no estudo a morrer de velhice).

Ao aceitar a proposta do Clube dos Jacobinos, David havia, inadvertidamente, tomado para si a inédita tarefa de registrar eventos históricos em tempo real. É curioso como, com os rápidos desdobramentos da Revolução, essa tarefa se mostrou cada vez menos propícia para a pintura, o que se vê, por exemplo, na solução de David para A Morte de Marat (Marat Assassiné, Figura 2) e no sketch de Maria Antonieta conduzida ao cadafalso (Figura 3). Após o assassinato de Marat, em 13 de julho de 1793, David – um dos idealizadores do funeral do amigo, no Panthéon – teve pouquíssimo tempo para finalizar a obra, em vista do rápido estado de decomposição do cadáver. A solução já havia sido encontrada por ele, em Os Últimos Momentos de Michel Lepeletier (Les Derniers Moments de Michel Lepeletier) – obra concluída em apenas três meses e que foi, posteriormente, supostamente destruída pela filha do próprio Lepeletier – e seria repetida, em 1794, na inacabada A Morte do Jovem Bara (La Mort du jeune Bara): a utilização de um fundo vazio e escuro.[6] O sketch de Maria Antonieta nos dá, contudo, a dimensão temporal da urgência – e que se deixa antever na obra O pintor David desenhando Maria Antonieta conduzida ao cadafalso, 1793 (Le peintre David dessinant Marie-Antoinette conduite au súplice, 1793, Figura 4), de Joseph-Emmanuel van den Büssche. A pintura representa David no suposto momento da captura do “instantâneo” – em um horizonte temporal para o qual, destaca Wolfgang Kemp (1994, p. 204), “[...] evento histórico e pintura histórica tornam-se quase idênticos”.[7]

 

Figura 2– Jacques-Louis David, A Morte de Marat, 1793

Figura 3 – Jacques-Louis David, Maria Antonieta conduzida ao cadafalso, 1793

 

Uma imagem contendo homem, mulher, verde, segurando

Descrição gerada automaticamente              Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Fig.2 Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique/Wikicommons

Fig.3 Musée du Louvre/Wikicommons

 

Figura 4 – Joseph-Emmanuel van den Büssche, O pintor David desenhando Maria Antonieta conduzida ao cadafalso 1793, 1900

Pessoas sentadas ao redor da cabeça

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: Musée de la Révolution française/Wikicommons

 

Los Desastres de la Guerra, série de 82 placas de Francisco de Goya (1863), é também produto desse tipo inédito de urgência. No ano de 1808, a convite do general José de Palafox, Goya viaja a Saragoça – e presencia assim, em primeira mão, os horrores da Guerra de Independência Espanhola (1808-1814). Embora as placas tenham sido produzidas entre os anos 1810-1820, sabe-se que Goya iniciou os esboços preparatórios – hoje disponíveis no Museo del Prado – ainda em outubro de 1808, o mesmo mês de sua viagem a Saragoça. A gravura 44, na qual se lê “yo lo vi”, aproxima Goya do David de van den Büssche – em um esforço de captura de eventos em tempo real.

Na primeira placa da série, lê-se “tristes presentimientos de lo que ha de acontecer”: ela retrata frontalmente um indivíduo de joelhos, com os braços abertos, sobre o qual se projeta ao fundo uma penumbra em que se destacam algumas formas monstruosas. As placas 2 (“con razón ó sin ella”, Figura 5) e 3 (“lo mismo”, Figura 6) a sucedem – e produzem o efeito de que da penumbra da primeira placa já algo se vê, ainda que, se tomadas em conjunto, reforcem a atmosfera de dúvida e incerteza. A placa 2 expõe, em primeiro plano, soldados franceses enfrentando dois espanhóis. O sangue escorre pela boca de um deles. As pernas abertas do outro permitem observar, dentre os corpos espalhados pelo chão, um soldado francês (sugere o uniforme) – a ele se agarra uma pessoa que morde em desespero o seu pescoço, enquanto um homem à esquerda parece prestes a esfaqueá-lo.

A placa 3 faz o inverso: agora são os soldados franceses pelo chão, atacados com violência pelos espanhóis. Em primeiro plano, duas cenas: um espanhol, com o corpo de um soldado entre as pernas, ergue o machado por sobre um outro (pela expressão e braços abertos, assustado) caído à sua frente; ao lado, um terceiro soldado é montado como um animal – o espanhol que o monta ergue contra ele uma adaga. Em segundo plano, abaixo do cotovelo do soldado francês, ao centro da figura, é possível ver um rosto – e que aparenta, como um animal, morder alguém. Não há como saber se é um espanhol mordendo um francês ou um francês, em agonia, mordendo a perna do espanhol com o machado. Há uma ressonância entre os títulos das placas 2 e 3: a guerra se despe de qualquer heroísmo, e a violência é maximizada pela falta de sentido (com razón ó sin ella, o resultado é catastrófico).

