Comentário a “Assimetria entre verdade e falsidade e a fecundidade da falsidade”

 

Claudemir Roque Tossato[1]

 

Referência do artigo comentado: BATTISTI, C. A. Assimetria entre verdade e falsidade e a fecundidade da falsidade. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240074, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14848.

 

O artigo de Battisti (2024) trata, entre outros assuntos, da questão da falseabilidade popperiana como o “critério para a cientificidade”. Tal critério liga-se à argumentação relevante de Battisti, no artigo, segundo a qual a falseabilidade tem um caráter fecundo dentro do escopo da consideração das hipóteses postas pelas ciências; as boas hipóteses são aquelas que satisfazem as duas funções postas pela falseabilidade: a) são científicas, porque não são hipóteses metafísicas, pois elas podem ser falseadas; b) e são hipóteses que, mesmo podendo ser faseadas, suportam os rígidos testes empregados para a sua derrocada, de sorte que as hipóteses que melhor suportarem os testes não serão de modo algum as verdades da ciência, mas serão corroboradas até o momento pelos testes e deverão ser aceitas como o melhor que a ciência tem, por enquanto.

A força da argumentação popperiana, bem explorada por Battisti, está justamente na assimetria lógica entre verdade e falsidade, quando se utiliza uma lógica dedutiva e não uma lógica indutiva. Para Popper, uma hipótese não pode ser verificada, todavia, pode ser falseada, justamente pela forma lógica expressa pelo modus tollens; o poder da assimetria está em que, quando obtemos uma falsidade extraída mediante as consequências de uma hipótese, temos uma decisão, isto é, podemos logicamente descartar a hipótese em questão, porque suas conclusões são falsas. Por outro lado, no caso da extração da verdade da conclusão de uma hipótese, não temos meios de decidir logicamente a questão. Por um exemplo do próprio Popper, por mais que sejam observados corvos negros, nunca poderemos sustentar que todos os corvos são negros. Mas, se observarmos um corvo não negro, então poderemos dizer que “Todos os corvos são negros” é um enunciado falso. Contudo, mesmo que não tenhamos acesso à verdadeira cor dos corvos (pois parece que a lógica impede tal possibilidade), podemos afirmar aproximadamente que um corvo é negro, até que tenhamos observações que mostrem que ele tem uma outra cor.

Battisti (2024) também aponta com razão que esse é um problema filosófico relevante: “A tese da assimetria é a principal responsável pela tensão e pela riqueza desse conjunto de questões que atravessa a história da filosofia”, referindo-se à impossibilidade de os axiomas serem verdadeiros, porque as suas consequências são verdadeiras. De fato, é um problema lógico-filosófico e acredito que é um problema sem solução. Mas aqui podemos colocar algo que não é tratado pelo artigo de Battisti. Popper tinha noção de que a sua abordagem lógica seria inconclusiva, pois não há garantias lógicas para um enunciado singular. Se observo um corvo não negro, digamos, branco, que refuta a hipótese da cor negra dos corvos, qual é a garantia para que “um corvo branco” seja relevante para a ciência? Sabendo que Popper não é um empirista, pois o conhecimento começa com hipóteses, ele tem que dar conta desse empecilho. O empecilho lógico é que a assimetria lógica determina não apenas que enunciados universais (hipóteses, para Popper) não podem ser verificados, entretanto, podem ser falseados; determina também que os enunciados singulares, como “existe um corvo branco” não podem ser falseados, mas podem ser verificados. Isso nos remonta para o problema lógico da verificação: como garantir que um enunciado singular de observação não é garantido pela observação singular, porém, por uma hipótese? Se é assim, a observação da existência de um corvo branco deve ter uma hipótese que a explique, e essa hipótese deve ser falseável. Uma tal hipótese é chamada por Popper de hipótese falseadora e, como ele frisa (Popper, 1972 p. 91-92, itálicos do autor):

Dizemos que uma teoria está falseada somente quando dispomos de enunciados básicos aceitos que a contradigam. Essa condição é necessária, porém não suficiente; com efeito, vimos que ocorrências particulares não suscetíveis de reprodução carecem de significado para a Ciência. Assim, uns poucos enunciados básicos dispersos, e que contradigam uma teoria, dificilmente nos induzirão a rejeitá-la como falseada. Só a diremos falseada se descobrirmos um efeito suscetível de reprodução que descreva esse efeito, for proposta e corroborada. A essa espécie de hipótese cabe chamar de hipótese falseadora. A exigência de que a hipótese falseadora seja empírica e, portanto, falseável, significa apenas que ela deve colocar-se em certa relação lógica para com possíveis enunciados básicos; contudo, essa exigência apenas diz respeito à forma lógica da hipótese. O requisito de que a hipótese deve ser corroborada refere-se a testes a que ela tenha sido submetida – testes que a aceitem com enunciados básicos aceitos.

