Comentário a “Ontologia e antropologia: possíveis diálogos entre as hermenêuticas de Heidegger e Ricoeur”

 

Noeli Dutra Rossatto[1]

 

Referência do artigo comentado: Drawin, C. R.; Almeida, F. S. de. Ontologia e antropologia: possíveis diálogos entre as hermenêuticas de Heidegger e Ricoeur. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e02400117, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15032.

 

O artigo de Drawin e Almeida 2024), como sugere o próprio título, pretende estabelecer um diálogo entre Heidegger e Ricoeur, com base nos temas da ontologia, da antropologia e da hermenêutica. A proposta está construída como um estudo comparativo que busca explicitar os “pontos de convergência” ou de “contato” entre os dois filósofos.

Uma prévia revisão da literatura pode nos orientar a respeito da relevância e do impacto do artigo, na historiografia atual, assim como nos informar que não há uma obra em que Ricoeur expõe sua ontologia, de forma sistemática. Em troca, é significativo que a ontologia esteja deslocada para o final de seus textos, sendo expressa de diferentes modos, tais como ontologia fragmentada, ontopoética e ontoantropologia, da dicção do ser e da ação, entre outras (cf. Lauxen, 2010; Goetz, 2011; Michel, 2016).

Sem excluir ou discriminar essas diferentes ontologias, o artigo se detém numa questão central, que consiste em saber como se articula a ontologia com a antropologia filosófica. Em outras palavras, busca responder como o ser do existente humano se destaca dos outros entes e se singulariza.

A primeira resposta aponta para a “diferença” entre o ser do existente humano e o dos outros entes, decorrente da “contraposição” entre as perguntas “quem?” e “o quê?” A pergunta “quem?”, em Ser e tempo, se reporta ao tipo de permanência do Dasein em distinção às coisas físicas; daí a noção de “manutenção de si” (Selbständigkeit), para qualificar a permanência no tempo dos agentes humanos. É certo que Ricoeur se utiliza dessa diferenciação, tanto na caracterização da identidade temporal dos personagens da ficção literária e da historiografia quanto na composição da identidade pessoal como narrativa.

Outra resposta é que, em obediência declarada ao pressuposto heideggeriano de que o ser do ser humano “vive na linguagem”, Ricoeur identifica o “quem?” com a narrativa. A propósito, é preciso acrescentar que, embora seja viável essa aproximação, deve-se ponderar a respeito de que o “quem” ricoeuriano está matizado pela recepção de Hannah Arendt. Conforme confessa o próprio Ricoeur (2016, p. 260), citando A condição humana: “Cabe à narrativa, assim, dizer a ‘identidade do quem’ (the identity of the who).” Logo, a narrativa não está demarcando a diferença entre o ser humano e os outros entes – e, de forma negativa, indicando a condição humana como ser não ente, como “guardiã do nada” (Platzhalter des Nichts) –, mas, em sentido positivo, está definida como “guardiã do tempo” (gardien du temps) e detentora da própria identidade pessoal.

Na esteira disso, é importante notar que a pergunta “o quê?”, nas mãos de Ricoeur, além de formar o par dialético com a pergunta “quem?”, já não se refere (apenas) a objetos físicos, porém, ao tipo de permanência da primeira pessoa do singular na figura ética do caráter. Quer a rigidez de um caráter configurado pelas variações imaginativas da ficção literária (Ricoeur, 1997, p. 217ss; 1991, p. 167ss), quer a compulsão à repetição nas memórias coletivas, são vistas como “[...] respostas que têm a forma do ‘que’ e não do ‘quem’” (Ricoeur, 2000, p. 110). Ao contrário, respostas que têm apenas a forma do “quem”, sejam elas encontradas na configuração dos personagens dos romances de fluxo de consciência ou nas identidades coletivas afetadas pela melancolia, padecem igualmente da mesma patologia: a falta de permanência no tempo.

Além disso, o “quem” da manutenção de si (mantien du soi) pela promessa, mesmo que se remeta à Selbständigkeit e se sustente pela linguagem, está intimamente implicado com a alteridade e tem seu horizonte balizado pela ética. Faltar com a palavra dada não só rompe um acordo verbal, senão que frustra uma expectativa moral de conduta. O mesmo vale para o “que”, pois, a perda da flexibilidade em relação a si-mesmo e ao outro resulta na extrema rigidez de um caráter que franqueia a linha da imoralidade. Talvez, nesse aspecto, tenham razão os que encontram dificuldades para relacionar ética e ontologia, na aproximação da hermenéutique du soi-même com a analítica existencial do Dasein. Para Michel (2009), com Heidegger, chegaríamos no máximo a uma ética estoica ou niilista, a qual serviria para aliviar a angústia do ser-para-a-morte; nunca, porém, encontraríamos um si-mesmo voltado para o outro, em sua vulnerabilidade; ou, mesmo, lutando por instituições justas.