 

Figura 5 – Francisco de Goya, Placa 2: Con razon ó sin ella, 1810-1820

Figura 6 – Francisco de Goya, Placa 3: Lo mismo, 1810-1820

  Foto em preto e branco de pessoas em cima de um livro

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Goya, 1863

 

É curiosa, também, a ressonância que as placas 2 e 3 possuem com duas placas ao fim da série, a 79 (“murió la verdade”, Figura 7) e a 80 (“si resucitará?”, Figura 8). Ambas retratam uma mulher deitada no chão, cercada por figuras sombrias. Com os seios à mostra, ela brilha. Na placa 79, está de olhos fechados. As figuras ao redor são ainda humanas: ao centro, um bispo ergue as mãos sobre ela; à esquerda, há duas figuras encapuzadas – uma delas com uma pá, como se fosse enterrá-la. À direita, outra mulher – com os seios também à mostra – cobre o rosto com uma das mãos; a outra mão pende com uma balança. Na placa 80, a escuridão parece ter avançado: as figuras já não parecem totalmente humanas (uma delas se assemelha a um morcego); mas os olhos da mulher já não se encontram totalmente fechados, e o brilho que dela emana funciona como uma espécie de escudo. É como se o esforço de Goya em capturar os eventos que se sucederam com rapidez, a partir da Guerra de Independência, guardasse, por um lado, a expectativa de que tais eventos pudessem encontrar, no curso da série, algum sentido oculto; por outro lado, a série frustra a realização dessa mesma expectativa: não há verdade que justifique/ou confira lastro para os horrores ilustrados em Los Desastres de la Guerra. A dúvida atribui, assim, centro de gravidade para a obra: as placas materializam uma busca obsessiva pela verdade; na falta dela, resta o registro do próprio esforço do artista – de Sísifo.

 

Figura 7 – Francisco de Goya, Placa 79: Murió la verdad, 1810-1820

Figura 8 – Francisco de Goya, Placa 80: Si resucitará?, 1810-1820

  Foto preta e branca de um livro

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Goya, 1863

 

Esta obsessão com a captura de um mundo em aceleração também se encontra em Honoré de Balzac. Ao longo de toda La Comédie Humaine, Balzac se esforça para dar sentido às múltiplas temporalidades que, principalmente após a Revolução Francesa, passaram a habitar o seu presente. O prefácio para A Comédia advoga algo como um projeto sociológico: Balzac propõe servir à sociedade francesa como seu secretário[8], o que não pode fazer sem também pressupor algo como uma planta ontológica para a realidade – ocultada pelos rápidos desdobramentos da época – e que ele próprio deverá revelar/levar a exame, na execução da obra. A essa tarefa ele se dedica com uma vitalidade, energia, quantidade e intensidade que não passaram despercebidas por Baudelaire (para quem Balzac é “o pintor do circunstancial”), Oscar Wilde (o qual reconhece em seus personagens uma “vitalidade feroz”, uma “existência fervorosa e colorida” que “domina a fantasia e desafia o ceticismo”) e Henry James (que o descreve como uma “energia ativa concreta” cuja obra concilia “projeção e intensidade [...] coleção e apreensão de um número tão vasto de fatos com uma exposição tão rica de cada um”).[9] Ao longo de toda A Comédia, Balzac descreve o presente como o lugar em que se atualiza o passado – em um esforço de identificação e diferenciação (de simultaneidades cronológicas do não simultâneo), cuja influência se faz sentir na estratégia narrativa de alguns textos do próprio Marx, como é o caso, por exemplo, de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. De fato, para a literatura, Balzac inaugura esse projeto de captura da realidade por recurso à narrativa. O elogio que lhe faz então Friedrich Engels, em sua famosa carta a Margaret Harkness, se trata, assim e sobretudo, do reconhecimento de um método:

