Nietzsche e a política do corpo

 

Átila B. Monteiro[1]

 

Resumo: O objetivo deste artigo é, por um lado, trazer à tona a caracterização nietzschiana do corpo, retirando deste a sua naturalidade e neutralidade, lançando-o no devir histórico das disputas morais (valorativas), bem como desconstruindo a sua unidade individual, ao desvelar as teias sociais que o produzem, a partir da organização de uma multiplicidade originária que, entretanto, continua a espreitar a suposta unidade consolidada no “indivíduo”. Em segundo lugar, o texto almeja chamar a atenção para sua natureza política, no sentido em que esse processo de organização ou unificação daquela multiplicidade não se dá de modo espontâneo, mas é regido por disputas, conflitos, imposições, resistências, negociações, conchavos, conspirações – enfim, toda sorte de articulações possíveis, as quais tanto podem dar a consistência dessas organizações quanto podem colocá-las em xeque, fornecendo uma lógica para seu devir.

 

Palavras-chave: Corpo. Política. Nietzsche. Valores.

 

Introdução

O corpo constitui, na atualidade, um tema tão relevante quanto problemático. Por um lado, com o declínio da influência cristã/católica em boa parte do mundo, ou pelo menos o afrouxamento de certa concepção de moralidade dela advinda, acredita-se que o corpo estaria finalmente livre das amarras que o prendiam, em outros tempos. Nesse sentido, viveríamos no tempo de uma liberdade inédita, quando estaríamos autorizados a explorar as potencialidades do corpo e experimentar novos modos de vida. Tal expectativa, porém, parece não ter sido alcançada, pois, diante dessa alegada liberdade, se insurgem as mais variadas formas de conservadorismo ou de reacionarismo que engendram políticas opressivas e autoritárias, mais ou menos organizadas institucionalmente, mas, sem dúvida, com forte expressão moral e cultural. Questões relativas ao corpo que pareciam ter sido superadas ou que pensávamos poder discutir abertamente – como o aborto, as sexualidades, o uso de drogas etc. – se mostram cada vez mais reinseridas em debates religiosos e em visões de mundo conservadoras, surpreendentemente influentes na política institucional, em face das quais se produzem novos tabus e apartheids. Esse paradoxo da suposta liberdade que engendra novas formas de repressão e opressão é um dos problemas mais complexos das discussões sobre corpo e subjetividade, na contemporaneidade, gerando inúmeros debates.

Por outro lado, há igualmente uma sobreposição entre o “corpo” e a “imagem do corpo”, à medida que o corpo ou é visto como “máquina” pelas ciências ou como “mercadoria” pelo mercado. O corpo, tomado como dado biológico, cujo funcionamento poderia ser mapeado com vistas à melhoria de sua performance, ou submetido a padrões estéticos e performativos, não deixa de ser um corpo ingenuamente naturalizado, a-histórico, ou resumido a um organismo abstrato independente das formações de poder sócio-históricas. Toma-se o corpo do ponto de vista de um dado da realidade, um produto realizado pela “natureza” e deixa-se de lado que ele é sobretudo uma produção, perdendo-se de vista o quanto esse produto é devedor de uma determinada organização social e moral-valorativa. Sem tal percepção, propriamente genealógica, como pretendemos argumentar, gira-se em falso na suposta valorização do corpo, pois sequer sabemos do que se trata o corpo, da sua potência, do seu poder – ficamos com uma imagem abstrata do corpo, que o esvazia de suas possibilidades de criação de si e de singularização, enquanto supostamente o glorificamos.

A questão do corpo também constitui um dos aspectos centrais do pensamento de Nietzsche, atravessando suas obras de modo mais ou menos explícito. Mesmo no seu período de produção considerado “metafísico” pelos comentadores, quando o jovem filósofo divagava a respeito de uma essência dionisíaca, pulsante e abismal do mundo, inegavelmente influenciado por Schopenhauer, não é difícil ver que o corpo ocupa um lugar de destaque e de caminho para o mistério do mundo (Nietzsche, 2007b). Com o passar do tempo, como se sabe, embora o filósofo reoriente as suas bases epistêmicas, deixando de lado as teses de O Nascimento da Tragédia e trazendo à baila o “filosofar histórico” (Nietzsche, 2005c, p. 16) e de inspiração científica, o corpo continua sendo, senão um caminho, pelo menos uma bússola ou um critério de orientação do pensamento, nas turbulentas discussões que se abririam no interior da sua obra, por mais que aquele tenha perdido seu mistério dionisíaco. Nietzsche convoca, de forma recorrente, o pensamento filosófico a se voltar “às coisas próximas” (2008d, p. 165), que teriam sido desconsideradas por certa concepção de racionalidade como mera contingência, vendo nelas, pelo contrário, o que seria essencial – tendo em vista, por exemplo, que “os sentidos não mentem” (2006, p. 26) e que o corpo é uma “grande razão” (2005b, p. 35). Assim, como critério que se faz cada vez mais presente, em um de seus últimos escritos, sua autobiografia, intitulada Ecce Homo, é o corpo e suas questões que orientam a narrativa do próprio desenvolvimento intelectual do filósofo, o qual passa a levar em conta fundamentais questões de alimentação, clima, lugar e distração (Nietzsche, 2008c).

Embora atravesse a obra, a questão do corpo, contudo, não surge necessariamente como um objeto de investigação privilegiado, no sentido de ser assunto específico de um livro ou a grande preocupação que caracterizaria um período específico de seu pensamento, tal como os grandes temas da “moral” e do “niilismo”, e tampouco como algo cuja clareza e evidência o colocariam no patamar de um ponto arquimediano, ou de algum tipo de fundamento como o cogito cartesiano. Na obra de Nietzsche, o corpo constitui, a bem da verdade, uma grande interrogação e uma grande provocação, diante das quais o pensamento vacila, a verdade se estilhaça em mil pedaços, as certezas se dissolvem e a racionalidade não se reconhece em seu espelho. Não à toa, frisamos que em Nietzsche o corpo é uma questão, pois colocá-lo em pauta é virar ao avesso aquilo que a reflexividade do pensamento vê com clareza, trazendo à tona o que a autoconsciência deixa escapar por entre os dedos. Mas principalmente porque é o corpo quem questiona (e responde), quando o colocamos em questão, e Nietzsche evidencia, no decorrer de suas produções, o resultado desse contínuo confronto do pensamento com aquilo que o desloca, desorganiza e dissolve, porém, em face do qual ele (o pensamento) também insiste, resiste, repõe e elabora.

