G. E. M. Anscombe: uma alternativa à filosofia da ação padrão
Beatriz Sorrentino Marques[1]
Resumo: O artigo apresenta uma breve introdução à investigação proposta no famoso livro de G. E. M. Anscombe, Intenção, ressaltando algumas preocupações centrais que o livro visava a sanar. A discussão a seguir tenciona compor uma revisão da literatura recente que propõe uma interpretação iluminadora do Intenção. Para isso, tomam-se comentários recentes da obra como base, privilegiando interpretações feitas por filósofas que pretendem compreender a originalidade do método de Anscombe, suas preocupações filosóficas e seu contexto, bem como o contraste de sua posição com a teoria padrão sobre ação, a teoria causal. Por fim, tomando como base a revisão exposta, argumenta-se brevemente que a proposta de Anscombe evade o famoso desafio de Davidson, que é comumente tratado como incontornável.
Palavras-chave: Anscombe. Intenção. Ordem teleológica.
Introdução[2]
O presente artigo apresenta uma breve introdução ao famoso livro de G. E. M. Anscombe, Intenção (1957b), visando a compor uma revisão da literatura recente que propõe uma interpretação esclarecedora do livro, com ênfase em algumas preocupações centrais que a obra procurava sanar. Para tanto, tomo como base comentários recentes da obra e de seu contexto, privilegiando interpretações feitas por filósofas que pretendem compreender a originalidade do método de Anscombe, suas preocupações filosóficas, bem como o contraste de sua posição com a teoria padrão sobre ação, a teoria causal. Por fim, baseando-me na revisão exposta, argumento brevemente que a proposta de Anscombe evade o famoso desafio de Davidson, que é comumente tratado como incontornável.
No primeiro contato com o livro Intenção, ainda na graduação, eu o considerei hermético. Rachel Wiseman (2016, p. 22-23) concorda que Intenção é um texto difícil e amplamente mal compreendido, mesmo dentro da Filosofia da Ação, área que Anscombe inaugurou e cuja agenda de questões abordadas ela ditou com seu livro. Por conta da má compreensão do texto, ele foi pouco explorado e a influência das propostas do livro é tímida, embora as questões levantadas nele sejam as que norteiam a área até hoje (Wiseman, 2016, p. 21). Em minha primeira leitura, estava claro que o livro dialogava diretamente com as preocupações centrais da filosofia da ação padrão, mas me parecia que “faltavam os contornos”, as delimitações claras e a sequência argumentativa saliente, para fazer sentido do argumento. Talvez por isso, eu tenha guardado por tanto tempo na memória que Ricoeur (1990, p. 67) chamou a análise conceitual feita no livro de impressionismo conceitual e reservou o termo cubismo conceitual para Davidson. A pressuposição de que Anscombe almejava oferecer uma análise conceitual à la filosofia analítica pode ter sido um dos grandes obstáculos à minha compreensão de Intenção.
Na primeira seção, trato de discussões sobre as motivações filosóficas de Anscombe para escrever o livro de acordo com a literatura recente, especialmente as motivações relacionadas à ética aceita na Universidade de Oxford no tempo. Na segunda seção, faço uma breve exposição de interpretações atuais sobre o que Anscombe pretendia investigar no livro. Darei voz à literatura recente, na qual novas investigações sobre o livro levam em consideração a formação, o contexto e as motivações de Anscombe, para construir uma interpretação iluminadora do livro. Na terceira seção, apresento um resumo de como as investigações recentes sobre o livro esclarecem o que Anscombe afirma sobre descrições intencionais, bem como o método usado no Intenção. Na quarta seção, focalizo distinções entre as propostas de Anscombe e de Davidson discutidas na literatura e, tomando como base a exposição anterior sobre o livro e sua proposta, argumento que nem mesmo o famoso desafio de Davidson impõe um problema intransponível para a proposta de Anscombe, ao contrário do que comumente se pensa. Não “faltam contornos” ao argumento, na verdade, a filosofia da ação padrão tomou um caminho muito diferente da empreitada inicial proposta por Anscombe, afastando-se tanto dela, que é difícil compreender essa empreitada, quando olhamos em retrospectiva. Mas não é tarde para recuperar o caminho inicial.
1 O problema que surge da ética
Em seu famoso livro Intenção, Anscombe se dedica a discutir a filosofia da psicologia necessária para fundamentar discussões da ética, para que não sofressem dos problemas que ela identificava na ética contemporânea. Seu foco em filosofia da psicologia era a intenção. No caso, o livro é um tratamento conceitual da intenção, ou seja, Anscombe investiga o conceito, contudo, ela já estava ciente de que tentar definir a intenção seria um empreitada fadada à circularidade[3] e, portanto, ao fracasso. Por isso, Anscombe examina a forma como o conceito existe (Kloosterboer, 2022, p. 202), o que significa uma aplicação do método gramatical, identificando em quais práticas da vida o conceito é aplicável e em quais não é aplicável. A filósofa acredita que tal identificação nos permite ver a natureza do conceito e em quais padrões da vida humana (das suas práticas), descritos por uma rede de práticas linguísticas, ele se encaixa. No caso, o conceito faz parte da linguagem que descreve o que acontece numa estrutura teleológica (Kloosterboer, 2022, p. 205); nós o aplicamos quando tratamos de um encadeamento teleológico de descrições de ações, como “ela moveu o dedo”, “ela pressionou a tela” e “ela telefonou para o escritório”. Abaixo, veremos em qual contexto de preocupações filosóficas surge o livro.
Em 1956, Anscombe lecionava na Universidade de Oxford e naquele ano ficou encarregada de uma disciplina de Ética (Lipscomb, 2022, p. 158), a qual abordava a ética contemporânea da qual ela discordava. No artigo “Modern Moral Philosophy”, Anscombe (1958) se dedica a escrever sobre a filosofia moral de seu tempo e faz uma avaliação das duas opções que ela considerava estarem disponíveis na filosofia moral contemporânea, a deontologia e o que ela chamou de consequencialismo (Wiseman, 2016, p. 32). A deontologia, que depende da noção de obrigação, estaria com problemas, porque, no tempo corrente e secular, já não há do que derivar tal obrigação. Assim, Anscombe sugere abandonar a noção de obrigação.
