Comentário a “A potência do educar: coisa singular, diferença e democracia em Espinosa”

 

Francisco de Guimaraens[1]

 

Referência do artigo comentado: SILVA, D. S. A potência do educar: coisa singular, diferença e democracia em Espinosa. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240077, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15186.

 

O Emendatione apresenta o processo de formação da escolha filosófica spinozana, que ocorre em torno da análise de diferentes noções de bem. A primeira dessas noções se relaciona com coisas incertas, cuja fruição depende da fortuna. Tais coisas – o dinheiro, a honra e a concupiscência – tendem a lançar quem as considera fins em si mesmos em um regime de imoderação passional, pois sua obtenção depende de circunstâncias externas a quem enriquece, alcança a glória ou satisfaz os prazeres sensuais (Spinoza, 2009, p. 67). Ciclos econômicos e a opinião alheia, ao fim e ao cabo, governam aqueles que buscam esses bens como se fossem fins, e não meios para alcançar outro tipo de bem, o sumo bem, o qual Spinoza define como conhecimento da união da mente com a natureza inteira (Spinoza, 2011, p. 71). A mente que conhece o sumo bem percebe a conveniência entre ela mesma, as ideias que produz e a natureza inteira. Trata-se de um bem cuja fruição decorre da potência própria de quem o experimenta, o que afasta a incerteza oriunda dos prazeres, do dinheiro e da honra, coisas que dependem predominantemente da fortuna, ou seja, de causas que ultrapassam a potência de quem delas usufrui.

Há uma particularidade do sumo bem que é importante para a reflexão sobre a educação e a democracia: ao contrário das coisas incertas, o sumo bem pode ser partilhado e sua aquisição requer a formação de uma sociedade que permita ao maior número de pessoas experimentá-lo e que organize a educação das crianças para tal finalidade (Spinoza, 2011, p. 73). Em síntese, segundo o texto do Emendatione, o sumo bem precisa ser ensinado e supõe um certo modo de organização sociopolítica.

O percurso filosófico apresentado no Emendatione expõe um processo de aquisição gradual da razão. Segundo o discurso spinozano, a percepção do sumo bem, em seu início, ocorre em raros e pequenos intervalos distantes uns dos outros. Com o passar do tempo, há um incremento da duração e da frequência desses intervalos (Spinoza, 2011, p. 71). Pode-se então deduzir que a razão não é uma faculdade humana, mas uma potência a ser instituída, na medida em que a fruição do sumo bem supõe uma gradação, e sua própria partilha se dá em condições sociais determinadas nas quais a educação se faz presente. A ideia de uma potência que se institui gradualmente está presente também no Tratado Político, quando Spinoza (2009, p. 44) afirma que “[...] os homens não nascem civis, fazem-se. Assim, se numa cidade reina mais a malícia e se cometem mais pecados do que noutra, é seguro que isso nasce de essa cidade não providenciar o bastante pela concórdia nem instituir os direitos com suficiente prudência”. O raciocínio exposto no Emendatione se desdobra no Tratado Político com suficiente nitidez: a razão e a cidadania envolvem um processo de instituição de diferentes potências (a potência de pensar, no Emendatione, e o direito comum, no Tratado Político) que dependem de um conjunto de condições capazes de inibi-las ou fortalecê-las.

A experiência do pensamento e o exercício dos direitos comuns se identificam, do ponto de vista do processo de sua instituição. Portanto, a vida política e a educação não se afastam, o que se confirma com a seguinte afirmação de Spinoza (2015, p. 489), na Proposição LXXIII da parte IV da Ética: “[...] o homem que é conduzido pela razão é mais livre na cidade, onde vive pelo decreto comum, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo”. A Ética demonstra que existe uma relação entre a formação sociopolítica e a experiência da razão, pois a constituição política de um certo Estado pode favorecer ou inibir o livre discernimento. A razão se fortalece, quando os homens compõem suas potências físicas e intelectuais no interior da cidade e fruem em comum do resultado dessa associação. A socialização baseada na formação de direitos comuns propicia condições ótimas para que o homem conduzido pela razão se esforce pela experiência da vida livre, de modo mais intenso e potente.

Até o momento, tratou-se da relação entre a vida política e a educação. A questão que precisa ser desvendada é a relação, na obra de Spinoza, entre democracia e a politização da noção de educação. Uma democracia, segundo Spinoza, se define como forma de organização da vida social e política estruturada em torno da ideia de igualdade. É o que se deduz do capítulo 16 do Tratado Político, quando Spinoza (2003, p. 242) associa democracia e igualdade: “[...] em democracia, com efeito, ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca mais precisar consultá-lo; transfere-o, sim, para a maioria do corpo social, de que o próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais”. O vínculo entre participação política e igualdade também se faz presente no Tratado Político. Nessa obra, Spinoza leva em conta que a democracia requer a partilha igualitária do direito de voto e de acesso aos cargos do Estado. Se a lei restringir esses direitos aos mais ricos ou aos que forem considerados os mais virtuosos, não há democracia, mas oligarquia, espécie de organização política e social que não se distingue da aristocracia, porque a causa de ambas é a desigualdade e, nela, a vontade dos patrícios, os quais são sempre os mais ricos, está constantemente desvinculada da lei (Spinoza, 2009, p. 138). Ou seja, os patrícios e os mais ricos, que são uma só e mesma coisa, constituem um império dentro de um império, pois sociedades oligárquicas ou aristocráticas admitem que os patrícios vivam segundo seu próprio temperamento (ingenium) e determinam que esse modo de viver seja simultaneamente admirado por todos e restrito a uma minoria.