Bem, Balzac era politicamente um Legitimista; sua obra monumental é uma elegia constante sobre a decadência inevitável da boa sociedade, suas simpatias estão todas com a classe condenada à extinção. Mas, por tudo isso, a sua sátira não poderia ser mais aguçada, a sua ironia mais amarga, do que quando ele põe em movimento os próprios homens e mulheres com quem simpatiza mais profundamente — os nobres. E os únicos homens de quem ele sempre fala com indisfarçável admiração são os seus mais ferrenhos adversários políticos, os heróis republicanos da Cloître Saint-Méry, os homens que, pela época (1830-1836) eram, de fato, os representantes das massas populares. Que Balzac tenha sido então obrigado a se voltar contra suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, que ele tenha visto a necessidade da queda dos seus favoritos, os nobres, e tenha os descrito como pessoas que não mereciam um destino melhor; e que tenha visto os verdadeiros homens do futuro onde, pela época, eles só podiam ser encontrados — é o que eu considero um dos maiores triunfos do Realismo, e uma das características mais grandiosas no velho Balzac[10] (Engels, 1888, s/p).

 

2 Aceleração

            David, Balzac e Goya dão testemunho de uma atmosfera – de transformação e aceleração – que se faz sentir marcadamente entre os anos 1780-1830, período do assentamento, segundo Reinhardt Koselleck (2006, p. 23), dessa “[...] temporalização da história, em cujo fim se encontra uma forma peculiar de aceleração que caracteriza a nossa modernidade”. A conformação de um novo regime de tempo responde, por um lado, à disseminação de inovações científicas e tecnológicas – como as caravelas, a prensa e os motores a vapor –, e, por outro, às profundas convulsões políticas que definiram o destino de toda uma época – i.e., as Revoluções Americana, Francesa e do Haiti. O resultado é a instituição de uma percepção tridimensional para o tempo, a qual se caracteriza por uma assimetria entre o passado – que se acumula enquanto espaço da experiência a ser organizado e, então, interpretado – e o futuro – horizonte aberto de possibilidades para o qual é arremetido o sujeito moderno. Entre o passado e o futuro, esse sujeito se espreme, no espaço efêmero de um presente em que jamais consegue fincar pés.[11]

            Para Albrecht Altdorfer, artista da renascença alemã, por exemplo, essa temporalização ainda não se encontra disponível. Sobre a sua composição para A Batalha de Alexandre em Isso, ressalta Koselleck (2006, p. 22): “[...] a maioria dos persas assemelha-se, dos pés ao turbante, aos turcos, que, no mesmo ano de composição do quadro (1529), sitiaram Viena, sem resultado”. Altdorfer e seus contemporâneos não viam problema algum em sobrepor, em um mesmo espaço representacional, um acontecimento contemporâneo (a batalha de Pavia, de 1525, que serve a Altdorfer como modelo para a pintura) a um evento histórico distante (como a batalha de Alexandre, em Isso): o anacronismo ainda não era um problema, porque “[...] o espaço da experiência nutria-se […] da perspectiva de uma única geração histórica” (Koselleck, 2006, p. 22). Não havia ainda emergido algo como uma consciência histórica do tempo.[12] Para o filósofo alemão Friedrich Schlegel, já quase trezentos anos depois, quando descreve a pintura de Altdorfer como “[...] a mais sublime aventura da cavalaria”, já haveria transcorrido – afirma Koselleck (2006, p. 23) – “[...] mais tempo, de toda maneira um tempo de natureza diferente daquele que transcorrera para Altdorfer, ao longo dos quase 1.800 anos que separam a Batalha de Isso e sua representação”.

            Hans Ulrich Gumbrecht dá o nome de cronótopo historicista para esse horizonte da temporalização do tempo histórico. Cronótopo é o conceito utilizado por ele para descrever e demarcar formas específicas da experiência do tempo – para o que, em diversas ocasiões, ele chamou de “construção social do tempo”. O sujeito que habita o cronótopo historicista concebe o tempo como agente absoluto da mudança. Como é, no entanto, arremessado em direção ao futuro, em um movimento que jamais pode conter, responde a ele com uma espécie de sintoma – cronofobia. O termo é cunhado por Pamela Lee, para designar um tipo de ansiedade por ela localizado na década de 1960 – uma “luta insistente com o tempo”, em que artistas e críticos se esforçam para “[...] se tornarem mestres da sua passagem, retardar a sua aceleração, ou dar forma para a sua condição de mudança” (Lee, 2004, p. XII). Tal ansiedade não se restringe à segunda metade do século XX: ela tem início, reconhece a própria Lee, na modernidade tardia.