Wiseman ressalta que, por consequencialismo, Anscombe queria dizer a tese de que ações podem ser justificadas por suas consequências, de modo que, mesmo uma ação que pode parecer muito ruim, às vezes tem consequências que justificam a ação (Wiseman, 2016, p. 33). A filósofa colocava sob o rótulo de consequencialismo muitas das teorias éticas de sua época. Obviamente, nesse tipo de teoria, não existe proibição absoluta, algo ao qual Anscombe se opunha fortemente, pois acaba por permitir até mesmo as ações mais horríveis (a imaginação é o limite), desde que se possa oferecer consequências consideradas boas advindas delas. Anscombe pensava que isso tornava corruptas tais teorias. Wiseman (2016, p. 34) oferece um exemplo de Philippa Foot, o qual ajuda a refletir sobre a questão. Dificilmente alguém aceitaria que um cirurgião possa retirar os órgãos de uma pessoa perfeitamente saudável para salvar a vida de cinco ou mais pessoas que necessitem de transplante de órgãos, por mais que as consequências sejam muito positivas para várias pessoas. Anscombe questiona se a ausência total de proibições é conducente ao florescimento humano (Wiseman, 2016, p. 33), uma preocupação aristotélica (ou tomista). Ela conclui que era preciso uma investigação da intenção antes de se poder avançar na ética para trazer o foco da avaliação para a ação e não para consequências, ou para estados mentais prévios.
Anscombe acreditava que a corrupção da filosofia moral em Oxford[4] era uma das explicações para a universidade ter oferecido, em 1956, um título honorífico a Harry Truman, ex-presidente dos EUA que ordenou os bombardeios a Hiroshima e Nagasaki (Lipscomb, 2022, p. 159). Na época, Anscombe acionou o procedimento interno para um protesto formal contra a decisão e, devido ao protesto, houve uma assembleia para votar sobre o tema. Alan Bullock, incumbido de argumentar a favor da honraria, afirmou que, dada a cadeia de produção da bomba e a cadeia de pessoas envolvidas nas decisões que levaram ao bombardeio, seria injusto colocar a responsabilidade pelo bombardeio em Truman, pois ele teria apenas assinado o papel (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 5). O argumento ignorava que descrições de ações intencionais não estão descoladas do seu contexto social e institucional (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 290). Anscombe detectou nessa fala uma incompreensão sobre descrições de ação, ou mesmo do que é uma ação intencional (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 291-292). A posição defendida por Anscombe foi derrotada na votação,[5] mas ela publicou depois alguns de seus argumentos contra a concessão do título em Mr. Truman’s Degree (Anscombe, 1956).
Era comum, na época, justificar a ação de Truman, afirmando que o resultado da ação foi melhor do que teria sido o resultado de não ordenar o bombardeio, por exemplo, se em vez de ter lançado as bombas atômicas ele tivesse ordenado uma invasão terrestre, porque, ao optar por bombardear, ele teria evitado uma grande quantidade de mortes (de estadunidenses, supõe-se) (Anscombe, 1956). Acreditava-se até que os japoneses prefeririam o suicídio à rendição (Wiseman, 2016, p. 28). O cerne da indignação de Anscombe (1956) era a inadequação de conceder honrarias e elogios a um homem afamado por dois massacres. Para ela, Truman era um assassino (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 4),[6] porém, seus colegas não pareciam concordar (Lipscomb, 2022, p. 56-57). Ela entendeu que provavelmente isso se devia ao que haviam aprendido com a filosofia moral de Oxford e suas ideias consequencialistas.
Para Anscombe, entretanto, mesmo que a consequência da ação de Truman fosse melhor do que outras possíveis ações que ele poderia ter realizado, isso não justificava o assassinato de milhares de pessoas e ignorava a doutrina do duplo efeito. Afinal, uma consequência terrível e intencionalmente provocada é muito mais grave do que uma consequência terrível, entretanto, apenas prevista e não intencional. A primeira é assassinato (Anscombe, 1982).
O duplo efeito está associado à ideia de que não se deve fazer o mal que o bem virá (Anscombe, 1956, p. 03), ou seja, se uma ação faz acontecer intencionalmente certa consequência proibida, então a ação é proibida. Porém, se a consequência for apenas previsível, mas não intencional, então a ação não é proibida (Wiseman, 2016, p. 39). Anscombe (1982) discute um cenário imaginário no qual um grupo de pessoas está preso dentro de uma caverna que está inundando e uma pessoa está presa entre as rochas, bloqueando a saída. Todos vão morrer afogados. Mesmo assim, o grupo não pode, por exemplo, liberar a saída explodindo a pessoa que impede a saída, pois isso seria matar intencionalmente, e o assassinato é proibido. Um exemplo similar pode ser dado com o caso de Truman, pois (supõe-se), usando uma arma terrível, ele pretendia aterrorizar o Japão com a morte instantânea de milhares de pessoas para obter a rendição incondicional do Japão. Para Anscombe, isso envolve a intenção de matar milhares de pessoas inocentes lançando as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Matar intencionalmente inocentes, afirma Anscombe, é assassinato.
Por outro lado, se a consequência for somente prevista, não há proibição. Por exemplo, no caso da caverna, Anscombe (1982) aceita que, se for possível abrir uma outra saída da caverna movendo uma pedra, mesmo que seja previsível que a pedra possa cair e esmagar a pessoa presa entre as rochas, isso seria uma consequência lamentável, todavia, não tornaria a ação proibida. Não se tem a intenção de matar. Algo similar seria o caso, se Truman tivesse ordenado uma invasão terrestre para forçar a rendição japonesa. É previsível que muitas pessoas morreriam, inclusive inocentes, mas essa não seria a intenção (talvez a intenção fosse derrotar o exército inimigo), ou ao menos parece que é isso o que Anscombe aceita. Essas mortes constituiriam matar, segundo Anscombe; no entanto, ela não era uma pacifista e mortes previsíveis eram, para ela, admissíveis em algumas circunstâncias extremas. Já assassinar é proibido.