Nessa perspectiva, o corpo também é uma interrogação quanto à sua própria definição e estatuto, pois Nietzsche se recusa a pensá-lo seguindo a esteira de uma tradição essencialista-dualista[2] que se remete a Platão e ao platonismo, que o enxergaria como o lugar do caótico, do descontrole, daquilo que precisa ser organizado por uma racionalidade que lhe seria, por princípio, distinta e superior.[3] Tal tradição, reconfigurada pelo cristianismo – considerado por Nietzsche um “platonismo para o povo” (2005a, p. 8) –, amplia e aprofunda paulatinamente esse dualismo, a partir de uma forte base moral-valorativa, por meio da distinção corpo e alma, supondo a esta última uma origem de outra esfera e ao primeiro a marca da corrupção. Ao questionar tal tradição, o objetivo de Nietzsche é mostrar que essa concepção de “corpo” não é um simples resultado lógico-dedutivo de especulações filosóficas e tampouco um sentido natural, mas carrega uma história oculta e subterrânea que a sua análise genealógica quer trazer à tona. Nesse sentido, toda a reflexão sobre a moral, por exemplo, é já um modo de crítica, porque parte de uma reflexão sobre o corpo do ponto de vista de sua organização afetiva, ou de uma “semiótica dos afetos” (Nietzsche, 2005a, p. 76), na qual aquele se insurge contra as próprias determinações supostamente naturais que lhes são atribuídas, isto é, contra a própria racionalidade dominante.

O objetivo deste artigo é, assim, duplo: por um lado, trazer à tona a caracterização nietzschiana do corpo, retirando deste sua “naturalidade” e neutralidade, lançando-o no devir histórico das disputas morais (valorativas), bem como desconstruindo a sua unidade individual, ao desvelar as teias sociais que o produzem, em função da organização de uma multiplicidade originária que, entretanto, continua a espreitar a suposta unidade consolidada no “indivíduo”. Em segundo lugar, gostaríamos de chamar a atenção para sua natureza política, no sentido em que esse processo de organização ou unificação daquela multiplicidade não se dá de modo espontâneo, mas é regido por disputas, conflitos, imposições, resistências, negociações, conchavos, conspirações – enfim, toda sorte de articulações possíveis que tanto podem dar a consistência dessas organizações quanto podem colocá-las em xeque, fornecendo uma lógica para seu devir.

 

1 Para além dos dualismos: história e fisiopsicologia

            Contrapondo-se às visões dualistas, Nietzsche chega a tomar o corpo, como realçamos, como uma “grande razão” em relação ao espírito ou à consciência de si, que teria o status de “pequena razão” (2005b, p. 35). Isso quer dizer que, para além de uma inversão do dualismo, conforme se poderia esperar, o objetivo de Nietzsche é desconstruir o elemento mesmo de onde se origina o dualismo, a suposição, por exemplo, de rígidas cisões ontológicas entre “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”, ou entre níveis ontológicos distintos[4], suposição inteiramente atravessada por valores morais, diga-se de passagem. Nesse sentido, em relação ao corpo, o filósofo se recusa a pensá-lo como mera carne irracional e tampouco como simples mecanismo em funcionamento cego, numa espécie de materialismo grosseiro ou naturalismo mecanicista. Pelo contrário, recusa-se a separar corpo e alma[5], experimentando atravessar ou fazerem se chocar conceitos aparentemente contraditórios, como “alma mortal”, “alma como pluralidade do sujeito” (Nietzsche, 2005a, p. 19), ou mesmo de incluir o pensamento entre as atividades instintivas, sustentando que o corpo é quem pensa (Nietzsche, 2005a, p. 12).

            A vinculação do pensamento de Nietzsche às questões do corpo não é algo propriamente novo ou desconhecido, nas discussões de filosofia, ou pelo menos nos debates acerca do pensamento nietzschiano. O próprio filósofo deixa claro seu “naturalismo”, seu “imoralismo”, suas discussões sobre “fisiologia”, assim como suas reflexões sobre a “grande saúde” ou sobre a vontade de potência (Wille Zur Macht) como uma chave de leitura para os movimentos instintivos e pulsionais. Também é bem conhecida a variedade de discussões dos comentadores sobre a importância do corpo, na obra de Nietzsche, dada a evidência desse tema no conjunto da obra. Especialmente conhecidas são as discussões sobre a moral como negação do corpo, a discussão epistêmica sobre bases naturalistas, ou ainda sobre sua “fisiopsicologia” como movimento de superação dos dualismos e crítica da racionalidade. Mas talvez a evidência da importância do corpo, na obra de Nietzsche, esconda suas armadilhas, já que podemos supor apressadamente como claro e evidente o sentido do corpo, seja a partir de uma mera contraposição à moral – a qual remeteria a outra oposição mais antiga e espinhosa entre “cultura” e “natureza”, como se o corpo fosse algo naturalmente organizado, em detrimento das modificações culturais –, seja a partir das contínuas referências de Nietzsche às ciências que, embora muitas vezes sejam críticas, poderiam nos levar a pensar que o filósofo entenderia o corpo tal qual um cientista da natureza. Tais interpretações seriam equivocadas, pois deixariam de fora muitos dos elementos importantes para o filósofo alemão, tais como a historicidade, a cultura e a dinâmica criadora que seria, a seu ver, própria da vida.

            Por isso, é preciso insistir, a nosso ver, no fato de que, longe de um naturalista stricto sensu[6], Nietzsche observa em suas análises também o devir histórico e, com isso, a natureza “social” do corpo, por assim dizer. Ou seja, longe de ser um objeto natural sem história, o corpo não seria tão somente biologicamente determinado, sendo igualmente resultado de uma série de acontecimentos que interferem na sua organização. Isso fica claro em sua Genealogia da Moral, a qual destaca a importância da consideração histórica na compreensão da moral enquanto determinante na organização da corporeidade, uma vez que, segundo Foucault (2017b, p. 65) “[...] a genealogia, como análise da proveniência, está, [...] no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo”. Enquanto análise histórica, a genealogia procura mapear as linhas de força dos acontecimentos que geraram tal ou tal forma de vida, a qual se expressa em distintas formas de valoração[7]. Desse ponto de vista, o próprio sentido de corpo é colocado em questão, sobretudo em relação à maneira como ele é, historicamente, valorizado ou desvalorizado, cuidado ou desprezado e, consequentemente, definido e significado.

            Esse ponto de vista histórico, próprio da genealogia nietzschiana, ressalta as minúcias de um processo de transformação, através da qual nenhum sentido pode ser considerado um dado natural, sendo, por conseguinte,

[...] o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem sucedidas (Nietzsche, 2009, p. 61).

 

Esse talvez seja o elemento mais importante da genealogia nietzschiana, para mostrar até que ponto seu naturalismo é sui generis e sua concepção sobre o corpo, desconcertante, pois, mesmo um órgão fisiológico, frisa o filósofo, tem uma história não linear e não teleológica de acontecimentos, para a qual é irrelevante a suposição de uma finalidade própria dada na origem. Todo “para quê”, ou finalidade, responde a um “quem”, a uma força orgânica ou social que se “apropria” daquilo que recebe um novo sentido ou, de modo mais incisivo, que “[...] todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados” (Nietzsche, 2009, p. 61). Destarte, toda definição, mesmo no mundo orgânico, é temporária, porque “[...] definível é apenas aquilo que não tem história” (Nietzsche, 2009, p. 63).