            David, Goya e Balzac são exemplos, nesse sentido, das sucessivas tentativas de captura do presente – enquanto passado – no epicentro do próprio fenômeno da temporalização. Marx e Engels, no Manifesto Comunista de 1848, são os primeiros a descrever os desdobramentos dessa temporalização, de forma a ancorá-la em uma materialidade tecnológica:

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens (Marx; Engels, 2007, p. 43).

 

            O contínuo aperfeiçoamento das tecnologias de produção, transporte e comunicação são aí caracterizados como a engrenagem dos tempos – com o que “[...] a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações” (Marx; Engels, 2007, p. 44). A cronofobia ganha, assim, os contornos de uma então emergente situação de tensão: por um lado, esse contínuo desenvolvimento das tecnologias se liga, de forma inseparável, ao acúmulo de capital; por outro, ele obriga a renovações cada vez mais frequentes dos modos e relações de produção e, consequentemente, a uma constante reconfiguração das relações sociais. As tecnologias já não são compreendidas, portanto, meramente como instrumentos/meios para a produção: porque elas materializam as relações de produção, elas são a sua expressão. Em última instância, o corpo humano – a própria consciência humana (e aquilo que Marx chamará de “sentidos espirituais” ou “práticos”)[13] – a elas se sujeitam: assim como as relações sociais remetem às relações que se estabelecem na fábrica, o ritmo que se impõe ao trabalho nas fábricas logo se confunde com o ritmo da própria vida. Daí porque, a partir de Marx, é possível compreender os cronótopos como fabricações sociotécnicas do tempo: e o capitalismo, fundamentalmente, como a universalização de uma dessas formas.

 

3 Estagnação

            No livro Matadouro Cinco, Kurt Vonnegut conta a história de Billy Pilgrim: soldado estadunidense na Segunda Guerra Mundial, optometrista e atração de um zoológico no planeta Tralfamadore, no qual é mantido em cativeiro por alienígenas. A história, narrada de forma não linear, nos conduz a momentos distintos da vida de Billy Pilgrim, o qual se vê arremessado incontrolavelmente de um “lugar” no tempo para outro. O motivo, segundo ele próprio, é que – por alguma razão – ele teria se “desprendido do tempo”, o que ele explica através da experiência que teve em Tralfamadore:

A coisa mais importante que eu aprendi em Tralfamadore foi que, quando uma pessoa morre, ela só parece morrer. Ela ainda está muito viva no passado, então, é muita tolice que as pessoas chorem em seu funeral. Todos os momentos, passado, presente e futuro, sempre existiram, e sempre vão existir. Os Tralfamadoranos podem olhar para todos os diferentes momentos do mesmo jeito que nós podemos olhar para um trecho das Montanhas Rochosas, por exemplo. Eles podem ver o quanto todos os momentos são permanentes, e eles podem olhar para qualquer momento que lhes interessar. É somente uma ilusão que temos aqui na Terra de que um momento deva se seguir a outro, como contas em um colar, e que, uma vez que um momento se foi, ele se foi para sempre[14] (Vonnegut, 2010, s/p).

 

            O desprendimento temporal de Billy Pilgrim é distinto, por exemplo, daquele de Kyle Reese e do Exterminador, no filme Exterminador do Futuro, de James Cameron (Figura 9). “As máquinas se ergueram das cinzas do fogo nuclear”, informa o letreiro, na abertura. “A sua guerra para exterminar a humanidade já dura décadas, mas a batalha final não será travada no futuro. Ela será travada aqui, em nosso presente, esta noite...”[15] Somos remetidos, então, de uma Los Angeles distópica, em 2029, para a data de lançamento do filme – 1984, o presente do espectador que o assiste pela primeira vez. O Exterminador é enviado do futuro pela Skynet (sistema de inteligência artificial de defesa que se volta, no futuro, contra a espécie humana) para matar Sarah Connor; Kyle Reese é enviado pela resistência humana para salvá-la. Sarah Connor é fundamental porque, no futuro, ela e John Connor – seu filho ainda não nascido, em 1984 – irão liderar a resistência humana à rebelião das máquinas.

            Todavia, aquele futuro distópico, nas palavras de Kyle Reese, é apenas “um futuro possível”. O presente para o qual ambos os viajantes do tempo retornam se trata ainda daquele momento efêmero espremido entre o passado que se acumula e um futuro que se abre como horizonte de possibilidades. Já Billy Pilgrim é arremessado de forma irresistível a momentos distintos da própria vida, e não há nada que ele possa fazer para alterá-los – pois “todos os momentos são permanentes”. É como se o presente houvesse se alargado até absorver ambos, passado e futuro – com o que o tempo deixa de ser sentido como agente absoluto de mudança. Ocorre que Matadouro Cinco já não remete mais ao cronótopo historicista, mas a um segundo efeito de temporalização proveniente da sociotécnica do Capital, chamado por Gumbrecht (2014) de presente amplo.