É importante ressaltar, contudo, que há casos nos quais uma consequência está tão próxima da ação que seria difícil negar que houve intenção de que a consequência ocorresse. No caso da caverna, por exemplo, se a pedra a ser deslocada estivesse tão próxima da cabeça da pessoa presa, que, se fosse deslocada, imediatamente a esmagaria, dizer que não havia intenção de matar, nesse caso, seria um abuso da doutrina do duplo efeito. “As circunstâncias e os fatos imediatos sobre os meios que você escolhe para os seus fins ditam quais descrições da sua intenção você deve admitir” (Anscombe, 1982, p. 23), excetuando-se casos em que o agente não sabe que a ação vai engendrar a consequência. Assim, Anscombe não aceitava que o agente pudesse simplesmente escolher sua intenção, isto é, que Truman pudesse dizer “minha intenção não foi matar inocentes. Eu tinha apenas a intenção de obter a rendição do Japão”. Portanto, mostrar que a intenção não é um estado mental, que não é subjetivamente acessível apenas ao agente e, por isso, o agente não pode convenientemente selecionar qual foi sua intenção, é parte da empreitada anticartesiana do Intenção.
Entender a doutrina católica do duplo efeito é crucial para entender a necessidade de distinguir consequências intencionais de consequências previstas quando ações são avaliadas e, por sua vez, a distinção é fundamental para compreender os problemas que Anscombe via na filosofia moral da época e na honraria de Truman. Não coincidentemente, esse foi seu primeiro objetivo no Intenção.
Igualmente central foi a revelação de um problema de filosofia da psicologia, a partir dos equívocos do consequencialismo sobre a ética, pois a maneira como a primeira era pensada levava à impossibilidade de distinguir consequências previstas de consequências intencionais (Schwenkler, 2019, p. XIX). A avaliação da ação precisa considerar se a consequência é intencionalmente provocada, como mostra o duplo efeito. Ao ignorar tal doutrina, a filosofia moral não estava equipada para fazer a distinção, por isso, tratava todas as consequências como intencionalmente provocadas, eliminando assim a possibilidade dessa sutileza na avaliação das ações, podendo avaliar apenas os danos e benefícios das consequências (Schwenkler, 2019, p. XIX).
Portanto, esse estado de coisas revelava a incompreensão das sutilezas da noção de intenção e de intencional. Para reintroduzir a intenção nas discussões sobre filosofia moral, era preciso primeiro compreender o caráter do conceito de intenção. Anscombe chega à conclusão de que é necessário investigar esse conceito, para que seja possível avançar na ética – e essa é uma das grandes motivações para escrever Intenção.
Há ainda outra questão tratada em “Modern Moral Philosophy”, que dialoga com o livro. Um tema preponderante àquela altura para Anscombe e filósofas com quem mantinha discussões – Philippa Foot, Iris Murdoch e Mary Midgley – era a cisão, aceita na filosofia da época, entre fatos e valores. Ayer (1972) havia sugerido que as proposições que têm sentido podiam ser formalizadas, usando simbolismo lógico, e empiricamente verificadas, a fim de se descobrir se eram verdadeiras ou falsas. Quando não fosse possível fazer a verificação, a proposição era rotulada sem sentido, conforme acabou sendo o caso das proposições da ética (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 48). Afinal, apenas fatos seriam verificáveis, não avaliações valorativas. Essa divisão desfavorecia a ética, pois é comum pensar que fatos têm primazia para a compreensão do mundo, porque, em tese, podem ser objetivamente conhecidos e o conhecimento sobre eles pode ser compartilhado (Lipscombe, 2022, 08). Isso permitiria uma aproximação das asserções sobre fatos com a verdade. Já valores parecem ter uma carga subjetiva, o que gera suspeita sobre o quanto permitem a aproximação da verdade (Lipscombe, 2022, p. 06). Assim, a ética ficou relegada à subjetividade.
Afirmações sobre valores estavam longe de não ter sentido para a filósofa, pois elas são também factuais. Anscombe (1958) aceita que se baseia em fatos a avaliação de que, se ela não pagar o verdureiro que lhe entregou as batatas que ela encomendou, ela será uma trapaceira. Afinal, se for um fato que o verdureiro fez a entrega, então, dado o complexo pano de fundo do contexto institucional da prática, nesse contexto, é fato que ela deve dinheiro a ele e que ela deve pagar. Portanto, se forem levados em conta diversos fatos das práticas da vida humana, por exemplo, os que envolvem fazer encomendas e receber produtos em troca de dinheiro, avaliações têm sentido (Wiseman, 2016, p. 42-43) e, no caso, não pagar é trapaça.
Os conceitos que esboçam as práticas da vida humana envolvem avaliações, assim, tendo em vista as diferentes descrições que uma ação pode ter, algumas delas já carregam uma proibição. Não é o caso de mover o dedo, mas é o caso de assassinar a tiros. Ao mesmo tempo, afirmações como “ele moveu o dedo” e “ele assassinou a tiros” podem perfeitamente ser verdadeiras ou falsas (Wiseman, 2016, p. 44). Entender isso facilita compreender por que Anscombe escreve um livro sobre intenções, porém, não se interessa por estados mentais ao longo do texto, afinal, o que importa para ela são as convenções, instituições e práticas, uma vez que discutir intenções requer uma compreensão da Mente, não de mentes individuais (Wiseman, 2022, p. 190). Essa discussão dialoga com a preocupação que aparece no Intenção de como é possível que ações tenham valor moral.
2 O conceito
A proposta do Intenção é, por conseguinte, anticartesiana, visando a mostrar que a intenção não é um estado mental que o agente pode determinar de acordo com o que lhe convém (Wiseman, 2016, p. 47). Segundo as suposições apresentadas acima sobre o caso, não faria sentido Truman dizer que “não tinha a intenção de matar milhares de pessoas”. Assim, Intenção não é um estudo sobre estados mentais (Wiseman, 2022, p. 190). Conforme Wiseman (2016, p. 27), na verdade, o livro tem três objetivos. O primeiro seria distinguir as consequências intencionais das previstas das ações, o que ressalta sua preocupação com a doutrina do duplo efeito. Wiseman (2016, p. 27) considera o segundo objetivo do livro a investigação da intenção com a qual o agente agiu, mostrando que não é suficiente tratar a intenção como um estado mental determinado pelo agente. O último objetivo seria mostrar como podemos avaliar moralmente ações intencionais, pois, tendo diferentes descrições (Wiseman, 2016, p. 27), alguma(s) dela(s) pode(m) ter uma dimensão moral devido ao pano de fundo institucional, cultural e histórico que enseja tal descrição da ação intencional, a qual, nesses casos, já é carregada de valor moral. Em vez de buscar algo anterior à ação para avaliá-la, como um estado mental, devemos olhar para as suas descrições intencionais (Wiseman, 2016, p. 47). Se discutir ações intencionais não é discutir estados mentais, logo, o valor moral da ação não estaria dado por um estado mental que a antecede.[7]
Dentro do escopo da interpretação cartesiana, a qual trata a intenção como um estado mental, pode-se pensar que uma pessoa poderia produzir uma intenção a partir de sua própria vontade. Voltando a Truman, ele poderia dizer que sua intenção era apenas de fazer com que os japoneses se rendessem, escolhendo assim o que ele considera a consequência intencional e a não intencional de sua ação. Muitas pessoas poderiam avaliar essa intenção como boa e absolvê-lo de qualquer vício moral. Mas a proposta de Anscombe não reconhece esse tipo de “manobra”, a qual possibilitaria ao agente eleger, desse modo, qual tinha sido sua intenção e, consequentemente, manipular a avaliação de sua ação. As ações, não estados mentais, são o objeto da avaliação moral para a filósofa.
