Comentário a “Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo”

 

Sandro Sena[1]

 

Referência do artigo comentado: Silveira, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947.

 

Demonstrando particular segurança e, por assim dizer, um “senso de localização” preciso, em seu hábil trânsito pelo complexo labirinto da analítica existencial, o Prof. André Silveira reconstrói, com rigor e clareza na exposição, em constante diálogo com intérpretes brasileiros e estrangeiros da fenomenologia heideggeriana, o conceito existencial de fim, buscando justamente compreender em que consiste a sua existencialidade. Parece mesmo trivial, senão até redundante e, portanto, supérfluo, buscar tal coisa como a existencialidade das estruturas de um ente que existe! De fato, assim parece. No entanto, nós, intérpretes da ontologia fundamental, bem sabemos que interpretar existencialmente um fenômeno não é tarefa simples, impõem-se dificuldades essenciais, reconhecidas já na introdução do tratado Ser e tempo e constantemente enfrentadas pelo próprio Heidegger, pois “[...] são dificuldades que se fundam no tipo de ser do objeto temático e do próprio comportamento tematizador, e não num aparelhamento deficiente da nossa faculdade de conhecer” (1967, SZ, p. 16). Onticamente tão perto de si mesmo quanto ontologicamente de si mesmo tão longe, reside no ser do existente uma curiosa tendência a não se compreender como ele mesmo é, ou seja, o sentido do seu ser e estruturas sempre se encontrará para ele próprio, de saída e na maioria das vezes, parcial ou completamente obstruído, desfigurado, retorcido e, com isso, também tenderá a não compreender a finitude estrutural característica do ser enquanto existência.

Estritamente guiado pelos olhos que lhe pôs Husserl (1988, GA 63, p. 5), é na direção contrária desse caminho que conduz “naturalmente” o ser-aí a afastar-se de si mesmo, isto é, que o leva à incompreensão do seu próprio ser como existência, que Heidegger se coloca em suas reflexões, caminho que o Prof. André Silveira retrilha, ao delinear o sentido existencial de fim, a morte, enquanto possibilidade da impossibilidade da existência em geral, e o fará impulsionado pelo motor sem dúvida mais adequado para movimentar-se de maneira firme, na contracorrente da (auto)compreensão cotidiana mediana encobridora deste e de tantos outros fenômenos concernentes ao ser do ser-aí, a saber, a existencialidade do possível, isto é, da possibilidade enquanto poder-ser e sua constituição projetiva.

Não é necessário reconstruir, aqui, de forma sinóptica, as reconstruções das construções fenomenológicas conceituais heideggerianas levadas a cabo, no escrito já apreciado pelas leitoras e pelos leitores deste prestigiado periódico científico-filosófico; todas elas reconstruções necessárias, porém não suficientes (como reconhece e deixa claro o próprio autor, nas suas considerações finais) para o estabelecimento de um pleno conceito existencial de finitude. Assim, o presente comentário, produzido em atendimento ao gentil e recebido com entusiasmo convite de Trans/Form/Ação, concentra-se em tecer algumas considerações acerca de um problema que, discreta e silenciosamente, se impõe em meio a qualquer investigação filosófica que estabeleça como o seu ponto de partida o pluralismo ontológico modal e o característico princípio da irredutibilidade dos modos de ser. Trata-se do problema formal das possibilidades (e dos eventuais limites) de articulação entre modalidades ontológicas, problema este que, nas reflexões do Prof. André Silveira, surge com o estabelecimento da distinção entre perecer (Verenden), morrer (Sterben) e falecer (Ableben). Respectivamente, o fim do ente que vive, o fim do ente que existe e o fim do ente que existe a “sua” vida. Essa distinção é central para o autor, pois, “[...] com a tese de que a morte é a possibilidade da impossibilidade da existência em geral, Heidegger elabora um conceito de morte existencial que possui independência do sentido comum e mundano de morte, apresentado mediante o conceito de falecer” (Silveira, 2024, p. XX). Ademais, “[...] a interpretação que fazemos é a de que o falecer é um fenômeno entre o âmbito fisiológico e o âmbito existencial” (Silveira, 2024, p. XX; nota n. 8).