 

Figura 9 – Still de The Terminator

Fonte: The Terminator, dir. James Cameron, 1984

 

            O presente amplo emerge como consequência direta do cronótopo historicista. Isso acontece, por um lado, em razão das sucessivas tentativas de se capturar/retardar e/ou orientar a passagem (acelerada) do tempo, o que contribui para o seu acúmulo enquanto passado. Circunscrever, organizar e produzir um sentido para esse passado se tornaram funções de uma disciplina moderna, a própria história, na qual depositamos a expectativa de que, assim, possamos verdadeiramente superá-lo. Porém, cada retorno ao passado se constitui mais propriamente em nova reconstrução/interpretação: Friedrich Nietzsche antecipa a crise ainda no século XIX, ao direcionar o impulso pela verdade (o que ele chama de “motor da consciência filosófica”) contra si mesmo, com o que se põe a descoberto o fato de que a interpretação não depende da verdade, mas, ao contrário, a produção da verdade depende da interpretação (em última instância: de uma narrativa).[16]

            Para a segunda metade do século XX, o resultado é a proliferação de uma multiplicidade de narrativas que constituirão, por fim, a crise do historicismo. Por outro lado, através do desenvolvimento de dispositivos de comunicação e captura produzidos pela chamada revolução digital, passamos também a acumular o passado por meio de tecnologias cada vez mais eficientes de armazenamento: e-mails, fotos, vídeos, textos (de jornais/revistas/blogs e até mesmo o conteúdo de chats etc.) tornaram-se perpetuamente disponíveis. O “direito a ser esquecido” (right to be forgotten) é revelador, neste sentido, do refinadíssimo horizonte de captura das tecnologias de presentificação: pela primeira vez na história, era necessário garantir o direito ao próprio apagamento.

O desenvolvimento e a proliferação de tais tecnologias não se faz compreender sem uma dinâmica que se estabelece, desde a era das grandes navegações, entre colonização, guerra e extrativismo – instrumentos do “progresso” que sempre caracterizaram a marcha histórica de exploração e acumulação do Capital.[17] De tecnologia militar utilizada exclusivamente pelos governos para o compartilhamento de informações à sua transformação em uma rede universal de serviços, a internet não somente exponenciou as possibilidades de captura/controle e mercantilização de todos os aspectos da existência úteis ao Capital (Crary, 2022), como também – pela sua capacidade sem precedentes de recrutamento maciço e global de trabalho informal – assimilou centenas de milhares de pessoas como partes integrantes (e invisíveis) de sua engrenagem computacional. As informações que irão compor as gigantescas bases de dados das Big Techs – e que serão usadas pelas agências de informação dos governos, para o treinamento de inteligências artificiais (IAs), para fins de propaganda, pelo setor de serviços, para a especulação financeira, para fins político-eleitorais etc. – foram em primeiro lugar inseridas e disponibilizadas por nós mesmos, na internet. Esse processo resultou em um aprofundamento da dinâmica capitalista de decomposição do trabalho especializado ou de alta complexidade (o qual passa a ser automatizado via sistemas remotos/IAs) em trabalho simples e repetitivo (aquele da operação remota dos sistemas/ou de alimentá-los com as informações necessárias para que possam operar “autonomamente”).

Uma outra e curiosa consequência é a alta disponibilidade, e com níveis de aperfeiçoamento cada vez mais assustadores, das IAs generativas que produzem imagens, textos ou sons, com base em inputs textuais. Não é uma mera coincidência o fato de que, no nível operacional, não basta que essas IAs sejam treinadas a replicar informação, em função das gigantescas bases de dados digitais (o que se trata de um primeiro pré-requisito para sua existência); é fundamental que “saibam” ainda identificar (agrupar e diferenciar) padrões de estilo/forma etc. e “desligá-los” das suas respectivas tradições/temas/horizontes históricos, sem o que a tarefa de recombiná-los entre si, a partir de distintos inputs – para que gerem sempre novas produções –, se torna impossível. Essa disponibilidade/presentificação de todo um conjunto da experiência histórica humana em bases maciças de dados não se trata de outra coisa que a operacionalização tecnológica de uma função que antes era atribuída quase exclusivamente à disciplina da história: desaparece o historiador (como curador/intérprete e narrador), o qual é substituído, em níveis mais ou menos eficientes, pelo programador, pelo usuário e pela inteligência tecnológica.