Segundo Wiseman (2016, p. 49), a filosofia da ação comumente trata as três rubricas nas quais o livro está organizado – expressões de intenção para o futuro, intenção ao agir e ação intencional – como se a proposta fosse perguntar como as três se conectam. Tal questão constituiria o objetivo da filosofia da ação. Efetivamente, grande parte da literatura que conheço da área trata da conexão entre intenção (e intenção para o futuro) e ação intencional. Embora esse objetivo seja a agenda da Filosofia da Ação e, mesmo que ele tenha derivado do Intenção, Wiseman alerta que Anscombe nunca propôs tal questão. Segundo Wiseman, nem seria possível que a questão surgisse para a filósofa; ela surge para filósofos que tratam a intenção “pura” como um estado mental. Anscombe, embora não negue a existência de estados mentais ou de intenções (Wiseman, 2016, p. 54), não trata disso no livro.
Essa confusão sobre o seu objetivo leva a equívocos interpretativos do livro e à estranheza em relação ao argumento. A sugestão de Wiseman é que essa é uma interpretação equivocada do que Anscombe sugere e que, na verdade, a última quer explorar a aplicação do conceito de intenção nas práticas da vida humana. Para tanto, Anscombe afirma, por exemplo, que uma ação tem diferentes descrições e é intencional sob alguma(s) descrição(ões), o que a interpretação equivocada da conexão toma como uma pressuposição que precisaria de apoio argumentativo. Contudo, Wiseman defende que a filósofa apenas queria dizer que é um fato que damos diferentes descrições a uma ação e que ela é intencional sob alguma(s) descrição(ões). Isso é inegável. Por conseguinte, uma explicação de ações precisaria explicar esses fatos básicos sobre ações (Wiseman, 2016, p. 67). Trata-se, na verdade, de um requisito para explicações de ações (Wiseman, 2016, p. 69).
Outro percurso comum na filosofia da ação é tentar entender o que é uma ação intencional, opondo-a ao conceito de ação, como o faz Davidson . A estratégia objetiva destacar o que há de intencional nas ações assim chamadas; ou seja, o que essas têm que ações não-intencionais não têm, como se intencional fosse um atributo especial dessas ações (Kloosterboer, 2022, p. 199). A clarificação por oposição não é adotada no livro, pois, para Anscombe, ações não são uma classe natural (Kloosterboer, 2022, p. 205). Anscombe (1982b) discordava de Davidson sobre ações serem um tipo especial de evento, caracterizado por ser intencional sob alguma de suas descrições. Se esse fosse o caso, tropeçar no tapete seria intencional, se todas as partes do progresso ao atravessar a sala intencionalmente fossem intencionais, sob essa descrição. Isso é um problema, porque a proposta de Davidson visa justamente a distinguir ações do que não são ações, e tropeçar no tapete é o tipo de evento que ele não quer classificar como uma ação.
Anscombe, na verdade, busca diagnosticar como surgem essas três aplicações de intenção que aparecem nas rubricas do livro e mostrar que não se trata de fenômenos distintos, pois todas estão subsumidas sob o conceito (Wiseman, 2016, p. 57). As pessoas aplicam o conceito de intenção sem dificuldade, no cotidiano, e Anscombe propõe investigar as práticas (atividades) nas quais o conceito aparece. Afinal, a aplicação da palavra em sentenças precisa conectar-se às práticas da vida que são o pano de fundo para a aquisição e aplicação do conceito (Wiseman, 2016, p. 59). Por isso, o enfoque de seu livro é nas práticas humanas em que o conceito é aplicado e nas convenções sociais, culturais e institucionais que permitem sua aplicação. Por mais que descrever uma ação intencional seja simples e comum, as práticas e convenções que possibilitam fazê-lo são complexas e, muitas vezes, sequer nos damos conta delas (Wiseman, 2016, p. 62). Essa é a contribuição que Anscombe pretende com o livro.
3 A descrição intencional e o método
A influência metodológica de Anscombe, no livro, é a gramática de Wittgenstein (Diamond, 2019). Assim, por mais que ela tenha sido uma crítica severa da ideia da filosofia da linguagem da época, por basear a análise de conceitos no seu uso, a virada linguística não deixou de influenciá-la (Cumhaill; Wiseman, 2022, p. 168-169). As ideias de Wittgenstein ressoaram em sua filosofia. É importante ressaltar, contudo, que Anscombe foi sagaz em desenvolver uma estratégia original para descobrir as pressuposições sobre ações intencionais que não estão claras na aplicação corriqueira do conceito (Wiseman, 2016, p. 56). Para tanto, é preciso considerar as práticas da vida humana nas quais o conceito é aplicado.
Admitindo o estilo pouco ortodoxo de Anscombe, Kloosterboer (2022) propõe alguns insights importantes sobre o método da filósofa. Anscombe aceita que seria circular tentar dar as condições para uma ação intencional (definir). Sendo assim, ela propõe dizer como ações intencionais existem (Kloosterboer, 2022, p. 195). Kloosterboer também ressalta uma das fontes de incompreensão da proposta de Anscombe. A filósofa afirma, em Intenção, que a pergunta “por quê?” se aplica a ações intencionais e que uma razão para agir é dada como resposta. É comum se pensar que uma ação feita por razões seria, portanto, a definição de ação intencional, mas essa não teria sido a ideia de Anscombe (Kloosterboer, 2022, p. 198).
