Comentário a “A fisiologia da arte em Nietzsche: entre a décadence moderna e a arte da transfiguração”

 

Adilson Felicio Feiler[1]

 

Referência do artigo comentado: ARALDI, C. L. A fisiologia da arte em Nietzsche: entre a décadence moderna e a arte da transfiguração. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240075, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14878.

 

Em seu artigo, Araldi (2024), pela leitura a respeito do projeto nietzschiano de cultura, sustentado nos textos do último período de produção do filósofo, com acuidade e clareza, problematiza em que medida poderia a doutrina da Vontade de Potência constituir um critério satisfatório para a consecução de tal projeto, o qual passa pela afirmação e transfiguração artística da existência. Uma cultura, de acordo com a leitura de Nietzsche, entra em decadência quando se distancia da arte. Com isso, a cultura se torna rígida, fria, grave e incapaz de transpor as barreiras interpostas pela moral: “[...] a vida empobrecida, a vontade de fim, o grande cansaço” (Nietzsche, 1999, WA/CW, Prólogo, KSA, 6.12)[2]. Nietzsche concebe esse projeto de cultura como capaz de ultrapassar tudo o que há de cansaço e doença, tomando a forma de negação, como Wagner e Schopenhauer. Neles, a decadência e o cansaço, com todos os instintos movidos pela compaixão, tomam a dianteira.

É, principalmente, em Wagner, quando a maior de todas as expressões da arte – a música – se torna decadente, pelo cansaço e compaixão, que urge a necessidade de cura. O projeto nietzschiano de cultura encoraja a, num primeiro momento, se impor, para assim, superar Wagner, colocando-se contra ele, num empreendimento que envolve uma verdadeira luta armada, da qual demanda um quantum sempre maior de força. Quando se diz que é fundamental enfrentar o músico, quer-se dizer que é preciso compreender o quanto a sua música é sufocante e prejudicial, comparada ao vento pesado que sopra do deserto do Saara, trazendo para a Europa aquele pó que nauseia e torna tudo pesado e insuportável. Como antídoto ao mal que representa a música wagneriana, Nietzsche (1999) apresenta a música de Bizet:

Posso acrescentar que a orquestração de Bizet é quase a única que ainda suporto? Essa outra orquestração atualmente em voga, a wagneriana, brutal, artificial e “inocente” ao mesmo tempo, e que assim fala simultaneamente aos três sentidos da alma moderna – como me é prejudicial essa orquestração wagneriana! Eu a denomino “siroco”. Um suor desagradável me cobre de repente, o meu tempo bom vai embora (WA/CW, Carta de Turim, maio de 1888, 1, KSA, 6.13).

 

Diferentemente do peso da música wagneriana, Nietzsche qualifica a música de Bizet, precisamente, de sua ópera Carmen, como leve e suave, como algo que inebria com sua delicadeza. Por essa razão, o filósofo alemão concebe a leveza, o refinamento e a suavidade como requisitos fundamentais para o incremento de uma cultura elevada. Portanto, uma cultura que não se rende ao cansaço provocado pelo siroco da música wagneriana. Urge, então, necessariamente, a ativação das forças para superar o cansaço, que infantiliza e torna ingênuo, para a superação da decadência em direção aos mais altos níveis da cultura. Esses níveis altos da cultura se traduzem como contínuo galgar em direção a estamentos sociais mais elevados, na hierarquia, ou seja, um constante assenhorar-se por mais poder. É um poder que se exprime pela própria disposição da vontade ascendente exercida como grande antídoto da cultura. A arte, pois, compreendida como vontade de poder, conduz a cultura ao seu nível mais elevado.