            Outro elemento importante para a problematização do que está em jogo na questão do corpo é o fato de que Nietzsche não cessa de repetir sobre a importância da “psicologia” em suas investigações, e sobre seus dons de psicólogo[8], observando-a inclusive como “[...] o caminho para os problemas fundamentais” (2005a, p. 28). Entretanto, assim como sua compreensão de natureza, também a “psicologia” de Nietzsche não é tomada na acepção clássica ou estrita, como psicologia racional vinculada aos processos mentais e conscientes, mas diz respeito ao mesmo procedimento de desconstrução dos dualismos e se refere simultaneamente ao corpo e à “alma” – sendo chamada por isso de “fisiopsicologia” (2005a, p. 27). Esse conceito expressa que o corpo, longe de ser um mero mecanismo cego, é justamente onde os processos racionais se desenvolvem, ainda que à margem da consciência, a qual, por sua vez, receberia tão somente o resultado. Nesses processos infraconscientes se desenrolaria toda uma cadeia de acontecimentos da qual só teríamos notícia após o resultado. A noção de vontade aparece aqui como elemento fundamental da análise, a partir da qual Nietzsche busca interpretar a lógica daqueles processos.

            Nessa análise fisiopsicológica, orgânico e psíquico se misturam e produzem uma concepção de vontade impessoal, que não está a serviço do “Eu”, composta por uma multiplicidade impulsos em um conflito contínuo por “comando” de uns sobre os outros, o qual, sendo alcançado, geraria uma organização temporária da multiplicidade pulsional. Segundo Nietzsche (2005a, p. 23), esse “afeto do comando” é o destino procurado por todo e qualquer impulso que compõe o corpo, o qual só pode ser alcançado quando há uma sujeição ou obediência dos demais, formando um tipo de ordenação e hierarquia. O Eu só é capaz de perceber o desenlace desse processo por meio do “afeto de comando” que lhe aparece à consciência como “vontade”, recebendo assim a “deliberação” ou o “acordo” dos impulsos que o constituem. Note-se que há uma lógica de “comando e obediência” operando nesse processo, cujo desenrolar não tem como ser previsto e que, enquanto lógica, diz respeito apenas à forma do processo, não aos conteúdos, sem possuir em si mesma uma finalidade para além da necessária produção de ordem e hierarquia na multiplicidade, sem a qual nenhum afeto de comando seria possível e, consequentemente, nenhuma disposição fisiopsicológica, como vontade, estado ou ação.

            Por conseguinte, Nietzsche não se cansa de criticar o mecanicismo em nome de uma força plástica própria ao corpo (e à vida em geral), oriunda exatamente da lógica conflituosa por imposição e resistência, comando e obediência ou expansão e conservação, próprios da dinâmica fisiopsicológica, como vimos – mas também, diga-se de passagem, de elementos atrelados à sua concepção ontológica mais ampla das “forças” que compõem o mundo natural e social denominada vontade de potência (Wille Zur Macht). Nessa dinâmica, não há nenhum determinismo rígido, não há possibilidade de se prever o encaminhamento de um dado estado de coisas, não há cálculo preciso. Essa relativa imprevisibilidade mostra o caráter criador ou estético do corpo (e das coisas vivas),  o qual, estando no tempo, sempre é movido por uma necessidade de “autossuperação” ou de superação do mesmo em si, isto é, transformação e produção com base na relação com aquilo que o rodeia[9]. Por isso, a importância de enfatizar, além da análise histórica, o papel dos impulsos e afetos na constituição do sentido do corpo, que passa a ser visto, portanto, como uma multiplicidade dinâmica em contínua transformação, pois essa concepção também ajuda a compreender a própria visão histórica de Nietzsche, como série de imposições e resistências, assenhoreamentos e sublevações, próprios da lógica “comando e obediência”.

            Outro ponto relativo à peculiaridade de sua fisiopsicologia é o fato de que não se toma o indivíduo ou o sujeito como um dado. Já que tudo tem uma história, o indivíduo ou o sujeito é sempre o resultado de uma dinâmica de forças que o antecede e que o produz. Assim, “[…] coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e a sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano” (Nietzsche, 2009, p. 44-45). Outro dualismo que se desconstrói assim é do “uno” e do “múltiplo”, no que diz respeito às relações humanas, ou seja, do indivíduo e da coletividade. Nietzsche vê com clareza que o humano é um animal social, tendo em vista o fato de ser um animal dotado de consciência – a qual aparece para o filósofo como o sinal da necessidade de ação conjunta e comunicação[10] – e, em geral, um animal gregário, dada a sua própria fragilidade, por mais que tal gregariedade humana seja na maioria das vezes alvo de críticas, ela também parece ser algo a ser analisado e não apenas ignorado.[11]

 

2 O corpo em disputa – a sutileza da multiplicidade

            Tudo somado, o filósofo alemão procura articular, assim, um arcabouço teórico que se propõe ser uma interpretação do corpo e da sua história, na medida em que este, longe de ser apenas algo formado por átomos, é sempre uma “[...] multiplicidade com um só sentido”, um conjunto fluido em variação contínua e em conflito permanente, “[...] uma guerra e uma paz” (Nietzsche, 2005b, p. 35). O corpo nunca é um corpo, mas sempre “vários”, sempre plural em si mesmo, e não porque é um agregado de unidades, mas porque é sempre relacional, temporário, a concreção de um processo que dá origem às próprias unidades – seja um corpo “individual”, pessoa, seja “coletivo”, sociedade. Por outro lado, porque a ideia de “unidade” mesma é vista como uma ficção induzida pela moralidade dominante – claramente implicada na visão dualista, mas também na mecanicista[12] –  sendo o mais provável, para Nietzsche (2012a, p. 131), uma concepção de realidade na qual há a continuidade irrestrita de processos que se fazem e se desfazem continuamente, contudo, da qual nosso intelecto conseguiria captar apenas momentos e paradas.

            Desde o naturalismo à psicologia, atravessando o olhar histórico, o que se abre a partir da compreensão de Nietzsche é um horizonte antiessencialista, que considera o corpo tanto como algo em perpétua construção quanto como algo sob disputa. Além disso, podemos perceber a natureza conflituosa de todo acontecimento, conflito esse que se dá em forma de imposição e resistência por meio das quais ocorre a sucessão dos próprios acontecimentos e sentidos. O corpo marcado de história é, assim, justamente o sentido fluido do corpo sujeito ao tempo, o qual o marca com uma certa abertura e fluidez. Longe de ter um sentido fixo, o corpo parece algo a ser conquistado, cuja história é repleta de apropriações e imposições, diante das quais, porém, algo resiste. E, resistindo, é recolocada a sua natureza plástica e conflituosa que (re)põe em movimento algo indeterminado, o qual vem a corroer suas próprias definições.