Kloosterboer (2022, p. 201) defende que Anscombe não está tentando oferecer uma definição ou uma explicação de ação intencional; afinal, intencional é uma forma de descrever eventos. Uma definição mostraria a conexão (causal, para os teóricos causais da ação) entre ação e intenção e levaria a conclusões metafísicas sobre a ação intencional (Kloosterboer, 2022, p. 202). Uma definição seria conveniente, se eventos fossem um tipo de coisa que pode ser intencional ou não, e eventos intencionais tivessem a propriedade adicional de ser intencionais. Essa propriedade, de fato, precisaria ser definida. Todavia, Kloosterboer (2022, p. 201) salienta que intencional é apenas uma forma de descrição. Já que uma definição não vem ao caso, a abordagem de Anscombe leva em conta as práticas envolvidas no que dizemos. Isso propicia uma análise de como, de que maneira, o conceito existe, e não uma definição do que são ações intencionais (Kloosterboer, 2022, p. 202).
Segundo Kloosterboer, existe um sentido relevante da pergunta “por quê?” que Anscombe almeja elucidar. Ela não pretende dar condições suficientes para que uma ação seja intencional, tampouco pretende dar condições necessárias, já que a pergunta “por quê?” não deixa de ter aplicação, mesmo quando a resposta é “nenhuma razão” (Kloosterboer, 2022, p. 199). A conexão conceitual entre a pergunta, razões e ações intencionais já pressupõe um entendimento das ações intencionais, evidenciando a circularidade inadequada para uma definição. Se aceitarmos a interpretação que algumas filósofas, como Wiseman, Hornsby e Kloosterboer, propõem, podemos então entender que, nos casos nos quais a pergunta não se aplica, ela não se aplica porque não está de acordo com como aplicamos a pergunta nas práticas da vida, ou seja, não aplicamos a família dos conceitos intencionais, nesses casos.
Perguntar, por exemplo, “por que você abriu a janela?” e “por que você caiu?” carregam sentidos distintos. No primeiro caso, o sentido da pergunta “por quê?” é aquele em que a sua resposta é uma razão para agir (Schwenkler, 2019, p. 20). Contudo, explicar a distinção dessa maneira é circular, porque supõe justamente aquilo que se pretende explicar, o caráter da ação intencional. De modo bastante original, Anscombe identifica os casos nos quais se recusa a aplicação do sentido relevante da pergunta “por quê?” por razões epistêmicas: casos em que a/o agente não sabe o que está fazendo, sabe apenas por meio da observação, ou sabe apenas através da observação por que o está fazendo (Schwenkler, 2019, p. 21). O sentido relevante da pergunta não se aplica, nesses casos, porque a ação não pode ser compreendida dessa forma (Schwenkler, 2019, p. 21).
É possível perguntar a um agente por que está fazendo X, sob uma descrição não intencional e da qual ele sequer se deu conta, como projetar uma sombra na parede, enquanto ele serve um copo d’água. A pergunta vai causar espécie ao agente, pois é a sua posição contra a luz que causa a sombra e ele pode nem ter percebido. Entretanto, se perguntado sobre o que faz sob uma descrição intencional, “por que você está servindo um copo d’água?”, ele responderá com tranquilidade, “porque estou com sede”. Kloosterboer ressalta que essa é a vantagem da proposta: distinguir a ação intencional sem recorrer à noção de intencionalidade, evitando a circularidade (Kloosterboer, 2022, p. 203).
Finalmente, é importante notar que as descrições intencionais da ação formam uma cadeia, numa ordem que leva ao fim da ação e que expõe como o fim é alcançado. Essa é chamada de ordem A-D. Assim, descrever uma ação intencional é colocá-la numa cadeia teleológica, cujo fim pode ser revelado perguntando-se ao agente por que ele faz isso (Kloosterboer, 2022, p. 204). Wiseman (2022) resume a investigação realizada no Intenção como uma investigação sobre a mente, de modo geral (A Mente), i.e., investigar o conceito de intenção não envolve investigar uma mente individual. Nesse sentido, é uma investigação antipsicologista (anticartesiana). Portanto, para Anscombe, a questão propõe uma tarefa gramatical, ou seja, é uma questão a respeito “[...] dos padrões e habilidades que constituem a vida humana esboçada pelo conceito” (Wiseman, 2022, p. 189)[8] de intenção e que derivam seu significado e objetivo do pano de fundo social e institucional da vida humana. Estudar a Mente é estudar a estrutura (forma) da vida humana esboçada (ou retratada) por conceitos psicológicos, e tais conceitos são caracterizados pelo seu lugar nessa estrutura. Logo, questões sobre a intenção devem ser respondidas encontrando o lugar de cada intenção num padrão de ações e de discurso (jogo de linguagem) que evidencia o seu caráter (Wiseman, 2022, p. 190). É o que Anscombe faz no livro.
Intencional é uma forma de descrição de eventos, não é uma propriedade misteriosa de certos eventos (Wiseman, 2022, p. 191). A descrição tem um lugar num padrão de ação e de fala, dado que o padrão tem uma forma e a descrição se integra a essa forma, de sorte que a descrição tem também uma forma. No caso, é a forma de uma série ordenada de descrições conectadas pela preposição para [in order to]; por exemplo, ele pega a chaleira para ferver água para fazer café. A ordem A-D começa com um movimento corporal e termina naquilo que o agente deseja. O importante é que nós, membros de uma mesma comunidade, conseguimos ver como cada parte da ordenação leva à próxima e ao objetivo geral, de maneira inteligível, porque compartilhamos o mesmo mundo cultural, linguístico e institucional (Wiseman, 2022, p. 191). Compartilhamos crenças sobre o que pode ser feito, quando se pega uma chaleira, por exemplo. Caso não fosse inteligível, ou não seria uma ação intencional, ou precisaríamos verificar, perguntando “por que o agente fez A?”
A descrição da ação dada por quem age tem prioridade sobre (quase) qualquer outra descrição, pois as descrições podem ser múltiplas, mas é aquilo que o agente faz que constitui o que acontece (Wiseman, 2022, 192). Entretanto, o ponto de Wiseman não é sobre qual descrição o agente dá de sua ação e se ele a distorce. O que interessa a Wiseman marcar é que a descrição da ação não depende da mente individual do agente, mas da forma de descrições de ação compartilhada na sociedade (Wiseman, 2022, p. 192) e das circunstâncias.
