Comentário a “O ser e o nada: ‘A temporalidade’. Um guia de viagem”: Sartre e Merleau-Ponty

 

José Luiz B. Neves[1]

 

Referência do artigo comentado: Carrasco, A. de O. T. O ser e o nada: “A temporalidade”. Um guia de viagem. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, e02400131, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14956.

 

A análise da temporalidade em O ser e o nada se insere no movimento que vai da presença (a) si do para-si à sua relação com a transcendência, e visa a determinar a ipseidade como um circuito ekstático de teor temporal. O existente cujo ser se define como falta de ser tem, então, suas estruturas imediatas, de início ontologicamente apreendidas de maneira estática, fenomenologicamente descritas como diversas ekstases temporais: nesse novo nível de análise, a facticidade é o passado que o para-si tem de ser, a fim de não ser; o ser do valor e dos possíveis constitui o futuro em direção ao qual o para-si se projeta, arrancando-se do presente; o nada, cuja fissura atravessa a presença (a) si, é o que impõe que cada novo presente que venha a ser seja negado numa sempre-nova projeção em direção ao futuro, preterificando o presente e impossibilitando a saturação do projeto, sob a forma do em-si-para-si.

No comentário que faz desse tema clássico, Alexandre Carrasco dá especial relevo ao problema da unidade das três ekstases temporais. Por isso, analisa as faces estática e dinâmica da ontologia da temporalidade, nas quais se mostra, a propósito da ordem e da passagem do tempo, que tal unificação só pode advir daquela paradoxal unidade diaspórica do para-si, que a cada nova fulguração do instante se projeta ex nihilo em direção ao futuro, acarretando modificações em cascata, quanto ao ser do passado e do presente. Evidencia igualmente as consequências que tal temporalização traz à ideia de reflexão, de cuja forma impura resulta a unidade temporalmente reificada do psíquico. Entre outras coisas, tal recorte permite ao comentador comparar com eficácia as soluções de O ser e o nada com aquelas de A transcendência do ego, e é esta uma das conclusões a que chega, no artigo: de 1936 a 1943, há uma importante mudança na doutrina sartriana da temporalidade. Se a tese é praticamente consensual, na literatura secundária atualizada (Coorebyter, 2000; Flajoliet, 2008; Alt, 2017), o interesse do artigo está em jogar luz sobre alguns detalhes dessa inflexão.

Em 1936, o campo transcendental é impessoal, pois Sartre vê na intrusão do ego habitando o fluxo de vividos o passo depois do qual não há como recuar do idealismo de Ideias I. Sem poder remeter a tal unidade focal transcendente, a multiplicidade de consciências exige, então, outro modo de se dar conta de sua unidade. As Lições sobre a consciência interna do tempo são ali exclusivamente convocadas para tal fim. O núcleo da solução está na intencionalidade longitudinal, isto é, no fato de que a retenção do objeto recém-passado é imediatamente também retenção da consciência recém-passada, ocorrendo nessa retenção da retenção uma apreensão imediata do fluxo sobre si mesmo, sem carecer, para isso, de uma segunda consciência constituinte, fora do tempo. Está explicada a desnecessidade do ego para a unificação das vivências. Mas, que seja apenas esse o aporte das Lições, significa também que outra de suas contribuições maiores, a noção de presente vivo, tão cara a Merleau-Ponty e que, entre outras coisas, dissolve a miragem do agora discreto, permanece solenemente ignorada por Sartre. Daí a concepção instantaneísta do tempo, na Transcendência do ego (Alt, 2017), efeito também do espontaneísmo da consciência, naquele livro: como argumenta Carrasco (2024, p. xx), “[...] a operação do campo transcendental prescinde do tempo em sentido próprio, ela não se temporaliza enquanto tal, pois funciona como criação continuada que se renova ou se relança no instante”.

