Comentário a “Símbolos, imagens, imaginação e memória: elementos para uma epistemologia jonasiana”

 

Lilian S. Godoy Fonseca[1]

 

Referência do artigo comentado: DUARTE, Michelle Bobsin. Símbolos, imagens, imaginação e memória: elementos para uma epistemologia jonasiana. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2 “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e02400118, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15185.

 

O texto escrito por Michelle Bobsin Duarte (2024) se destaca pela objetividade, clareza e fluidez com as quais as ideias são apresentadas.

Dividido em quatro partes, o artigo expõe um tema de grande relevância no conjunto geral da obra do filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), a saber: um dos traços que constituem o que Jonas denomina de a diferença antropológica, apresentada pela primeira vez num texto publicado em 1961, pela Zeitschrift für Philosophische Forschung, com o título “Homo pictor und die differentia des Menschen”; no ano seguinte, a Social Research publica sua versão em inglês: “Homo Pictor and the Differentia of Man”. Sua versão definitiva em alemão, intitulada “Homo Pictor: Von der Freheit des Bildens”, foi publicada em duas diferentes coletâneas, Zwischen Nichts und Ewigkeit, em 1963 e, dez anos depois, em Organismus und Freiheit, como seu nono ensaio. Mas, entre essas duas publicações, veio a púbico, em 1966, sua versão em inglês, como o sétimo ensaio do The Phenomenon of Life, sob o título “Image-Making and the Freedom of Man”. (cf. Frogneux, 2001, p. 388, 389, 344).

Mais de duas décadas após a primeira publicação, o tema é retomado e ampliado num célebre escrito intitulado “Ferramenta, imagem e túmulo: Sobre o transanimal no humano”, publicado originalmente, em alemão, com o título “Werkzeug, Bild und Grab: Vom Transanimalischen im Menschen”, entre 1985 e 1986, no número 15 do periódico Scheidewege (p. 47-58), e reeditado com o mesmo título, como o segundo ensaio da importante coletânea intitulada Philosophische Untersuchungen und metaphysische Vermutungen (Investigações Filosóficas e Conjecturas Metafísicas), publicada em 1992, um ano antes, portanto, de seu falecimento (cf. Frogneux, 2001, p. 340, 354).

Sendo um importante capítulo de sua antropologia filosófica, nesse escrito, Jonas expõe a sua visão acerca do que considera como as três principais produções que diferenciam os humanos dos outros animais, explicitadas já no título: a ferramenta, a imagem e o túmulo (ou sepultura). Ali, Jonas discorre detalhadamente sobre essas invenções humanas, mostrando a importância e a especificidade de cada uma delas.

Duarte (2024), porém, se debruça apenas sobre uma delas: a imagem, explorando importantes aspectos de sua formulação no interior do pensamento jonasiano e extraindo dali relevantes implicações para a epistemologia. Ou seja, a autora destaca a interessante relação identificada por Jonas entre a capacidade humana de produzir imagens e a de produzir conhecimento acerca da realidade.

O tema da imagem, em Hans Jonas, já tinha sido objeto de pesquisa da autora, durante o seu doutorado, do qual resultou a tese Hans Jonas: imagens e afetos para uma ética ecológica, defendida em 2019, junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio, fazendo, ali, uma interessante aproximação entre a filosofia de Jonas e a de Spinoza. Aqui, numa abordagem mais voltada, especificamente, ao pensamento jonasiano, Duarte (2024) se detém nas minúcias para desvendar essa profícua relação entre a produção de imagens e a do conhecimento.

Assim, na primeira parte, intitulada “Símbolos, memória e imaginação”, Duarte (2024) se propõe demonstrar que a faculdade pictórica, graças à qual o ser humano se mostrou capaz de produzir imagens – já por volta de 30 mil anos atrás, ainda no período paleolítico –, é apontada por Jonas como um dos “modos de expressão da capacidade simbólica humana” e um dos pontos que caracterizam a diferença antropológica, configurando-se “[...] como um dos pilares para se pensar a relevância fundamental dessa habilidade humana para expressar tanto a realidade do mundo como o universo interno dos afetos gerados pela experiência do real” (Duarte, 2024, p. 02).

Vemos, então, a estreita conexão entre a capacidade humana de representar a realidade através de imagens e símbolos e duas outras importantes faculdades humanas: a memória e a imaginação. Frise-se, aqui: a imaginação, por ser a faculdade que confere aos seres humanos a possibilidade de alcançar um grau de liberdade distinto de todos os outros seres naturais, graças à mediação que ela permite em relação à realidade.

Na segunda parte, intitulada “Extensão ideativa da percepção”, como o próprio título indica, a ênfase recai sobre outra faculdade humana, mais precisamente, a percepção, e ali vemos que, além da memória e da imaginação, o ser humano dispõe de outra faculdade, a qual, segundo Jonas, citado por Duarte, [...] consiste na interposição do eidos abstraído e mentalmente manipulável entre o sentido e o objeto real” (Jonas, 2001, p. 184). Jonas identifica esse novo grau de mediação como a “[...] extensão ideativa da percepção” (Jonas, 2001, p. 184). E esclarece que o ser humano, graças à mediação pelo eidos das imagens e pela linguagem, “[...] deixa de ver as coisas diretamente: ele as vê através da tela de representações” (Jonas, 2001, p. 185). Isso significa que, nas palavras de Duarte (2024, p. 07),

[c]omeçamos a perceber o mundo através do véu das ideias, que se materializaram em símbolos criados por nós mesmos, a partir da nossa experiência com os objetos.