4 Diferenciando Anscombe de Davidson
Posteriormente, Donald Davidson escreveu sobre pontos tratados no Intenção e, talvez por ter sido mais bem compreendido – e suponho que talvez por não ser uma mulher na filosofia –, ele é geralmente a referência citada sobre essas ideias e sua origem, como a ideia de que eventos têm diferentes descrições. Há suposições não ditas de que é possível subordinar as ideias de Anscombe às de Davidson (Wiseman, 2016, p. 67) e de que Davidson apresentou uma posição mais desenvolvida sobre ações, pois ele a teria desenvolvido melhor; por exemplo, ele tem um teoria sobre a identidade de eventos (Wiseman, 2016, p. 22). Esse é um equívoco que leva à suposição de que Anscombe precisaria ter apresentado também uma teoria sobre esse ponto, contudo, Wiseman (2016) defende que isso não fazia parte do projeto de Anscombe e que o projeto não necessita de tal teoria, porque a filósofa estava apenas constatando um fato inegável sobre ações quando afirmou que elas têm diferentes descrições. Ela estava apresentando requisitos mínimos para uma explicação de ações, não uma proposta sobre identidade.
Kloosterboer (2022) também acredita que o fato de Davidson aceitar, como Anscombe, que ações são intencionais sob uma descrição, provavelmente contribuiu para que a proposta sobre ações intencionais da filósofa fosse mal compreendida. Esse é um ponto crucial de discordância sobre o que esses filósofos pretendiam com suas discussões e de como elegeram desenvolver cada investigação, ou seja, seus métodos. A teoria da identidade de Davidson não é um desenvolvimento das ideias de Anscombe, mas uma cisão entre eles. Jennifer Hornsby (2011) frisa que Davidson aceita uma ontologia de eventos que permite pensar nos eventos atomicamente, independentemente de outras coisas, e ações seriam um tipo de evento que deve ser distinguido. Isso precipita uma investigação a respeito do que caracteriza ações em oposição a outros eventos, considerando que eventos são a noção fundamental.
Já Anscombe não aceita que ações são um tipo de evento que deve ser distinguido de outros, pois ela caracteriza ações pela intenção (Hornsby, 2011, p. 117). É a intenção que unifica mover o braço para bombear água para a casa, para envenenar os ocupantes da casa como uma ação, a de envenenar os ocupantes da casa. Por mais que a ação se divida em subações, essas são unificadas pela intenção de envenenar os ocupantes. Portanto, por mais que certamente o agente cause a ação (no sentido comum que entendemos isso, e não no sentido da conhecida Causação do Agente), as propriedades das ações, para Anscombe, não se caracterizam pela causação, mas sim pela estrutura de meios e fins própria do raciocínio prático (Hornsby, 2011, p. 118). A questão “por quê?”, então, está relacionada de maneira próxima com a questão “como?”, como fica claro no Intenção.
Há grandes discordâncias entre o que Anscombre e Davidson propõem, o que se torna evidente quando está clara a diferença entre os caminhos tomados por esses filósofos. Hornsby enfatiza, por exemplo, que, ao contrário de Davidson, Anscombe acreditava que é possível fazer algo sem mediação. Davidson achava que apenas fazemos algo sem mediação quando movemos o próprio corpo. O filósofo também pensava que ações são eventos, causadas por eventos, porque as relações causais ocorrem apenas entre eventos. Assim, o agente levantar a caixa causaria “o levantamento” da caixa. No caso, o agente move os braços e “[...] o resto fica a cargo da natureza” (Davidson, 2002, p. 59). A exceção ocorre quando a ação é mover o corpo, pois o agente levantar o braço é o braço levantar. Já para Anscombe, a ação depende de suas circunstâncias. Hornsby evoca o clássico exemplo da rainha que derrama veneno no ouvido do rei. Derramar o veneno não é extrínseco à ação de virar a mão, dadas as circunstâncias. Isso permite a Anscombe distinguir ações como amassar uma massa e fazer uma massagem, que podemos imaginar que envolvam os mesmos movimentos, enquanto, para Davidson, parece ser mais difícil fazer a distinção (Hornsby, 2011, p. 115).
Ao entender melhor o projeto do Intenção, seus objetivos e método, fica mais claro o que Anscombe diz e que sua exposição sobre a forma como o conceito da intenção existe e que intencional é uma descrição não sucumbem ao famoso desafio de Davidson. Eu me deparei algumas vezes com uma oposição que a filósofa supostamente faria entre razões e causas, que não poderiam convergir, pois os conceitos fariam parte de jogos de linguagem distintos (Macklin, 1972), o que me parece uma simplificação. Além disso, o desafio de Davidson é comumente tratado como incontornável para teorias não causais (O’Connor, 2010), supostamente incluindo a de Anscombe. Com base no que foi discutido nas seções anteriores, é fácil ver que isso é um erro.
Os agentes muitas vezes têm mais do que uma razão para realizar uma ação. Contudo, Davidson lembra que muitas vezes o agente age apenas por causa de uma de suas razões para agir; isso significa que o agente pode ter uma razão para realizar A, mas não realizar A por essa razão, realizá-la por outra razão que ele também tem para fazer A. Por exemplo, imaginemos que Fulano, um agente um pouco antissocial, almoçou hoje em casa e que ele quer economizar, por isso, quer diminuir a quantidade de refeições em restaurantes. Por acaso, um colega que ele acha maçante lhe havia dito que queria encontrá-lo no restaurante que Fulano frequenta para o almoço, o que também é uma razão para ele almoçar em casa. Davidson (2002, p. 09) enfatiza que a razão pela qual Fulano de fato agiu é aquela que causou a ação, por exemplo, o agente agiu por causa [because] da sua aversão ao compromisso social. Ele pode dizer que a razão pela qual agiu foi que ele queria economizar, todavia, a razão que causou a ação foi que ele não queria almoçar com o colega. O ponto é que a teoria causal de Davidson ensejaria identificar a razão pela qual o agente de fato agiu, que seria a causa da ação, enquanto, as teorias chamadas não causais, como a de Anscombe, não poderiam fazer o mesmo. Oferecer uma maneira de fazer essa identificação é aquilo que Davidson desafia não causalistas a fazer.