O desejo de que os demais admirem nosso temperamento (ingenium) e anseiem por viver segundo ele constitui a experiência afetiva habitual dos homens. Ao mesmo tempo que esse afeto fornece um impulso à socialização, por mover os homens na direção de uma certa relação com os demais, ele é causa de conflitos e do desejo de que um modo particular de viver se destaque e se transforme em norma geral de vida. Essa percepção sobre a maneira de atuar própria dos homens é exposta no Escólio I da Proposição XXXVII da Parte IV da Ética, no qual Spinoza (2015, p. 433) formula a seguinte afirmação:

Aquele que, só por afeto, se esforça para que os demais amem o que ele próprio ama e vivam conforme o seu engenho, age só por ímpeto, e por conseguinte é odioso, principalmente para os que se comprazem com outras coisas e por isso também se empenham, e com o mesmo ímpeto se esforçam, para que os demais, ao contrário, vivam conforme o engenho deles.

 

Ainda nesse mesmo escólio, Spinoza (2015, p. 435) entende que “[...] o princípio de buscar o nosso útil ensina a necessidade de unirmos aos homens, e não aos animais ou às coisas cuja natureza é diversa da natureza humana”. Essas duas passagens confirmam a ideia de que o desejo de incitar os homens a viver de acordo com um certo temperamento pode tanto favorecer a instituição de uma potência comum quanto promover a formação de um império dentro de um império. O enigma a ser decifrado para a formação de uma sociabilidade democrática envolve a compreensão dos meios necessários à emenda do intelecto, a fim de que ele favoreça o respeito ao direito comum e o esforço de permanente atualização desse direito.

A experiência da democracia pressupõe um espaço político no qual o temperamento individual é formado em meio a instituições que reforçam o direito comum e que fazem cada indivíduo perceber a participação ativa de sua própria potência, na constituição desse direito. Conforme exposto no Emendatione, a educação das crianças é essencial para a existência de circunstâncias propícias à compreensão do que é comum a todos – a atividade comum do pensamento –, que pode ser partilhada indefinidamente, sem se perder uma única parte. Da mesma maneira, a politização da educação é necessária para assegurar a vida democrática e constituir temperamentos individuais que percebam a necessidade de obedecer à lei comum, porque todos tomam parte em seu processo de instituição.

Spinoza define a democracia como o governo absoluto, porque só o processo democrático é apto a enfrentar e destruir todo tipo de império dentro de um império, toda forma de transcendência ou de desigualdade. A democracia se constitui a partir de uma noção muito cara ao iluminismo radical, linhagem da qual Spinoza é um dos grandes expoentes: a igualdade. Os integrantes do radicalismo iluminista se distinguem do iluminismo propagado pela tradição, justamente em razão da intransigente defesa da igualdade (Israel, 2006, p. 545-550). Esse é o caso de Spinoza e de sua singular aposta na democracia, uma modalidade de organização da sociedade e do Estado baseada na partilha igualitária dos direitos. A sensibilidade democrática, no entanto, depende de estruturas institucionais capazes de evitar que o desejo de que os demais vivam segundo o temperamento individual se transforme em desigualdade e em um império dentro de um império. Um dos caminhos da emenda desse desejo é a educação, pois, por meio dela, a experiência da aquisição em comum de uma coisa segura – o sumo bem – pode servir de orientação para a aquisição de outras tantas coisas comuns, os direitos experimentados em sociedades democráticas. Eis o nosso comentário ao texto de Silva (2024).

 

Referências

ISRAEL, J. Enlightenment contested: Philosophy, modernity and the emancipation of man, 1670 -1752. Oxford University Press: Nova Iorque, 2006.

SILVA, D. S. A potência do educar: coisa singular, diferença e democracia em Espinosa. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240077, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15186.

SPINOZA, B. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SPINOZA, B. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

SPINOZA, B. Traité de la reforme de l’entendement. In : SPINOZA, B. Oeuvres: Premiers écrits. Paris: PUF, 2011.

SPINOZA, B. Ética. São Paulo: EdUSP, 2015.

 

Recebido: 30/11/2023 - Aceito: 10/12/2023 - Publicado: 28/03/2024



[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5517-779X. E-mail: chicodeguima@gmail.com.