 

Se a verificabilidade tem os seus problemas, a falseabilidade também tem os seus. Se não é possível justificar a verdade, também é problemático justificar a falsidade. Para Popper, a fim de ser possível resolver a questão, deve-se admitir que uma hipótese falseadora, a qual justifica um enunciado básico refutador, não deve ter o mesmo grau de exigência que se tem para uma hipótese de caráter universal, isto é, para uma teoria ou uma lei. Se os testes devem ser extremamente rígidos para que uma teoria ou lei de caráter universal seja aceita, o mesmo é diluído para a hipótese falseadora, pois ela pode ser de baixo nível empírico. O que quer dizer isso? Popper responde a essa questão, em uma nota (Popper, 1972, p. 92, n. 1, itálico meu), o seguinte: “Assim, para falsear o enunciado ‘todos os corvos são negros’ bastaria o enunciado intersubjetivamente suscetível de teste de que, no jardim zoológico de Nova Iorque existe uma família de corvos brancos”. Ou seja, basta que haja um acordo intersubjetivo para que se aceite uma hipótese falseadora. Questão complexa, que não será tratada nesta pequena nota. O que ressaltamos no momento são os enunciados básicos tais como são entendidos por Popper e o acordo intersubjetivo que eles sugerem.

A intenção de Popper com os enunciados básicos é dupla: por um lado, os enunciados básicos determinam o caráter empírico de uma hipótese, isto é, se ela é científica ou é metafísica; por outro lado, os enunciados básicos aceitos determinam tanto a refutação como a corroboração das hipóteses científicas, como ele enfatiza (Popper, 1972, p. 92, itálicos do autor)

Os enunciados básicos desempenham dois papeis diferentes. De uma parte, utilizamos os sistemas de todos os enunciados básicos, logicamente possíveis, para, com o auxílio deles, conseguir a caracterização lógica por nós procurada – a forma dos enunciados empíricos. De outra parte, os enunciados básicos aceitos constituem o fundamento da corroboração de hipóteses. Se os enunciados básicos aceitos contradisserem uma teoria, só os tomaremos como propiciadores de apoio suficiente para o falseamento da teoria caso eles, concomitantemente, corroborarem uma hipótese falseadora (Popper, 1972, p. 92).

 

Contudo, os enunciados básicos não têm uma justificação lógica. Assim, a discussão deixa de ser lógica dedutiva e passa a ser de outro caráter, fundamentalmente dado pela comunidade científica, a qual determinará o acordo acerca dos enunciados básicos, como ressalta Popper (1972, p. 114):

A concordância quanto à aceitação ou rejeição de enunciados básicos é alcançada, geralmente, na ocasião de aplicar uma teoria; a concordância, em verdade, é parte de uma aplicação que expõe a teoria a prova. Chegar à concordância acerca de enunciados básicos é, como outras formas de aplicação, realizar uma ação intencional, orientada por diversas considerações teóricas.

 

Os enunciados básicos, portanto, são entendidos como enunciados que geram um acordo entre os praticantes da ciência. O ponto central é que, como não temos como garantir a verificação de uma teoria, devemos utilizar o caminho garantido pela lógica dedutiva, que é a falseabilidade. Assim, Battisti tem razão, quando argumenta a favor da falseabilidade como importante para a ciência, especialmente quanto ao ponto relativo à assimetria lógica entre enunciados universais e enunciados singulares. Nesse sentido, a falseabilidade pode garantir o acordo, isto é, a comunidade científica pode, mesmo sabendo que as teorias que suportam os enunciados básicos não representam a verdade (termo por demais filosófico), ter boas razões para aceitar as hipóteses corroboradas até o momento, pois elas são o que melhor temos sobre um ramo científico, dando um bom fundamento para que não caiamos em relativismos inócuos que nada acrescentariam ao conhecimento.

 

Referências

BATTISTI, C. A. Assimetria entre verdade e falsidade e a fecundidade da falsidade. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240074, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14848.

POPPER, K. R. Lógica da Pesquisa Científica. 2. ed. Tradução de L. Hegenberg e O. S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1972.

 

Recebido: 15/12/2023 – Aceito: 22/12/2023 – Publicado: 28/03/2024



[1] Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2319-4579. Email: toclare@uol.com.br.