            O corpo é um território fértil a ser cultivado, contudo, é igualmente movediço ou, segundo Foucault (2017b, p. 65), uma “[...] superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização”. O corpo é uma questão que faz vacilar o pensamento e a própria consciência, todavia, é também o lugar em que o pensamento insiste, já que nunca está dele descolado. Não obstante, tudo parece nos encaminhar para a compreensão de que a questão do corpo, onde o “Eu” se dissolve em “vários” e se “pulveriza”, longe de dizer respeito apenas à individualidade do sujeito, ecoa por todas as estruturas sociais e interroga as supostas determinações naturais que a ele se atribuem, mostrando-se tanto mais como um campo de guerra do que como um produto natural.

 

3 A política do corpo

            Diante do exposto, nosso objetivo é explorar uma dimensão que pensamos ser pouco nítida, nas discussões sobre o corpo, no pensamento de Nietzsche, a saber, a sua natureza política. Com efeito, poderíamos nos perguntar: se o corpo não é naturalmente ou mecanicamente determinado, de onde surgem suas determinações? Como saber se essas determinações são boas ou ruins, interessantes ou precárias? Sendo resultados de imposições historicamente obscurecidas, como saber se elas promovem a liberdade, o crescimento e a expansão ou, pelo contrário, resultam no empobrecimento do corpo, na sua opressão e diminuição de suas possibilidades? Além disso, já pudemos perceber que tais determinações, por serem impostas, são passíveis de resistência e confrontação, sendo este conflito um espaço aberto de disputa propriamente política, já que este pode se dar tanto por um confronto físico – cuja possibilidade nunca está fora de cogitação – quanto pelos acordos, negociações, trocas, encenações e toda forma de relação que se realiza na linguagem, já que esta “marca os acontecimentos”, conforme aponta Foucault, e forja um mundo propriamente humano, segundo ressalta Nietzsche[13].

            Talvez essa natureza política não seja imediatamente evidente, já que Nietzsche não faz uso desses termos, no entanto, entendemos que esta concerne aos referidos aspectos sócio-históricos e à compreensão do corpo não apenas como uma multiplicidade relacional, mas sobretudo por sua ordenação ou organização segundo relações de força. Em outras palavras, não se trata aqui de uma reflexão acerca do que Nietzsche pensa sobre a política em geral[14], mas sim de uma reflexão sobre o corpo, sua plasticidade e seus distintos modos de configuração, à medida que estes são compreendidos como social e historicamente produzidos, através de relações dinâmicas de poder, de imposições e resistências, ou seja, politicamente. Procuramos, assim, enxergar na tênue e fluida organização dos corpos um aspecto eminentemente político, vinculado às disputas, configurações e mediações que se apresentam nas relações sociais, onde um corpo nunca é algo fixo e isolado, mas uma relação sem a qual nenhum corpo, individualmente tomado, teria existência possível. Nesse sentido, é possível perceber que essa dimensão política está implicada no conceito central do pensamento de Nietzsche, indispensável para a compreensão do desenvolvimento histórico e das relações sociais, que é a vontade de potência (Wille Zur Macht), como páthos que atua na organização das forças que compõem o corpo e as relações supracitadas, por meio do embate e da criação, cuja expressão mais evidente é a referida relação “comando e obediência” (2005a, p. 23).

            Com isso, entretanto, acreditamos não afirmar nada sumamente estranho ou distante do pensamento de Nietzsche, ou mesmo das interpretações correntes sobre o filósofo alemão, mas apenas lançar luz sobre um aspecto um tanto obscurecido ou problemático nas interpretações de Nietzsche[15]. Talvez o que possa causar estranheza seja apenas uma questão de palavras, pois é possível afirmar que a própria moral – tema indispensável às reflexões de Nietzsche – já é em si uma política do corpo, uma vez que o próprio filósofo enfatiza (2005a, p. 24): “[...] moral, entenda-se, como as relações de dominação no interior da qual surge o fenômeno ‘vida’”. A questão moral implica, como se sabe, uma padronização valorativa, que se desdobra numa imposição de formas de sentir e pensar que são, assim, implicadas no próprio corpo e, portanto, fruto de processos ativos de produção e organização de corpos e consciências. Ao pensar a procedência da moralidade em geral, no que chama de “moralidade dos costumes”, Nietzsche (2004) sustenta que essa é resultado de uma obediência quase irrestrita, do ponto de vista dos indivíduos, além de ser uma ordenação ostensiva e punitiva, do ponto de vista da comunidade ou da tradição[16]. O filósofo nos mostra que a moral tem uma história conflituosa e que a própria consciência de si, a qual o indivíduo moral experiencia como uma espécie de mandamento interior, também é produzida socialmente. Por meio dessas relações de dominação, logo, é que surge a própria vida humana.

            É conhecida a estratégia de Nietzsche, que consiste em subverter o léxico tradicional da filosofia de diversas formas – como apontamos, por exemplo, em relação à alma – e a palavra moral é uma delas, pois, à medida que a moral seria entendida, numa acepção tradicional dualista-essencialista, enquanto algo vinculado à consciência, enquanto poder de decisão e escolha, seja quanto a valores professados, seja pela capacidade de “agir contra as inclinações”, como poderia sugerir alguém como Kant, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Nietzsche nos encaminha para uma compreensão polêmica e desconcertante. A seu ver, a moral não passaria de adestramento e, como tal, depende de repetições, marcações no corpo, ameaças, gratificações e, sobretudo, dor. A própria consciência moral seria o fruto tardio, como salientamos, de um longo processo amargo e violento de imposição de formas de agir e avaliar, pela moralidade do costume[17]. É certo que tal processo tem como resultado a produção de um ser confiável, “[...] um animal capaz de fazer promessas” (Nietzsche, 2009, p. 43), consciente de si e até mesmo orgulhoso, mas em todo caso também um ser ofuscado quanto à natureza dos valores que reproduz, sendo assim um ser que pensa, sente, age e avalia a partir da naturalização e, diríamos, neutralização política de tudo o que pensa, sente e sabe sobre si e sobre o mundo. Portanto, um ser capaz de reproduzir, sem saber imediatamente, a mesma ordem moral que recebeu em seu corpo.