Drawin e Almeida (2024), por sua vez, depois de reconhecerem a radicalidade do redirecionamento da hermenêutica heideggeriana, tomam um caminho mais propositivo: entendem que tal perspectiva “[...] não implica necessariamente no abandono da reflexão antropológica e ética”. Com isso, se mantém aberta a possibilidade de encontrar algumas noções da antropologia heideggeriana na composição da “pequena ética” de Ricoeur. Exemplo disso é a solicitude (sollicitude), que toma algo da lassitude (lassité) de Lévinas e da Fürsorge de Heidegger; e, tal como a segunda, a solicitude se define pela preocupação voltada para o outro, em distinção a Besorgen, como cuidado com as coisas. Ricoeur, assim, completa o esquema da segunda pessoa da ética, formado pela amizade (philia aristotélica), restrita ao círculo dos livres e iguais, e a solicitude para o outro que vive em situação de miséria e abandono. 

Chegamos, com isso, ao terceiro comentário a respeito da articulação entre ontologia e antropologia, pela via hermenêutica. Aqui, o artigo não apresenta uma resposta propriamente, mas uma questão: “que tipo de ser é o si-mesmo?”

Ainda que essa questão apareça só no final da Conclusão do artigo, as duas observações que a precedem inserem a mesma no quadro que, desde o começo de nosso comentário, articula a espiral dialética entre o “que” e o “quem”. A primeira observação retoma a tese geral de que toda a ação está mediada por símbolos, o que nos remete ao próprio modo que Ricoeur responde à questão; nesse caso, pela mediação simbólica entre o involuntário e o voluntário. A segunda, mais declaradamente, destaca a transcendência do si, no contraste do “quem” humano com o “que” dos outros entes. Por fim, em resposta à questão do ser do si-mesmo, o artigo se limita a sugerir uma “leitura mais acurada” de O si-mesmo como um outro à luz de Ser e tempo.  

Vejamos brevemente como poderíamos acatar essa sugestão.

No último capítulo de O si-mesmo como um outro (“A respeito de qual ontologia?”), Ricoeur (1991, p. 360) resume sua ontologia da ação nos seguintes termos: “[...] a energéia-dynamis assinala para um fundo de ser ao mesmo tempo potente e efetivo, sobre o qual se destaca o agir humano”. 

O que entender dessa fórmula?

Primeiro, a fórmula nos remete ao entrecruzamento da ontologia das categorias (ousia, substantia, fundo de ser) com a ontologia do ato e potência (energéia e dynamis) da Metafísica de Aristóteles. Segundo, rejeita a via heideggeriana que reconstrói a ontologia aristotélica, a partir da sinonímia alternada entre energéia, activitas e Faktizität. Em decorrência disso, em terceiro lugar, ela recusa o apagamento da “tensão” e da “dialética” entre energéia e dynamis, pela reabilitação unilateral da primeira sobre a segunda. A proposta ricoeuriana mantém a dialética entre o agir e o padecer humanos, de forma homóloga ao movimento entre potência e ato, “quem” e “que”, permitindo assim conjugar dois dos modos de dizer o ser do si-mesmo: como energéia-dynamis e como ousia.

Em termos antropológicos, Ricoeur continua afirmando a centralidade do si-mesmo em relação aos outros seres, como nos mostra o artigo, do início ao fim. No entanto, a novidade ontoantropológica parece residir do lado da descentralização de si em relação a si-mesmo, ao outro e aos outros seres humanos. É aí que, no fundo do ser humano, rebrota a viva dialética entre “quem” e “que”, capable e faillible; e, enfim, do soi-même comme un autre.

 

Referências

Drawin, C. R.; Almeida, F. S. de. Ontologia e antropologia: possíveis diálogos entre as hermenêuticas de Heidegger e Ricoeur. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e02400117, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15032.

GOETZ, R. Dire l’être-à-dire: l’intrepidité ontologique de Paul Ricoeur. Revue de Philosophie et de Sciences Humaines, v. 26, 2011.

LAUXEN, R. R. O alcance ontológico da fenomenologia da ação de Paul Ricoeur. Estudos Filosóficos, n. 5, p. 43-56, 2010.

MICHEL, J. L’ontologie fragmentée. Laval théologique et philosophique, v. 65, n. 3, 2009.

RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

RICOEUR, P. Tempo e narrativa III. Campinas: Papirus, 1997.

RICOEUR, P. La mémoire, l´hitoire, l´obli. Paris: Seuil, 2000.

RICOEUR, P. Escritos e conferências 3. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 2016.

 

Recebido: 22/01/2024 – Aprovado: 26/01/2024 – Publicado: 28/03/2024



[1] Professor Titular do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS – Brasil. Orcid: https://orcid.org/000-000-0003-4176-574X. E-mail: noeli.rossatto@ufsm.br.