Não faria sentido, contudo, falar em causa da ação nesses termos para Anscombe. Ela certamente não negava que os movimentos corporais, por exemplo, têm causas fisiológicas, porém, a filósofa não veria sentido em tratar razões para agir como causas. A razão para agir é revelada pela pergunta “por quê?”[9], colocando a descrição intencional da ação numa ordenação racional de passos para alcançar um objetivo e que faz sentido no pano de fundo cultural e institucional das práticas compartilhadas da vida humana. Uma série de passos para alcançar um objetivo envolve causas, sem dúvida, mas essas causas não evocam razões e as razões não evocam causas, assim como a história narrada pelas palavras em um livro, como Torto Arado, não serão entendidas, se focamos na causa, que é a impressão das palavras com tinta nas páginas. Evocar a impressão das palavras como causa de elas narrarem a história de Belonísia não ilumina a história num sentido relevante.
Há alguma similaridade com razões para agir, já que razões são racionalmente ordenadas, considerando as práticas culturais e institucionais. Se se perguntasse a um adulto por que pegou um ovo e uma frigideira, seria estranho se ele dissesse seriamente que o fez porque está fazendo uma previsão astronômica (ou, mais realista, se ele mencionasse contrações musculares). Mesmo que essa tivesse sido de fato a causa da ação, considerando as práticas astronômicas, a ação segue inexplicada e não faria sentido. Afinal, aquilo que nos permite entender a ação não é uma relação causal, ou seja, uma causa por si só não nos permite compreender a ação. Apontar a causa de uma ação apenas a explica se a causa apontada for uma razão, e não por ser uma causa, contudo, por ser uma razão.
Por isso, o desafio de Davidson não é tão potente na perspectiva anscombiana, pois a noção de causa não contribui para situar a ação (em sua descrição intencional) no pano de fundo racional do qual esse tipo de descrição da ação depende. Davidson está preocupado em apontar eventos que causam outros eventos; todavia, para a filósofa, intencional é um tipo de descrição. Caso haja de fato uma preocupação com por qual razão, dentre várias, o agente agiu, esse não parece ser um grande problema, ou um desafio para ela. A razão é aquela que encaixa a ação na ordem A-D para alcançar o objetivo, o que geralmente podemos depreender observando o que o agente faz, supondo que compartilhamos a mesma cultura e instituições, ou perguntando “por quê?”
Lembremos o caso de Truman. A crítica de Anscombe sugere que, para a pergunta “por que?” ele ordenou o bombardeio, que ele o fez “para matar milhares (incluindo inocentes)” faz parte da resposta “para obter a rendição incondicional do Japão”. Isso não entra em conflito com o objetivo de Truman de terminar a guerra; Anscombe não questiona que ele tivesse esse objetivo, ela apenas afirma que ele escolhe matar milhares de inocentes como meio para fazê-lo. Dado que compartilhamos o mesmo mundo e supomos que ele sabia, de forma geral, os fatos básicos sobre o mundo e as circunstâncias, inclusive sobre as instituições, para Anscombe, as circunstâncias e o seu cargo obrigam incluir matar milhares de inocentes na resposta. E essa é uma descrição intencional na ordem A-D que torna inteligível a ação de Truman. Lembremos que as circunstâncias e fatos sobre os meios para alcançar o fim impõem descrições da intenção (Anscombe, 1982, p. 23), independentemente do que diz o agente ou de sua sinceridade.
No caso de Truman, o que ele almejava com a ação é um ponto pacífico, tratava-se de obter a rendição incondicional do Japão. A questão surge do meio para obtê-lo. Enquanto alguns diziam que Truman apenas assinou um papel, ou que ele não o fez para matar inocentes, Anscombe diz que é inegável que o meio utilizado por Truman para alcançar o fim foi o assassinato de milhares de inocentes. Uma vez que ele tinha o conhecimento que um adulto razoavelmente informado e ocupando sua posição tem sobre o mundo e as instituições, a resposta para “por que?” não pode ser apenas “assinou um papel”. É preciso admitir também que “para matar milhares de inocentes com a bomba” é uma das respostas à pergunta. Já num caso como o do antissocial, Fulano, bastaria considerar o seu fim, que era evitar interagir com o colega maçante, o que é diferente de economizar. Assim, a resposta para “por que?” ele agiu é “evitar encontrar o conhecido”, que é uma descrição intencional da ação.
O que o desafio de Davidson sugere é que, se tomarmos essa descrição atômica da ação, “Fulano cozinha o almoço em casa” e buscamos a explicação da ação dentre suas razões, nesse caso, nós nos deparamos com duas razões e não podemos decidir qual explica a ação, com base numa teoria que rejeita a explicação causal proposta por ele, como o faz a proposta de Anscombe. Como, para Anscombe, intencional não se refere a estados mentais, se apenas uma das razões vem ao caso, seria preciso perguntar “por que” Fulano fez o almoço em casa para podermos situar essa descrição intencional da ordem A-D e a resposta é “para evitar encontrar o colega maçante”. Logo, essa é a razão que permite compreender a ação e é uma descrição intencional da ação. Assim, a pergunta “por quê” já permite responder ao desafio.
Considerações finais
Ao apresentar como recentes interpretações sobre o Intenção tratam o projeto nele desenvolvido, almejei esclarecer alguns pontos básicos sobre o livro e como as pesquisas recentes sobre ele evidenciam distinções entre a proposta de Anscombe e a teoria padrão da ação. Tal exposição deixa claro que não “faltam contornos” ao argumento de Anscombe; ele apenas foi muitas vezes mal compreendido. Com a ajuda dessa compreensão do Intenção, argumentei que é um equívoco aceitar que o desafio de Davidson é um problema para as ideias de Anscombe sobre ações intencionais e defendi uma maneira de respondê-lo. Além disso, enquanto a filosofia da ação padrão mantém seu enfoque em descrições atômicas, a ordem A-D proposta por Anscombe tem a vantagem de permitir a inserção das circunstâncias na descrição da ação, facilitando a avaliação moral das ações.