            Insistimos, então, que é preciso observar, nessa discussão sobre a moral, a desconstrução da individualidade e da espontaneidade da consciência moral, já que Nietzsche remete constantemente aos processos sociais ou culturais de produção das mesmas e, sobretudo, do trabalho realizado sobre o corpo como condição de possibilidade para a moralidade do indivíduo “soberano”[18]. Assim, a discussão sobre a moral ganha outros contornos, indo além de uma mera questão de valores e critérios de ação, passando a se perguntar pelo “valor dos valores” (Nietzsche, 2009, p. 12) e sua procedência. Desnaturalizando os valores morais, Nietzsche mostra também que eles não surgem ao acaso. Se eles são incutidos nos corpos, dando conteúdo à consciência moral e organizando a coletividade, é preciso suspeitar se estes, assim como o modo de vida que eles produzem, não seriam também um problema, e talvez um dos mais urgentes, porque, uma vez desvelada a historicidade dos valores, a genealogia pergunta por sua proveniência: que tipo de vida os engendrou? E ainda: o que eles fizeram/fazem conosco, com nossos corpos? Não seríamos capazes de intervir, reordenar ou criar nossos próprios valores e, por conseguinte, nossos corpos e nossa forma de vida? Somos o resultado de uma história, todavia, não seríamos capazes de nela intervir, pela compreensão promovida pela fisiopsicologia e pelo olhar histórico, de que a conservação ou a mudança dos estados de coisa é resultado de um conflito entre forças? Nesse espaço de luta é onde acreditamos observar a natureza política do corpo.[19]

            Em outras palavras, se há imposição sobre corpos, há “quem” imponha, mas também “quem” resista. Como não se trata de simples hábitos ao acaso, cabe perguntar: a quem interessa uma tal ou qual ordenação dos corpos? Essa é justamente a pergunta genealógica, por excelência. A resposta de Nietzsche, como se sabe, é que esse “quem” não é uma pessoa, uma classe ou grupo social, nada tão ligado à dinâmica consciente ou institucional, todavia, um modo de vida, um tipo de vida, que atravessa a história da moral e adquire predomínio, por meio de estratégias e subterfúgios, denominada “moral de escravos” ou do ressentimento. Mais do que isso, há uma guerra incessante por predomínio entre distintas morais, modos de vida ou formas de organização dos corpos, mediante valores distintos, nomeada por Nietzsche com nada menos que o termo “grande política”:

A grande política. Trago a guerra. Não entre os povos: não tenho nenhuma palavra para expressar o meu desprezo pela maldita política de interesses das dinastias europeias, que faz da incitação ao egoísmo e à autopujança dos povos uns contra os outros um princípio e mesmo quase um compromisso. […] Trago a guerra através de todos os acasos absurdos de povo, classe, raça, profissão, educação, cultura: uma guerra como que entre o levante e o declínio, entre vontade de vida e a busca de vingança em relação à vida, entre retidão e pérfida mendacidade… […] A grande política procura transformar a [psico]fisiologia em senhora sobre todas as outras questões; ela procura criar um poder, forte o suficiente, para cultivar a humanidade como um todo e como algo mais elevado, com uma rigidez impiedosa contra o elemento degenerador e parasitário da vida – contra aquilo que estraga, envenena, amaldiçoa, condena ao perecimento e na aniquilação da vida vê o sinal de um tipo mais elevado de almas (Nietzsche, 2012b, p. 568).

 

Esse trecho é passível de inúmeras considerações, porém, nos limites deste artigo, gostaríamos de destacar que tal conflito entre “vontade de vida” e “vingança contra a vida” é justamente o conflito entre formas de vida, de expansão e conservação, atividade e reatividade, o qual fornece um direcionamento das forças dos corpos, garantindo a sustentação dos estados-de-coisa e, consequentemente, o predomínio de uma forma de vida ou, caso contrário, sua modificação e transformação. A compreensão desses distintos modos de vida pode surgir a partir da investigação moral, mas é possível ver que não se encerra nela, pois da moral passamos para as relações de poder ou de dominação que produzem os corpos. Além disso, ao tratar dessa guerra entre modos de vida, Nietzsche usa um termo muito importante – a “grande política” – que se realiza em outro nível, para além das querelas institucionais da “pequena política”. Aqui não há como evitar a relação entre a “grande razão” do corpo e seus embates infraconscientes ou fisiopsicológicos, os quais se imiscuem nas disposições e elucubrações da “pequena razão”, da consciência e dos problemas que ela consegue determinar e enxerga como capaz de resolver.

            Entretanto, geralmente as considerações de Nietzsche sobre o corpo são tomadas ou como o elemento negativo na crítica da moral, como o ponto de dissolução desta, ou numa acepção positiva, produtiva, entretanto, que se resume a um sentido ético-estético, vinculado à ideia da criação de si, o que pode dar margem a um tipo de supervalorização da individualidade e da consciência – e, por consequência, bloquear o acesso a essa natureza política que procuramos explorar. Assim, para tomarmos alguns exemplos, podemos ver como Rosa Dias (2011) pensa a ideia de “vida como obra de arte”, fazendo menção à questão dos impulsos e da natureza criadora do corpo, mas num sentido até certo ponto afastado das questões conflituosas dos embates históricos e sociais, enfatizando a questão da “criação de si” como uma proposta individual e artística. Nesse sentido, trata-se da “[...] tarefa de se tornar sem cessar o que se é, de ser mestre, poeta e escultor de si mesmo para enfrentar o sofrimento do mundo sem Deus”, tarefa para a qual “[...] as técnicas do artista e principalmente as do poeta e do romancista, podem ser de grande valia, já que elas mostram como é possível escrever para nós um novo papel, um novo personagem” (Dias, 2011, p. 113). A ênfase notória na “natureza artística” da vontade de poder preenche quase a totalidade do horizonte em que o corpo é pensado, sendo seu aspecto relacional praticamente submetido à unidade fugidia do corpo individual.

            Scarlett Marton (2010), por sua vez, ressalta certo horizonte cosmológico que seria próprio a Nietzsche, em sua concepção das “forças” e da vontade de potência (Wille Zur Macht), a partir do qual busca explorar mais detidamente uma concepção abrangente de vida. Nessa interpretação cosmológica, tanto a vida quanto o papel do corpo são tomados nos seus sentidos mais gerais de relação entre forças, as quais seriam responsáveis pela produção dos valores humanos. Nietzsche aparece como um crítico da moral em nome de uma concepção de vida que teria sido historicamente perdida, diagnosticando os valores do seu tempo como decadentes, todavia, realizando uma defesa até certo ponto abstrata da superação dos valores morais dominantes, sem menção a qualquer forma de embate sócio-histórico e do papel do corpo em intervenções nos estados de coisa, fazendo-nos imaginar que a figura do filósofo seria a de um observador crítico, mas até certo ponto passivo, diante de uma realidade que se desdobra ao seu redor, cabendo apenas um trabalho sobre si.

            Poderíamos nos perguntar, porém, se o trabalho sobre si ou a criação de si poderia se resumir a uma ética ou a um trabalho meramente individual e solitário, já que envolve embates, conflitos, resistência, imposição, acordos, reorganização, desconstrução e reconstrução, sobretudo à medida que os corpos necessitam, nesse processo, “assenhorear-se” de si mesmos, nunca estando, porém, completamente isolados ou desconectados dos outros corpos que compõem o corpo coletivo mais amplo. Ou ainda: já que a moral opera justamente nesse aspecto relacional dos corpos, todavia, no sentido de tornar os vínculos fonte de empobrecimento e padronização – pois faz com que nos tornemos mutuamente vigilantes uns dos outros, culpabilizando qualquer forma de singularização – seria o caso de perguntarmos se esse aspecto relacional não poderia sofrer intervenções e ter o sentido revertido ou ressignificado. Ora, como não podemos nos desvencilhar da moral dominante apenas ignorando tais “relações de dominação” – já que elas estão incrustadas em nossos corpos, formando o que “somos” –, a nosso ver, a criação de si passaria, além de uma atividade estética, também por um esforço de combate com as relações do presente, mas ao mesmo tempo contra ele, em nome do porvir – um combate “extemporâneo”, por assim dizer. Acreditamos que a ética-estética da existência envolve muito mais aspectos políticos do que supomos, a um primeiro olhar.

