Comentário a “Teleontologia: a expressão metafísica da modernidade tardia”

 

Suze Piza[1]

 

 

Referência do artigo comentado: AZEVEDO, Henrique. Teleontologia: a expressão metafísica da modernidade tardia. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 1, e0240078, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14860.

 

O primeiro ponto que gostaria de destacar é que o artigo de Azevedo (2024), o qual comentarei, tem uma característica que prezo bastante, nestes tempos em que estamos aprendendo a pensar na urgência: o autor diz a que veio. Define seu objeto, a teleontologia, como “[...] o procedimento do espírito deste tempo de deslocar a ontologia (investigação sobre o ser enquanto ser à qual a existência é um atributo) para uma teleologia”, e indica o que encontraremos, no final de um processo progressivo: “[...] em vez do Ser”, o Homem, este ente que se tornou o Grande Objeto desta investigação, ou seja, o autor nos mostra que a pergunta que não queria calar ‘sobre o ser enquanto ser’ deu lugar ao conceito iluminista de ser-homem (nunca realizado)”. O artigo expõe, ao mesmo tempo, uma tese e chama a atenção dos incautos para nossa maior obsessão [moderna] – nós mesmos.

Ainda no sentido de mostrar aos desatentos coisas relevantes para o nosso tempo, tempos de fim de mundo, o autor nos alerta que, “[...] à medida que o projeto de atingir o nível do ser-homem avançava, clareava a sua verdadeira natureza” (a metáfora da claridade não poderia ser melhor), “[...] a saber, a expansão capitalista/colonial como força unilateral e arbitrária que forçou todos a seguir paradigmas teleontológicos”. Tudo isso está no resumo, onde também está indicado que a “[...] teleontologia demonstra que a metafísica (greco-cristã) é um elemento particular (e nunca universal) submetido a uma cultura e expressa, no caso aqui em questão, a estrutura de pensamento eurocentrado que mundializou-se, por meio da expansão do capital/colonização”.  No final do artigo, o autor reforça que a metafísica é dependente e parte da cultura, e não contrário, e que, quanto mais forte é a cultura, mais fácil será acreditar que seus temas e questões metafísicas pareçam ser universais. Confesso, caro leitor e cara leitora, que já temos muito o que pensar, só com essas indicações. Mas o artigo vai além.

Azevedo (2024) diagnostica que a metafísica só é de fato confrontada, quando a colonização da América se consolida. Isso ainda choca aqueles que se acostumaram a acreditar que uma coisa nada tem a ver com outra, quando pensam (ou não pensam) na articulação entre filosofia e cultura ou, para ser mais precisa, em metafísica e geopolítica. Como tem afirmado Maldonado-Torres, é preciso avaliar a articulação entre raça (conceito metafísico, por excelência) e espaço, na obra desses pensadores europeus que nos habituamos a considerar como tradição.

São muitas as possibilidades de diálogo com o autor, que entendo é a razão de comentar um artigo, porém, eu me concentrarei em fazer apenas um deslocamento. Há várias referências a Heidegger e seu projeto, no artigo, o filósofo alemão que é alguém contra quem pensar, alguém para perverter as ideias. Em vários momentos (e não é só o autor que faz esse movimento, mas vários pensadores, no âmbito do que temos nos habituado a chamar de pensamento decolonial), procura-se nas teses heideggerianas sobre ontologia as raízes do próprio Ocidente e se denuncia sempre que as raízes da cumplicidade desse e de outros projetos análogos estão de acordo com uma visão cartográfica imperial e colonial.

Um dos muitos aspectos relevantes trazidos no artigo é que, quando confrontada com “novos entes” (no contexto da colonização da América), a metafísica tem de ser a ciência que primeiro “deve acomodá-los” na unidade, porque nada lhe deve escapar. Como afirmará Dussel, em 1492 - O encobrimento do Outro, para fazer isso, vale tudo, até inventar o ser asiático “índio” – uma espécie de correspondente ou objeto intencional do mundo da vida colonial, em suas conjuntações e sedimentações. Essa invenção do outro, “o não-Homem”, o outro-de-si, está inscrita no mesmo processo antropológico que subjaz a toda e qualquer inflexão moderna.