Certamente o autor tem razão, ao interpretá-lo desse modo. Mas o problema central, intocado e de difícil solução, reside justamente em fixar o sentido desse “entre”, problema que se expressa na seguinte pergunta: como devemos compreender fenomenologicamente um fenômeno intermediário (Zwischenphänomen) (1967, SZ, p. 247)? Como eles são possíveis? Quer dizer, qual o fundamento da possibilidade interna de fenômenos desse tipo? Quem morre é o ser-aí. “Quemperece é o vivente. Quem falece? Poder-se-ia responder – o ser-aí, na medida em que vive? Porém, o ser-aí não vive, o ser-aí existe! E, no entanto, escreve Heidegger (1988, GA 27, p. 328): “O ser-aí é corpo-material (Körper) e corpo-existido (Leib) e vida; ele não tem natureza apenas e em primeiro lugar como objeto de consideração, porém ele é natureza [...]”. Se o ser-aí é natureza viva e inanimada (e “ser” tem de significar, aqui, existência), então, como os dois modos de ser, os quais, por princípio, estão separados por um abismo, encontram a unidade no ente?

O problema é bem conhecido. Entre as tentativas de solução, destaco aquela seminal, a qual chamarei de “solução-Cerbone”. Segundo esta, modos de ser são qualificados como determinantes constitucionais ou composicionais de um ente. Enquanto uma certa entidade é composta por outras entidades, fatos, eventos ou acontecimentos de uma ou mais de uma modalidade ontológica, a

Constituição se relaciona ao sentido ou, nos termos de Heidegger, ao ser de algo: dizer que x constitui y é dizer que x especifica ou explicita o que significa para algo ser y ou ser considerado como y [...] constituição se ocupa de articular as condições de identidade para diferentes entidades (Cerbone, 1999, p. 311).

 

Essa solução seria recentemente desdobrada por Róbson R. dos Reis, com o intuito de clarificar o mesmo problema levantado pelo nosso interlocutor, no artigo ao qual este comentário se dedica:

[...] a relação entre existência e vida [...] pode ser entendida como de composição. Neste caso, os fatos, eventos e acontecimentos composicionais na existência são dotados do modo de ser da vida. Conclui-se que conceber o ser-aí como pura vida significa considerar sua dimensão composicional, e não a sua dimensão constitucional (Reis, 2021, p. 492).

 

Para esclarecer como esse desdobramento nos ajuda a encaminhar uma solução para o problema da possibilidade interna de fenômenos intermediários, retornemos ao famigerado martelo de Heidegger. Tenho à mão esse ente, ele é disponível, é constituído por respectividade (Bewandtnis), isto é, em seu ser, ele diz respeito a... (outros utensílios) – eis a estrutura ontológica ou categoria básica desse ente cujo modo de ser é Zuhandenheit e que o determina constitucionalmente enquanto utensílio. Nesse ente, enquanto e apenas enquanto um utensílio, não pode ser encontrado nenhum traço de subsistência (Vorhandenheit): utensílios não são coisas cujas propriedades podem ser descobertas pela percepção: “[...] quanto menos se aprende a coisa martelo, mais adequadamente ele é usado, mais originário se torna o relacionamento com ele, mais desencoberto ele vem ao encontro enquanto o que ele é, enquanto utensílio” (1967, SZ, p. 69). A serventia desse ente não reluz, não pesa e não soa.

Consideremos agora esse ente aí simplesmente dado diante de mim, quando posso apontá-lo com o dedo, o martelo enquanto coisa. Ele é constituído, entre outras coisas, pela subsistência revelada nas cores que vejo, no peso revelado ao tato, e, se o deixo cair, ouvirei o som que emite ao encontrar o solo. Assim como no martelo enquanto utensílio, nada se mostra como propriedade subsistente e, no martelo enquanto coisa, nada se mostra como serventia. Não há nada como uma coisa-utensílio. Mas para ser usado, o martelo tem de ser visível e adequadamente pesado! Assim como em André, enquanto ser-aí, nada se mostra como pulsão e perturbação (vida), em André, enquanto animal, nada se mostra como poder-ser e compreensão (existência). Não há nada como um ser-aí-vivente. Todavia, para existir, ele tem de respirar e o sangue circular no seu organismo! Noutras palavras, constituído por respectividade, o utensílio é composto por elementos subsistentes; constituído por existência, o ser-aí é composto por elementos vitais.