            Por conseguinte, é preciso lembrar que a criação de si nunca se dá “a partir do nada”, mas é sempre autossuperação de uma situação atual, seguindo a lógica da vontade de poder, e, na produção de uma obra tal como a própria vida, é inevitável encarar algo que resista. Em outras palavras, na criação de si, a matéria-prima nunca é virgem, porém, já um resultado dos processos que se desenrolam no tempo, repleto de sentidos ou restos e rastros de apropriações de outrora, mesmo que estas sejam obscurecidas pela força que se está em vias de assenhorar-se. Nesse sentido, é preciso lidar com algo maior do que o “si”, na produção da vida como obra de arte, pois a tela nunca está em branco, o mármore nunca está sem forma, a natureza nunca está virgem. É preciso livrar-se de algo ou lutar contra imposições, para abrir caminho à produção de si e, mesmo que essas imposições sejam morais, elas nunca são apenas morais, mas também, como estamos tentando argumentar, políticas.

            Assim, seguimos ainda a pista de Miguel Barrenechea, o qual, em seu livro Nietzsche e o corpo, faz surgir uma dimensão política do corpo, à medida que toma algumas das considerações do filósofo alemão acerca da relação corpo e consciência enquanto “metáforas sociopolíticas”, especialmente as relações comando-obediência aludidas anteriormente. Nas palavras de Barrenechea (2009, p. 123):

 

Na estratégia demonstrativa nietzschiana, as metáforas políticas ilustram dois pontos de vista fundamentais na compreensão do fenômeno vital. Em primeiro lugar, a vida é essencialmente luta, pluralidade e estabelecimento de hierarquias. […] Em segundo lugar, a consciência – longe da exaltação da tradição idealista – carece de autonomia.

 

Todavia, o autor sustenta a alusão às relações sociopolíticas como figuras de linguagem próprias ao estilo de Nietzsche, tomando-as como caracterização metafórica das relações que se passam entre o corpo como multiplicidade e a síntese temporária que se operaria na consciência, sem explorar o que se passa “fora” dessa relação corpo-consciência, que seriam as relações entre os corpos que compõem uma coletividade social. A nosso ver, pensamos que essa discussão pode ir além de uma figura de linguagem e esperamos ter argumentado no sentido de que, para além de uma metáfora, a política é o próprio real do corpo, o elemento dinâmico ao qual os corpos estão sempre submetidos, mas no qual eles também podem interferir e transformar[20].

 

Considerações finais

             Insistimos que o pensamento de Nietzsche é indispensável para a compreensão dos impasses contemporâneos sobre o corpo, bem como uma ferramenta de intervenção nos processos discursivos, institucionais e legislativos que aparecem, em geral, como sustentação das mais variadas formas de moralismo e/ou niilismo. Questões, por exemplo, relativas à sexualidade ou às discussões de gênero que supõem um corpo desnaturalizado e sempre em construção, as quais, em seu olhar, ultrapassam a dicotomia história/natureza. Questões sobre o papel das singularidades locais e culturais diante de um discurso hegemônico, tais como problematizadas pelas filosofias decoloniais e pós-coloniais, que convocam as experiências afetivas próprias à corporeidade na produção de epistemologias inclusivas. Questões sobre a idealização e a padronização estética dos corpos, na busca por homogeneização de uma imagem do corpo a serviço do capitalismo, como corpo-mercadoria. Infelizmente, pelos limites deste artigo e para não fugirmos do tema principal, nós nos limitaremos a essas alusões, com a expectativa de desenvolvê-las em outro momento, em artigos subsequentes.

            Todavia, longe de ser uma resposta para os problemas, a filosofia de Nietzsche talvez nos faça multiplicar os problemas, porque nos convoca à suspeita diante de uma realidade aparentemente clara sobre o papel do corpo, em nosso tempo. O filósofo nos mostra, pelo contrário, que ainda vivemos à sombra dos ideais, ainda somos niilistas, contudo, parecemos não querer saber, parecemos evitar a travessia pela escuridão do niilismo, não queremos saber do terrível acontecimento da “morte de Deus”. Sem isso, porém, não conseguimos atravessar a desvalorização dos valores niilistas e sermos capazes de afirmar a dinâmica da vida. E, o pior, ficaremos projetando novos ídolos ou ideais para não ver o vazio que eles tapavam. O corpo talvez seja, atualmente, além de uma máquina e um produto à venda, um ideal que buscamos alcançar. Nesse sentido, nada adianta idolatrar o corpo, se não lutarmos para conquistá-lo – e essa luta é tanto ético-estética quanto política.

            Em síntese, nosso propósito fora o de iluminar outra perspectiva, que aqui chamamos de política, relativa à dimensão intersubjetiva ou relacional do corpo, sempre presente no pensamento de Nietzsche, embora, na maioria das vezes, o filósofo as apresente num sentido pejorativo, sob a forma de “gregariedade”, ou apontando que o “[...] comum sempre terá pouco valor” (2005a, p. 44). Entretanto, entende-se que pouco valor é algo distinto de valor nenhum, e que a gregariedade é tomada em parte como um dado biológico – também compartilhado por outros animais – mas que não é sinônimo de relação ou sociabilidade em geral, e sim de um tipo de relação a ser criticada, tal como aquela reproduzida pela moral dominante. A nosso ver, não é possível dizer que Nietzsche é simplesmente um filósofo individualista, da solidão ou do isolamento, por mais que a heterogeneidade e a singularidade sejam indispensáveis para ele, pois, por um lado, nem toda relação é homogeneizante e, por outro, poderíamos questionar se haveria algo isolado num mundo que é pensado como relações de forças em conflito. O corpo, por exemplo, é uma relação hierárquica e estratificada, no entanto, que só existe enquanto relação. Em outras palavras, se Nietzsche é um filósofo que valoriza o “páthos da distância” (2009, p. 17), do indivíduo singular ou de exceção, é porque, antes, esse indivíduo soube notar em si o quanto de gregariedade o constituíra, isto é, esse indivíduo soube se desvencilhar daquilo que o aprisionava, que estaria, no fim das contas, nele mesmo. Mas, transformando a “si”, o que seria modificado senão a própria relação?

