Comentário a “O ser e o nada: ‘A temporalidade’. Um guia de viagem”: para uma viagem insólita?
Luciano Donizetti da Silva[1]
Referência do artigo comentado: Carrasco, A. de O. T. O ser e o nada: “A temporalidade”. Um guia de viagem. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, e02400131, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14956.
A temporalidade não é,
mas o Para-si se temporaliza existindo
(Sartre, 2011, p. 192).
A temporalidade é temática central na filosofia de Sartre, e isso está diretamente ligado ao método utilizado pelo filósofo: sua ontologia é fenomenológica. Ocorre que, depois de Kant, a ontologia – tradicionalmente Metafísica – foi colocada no plano da especulação. Noutras palavras, após a Crítica da Razão Pura, o discurso sobre o Ser somente é possível como fenomenologia, conforme afirma Heidegger; e é justamente calcado na circularidade hermenêutica heideggeriana e na seara fenomenológica aberta por Husserl, que essa questão deve ser recolocada. Assim, tem-se o belo texto de Alexandre Carrasco (2024): ele propõe produzir um guia de leitura sobre a temporalidade, em O ser e o nada, remetendo a uma viagem; então, melhor apertar o cinto, pois essa será um tanto insólita. Isso porque, na verdade, Carrasco (2024) faz um pouco mais do que mero programa de viagem: primeiro, a contrapelo de Espinosa e com apoio de Flajoliet, mostra os limites da ontologia sartriana (porque fenomenológica). E isso tem dois lados, afinal, Sartre não pode mais se servir da malemolência de Santo Agostinho, o qual se satisfaz com a falácia de que se pode saber de algo, desde que não se coloque a pergunta: é longe dessa noção metafísica do tempo, ou de qualquer outra, que Sartre descreve a temporalidade que, sim, remete à transcendência, mas que não, não existe para além do homem ou do mundo humano.
Sem Deus ou seus substitutos e livre de toda transcendência especulativa, Sartre recoloca a questão do tempo sobre novas bases: aquela do plano da existência, para a qual somente fenômenos podem ser apreendidos; o Ser-Em-Si é fechado e, por si, não comporta relações, donde também qualquer noção de tempo somente possa ser fenomênica: não há tempo-em-si antes (ou fora) da relação originária que fundamenta o mundo, a saber, o processo de negação promovido pelo Para-Si contra o Em-Si; ou melhor, é do seio mesmo do Em-si que o Para-si se coloca como alteridade, o que fere de morte qualquer noção de Totalidade, seja prévia, seja a realizar. Dessa forma, porque o mundo advém dessa relação primeira (constituinte), pela qual homens e mulheres dividem grandes massas de Ser em istos, a temporalidade será o modo de Ser-Para-Si (avalizado fenomenologicamente): homens e mulheres, para serem, temporalizam o Em-si e a si mesmos. É assim que conceitos como antigo ou inovador podem ser atribuídos tanto às ideias como a objetos: as inovações do pensamento kantiano são, hoje, de antanho, tanto quanto a máquina de escrever é objeto de museu. A temporalidade, por sua vez, tem seu sentido num erodir permanentemente o ser da causa na expectativa de que o efeito tenha mais substância do que a causa que o põe – na formulação de Carrasco. E isso tem muitas consequências. Assinalo duas.
Primeira, um aparente e singular círculo vicioso, o qual impede de, intuitivamente, compreender a temporalidade: para saber algo sobre o sujeito, numa questão que o envolve, seria preciso que algum sujeito fosse anterior ao próprio sujeito e, claro, à questão que ele coloca (pais podem explicar coisas a seus filhos). Todavia, no caso em tela, não há pai do mundo humano, senão os próprios homens e mulheres; é essa radical humanização do tempo, calcada no método fenomenológico, que permite a Sartre recolocar a questão medieval noutras bases e entender o tempo sem o recurso ao Transcendente, pois o faz desde o Ser fenomênico; afinal, se algo pode ser novo ou velho, o será, velho ou novo, para o Para-si, ser que, curiosamente, além de saber de sua finitude, envelhece. Mal formulando um dito, envelhecer exige saber que se envelhece, ou seja, falar do tempo é ainda falar de transcendência; contudo, não mais aquela que remete a estruturas para-além do mundo, como deuses ou vontade, ou Ideia ou seja o que for. A pergunta pelo tempo só pode ser temporal, mostra Carrasco: é em consonância com a experiência fenomenológica do tempo enquanto temporalidade vivida que Sartre, no debate com Husserl, recusa qualquer unidade pré-egológica da experiência do mundo que é, também, ser-temporal, porque temporalizado pelo olhar alheio. Uma tarefa comum e recíproca entre Seres-Para-Si.
