Comentário a “Mind, beliefs and internet social media: a Peircean perspective”

 

Daniel Melo Ribeiro[1]

 

Referência do artigo comentado: Borges, P. M.; Cardoso, T. Mind, beliefs and internet social media: a Peircean perspective. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400134, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14449.

 

Borges e Cardoso (2024) tratam de questões ligadas às experiências de navegação e de consumo de conteúdo nas mídias sociais, tendo como base os conceitos de mente e crenças em Charles S. Peirce. Ao discutir os efeitos das mídias sociais, Borges e Cardoso adotam uma perspectiva analítica coerente com os preceitos do pragmatismo de Peirce, uma vez que os conteúdos que circulam nessas plataformas mobilizam crenças e hábitos dos agentes envolvidos, gerando resultados práticos perceptíveis.

O estudo parte de um ponto de vista pertinente para lidar com os processos de mediação que ocorrem em ambientes digitais em rede: a ideia de que estamos diante de agenciamentos híbridos, cujos atores mesclam características humanas e não humanas, deixando rastros mapeáveis. Nesse sentido, a teoria Ator-Rede tem ganhado protagonismo (Bruno, 2012; Venturini; Munk, 2022). Outra abordagem lembrada pelo artigo é a noção de midiatização (Couldry; Hepp, 2017), que trata da sobreposição de novas camadas de mediação que se manifestam na cultura digital e seu papel na construção da realidade.

A proposta do artigo é original e necessária, na medida em que se posiciona nesse debate, a partir da perspectiva peirciana. Ou seja, antes da discussão empreendida por Latour e seu grupo, Peirce já havia trabalhado temas correlatos no âmbito de sua semiótica e do seu pragmatismo. Nesse sentido, o artigo é um convite para que a comunidade acadêmica resgate as contribuições de Peirce, para pensarmos a possível formação desse tipo de mente social (Borges, Cardoso, 2024).

O primeiro ponto de convergência entre a filosofia de Peirce e essas teorias diz respeito à sua particular definição de mente (mind), que é suficientemente ampla para abarcar qualquer tipo de entidade ou suporte midiático capaz de articular signos e expressar algum tipo de pensamento. Cabe lembrar que, para Peirce (1992-1998, EP2, p. 402 [c. 1907]), “[...] todo conceito e todo pensamento além da imediata percepção, é um signo”. Assim, não se trata de restringir a produção de signos e de pensamentos ao aparato cognitivo humano. Outro ponto de convergência é a possibilidade de se inferir ideias gerais (ou símbolos, no contexto da semiótica),  a partir do significado potencial contido nos registros sígnicos que resultam de operações mentais. Tais registros, entendidos como rastros e vestígios de caráter indicial, são abundantes nas plataformas de redes sociais digitais, conectam-se em cadeias de semiose e podem conter pistas relevantes sobre os hábitos dessas mentes.

Contudo, não podemos perder de vista que esses vestígios resultam de processos de mediação que não estão isentos de desvios e distorções. Num cenário caracterizado por processos de plataformização e datificação, os registros deixados nessas redes apontam para constrangimentos algorítmicos e regras de negócio orientadas por motivações comerciais, cujos agentes, certamente, estão muito distantes de uma suposta neutralidade. Assim, uma das contribuições do artigo consiste em debater as possíveis implicações desses processos algorítmicos na aquisição de novos hábitos. Isso nos conduz a observar também as consequências práticas desses hábitos. Daí a relevância de se acionar o pragmatismo de Peirce, começando por sua estrutural reflexão sobre os métodos de fixação de crenças.

Tais métodos têm sido frequentemente recuperados pela comunidade peirciana nos últimos anos, sobretudo para lidar com o problema da desinformação nas redes sociais (Ripoll; Ohlson; Romanini, 2022). Embora esse tema não tenha sido tratado de maneira enfática pelos autores, seria inevitável mencioná-lo. O resgate desse texto de Peirce, de fato, contribui para deslocar o problema da desinformação para um lugar mais produtivo: ao invés de abordar a desinformação a partir de uma perspectiva funcionalista, com foco no emissor e sua suposta intencionalidade, joga-se luz sobre o modo como essas plataformas digitais de comunicação em rede poderiam fomentar a criação de certos regimes de crenças. O que se observa, de maneira recorrente, quanto tratamos de crenças e desinformação, é um predomínio dos métodos da tenacidade, da autoridade e do método a priori. Dessa forma, a hipótese dos autores está em sintonia com essa perspectiva: o sistema de crenças fomentado nessa mente social tende a ser caracterizado por esses três métodos, nos quais a verdade ou a falsidade não são tomadas como critérios de validação de argumentos.