Como é sabido, a inflexão que temporaliza a ipseidade, em 1943, se deve mais à leitura de Heidegger do que a uma leitura renovada das Lições. A temporalização resulta, assim, da definição da consciência como projeção ekstática, amparada naquela do para-si como ser que é o que não é e não é o que é – o que proíbe de partida qualquer coincidência consigo do para-si e o conduz a repetir, em diferentes níveis de análise, a estrutura da falta que busca sua totalização impossível –, e não de qualquer novo papel conferido às sínteses passivas. O que estaria por trás da preferência por essa solução? Numa passagem rápida e quase incidental, Carrasco sugere o seguinte: o esquema husserliano das Lições, se dá conta da unidade do campo transcendental crucial para A transcendência do ego, não dá “[...] a medida das descontinuidades negativas próprias do tempo, muito menos em termos ek-státicos”, que serão “[...] as novas formas de unidade que aparecerão na reformulação do problema em 1943” (Carrasco, 2024). E emenda: tal dificuldade do esquema husserliano para pensar as descontinuidades seria ainda herdada por Merleau-Ponty. O que pensar dessa sugestão?

Tudo depende do que se entende por descontinuidade. Se entendemos por isso, uma vez que, em caso algum, se trata da descontinuidade real de agoras discretos, o relançamento do para-si em direção ao porvir em cada nova fulguração do instante, espontaneísmo de 1936, o qual não desaparece do livro de 1943, então, deve-se reconhecer que o modelo do presente vivo é continuísta por excelência. Não há fase passada ou futura de objeto que não seja anunciada em pessoa pela sua retenção ou protensão no presente vivo, a passagem à impressão sendo pensada como uma atualização daquilo que é potencialmente implicado em horizonte. Tal modelo é oposto tanto ao tempo serial, descontínuo, porque partes extrapartes, quanto ao esquema sartriano, descontínuo, porque atravessado pela negatividade do para-si.

Seja dito, entre parênteses, que o modelo husserliano não implica de forma alguma a presença real do passado no presente, diferentemente do que já se sugeriu: sendo uma intencionalidade passiva, a retenção é a doação à distância, embora em pessoa (no sentido da evidência, não da imanência real), do recém-passado. Não há dúvida de que Merleau-Ponty herda de Husserl esse continuísmo, na acepção que se está dando ao termo: sua preferência pela continuidade se deve às exigências de seu tema, a percepção como abertura a um mundo sensível dotado de sentido incoativo, mas também a certa convicção primitiva que perpassa suas posições em vários contextos, a saber, da filosofia à política, a ideia, antidualista e de sotaque aristotélico, de que não há forma que não seja solicitada por sua matéria, internamente trabalhada. Do sentido autóctone da hylé à recusa da revolução por cima, o ponto é sempre o mesmo.

Por outro lado, quando se considera a doutrina do tempo expressa na Fenomenologia da percepção, percebe-se que essa continuidade convive com certa descontinuidade. E isso é necessário para dar conta da fenomenalização da passagem do tempo, problema análogo àquele que Sartre encontra, no nível da dinâmica da temporalidade: um fluxo que apenas passasse, frisa grosso modo Merleau-Ponty, faria bola de neve consigo mesmo e não apareceria como passagem; desde então, é necessária uma imobilização provisória do fluxo, um posto no qual a passagem se congela provisoriamente, para logo em seguida passar, desenhando uma espécie de dialética entre tempo constituído, a série de agoras, e tempo constituinte, o fluxo ininterrupto. Essa dialética guarda alguma relação, ainda que mediada, com Sartre: Merleau-Ponty a pensa como sendo da mesma ordem que a Fundierung entre cogito tácito e cogito engajado, presença (a) si e presença no mundo, distendendo, porém, temporalmente a relação imediata entre ambos e assim – contra Sartre – proibindo a transparência da consciência para si mesma. A solução merleau-pontiana, nesse sentido, envolve continuidade e descontinuidade.

Em Sartre, a descontinuidade parece efeito do modo de ser do para-si e redunda em uma ideia de temporalidade, a qual, sem ser serial, será entrecortada por sucessivas e sempre novas fugas em direção ao futuro, reconfigurando a cada vez ex nihilo a totalidade do tempo. Essa descontinuidade, Merleau-Ponty procura pensá-la sob o fundo da continuidade. Se não nos equivocamos, o centro da questão reside na passividade, à qual Merleau-Ponty julga Sartre incapaz de dar devida função. Talvez se possa formulá-lo do seguinte modo: enquanto, em Sartre, é o ímpeto nadificante do para-si que obriga a temporalização, dando ao circuito da ipseidade uma forma temporal, em Merleau-Ponty, é uma espécie de autoafecção passiva do próprio tempo, instaurada na relação entre tempo constituinte e tempo constituído, que desenha originalmente uma relação a si e dá, assim, origem à ipseidade.