            Certamente, esse desvencilhar-se exige a criação de um caminho próprio, que desemboca num caminho solitário, no sentido de que apenas cada um é quem pode forjar seu caminho. Não obstante, essa solidão é mais povoada do que parece, pois essa escolha do próprio caminho é uma escolha política de resistência à imposição das demandas sociais e, ao mesmo tempo, o desinvestimento de um papel social de vigilância e ressentimento para com os outros – mostrando o quanto uma “escolha individual” ecoa no tecido das relações humanas. Assim, esse mesmo indivíduo de exceção elogiado por Nietzsche não é o “santo” solitário da floresta, com o qual se depara Zaratustra, tão isolado em sua solidão, a ponto de perder de vista o acontecimento mais abissal de todos, o da “morte de Deus” (Nietzsche, 2005a). Pelo contrário, o indivíduo elogiado por Nietzsche é aquele que sabe que o “páthos da distância” não é o do isolamento, aquele que eventualmente retorna ao convívio com o “povo”, por curiosidade ou porque tem algo a oferecer, uma virtude dadivosa que o obriga a permanecer na tensão entre o coletivo e o singular. Mas também porque é aquele que, à imagem de Zaratustra, quer declinar em nome de um além-homem porvir – poderíamos dizer um corpo-porvir –, já que reconhece em si os efeitos de seu tempo e das relações em que está inserido, isto é, as imagens de um corpo decadente.

            Nessa perspectiva, nossa conclusão é, na verdade, a abertura de alguns caminhos, pois pensamos poder apresentar uma linha interpretativa que vincula a política do corpo tanto à discussão sobre a moral, conforme apontamos acima, quanto com outros dois grandes temas do pensamento nietzschiano decorrentes da investigação sobre aquela, que são o niilismo e a transvaloração dos valores, que serão apresentadas aqui em linhas gerais:

            O niilismo como política de esvaziamento do corpo: Sob a ordenação da moral dualista, o Ocidente é marcado por uma história de contínuo desprezo pelo corpo, de maneira mais ou menos velada, seja como lugar da corrupção e do pecado, seja como instrumento a serviço dos ideais, sendo possível mapear nesse movimento uma decadência da potência corporal, mediante uma padronização pela propagação de valores conservadores. É a história do niilismo, cuja lógica é entendida por Nietzsche como a decadénce, isto é, o processo de desintegração e fragmentação de toda ordem autoproduzida ou imanente, em função da necessidade de adaptação a uma demanda externa. O corpo passa a não lutar por sua imanência, mas a desejar uma organização que vem do além. Ele se torna cúmplice do seu enfraquecimento e expressa uma vontade de potência declinante. No contínuo processo de idealização pela negação da diferença, do tempo, da sensibilidade, da morte, o corpo perde seu solo e sua razão, torna-se um trapo desprovido de vitalidade, tendo que se apegar à sua própria negação como estratégia de sobrevivência.

            A transvaloração dos valores como política de singularização do corpo. Para além do bem e do mal, há novamente a política do corpo, não no sentido de um mero pragmatismo do poder – o qual nunca é isento de valores, diga-se de passagem – mas como abertura de um horizonte de criação de valores e da criação de si, por meio de um novo relacionamento consigo mesmo e com a vida. A “transvaloração dos valores” aparece como uma política de resistência diante do niilismo assolador, assim como o resultado constitui um processo de atravessamento do mesmo, onde não apenas os ídolos são destruídos, mas a vontade que os constitui – a qual se apresenta como sintoma de um corpo enfraquecido. É uma luta contra a “vontade de nada”, em nome da criação de novos valores para a vida que se apresenta nessa travessia do niilismo –, de onde se pode retomar a fé no corpo, experimentando suas possibilidades de organização e produção de singularidades.

 

Nietzsche and the politics of the body

 

Abstract: the objective of this paper is, on the one hand, to bring to light the Nietzschean characterization of the body, removing its “naturalness” and objectivity, launching it into the historical becoming of moral (evaluative) disputes, as well as deconstructing its individual unity by bringing the social webs that produce it from the organization of an original multiplicity that, however, continue to stalk the supposed unity consolidated in the “individual” are brought to the surface. Secondly, we would like to draw attention to its political nature, in the sense that this process of organization or unification of that multiplicity does not occur spontaneously, but is governed by disputes, conflicts, impositions, resistance, negotiations, agreements, conspiracies – in short, all sorts of possible articulations that can both give the consistency of these organizations and can put them in checkmate, providing the logic for their future.

 

Keywords: Body. Politics. Nietzsche. Values.

 

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Recebido: 27/02/2024 - Aprovado 01/04/2024 – Publicado: 15/06/2024



[1] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação – Mestrado Profissional – na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, PI – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-9213-2250. E-mail: atila.monteiro@ufpi.edu.br.

[2] Em geral, Nietzsche toma o dualismo como alvo de suas críticas, observando como esse modo de pensar produz uma cisão no mundo, em razão de pré-conceitos não elaborados, mas historicamente refutáveis. “Em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico […] Até o momento, a filosofia metafísica superou essa dificuldade negando a gênese de um a partir do outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da ‘coisa em si’” (2005c, p. 15).

[3] Segundo Miguel Barrenechea (2009, p. 10), “[…] Nietzsche combate principalmente a doutrina platônica, que estabelece a divisão metafísica entre o mundo sensível – ‘imperfeito e falso’ – e o além, mundo suprassensível, ‘perfeito e verdadeiro’. Na concepção platônica, a alma é entendida como uma substância relacionada a esse mundo ideal, o que colocaria o homem em uma posição privilegiada, como algo excepcional no seio da natureza. Neste sentido, a alma, conforme a longínqua tradição dualista, constitui o essencial do homem, enquanto o corpo – subordinado às imperfeições da terra – é considerado uma natureza acidental, um predicado secundário do ser humano.”

[4] “Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente, talvez?… Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!” (Nietzsche, 2006, p. 32).

[5] “A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós” (Nietzsche, 2012a, p. 12).

[6] Conforme bem demonstra Daniel Carvalho (2018), em sua Tese de Doutorado intitulada Nietzsche como filósofo naturalista, o naturalismo de Nietzsche engloba tanto elementos naturais como culturais, bem como uma “concepção processual de realidade” que o colocam num lugar distinto de um cientista ou naturalista em sentido estrito.

[7] Elaborada por Nietzsche como um procedimento de análise e interpretação, a genealogia pode ser tomada como uma poderosa ferramenta de crítica histórico-filosófica, porque permite uma análise de longo alcance e aprofundada das ideias e conceitos que se propõe investigar, buscando compreendê-los em sua radicalidade histórica, enquanto resultados ou expressões de determinadas relações de forças humanas representadas por interesses, valores, inclinações; em suma, como resultados da luta e do conflito provenientes de demandas distintas e inerentes a modos de vida específicos. Essa forma de abordar os problemas filosóficos é, por isso, avessa a quaisquer especulações apriorísticas, essencialistas, dualistas e dogmáticas, as quais revelariam, aos olhos do genealogista, confiança excessiva na racionalidade lógico-discursiva e mesmo um desprezo velado pela historicidade. A genealogia da moral é, portanto, além de uma crítica da moral e dos valores, também uma crítica das ideias e teorias, isto é, do modo de pensar oriundo desses mesmos valores. Segundo Foucault (2017b, p. 55), “[...] daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram”.