Como apontado no artigo, o único método de fixação de crenças que busca lidar com a validade dos argumentos é o método científico, em contraste com os outros métodos, os quais podem ser classificados como dogmáticos (Ibri, 2020) e operam em uma lógica de contágio (Baggio, 2021). Esse argumento sugere, portanto, que os princípios do método científico sejam considerados como uma espécie de antídoto para conter a desinformação. Mas, como o método científico (apontado como o mais confiável) poderia ajudar a lidar com o problema cotidiano da desinformação, por exemplo? Afinal, seria impraticável, para a maioria dos usuários de redes sociais, realizar experimentos científicos toda vez que somos interpelados, por exemplo, por notícias que questionam a eficácia de vacinas.

Embora experimentos científicos pareçam ser inadequados para aplicações vitais do cotidiano, é preciso reconhecer que os princípios gerais da ciência, que orientam a busca pela verdade por meio do raciocínio deliberado, são, sem dúvida, relevantes para lidar com problemas práticos. O método científico implica um exercício de observação que busca validação de uma hipótese em relação aos fatos, por meio de processos dedutivos e indutivos. Ou seja, esse método científico não seria exclusivo de cientistas: constitui uma maneira de controlar nossos pensamentos, uma espécie de habilidade que pode ser estimulada e desenvolvida.

Como conclusão, os autores comentam sobre possíveis atitudes e responsabilidades dos diferentes atores desse processo, incluindo usuários, governo, plataformas e o próprio jornalismo. Um caminho sugerido seria estimular, nos usuários, uma espécie de “desejo de aprendizado” diante da insistência dos fatos ou mesmo da divergência de opiniões. Por outro lado, o compromisso em criar um ambiente mais plural, onde a contradição e a alteridade estejam presentes, parece não ser suficiente para estimular a modificação de crenças fixadas nas redes sociais. No âmbito do jornalismo, discutem-se os limites da objetividade da notícia, dada a sua natureza sígnica, bem como os riscos envolvidos no imperativo de se “ouvir os dois lados”, principalmente quando são focalizados temas como, por exemplo, as mudanças climáticas (Barsotti, 2023). Plataformas precisam ser questionadas e reguladas em relação ao seu modelo de negócios, que privilegia conteúdos desinformativos em nome de uma maior exposição aos anunciantes. Enfim, o próprio estímulo a uma leitura crítica da mídia também pode pontencializar “[...] o sentimento de desconfiança generalizado da população sobre os meios de comunicação”, podendo alimentar teorias da conspiração (Oliveira, 2020, p. 29).

A leitura do artigo levanta propostas para o desenvolvimento de outros estudos no futuro, especialmente para os pesquisadores interessados na obra de Peirce. Destaco, por exemplo, a relação entre crenças e instinto e o vínculo do conceito de mente social com a teoria dos interpretantes, um dos aspectos de que Peirce tratou nas fases mais maduras de seu pragmatismo.

 

Referências

Baggio, R. H. Como as redes fixam crenças: uma análise realista da pós-verdade e suas implicações semiótico pragmáticas. 2021. 200 f. Tese (Doutorado) Curso de Filosofia, Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2021.

Barsotti, A. As mentiras de Bolsonaro e o jornalismo declaratório: como a imprensa contribuiu para ampliar a desinformação sobre o meio ambiente. Revista Eco-Pós, v. 26, n. 1, p. 79-104, 2023. DOI:10.29146/eco-ps.v26i01.28026.

Borges, P. M.; Cardoso, T. Mind, beliefs and internet social media: a Peircean perspective. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400134, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14449.

Bruno, F. Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, v. 19, n. 3, p. 681-704, 2012.

Couldry, N.; HEPP, A. The mediated construction of reality. Cambridge: Polity Press, 2017.

Ibri, I. A. Semiótica e Pragmatismo: interfaces teóricas. v. 1. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2020.

Oliveira, T. Desinformação científica em tempos de crise epistêmica: circulação de teorias da conspiração nas plataformas de mídias sociais. Revista Fronteiras – estudos midiáticos, v. 22, n. 1, p. 21-35, jan./abr. 2020. DOI: 10.4013/fem.2020.221.03

Peirce, C. S. The Essential Peirce: Selected philosophical writings, vol. 1 (1867-1893) and vol. 2 (1893-1913), Nathan Houser and Christian J.W. Kloesel (ed.). Bloomington: Indiana University Press, 1992-1998. [A referência ao volume 2 é feita como EP2.]

RipolL, L.; OHLSON, M.; ROMANINI, V. Análise do conceito de desinformação a partir da semiótica de Peirce. Linguistic Frontiers, v. 5, n. 2, p. 61-68, 2022. DOI: 10.2478/lf-2022-0009.

Venturini, T.; Munk, A. Controversy Mapping: a field guide. Cambridge, UK: Polity Press, 2022.

 

Recebido: 26/10/2024 – Aprovado: 03/11/2023 – Publicado: 28/03/2024



[1] Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0840-2587. Email: danielmeloribeiro@gmail.com.