Dessa maneira, o falecimento pode ser compreendido como o perecimento enquanto um acontecimento composicional do ser-aí, ente constituído por transcendência, compreensão projetiva ou, ainda, abertura de possibilidades de ser. Ou seja, afirmar que o ser-aí falece não significa apenas (o que também pode ser eventualmente o caso) uma interpretação desajustada ao fenômeno ontológico-existencial do fim do ser-aí, do ser para a morte, uma distorção hermenêutica que tornaria o ser-aí cego para “a coisa mesma”, contudo, um fenômeno estruturante do existente, em virtude da sua configuração constitucional-composicional.

Ainda sobre a interpretação cotidiana mediana da morte, que oculta seu sentido ontológico-existencial genuíno, temática central do artigo, gostaria de tecer uma última consideração, tomando como base a seguinte passagem que expressa uma compreensão corrente, no texto, com o intuito de apresentar um outro entendimento, visando ao diálogo proporcionado por Trans/Form/Ação:

[...] o discurso público encobre o sentido existencial de morte. Isso significa que a morte enquanto possibilidade é velada, restando assim um tipo específico de certeza com relação à possibilidade da morte, isto é, uma certeza da morte enquanto morte vital e que acontece apenas com os outros, nunca consigo próprio. A morte passa a ser um evento público, em que a interpretação impessoal contabiliza esse fenômeno e o vê apenas de um modo ambíguo e externo, isto é, apenas “o outro é que morre. (Silveira, 2024, p. 09).

 

Se bem compreendi, o Prof. André Silveira reconstrói a descrição heideggeriana da morte, segundo a sua interpretação pública, característica da compreensão cotidiana do fenômeno, afirmando que o si-mesmo impessoal, com o seu discurso “todo mundo morre”, visa a se excluir dessa possibilidade, a qual, nesse contexto, se mostra enquanto uma possibilidade vital (não existencial). Quando talvez Heidegger simplesmente, nas passagens dedicadas à análise da interpretação da morte pelo ser-aí mediano, aponte para o fato de que o existente bem sabe que “todo mundo morre”, ou “a gente morre”, inclusive ele mesmo, e precisamente, nesse saber, se revela um não saber fundamental que ademais estrutura o modo cotidiano de ser do existente: a) que nesse “ele mesmo” se expressa o si-mesmo impróprio que “morre”, tal como “todo mundo” e b) que nesse “ele mesmo”, o si-mesmo próprio e propriamente finito se oculta, uma vez que a morte é sempre minha, tal como toda possibilidade qualificável como existencial. Então, a princípio, o ser-aí impessoal não se exclui do morrer, mas se inclui nele (falecer), porém, ele o faz no modo “como se morre”, isto é, a morte do impessoal que eu mesmo posso ser e, na maior parte das vezes, sou e permaneço sendo. Não há ser-aí que se compreenda imortal.

 

Referências

 

CERBONE, David. 1999. Composition and Constitution: Heidegger’s Hammer”. Philosophical Topics, v. 27, n. 2, p. 309-329, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967.

HEIDEGGER. Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität). Gesamtausgabe Bd. 63. Hrsg. K. Bröcker-Oltmanns. Vittorio Klostermann: Frankfurt am Main, 1988.

REIS, Róbson Ramos dos. Vida na existência: a unidade dos modos de ser composicional e constitucional. Síntese, Belo Horizonte, v. 48, n. 151, p. 483-505, 2021.

Silveira, André Luiz Ramalho da. Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em Ser e tempo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240071, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14947.

 

Recebido: 15/01/2024 – Aprovado: 26/01/2024 – Publicado: 28/03/2024



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2119-7741. Email: sandrosena@gmail.com.