Essa inteligência tecnológica, no entanto, afirma-se para nós à margem de um projeto de racionalidade (de autonomia/liberdade) moderno que se recupera de sua origem: isso tanto porque oculta toda uma cadeia produtiva de trabalho simples e repetitivo, mal remunerado, escravo ou em condições análogas à escravidão (é muitas vezes o caso da extração/mineração dos componentes materiais necessários para a produção dos hardwares – os chamados elementos de terras raras), quanto porque a contínua conversão de toda experiência humana em data só faz amplificar a sensação de catástrofe iminente que, ao menos desde a Segunda Grande Guerra, se reveste sempre de uma nova roupagem – seja ela a do holocausto nuclear, seja impacto de algum corpo celeste, catástrofe climática ou pandêmica etc.

O futuro, assim, deixa de ser sentido como um horizonte aberto de possibilidades para fechar-se em um conjunto de expectativas distópicas. Somos, por isso, redirecionados dele de volta para o presente – e, como esse presente já se encontra alargado pelo passado, a sensação resultante é a de estagnação. Não deveria surpreender, assim, que as democracias burguesas eletivas e o socialismo – formas políticas oriundas do cronótopo historicista – tenham hoje se convertido em atividades meramente gerenciais: como já não é possível avançar em direção às utopias, resta à política a promessa do adiamento das catástrofes.

 

Considerações finais

            Cronótopo historicista e presente amplo ligam-se, sobretudo, por uma sociotécnica: da baixa modernidade em diante, o tempo e a nossa percepção de sua passagem são cada vez mais fortemente determinados pelas tecnologias disponíveis e pelas relações que com elas estabelecemos. Do trabalho fabril ao escritório, do escritório ao trabalho digital em casa; do cinema à sala de TV e da TV aos dispositivos móveis individuais, regimes tecnológicos de repetição respondem a uma sociotécnica do isolamento social, com o que programam os movimentos e o repouso dos nossos corpos.[18] Tempo de trabalho e tempo de descanso confundem-se tecnologicamente: o celular e o computador são tecnologias para o trabalho, mas também para o descanso, e o tempo de descanso converte-se quase que imperceptivelmente, assim, também em tempo de trabalho (a atenção torna-se um recurso recrutável e vendável, passando assim a movimentar toda uma economia). Sobre a sociotécnica que faz emergir essa nossa temporalidade – já se pode dizer – maquínica, dirá Marx (2011, p. 929-930), nos Grundrisse:

Assimilado ao processo de produção do capital, o meio de trabalho passa por diversas metamorfoses, das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático da maquinaria (sistema da maquinaria; o automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele. [...] A atividade do trabalhador, limitada a uma mera abstração da atividade, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o inverso.

 

            Não é somente que os trabalhadores se tornam, nas fábricas, meros apêndices da maquinaria; o que ocorre é que, porque passam a concorrer com os custos e tempo de produção das máquinas, eles se convertem em maquinaria biológica. Essa (re)programação está longe de ser gratuita – uma vez que ela reflete de volta, para os nossos corpos, as relações de produção a partir das quais as próprias tecnologias se tornaram disponíveis em primeiro lugar, ela constitui uma tecnopoiesis. Tal poiesis tecnológica se cumpre, basicamente, de três formas complementares: a. pelos processos (em grande parte não evidentes) por meio dos quais as tecnologias se comunicam/atualizam entre si; b. pelos efeitos/resultados que elas imprimem no mundo, e c. através dos modos mais ou menos eficazes com os quais as tecnologias nos afetam/programam.[19] Nesse sentido, a Estética – área da filosofia que, ao menos desde a publicação da Aesthetica, de Alexander Baumgarten, em 1750, inaugura uma ciência dos sentidos/das sensações – liga-se à programação e à cibernética, porque se, por um lado, a fabricação dos sentidos e o “disparo” das sensações depende necessariamente das contrapartes materiais às quais sentidos e sensações respondem – e para as quais o corpo se oferta como uma espécie de “teclado sensório” –, por outro, dirá Susan Buck-Morss (1992, p. 12), “[...] o circuito da percepção sensorial à resposta motora começa e termina no mundo”.[20] O mundo, para uma teoria geral dos sistemas como a de Niklas Luhmann, corresponde a todos os outros sistemas externos ao corpo, para o qual compõem um ambiente – de ruído, informação ou perturbação.[21]