G. E. M. Anscombe: an alternative to the standard philosophy of action
Abstract: The article presents a brief introduction to the investigation proposed in G. E. M. Anscombe's famous book, Intention, and highlights some central concerns that the book aimed to solve. The following discussion aims to provide a review of recent literature that proposes an enlightening interpretation of Intention. To do this, I take recent comments on the work as a basis, privileging interpretations made by philosophers who aim to understand the originality of Anscombe's method, her philosophical concerns and its context, as well as the contrast of her position with the standard theory on action, the causal theory. Finally, based on the presented review, I briefly argue that Anscombe's proposal evades Davidson's famous challenge, which is commonly treated as unavoidable.
Keywords: Anscombe. Intention. Teleological order.
Referências
ANSCOMBE, G. E. M. Mr. Truman’s Degree. [Manifesto]. Oxford: Oxonian Press, 1956.
ANSCOMBE, G. E. M. Does Oxford moral philosophy corrupt youth? [Fala proferida no BBC Third Programme e subsequentemente impressa no] The Listener, v. 57, n. 1455, p. 266-271, 1957a.
ANSCOMBE, G. E. M. Intention. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1957b.
ANSCOMBE, G. E. M. Modern moral philosophy. Philosophy, v. 33, n. 124, p. 1-19, 1958. https://doi.org/10.1017/s0031819100037943
ANSCOMBE, G. E. M. The intentionality of sensation: a grammatical feature. In: NOË, A.; THOMPSON, E. (ed.). Vision and mind: selected readings in the philosophy of perception. Cambridge, MA: MIT Press, [1965] 2002. p. 55-75.
ANSCOMBE, G. E. M. Medalist’s address: Action, intention and “double effect.” Proceedings of the American Catholic Philosophical Association, n. 56, p. 12-25, 1982.
AUSTIN, J. L. How to do things with words: the William James lectures, delivered at Harvard Univ. in 1955. Oxford: Clarendon Press, 1962.
AYER, A. J. Language, truth and logic. Harmondsworth: Penguin Books, [1936] 1972.
CHISHOLM, R. Perception: a philosophical study. Ithaca: Cornell University Press, 1957.
CUMHAILL, C. M.; WISEMAN, R. Metaphysical animals: how four women brought philosophy back to life. New York: Doubleday, 2022.
DAVIDSON, D. Essays on actions and events. New York: Clarendon Press, 2002.
DIAMOND, C. Reading Wittgenstein with Anscombe, going on to ethics. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2019.
HORNSBY, J. Actions in their circumstances. In: FORD, A.; HORNSBY, J.; STOUTLAND, F. (ed.). Essays on Anscombe’s Intention. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2011. p. 105–127.
KLOOSTERBOER, N. Anscombe’s approach to rational capacities. In: PEIJNENBURG, J.; VERHAEGH, S. (ed.). Women in the history of philosophy and sciences: selected papers of the Tilburg – Groningen Conference, 2019 Volume 15. Switzerland: Springer, 2022. p. 194-217.
LIPSCOMB, B. J. The women are up to something: how Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch revolutionized ethics. New York, NY: Oxford University Press, 2022.
MACKLIN, R. Reasons vs. causes in explanation of action. Philosophy and Phenomenological Research, v. 33, n. 1, p. 78-89, 1972.
O’CONNOR, T. Reasons and causes. In: O’CONNOR, T.; SANDIS, C. (ed.). A companion to the philosophy of action. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010. p. 129-138.
RICOEUR, P. Onself as another. Tradução de Blamey, K. [Soi-même comme un autre, 1990]. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
SCHWENKLER, J. Anscombe’s Intention: a guide. Oxford: Oxford University Press, 2019.
TEICHMANN, R. The philosophy of Elizabeth Anscombe. Oxford: Oxford University Press, 2008.
WISEMAN, R. Routledge philosophy guidebook to Anscombe’s Intention. London: Routledge, 2016.
WISEMAN, R. What do I really do? what do I really see? In: HADDOCK, A.; WISEMAN, R. (ed.). The Anscombean mind. London: Routledge, 2022. p. 187-200.
Recebido: 31/03/2024 – Aceito: 22/07/2024 – Publicado: 23/09/2024
[1] Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7192-0777. Email: bsorrentinom@gmail.com.
[2] Gostaria de agradecer a Anderson Nakano e aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões.
[3] Roderick Chisholm (1957, p. 172-173) também percebeu algo, numa linha similar, que não se pode falar de um estado intencional (psicológico), sem usar outros estados intencionais, o que ficou conhecido como a circularidade dos conceitos intencionais.
[4] Anscombe tratou do estado da filosofia moral num programa da rádio BBC, para o qual ela escreveu o script A filosofia de Oxford corrompe a juventude? [Does Oxford moral philosophy corrupt the youth?]. A resposta foi não (Anscombe, 1957a), contudo, essa era uma resposta sarcástica. A razão pela qual essa filosofia não corrompia a juventude era apenas que ela professava ideias similares àquelas ideias, moralmente corruptas, que os jovens aprendiam na sociedade (Lipscomb, 2022, p. 159). Assim, como os jovens não eram ensinados nada de mais louvável em outras partes, seria injusto atribuir à filosofia moral de Oxford a corrupção da juventude.
[5] Anscombe (1956, p. 04) relatou que muitos foram ao local de votação já determinados a votar contra sua posição, apenas porque teriam ouvido que “as mulheres estavam aprontando algo”.
[6] Embora não fosse uma pacifista, Anscombe foi contra a guerra, porque supunha que ela levaria ao assassinato de inocentes. Dito de maneira simplificada, ela pensava que o pacifismo é uma posição hipócrita, por ser inalcançável na prática, mesmo que bonita em ideia (Wiseman, 2016, p. 19). Para estabelecer uma posição praticável, é preciso deixar claro quando a violência é aceitável (justa), como em casos de autodefesa. É preciso distinguir matar de assassinar, pois a distinção torna possível para as pessoas agirem de modo a evitar assassinar (Wiseman, 2016, p. 30).
[7] Esses objetivos se referem às três rubricas nas quais Anscombe divide o livro: expressão de intenção para o futuro, intenção ao agir e ação intencional (Wiseman, 2016, p. 27).
[8] Nesse capítulo, Wiseman (2022) se refere à percepção, mas Anscombe (1965) acreditava que a percepção é intencional e, portanto, ela compartilha algumas das características centrais das intenções.
[9] Obviamente, ele pode mentir. Mas o que importa é que há uma resposta verdadeira para a pergunta e que ele é geralmente capaz de oferecer.