No terceiro período de sua produção, Nietzsche dá um acento ao aspecto da Vontade de Poder, para que a vida ascendente possa contrapor-se aos movimentos de decadências. Contudo, como Araldi (2024) parece acentuar, quase que unicamente a Vontade de Potência é o único ou preponderante fator para que os valores da vida ascendente possam se expressar, mediante a arte. Bem, é preciso ter em mente que, nesse período de sua produção de pensamento, Nietzsche se encontra ocupado em seu projeto de constituição de uma obra magna, denominada Vontade de Poder. É nela que o filósofo alemão irá apostar todas as suas fichas, justamente quando os dois caminhos se cruzam, a saber: o do projeto da obra Vontade de Poder e o da interposição de um caminho de cultura ascendente contra a decadência.

Ora, se é nesse exato período que Nietzsche percebe que a cultura se encontra em sua fase degenerescente, pela grande influência de uma expressão decadente da arte, representada pela música wagneriana, há a necessidade, por conseguinte, de sofrer uma verdadeira guerra contra a ordem instalada. E, no ano de 1888, se empenha na construção de uma arte afirmativa: uma fisiologia da arte, na qual a embriaguez e o aumento de potência ganhem corpo, contra a fraqueza e o pessimismo, tal como o filósofo se expressa: “Carmen: e o efeito deprimente de Wagner: protesto fisiológico contra Wagner” (1999, Nc/FP da Primavera de 1888, 14[50], KSA, 13.242). Frente ao instinto decadencial de Wagner, Nietzsche contrapõe Bizet, em cujos contornos o filósofo avista elementos fundamentais para o aumento da potência, antídoto fundamental para a cultura, a qual, em sua expressão moderna, tem em Wagner a sua expressão mais forte. Como bem recorda Araldi (2024), trata-se, nesse período, de uma tarefa verdadeiramente valorativa, já que estão relacionados tipos decadentes e ascendentes, como é o caso Wagner e Bizet. Há em Wagner, de acordo com as observações de Nietzsche, uma ausência de criação. E a criação está ligada justamente à fisiologia, à organicidade, portanto, à força, o contramovimento à décadence moderna.

Ao tratar a arte, mediante o antagonismo entre vontade de ilusão e vontade de verdade, Nietzsche, como defende Araldi (2024), estaria abandando o seu projeto de fisiologia da arte, no interior do plano da obra Vontade e Poder. Ora, sob esse aspecto, é preciso ter em mente que o projeto de uma fisiologia da arte inclui também a transvaloração dos valores, como seriam aqueles da ilusão e da verdade. E, quando, de acordo com a leitura de Araldi (2024), Nietzsche teria dificuldades em justificar o critério da vontade de poder para a vida ascendente, no seu plano da fisiologia da arte, é também necessário levar em consideração a topologia de pensamento, sob a qual Nietzsche se situa: a orgânica; por isso, tudo o que diz respeito à expressão da força, do poder, mobilizado pela vontade, toma parte nesse projeto. Em suma, vale, novamente, sublinhar a postulação que Araldi (2024) faz, quanto ao projeto nietzschiano de uma vida ascendente, a qual passa pela arte, em que tanto o gênio da mentira quanto o gênio da transfiguração endereçam seus esforços para configurar impulsos afirmativos contra a décadence.

 

Referências

ARALDI, C. L. A fisiologia da arte em Nietzsche: entre a décadence moderna e a arte da transfiguração. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 1, e0240075, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/14878.

NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Briefe: Kritische Gesamtausgabe Briefwechsel KGB. Herausgegeben von Georgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 8 Bd., 1986.

NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: de Gruyter, 15 Bd., 1999.

NIETZSCHE, F. W. O caso Wagner. Um problema para músicos. Nietzsche contra Wagner. Dossiê de um psicólogo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

Recebido: 07/12/2023 – Aprovado: 15/12/2023 - Publicado: 28/03/2024



[1] Docente na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7352-927X. E-mail: feilersj@yahoo.com.br.

[2] Para as citações das obras de Nietzsche, adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em Alemão/Português: WA/CW – Der fall Wagner (O caso Wagner), Nc/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr – Briefe (Carta), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.