            Em Atmosphere, Mood, Stimmung (2012a), Gumbrecht recorre à palavra alemã Stimmung para descrever um tipo de postura literária que, ao contrário da atividade interpretativa – cuja função é extrair um “sentido” da obra –, diz respeito a uma abertura para a capacidade da literatura de “fazer sentir” (ou presentificar, como destaca o próprio autor) atmosferas/ambiências/climas. Como essas sensações não podem ser compreendidas separadamente dos componentes materiais que as produzem – o que Gumbrecht chamará, numa acepção mais ampla, de prosódia –,[22] é como se, no esforço de identificá-las, estivéssemos circunscrevendo-as igualmente aos objetos dos quais elas derivam. Já argumentei em outro lugar como, desde sua terceira crítica, Kant já pensa o artista como um programador de sensações (cujo ofício é aquele de produzir no observador, através da interação dele com a obra, o “belo jogo das sensações” característico da beleza).[23]

            Entretanto, aquilo que ele produz, a obra – e este é um insight do Marx dos Grundrisse –, também é expressão de uma programação tecnológica historicamente condicionada: “[...] é possível Aquiles com a pólvora e chumbo? Ou mesmo a Ilíada com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a alavanca da prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a musa, não desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica?” (Marx, 2011, p. 91-92). Com o que se abrem duas possibilidades interconectadas de análise: com base em determinados objetos estéticos, pode-se chegar a Stimmungen que neles se “cristalizam” e a partir deles são disparados; mas que remetem, ao mesmo tempo, a atributos do mundo, os quais, embora estejam cristalizados nos objetos, a eles não se reduzem, pois se comunicam com a conjuntura do horizonte sociotécnico do qual são também expressão.

            Assim, a análise de Stimmungen torna possível, por um lado, detectar respostas estéticas distintas, mas que se ligam como produtos de um mesmo horizonte sociotécnico; e, por outro, determinar, a partir de tais respostas, características específicas do horizonte sociotécnico da qual derivam (a exemplo da análise das obras de David, Goya, Balzac, Cameron e Vonnegut). Isso é especialmente útil para navegar o nosso cronótopo, invadido como é por um passado que se atualiza no presente, pois permite localizar esta característica emergente – famosamente chamada por Ernst Bloch de “simultaneidade do tipologicamente não simultâneo” – no contexto de sua produção, isto é, como o efeito de um regime maquínico de temporalidade. Esta é a temporalidade responsável, nas palavras de Harry Harootunian (2017, p. 22), pela

[...] experiência contemporânea do capitalismo como uma ritmologia temporal universal dedicada a ordenar as diferentes cadências do tempo com uma implacável e inelutável circularidade, a qual, por conseguinte, truncou a própria história, se não mesmo a suspendeu inteiramente, e parece agora constituir “o material exclusivo para a construção da vida”. A lógica do capital aponta assim para o aniquilamento da história, porque ele se situa na eternidade do presente, como o próprio Marx havia observado sobre a “religião” da economia política burguesa e suas afirmações de não possuir história.[24]

 

Machinic time: contribution to a Rhythmology of Capital

 

Abstract: This paper explores the rhythm of modernity as an outcome of the sociotechnical dynamics of Capital. It contends that the ongoing transformation of the means of production and the proliferation of new technologies give rise to sensations of acceleration and stagnation – phenomena that can be traced to a shared temporal regime here termed “machinic”. The sociotechnical aspect of Capitalism is acknowledged to have a specific influence on shaping our bodies, sensations, and perception. Furthermore, it proposes the utilization of Stimmungen analysis as a theoretical tool that could facilitate the detection of aesthetic responses useful for characterizing different sociotechnical/temporality regimes.

 

Keywords: Rhythm. Modernity. Aesthetics. Stimmung. Philosophy of History.

 

 

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Recebido: - Aprovado: 03/06/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Ilhéus, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2759-1253. E-mail: gfoscolo@gmail.com.

[2] Cf. o capítulo 27: “A noção de ‘ritmo’ na sua expressão linguística”.

[3] Cf. Ross, 2007.

[4] “Wherever we are, what we hear is mostly noise. When we ignore it, it disturbs us. When we listen to it, we find it fascinating. The sound of a truck at fifty miles per hour. Static between the stations. Rain. We want to capture and control these sounds, to use them not as sound effects but as musical instruments. Every film studio has a library of ‘sound effects’ recorded on film. With a film phonograph it is now possible to control the amplitude and frequency of anyone of these sounds and to give to it rhythms within or beyond the reach of the imagination. Given four film phonographs, we can compose and perform a quartet for explosive motor, wind, heartbeat, and landslide”.