[8] Em diversas obras, a partir de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche (2005c, p. 43) destaca a importância da observação psicológica como um dos elementos fundamentais do seu filosofar: “[…] o ressurgimento da observação moral se tornou necessário, e não pode ser poupada à humanidade a visão cruel da mesa de dissecação psicológica e de suas pinças e bisturis. Pois aí comanda a ciência que indaga a origem e a história dos chamados sentimentos morais, e que, ao progredir, tem de expor e resolver os emaranhados problemas sociológicos: – a velha filosofia não conhece em absoluto estes últimos, e com precárias evasivas sempre escapou à investigação sobre a origem e a história dos sentimentos morais”.

[9] “Onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; […] E este segredo a própria vida me contou. ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo’” (Nietzsche, 2005b, p. 109-110, grifos do autor).

[10] Ressalta Nietzsche (2012a, p. 222): “Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas – apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte deles –, é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de ‘consciência’, isto é, ‘saber’ o que lhe faltava, ‘saber’ como se sentia, ‘saber’ o que pensava”.

[11] A gregariedade diz respeito aqui ao que Nietzsche chama também de “povo”, ao “homem médio” de uma sociabilidade homogeneizada, que culpabiliza exceções. Todavia, esse homem da “regra” também é, por outro lado, interessante para o conhecimento: “Aquele que, no trato com os homens, eventualmente não percorre as muitas cores da aflição […] não é certamente um homem de gosto elevado; mas se ele não assume voluntariamente todo esse fardo e desgosto, sempre se esquiva dele e permanece […] quieto e orgulhoso em seu castelo, uma coisa é certa: ele não foi feito, não está predestinado para o conhecimento. Pois se estivesse, teria de dizer a si mesmo algum dia: ‘ao diabo com o bom gosto! A regra é mais interessante que a exceção – que eu, a exceção!’ – e então iria descer, sobretudo ‘entrar’. O estudo do homem médio, estudo sério, prolongado, que exige muita dissimulação, auto-superação, familiaridade, má companhia […]: isto é parte necessária no currículo de todo filósofo [...]” (Nietzsche, 2005, p. 31).

[12] Nesse sentido, Nietzsche sugere em diferentes passagens o caráter fictício do mecanicismo, bem como as possíveis intenções morais nele incluídas, como, por exemplo: “O conceito mecanicista do movimento é já uma tradução do processo original na língua cifrada do olho e do tato. O conceito ‘átomo’, a diferenciação entre uma ‘sede da força propulsora e ela própria’, é uma língua cifrada tomada de nosso mundo lógico-psíquico” (Nietzsche, 2008b, p. 321). Como complemento, outra passagem: “[…] a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; […] os cientistas não fazem outra coisa quando dizem que ‘a força movimenta, a força origina’, e assim por diante […]” (Nietzsche, 2009, p. 33).

[13] “A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor” (Nietzsche, 2005c, p. 20).

[14] Tal como o faz Keith Ansell-Pearson (1997), que analisa de forma mais ampla as reflexões de Nietzsche sobre a política em geral, procurando extrair uma filosofia política de seu pensamento. Não nos contrapomos à interpretação de Ansell-Pearson, que enfatiza as menções explícitas que Nietzsche faz sobre política, todavia, não seguimos seus passos, já que procuramos evidenciar a dimensão política implícita do pensamento de Nietzsche, quando trata da moral e do corpo.

[15] Como se sabe, desde as apropriações nazistas do pensamento de Nietzsche, o tema da política se tornou bastante polêmico e sensível, quando referido à sua obra.

[16] “[…] a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; […] O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas porque ordena. – O que distingue esse sentimento ante a tradição, do sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto superior que manda, ante um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal – há superstição nesse medo” (Nietzsche, 2004, p. 17-18).

[17] “O mais moral é aquele que mais sacrifica ao costume: mas quais são os maiores sacrifícios? De acordo com a resposta a essa pergunta, várias morais diferentes se desenvolvem; a mais importante diferença, no entanto, continua a ser aquela entre a moralidade da mais frequente obediência e a da mais difícil obediência. Não nos enganemos quanto ao motivo da moral que requer, como indício da moralidade, a mais difícil obediência do costume! A autossuperação é exigida não por suas consequências úteis para o indivíduo, mas a fim de que o costume, a tradição apareça vigorando, não obstante toda vantagem e desejo individual: o indivíduo deve sacrificar-se – assim reza a moralidade do costume” (Nietzsche, 2004, p. 18).

[18] Para produzir um ser capaz de fazer promessas, frisa Nietzsche, foi preciso incutir-lhe uma “memória da vontade”, num processo de mnemotécnica por meio da dor e da crueldade, como marcação no corpo que introjeta as demandas do convívio social. Segundo Nietzsche (2009, p. 46), “[...] jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica”.

[19] Por outro lado, é preciso observar também que Nietzsche utiliza algumas imagens para falar do corpo, as quais trazem em seu bojo um sentido político. Assim, o filósofo sugere pensar o corpo como uma “[...] estrutura social de muitas almas” (2005, p. 24), ou a “[...] alma como estrutura social dos impulsos e afetos” (2005, p. 19), sustentando que “[...] em todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer” (2005, p. 24), numa relação de comando e obediência a partir da qual uma hierarquia se produz e uma organização é alcançada. Ou ainda, em Assim Falava Zaratustra, onde afirma o corpo como uma “[...] multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (2005b, p. 35), onde vemos ecoar não apenas a natureza relacional, mas também a conflituosa, aberta, incerta, ao mesmo tempo orientada, organizada, determinada; num espaço onde “todos” participam, já que a multiplicidade só se dá num único sentido, sem o qual ela se dissolveria.

[20] Por outro lado, também contribuem para o fortalecimento ou construção da nossa perspectiva, os desdobramentos do pensamento nietzschiano na contemporaneidade, como em Michel Foucault (2013, 2017a) e suas reflexões sobre o corpo, em Vigiar e Punir e História da Sexualidade, que trata de uma anátomo-política e produção das subjetividades, por meio da disciplina, a qual é compreendida como um uso produtivo e não apenas repressivo das relações de poder – tema fortemente influenciado por Nietzsche; ou ainda as reflexões sobre a “ascese” e a criação de si como confronto ao biopoder, como forma de resistência ao comando social. Também Deleuze e Guattari (2011) em O anti-Édipo – especialmente no capítulo III – onde a Genealogia da Moral de Nietzsche é evocada para pensar as inscrições do socius sobre a produção desejante dos corpos e organização desses fluxos, através da marcação sobre os corpos, da crueldade e da produção de memória. Igualmente os trabalhos de Judith Butler (2017), especialmente em A vida psíquica do poder, fazem alusão a Nietzsche quando discutem os mecanismos de produção dos corpos-subjetividades.