Tal observação permite uma outra, talvez razão da anterior. Flajoliet vai nos permitir chegar mais rapidamente a nosso ponto. Comentando a posição da temporalidade, na arquitetônica de O ser e o nada, ele escreve:

[...] a ordem da exposição escolhida, que, ao contrário do que ocorre em Ser e tempo, começa pela ipse para apenas em seguida tratar do mundo, não é sem significação. O para-si, sugere-se, não seria mundanizante se não estivesse numa irredutível distância a si. (Em Heidegger, a sugestão é inversa: o Dasein não seria à distância de si mesmo se não fosse mundanizante) (Flajoliet, 2005, p. 84).

 

É a abertura ao mundo que redefine a presença a si ou a impossível coincidência consigo que lança o si no mundo? Como em Heidegger, na Fenomenologia da percepção, a ekstase temporal do cogito é resultado e não premissa de sua mundaneidade. Mas essa mundaneidade, ali e ainda mais fortemente no Visível, aponta para a encarnação e para a dimensão carnal da subjetividade: é o pertencimento da subjetividade ao mundo sensível que exige redefini-la quanto a seu modo ser (pressente-se aí a diferença tanto com Heidegger quanto com Sartre). Donde o papel preponderante da passividade, do começo ao fim da obra. E, se ainda é necessário, para dar conta de como esse mundo de que se é parte pode ainda aparecer a alguém, fenomenalizando-se, explicar que o constituinte não se afoga no mundo, porém, dele emerge redescrito como distância ao mundo e a si (necessidade conceitual que Sartre vai interpretar, no plano da metafísica, como a retomada pelo para-si do projeto fracassado do em-si de se autofundar), resta que o ponto de partida em Merleau-Ponty, nunca superado pela a progressão expositiva, é a inerência ao mundo, a indivisão do para-si e do em-si, cuja identidade e diferença devem ser pensadas juntas.

O resultado, antissartriano, é dizer que é o ser que se fenomenaliza, não o para-si que traz o em-si à fenomenalidade. Tudo se passa, pois, como se a descompressão do em-si-para-si, que para Sartre devia permanecer como hipótese metafísica – válida heuristicamente para organizar os dados da ontologia fenomenológica, porém, sem qualquer papel constitutivo, um pouco à maneira kantiana (Prado Júnior, 2017, p. 161) –, fosse para Merleau-Ponty, ao contrário, o tema mesmo da fenomenologia (do tempo) e, em seguida, da ontologia (da carne). Sobretudo na última fase, a ideia é, de algum modo, a de que a identidade da identidade e da diferença entre o para-si e do em-si, bem como o brotamento do cogito graças à deiscência do ser, poderiam ser positivamente descritos, desde que flagrados no nível da reversibilidade carnal. Nesse caso, é decididamente para além dos limites da crítica que a filosofia de Merleau-Ponty se situa, cumprindo – melhor que Sartre – o projeto de se afastar do neokantismo francês. Não é um empreendimento sem custos.

 

Referências

ALT, F. Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 26, n. 40, p. 305-320, jan.-jun. 2017.

Carrasco, A. de O. T. O ser e o nada: “A temporalidade”. Um guia de viagem. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, e02400131, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14956.

COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie. Bruxelas: Ousia, 2000.

FLAJOLIET, A. Ipseité et temporalité. In: BARBARAS, R. Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005.

FLAJOLIET, A. La première philosophie de Sartre. Paris: Honoré Champion, 2008.

PRADO JÚNIOR, B. Ipseitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

 

Recebido: 24/01/2024 – Aprovado: 27/01/2024 – Publicado: 28/03/2024



[1] Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0657-2774. E-mail: zeluizneves@gmail.com.