[5] “It was on the train, with its steely rhythms, its rattle-ty bang that is often so stimulating to a composer… I frequently hear music in the very heart of noise. And then I suddenly heard — and even saw on paper — the complete construction of the rhapsody from beginning to end… I hear it as a sort of musical kaleidoscope of America — of our vast melting pot, of our unduplicated national pep, of our metropolitan madness”. Sobre Gershwin, cf. também Ross, 2007: “Invisible Men: American Composers from Ives to Ellington”.

[6] David pensava as três obras como uma série devotada aos mártires da Revolução Francesa – a solução formal também liga as três obras ao seu expediente temporal.

[7] “Ultimately, historical event and history painting became almost identical”.

[8] “La societé française allait être l’historien, je ne devais être que le secrétaire”. Cf. Balzac, 1976, “Avant-Propos”,  p. 7-20.

[9] Cf. Baudelaire, 1996,  p. 13-14; Wilde, 1919; James, 1905.

[10] “Well, Balzac was politically a Legitimist; his great work is a constant elegy on the inevitable decay of good society, his sympathies are all with the class doomed to extinction. But for all that his satire is never keener, his irony never bitterer, than when he sets in motion the very men and women with whom he sympathizes most deeply — the nobles. And the only men of whom he always speaks with undisguised admiration, are his bitterest political antagonists, the republican heroes of the Cloître Saint-Méry, the men, who at that time (1830-6) were indeed the representatives of the popular masses. That Balzac thus was compelled to go against his own class sympathies and political prejudices, that he saw the necessity of the downfall of his favorite nobles, and described them as people deserving no better fate; and that he saw the real men of the future where, for the time being, they alone were to be found — that I consider one of the greatest triumphs of Realism, and one of the grandest features in old Balzac”.

[11] Cf. Gumbrecht, 2012b, “Pirâmides do espírito”.

[12] Para uma discussão da tese de Koselleck, cf. também: Davis, 2008, cap. 3: “The Sense of an Epoch”.

[13] “Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” (Marx, 2004, p. 110).

[14] “The most important thing I learned on Tralfamadore was that when a person dies he only appears to die. He is still very much alive in the past, so it is very silly for people to cry at his funeral. All moments, past, present, and future, always have existed, always will exist. The Tralfamadorians can look at all the different moments just the way we can look at a stretch of the Rocky Mountains, for instance. They can see how permanent all the moments are, and they can look at any moment that interests them. It is just an illusion we have here on Earth that one moment follows another one, like beads on a string, and that once a moment is gone it is gone forever”.

[15] “The machines rose from the ashes of the nuclear fire. Their war to exterminate mankind had raged for decades, but the final battle would not be fought in the future. It would be fought here, in our present. Tonight…” (The Terminator, dir. James Cameron, 1984).

[16] Cf. Nietzsche, 1992, particularmente o capítulo primeiro, “Dos preconceitos dos filósofos”; Id., 1999.

[17] Cf. Mumford (1934, p. 76): “War, mechanization, mining, and finance played into each other’s hands. Mining was the key industry that furnished the sinews of war and increased the metallic contents of the original capital hoard, the war-chest; on the other hand, it furthered the industrialization of arms, and enriched the financier by both processes. The uncertainty of both warfare and mining increased the possibilities for speculative gains: this provided a rich broth for the bacteria of finance to thrive in”.

[18] “O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento funda a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das ‘multidões solitárias’” (Debord, 2005, § 25).

[19] Cf. Foscolo, 2022.

[20] “The circuit from sense-perception to motor response begins and ends in the world”.

[21] Cf. Luhmann, 1990, 1995.

[22] Gumbrecht, 2012a, p. 5.

[23] Cf. Foscolo; Spadoni, 2018.

[24] “In fact, this view matches precisely the contemporary experience of capitalism as an all-encompassing temporal rhythmology dedicated to ordering the differing tempos of time with an unrelenting and inescapable circularity, which, accordingly, has truncated history itself, if not bracketing it altogether, and appears now to constitute “the exclusive material of the construction of life.”4 Capital’s logic thus points to “annihilating” history because it is posited on the eternality of the present, as Marx himself had observed regarding the “religion” of bourgeois political economy and its claims to have no history”.