Heidegger tem muito a ver com tudo isso e é chamado, no artigo, com sua tese do esquecimento do ser, à problemática do esquecimento do ser. No entanto, cada vez mais temos percebido (eu me refiro a quem teve forte formação na tradição fenomenológica, mas pensa no Sul Global) o quão essa discussão precisa ser aprofundada. A pergunta pelo sentido do ser é a contribuição mais produtiva de Heidegger à problemática trazida no artigo, porque tal filosofia (em especial a cunhada em Ser e Tempo) nos permite ver mais que o projeto heideggeriano e seus comprometimentos com a Europa, os quais já são demasiadamente conhecidos. O que quero dizer é que, indo mais fundo, temos um instrumental ou recursos epistêmicos vindos da fenomenologia hermenêutica, em especial, que nos faz perceber os próprios limites dessa abordagem.  

A própria filosofia heideggeriana nos permite pensar com profundidade no que está implicado, quando percebemos ou não percebemos um ente, quais são as condições históricas de manifestabilidade de um fenômeno, no caso aqui referido, de que maneira o mundo colonial e, depois dele, a permanência da colonialidade, tem sido o mundo onde aparece o Homem e onde aparece o não Homem, mesmo que subjugado, secundarizado ou exterminado. É da filosofia hermenêutica de Heidegger (a qual não é só dele, mas de toda uma comunidade de pensadores e pensadoras) e da tese de que é necessário perguntar pelo sentido de ser que surge uma compreensão do quão o horizonte hermenêutico colonial, único horizonte em que algo é no nosso mundo, articula toda e qualquer metafísica à geopolítica. Não à toa, pensadores como Maldonado-Torres têm explorado essas teses, na perspectiva do Sul Global. Em seus textos, defende que o limite de mundo de Heidegger fazia com que

[a]s geopolíticas filosóficas de Heidegger [fossem] ambiciosas, grandiosas e racistas. [...] O seu racismo não é biológico, nem cultural, mas sim epistémico. Tal como acontece com todas as formas de racismo, o epistémico está relacionado com a política e a socialidade. O racismo epistémico descura a capacidade epistémica de certos grupos de pessoas. Pode basear-se na metafísica ou na ontologia, mas os resultados acabam por ser os mesmos: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente humanos (Maldonado-Torres, 2008, p. 79, grifos meus).

 

Heidegger é um pensador o qual, mesmo que seja em termos de conteúdo antimoderno, e para dizer o mínimo pós-humanista, está no horizonte hermenêutico moderno, como nós também estamos, embora tendo um outro ponto de vista. A modernidade (modernidade sem mais) é o horizonte de aparecimento, um sentido de ser que orienta nossa percepção, nossa imaginação, uma direção prévia que orienta nosso conceber, nosso desejar e que, como campo de manifestabilidade, é também instância de verdade. A colonialidade é um sentido de ser. Nem com nem contra Heidegger, neste ponto, precisamos perguntar pelo sentido de ser, nesse contexto, o que nos cabe e o que fica fora desse limite. Parece-me que a teleontologia trata disso, pois ela está encerrada em um espaço determinado. Não é necessário, portanto, perverter as teses de Heidegger, porque não é disso que se trata, as teses são as mesmas: perguntar pelo sentido de ser em um campo de manifestabilidade é estar-em-um-mundo.

Humanos são seres de linguagem, como enfatizava Heidegger e como ressalta Mignolo. A colonialidade, como campo de manifestabilidade do saber, é também campo de manifestabilidade do ser. A metafísica ou a teleontologia é devedora de como e com quais recursos percebemos quem ou o quê.

Não se trata, portanto, de exigir que o não ser, em qualquer forma possível, seja percebido ou, como temos visto nos últimos tempos, reconhecidos; essa é uma armadilha ocidental-moderna. O não ser é percebido e é tematizado no horizonte hermenêutico moderno-europeu-colonial, desde que esse foi constituído. Nesses termos, perguntar pelo sentido de ser é perceber o quão estamos normalizados, neste mundo, não sendo possível pensar a diferença para além do que temos feito. A não ser que...

 

Referências

AZEVEDO, Henrique. Teleontologia: a expressão metafísica da modernidade tardia. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 1, e0240078, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14860.

MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 2008. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/695. Acesso em: 10 jan. 2024.

 

Recebido: 23/12/2023 – Aprovado: 09/01/2024 - Publicado: 28/03/2024



[1] Filósofa e Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), São Bernardo do Campo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2394-6072. Email: suzepiza@gmail.com.