Essa nova mediação entre humano e realidade é considerada por Jonas como o lugar onde se localiza o fenômeno da verdade e o seu correlato, a falsidade.

 

Revela-se, assim, a conexão entre a percepção e a produção do conhecimento, o que será discutido com mais detalhes, na terceira parte, intitulada “Origens da experiência da verdade”. Nela, Duarte (2024) demonstra que Jonas vê a representação pictórica como parte da “[...] grande classe dos esforços humanos para a verdade” (Jonas, 2001, p. 175). No entanto, num texto intitulado “On the Origins of the Experience of Truth” (que inspira o título dessa terceira parte) escrito em 1964, para o XIII Congresso Internacional de Filosofia, realizado no México, publicado nesse mesmo ano, nos anais do evento com o título “The Anthropological Foundation of the Experience of Truth” e, dois anos depois, com o título indicado primeiro, como o sétimo ensaio da coletânea The Phenomenon of Life e, ainda, na versão alemã “Vom Ursprung der Wahrheit-erfahrung”, como o nono capítulo do volume Organismus und Freiheit, no ano de 1973 –, Jonas sustenta que, a despeito de sua inegável importância, a representação pictórica “[...] não é o locus original da experiência da verdade” (Jonas, 2001, p. 175).

Com efeito, conforme bem destacado por Duarte (2024), na visão de Jonas, a experiência básica da verdade repousaria

[...] nas situações nas quais somos confrontados com a possibilidade da negação.” Assim, Jonas estabelece uma interessante conexão entre a “capacidade para a verdade e a capacidade de negar”, pois, no seu entender, “apenas o ser que pode cogitar a negatividade, que pode dizer “não”, pode cogitar a verdade” (Jonas, 2001, p. 175).

 

Isso significa que a experiência da verdade só pode se constituir em contraponto à experiência de sua antítese, a falsidade.

Por fim, na quarta e última parte, intitulada “Sobre o a priori do corpo na percepção do real”, Duarte (2024) demonstra a importância da dimensão do corpo para a experiência da realidade e, por consequência, na produção do conhecimento sobre ela. Trata-se de uma tese muito bem sintetizada por Wendell Lopes, citado por Duarte: “O corpo orgânico é a condição de possibilidade do conhecimento da vida” (Lopes, 2014, p. 148).

Em suas considerações finais, Duarte retoma a visão jonasiana sobre a “atividade pictórica primordial” como “[...] um indício da aurora da experiência humana com a questão da verdade.” Nesse sentido, segundo a autora, para Jonas, “[...] a relação dos humanos com as imagens, desde os primórdios, já supõe um critério de adequação das imagens pintadas aos objetos originais ou lembranças que estão sendo representados pela pintura” (Duarte, 2024, p. 15).

Isso, indo além de Duarte e do próprio Jonas, nos leva a inferir que, ao fazer os primeiros rabiscos nas paredes das cavernas e fora delas, mesmo sem saber ou querer, nossos ancestrais iniciaram uma longa jornada em direção à busca da verdade, a qual desaguou, primeiramente, na Filosofia (na Grécia antiga) e, depois, na Ciência (na Modernidade europeia). Hoje, porém, todo esse esforço humano se encontra sob um grave risco, em decorrência da explosão das fake news, via redes sociais, que põem em xeque não apenas a Filosofia e a Ciência, mas a verdade mesma, enquanto meta e valor. Assim, se, conforme Jonas, a capacidade de negar a verdade constitui a sua possibilidade (pois só existe a verdade em contraposição à falsidade), paradoxalmente, o que presenciamos agora é um fenômeno bastante atípico, pelo qual se tenta fazer a falsidade passar como se a verdade fosse. Isso significa que uma coisa é a capacidade de negar a verdade, outra bem diferente e arriscada é a tentativa de afirmar a falsidade, porque, ao contrário do que se poderia pensar, seu resultado é a mais perniciosa impossibilidade da verdade.

 

Referências

DUARTE, Michelle Bobsin. Símbolos, imagens, imaginação e memória: elementos para uma epistemologia jonasiana. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2 “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e02400118, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15185.

FROGNEUX, Nathalie. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck & Larcier, 2001.

JONAS, Hans. The Phenomenon of Life: Towards a Philosophical Biology. Evanston: Northwestern University Press, 2001.

LOPES, Wendell Evangelista Soares. Hans Jonas e a diferença antropológica: uma análise da biologia filosófica. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

 

Recebido: 01/02/2024 – Aprovado: 10/02/2024 - Publicado: 28/03/2024



[1] Professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Diamantina, MG – Brasil. Pesquisadora do NEPC/UFMG, Membro do GT Hans Jonas da ANPOF e do GT de Filosofia da Tecnologia e da Técnica, também da ANPOF. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8079-7405. E-mail: lilian.simone@ufvjm.edu.br.