Segunda, cabe lembrar que circularidade hermenêutica não é círculo vicioso, ainda que seja atípica; a dificuldade fica evidente: qualquer resposta sobre o tempo será, sempre, no tempo, ou seja, situada. Mais do que isso, será invariavelmente uma resposta que se estende pelo tempo que a degrada e, por isso, tanto Descartes como Agostinho ou mesmo Espinosa são autores antiquados, e tratam a questão de modo pré-kantiano. E não é mesmo assim? A máquina de escrever, que hoje não escreve, tende a permanecer em seu tempo, desde que mantida como memória, situação equivalente a todas as filosofias que, por si mesmas, nunca sairiam das estantes das bibliotecas (e nem teriam ido até ali, se não tivessem, nalgum momento, tido o seu presente). E é justamente essa condição incomum do tempo que faz o filósofo francês se afastar de Husserl, ainda que permaneça tão perto: em 1936, Sartre pretendia salvaguardar a unidade positiva do fluxo temporal; todavia, onde alocar tamanha tarefa, tendo como sustentáculo o Para-si, santo com pés de barro?
Isso leva, claramente, ao plano da temporalidade mundana, fenomenológica, aquela partilhada com outrem. Assim, Sartre, porque recusa a redução fenomenológica de Husserl, não visa a encontrar uma temporalidade originária, mas, tão somente, sua origem. E, também parece adequado afirmar, sua ontologia não deixa dúvidas a esse respeito: “O Para-si é o ser que tem-de-ser seu ser na forma diaspórica da temporalidade” (Sartre, 2011, p. 199), numa transcendência que agora é ek-stática, pois existir para homens e mulheres é temporalizar.
Haveria mais a escrever, no sentido de chegar mais perto da questão temporal situada, suscitada nesse artigo? Ou seria o caso de olhar de longe o texto, para vê-lo melhor? Fato é que há homologia entre Ser-Para-Si e Temporalidade, e isso mediado pelo Circuito da Ipseidade; cabe retornar ao momento inicial dessa insólita viagem: cada homem e cada mulher é, ao mesmo tempo, presença a si e facticidade, e é daí que se pode falar em valor ou possíveis (mundo, enfim), ambos oriundos do mesmo movimento intencional que define Ser-Para-Si. Então, toda e qualquer distensão temporal (passado ou futuro) é tributária e, de certo modo, coincide com ser-liberdade? Vendo de muito longe, parece que Sartre titubeia entre fé perceptiva e sobrevoo da realidade, como sugeriu Merleau-Ponty; vendo de muito perto, parece ser cabível admitir a tese de Bornheim, para quem Sartre seria o último metafísico, afinal, insiste na totalização, mesmo admitindo o absurdo de toda Totalidade.
Ora, numa distância intermediária – nem longe nem perto –, pode-se ver o destino final dessa viagem: não é possível distanciar-se de si, pois o reflexo não se separa do refletidor, não no caso da consciência intencional, donde “Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem-no-mundo não chegassem a realizar mais do que um Deus faltado” (Sartre, 2011, p. 759). Em-Si e Para-Si estão em estado de desagregação perpétua ante a síntese ideal (a qual, também, é invenção humana). A temporalidade expressa uma síntese que é sempre impossível e sempre indicada; enfim, se o modo de ser-homem-e-mulher-no-mundo é o próprio tempo, isso decorre diretamente da não coincidência ontofenomonológica do Ser-Para-Si com seu ser. Não se trata de círculo, mas de circuito: estamos irremediavelmente ligados ao Ser, o que remete diretamente ao Outro; é ante o olhar alheio que podemos ser isso ou aquilo e, sem ele, não somos. O movimento negativo do Para-si, essa condenação a escolher que perfaz seu ser, também faz o mundo – e toda teoria ou doutrina. E fim da viagem.
Referências
Carrasco, A. de O. T. O ser e o nada: “A temporalidade”. Um guia de viagem. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, e02400131, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14956.
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. 20. ed. Trad. Paulo Perdigão. São Paulo: Vozes, 2011.
Recebido: 29/01/2024 – Aprovado: 31/01/2024 – Publicado: 28/03/2024
[1] Professor de Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG – Brasil. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado junto à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-PPGFil), São Carlos, SP -Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0584-7377. E-mail: donizetti.silva@hotmail.com.