A lógica e os fatos em Wittgenstein

 

Wagner Teles de Oliveira[1]

 

Resumo: O pensamento tardio de Wittgenstein desenvolve uma concepção de certeza que põe a lógica em linha de conta com a experiência. O pensamento e a ação são determinados por uma estrutura lógica construída ao longo do tempo e em interação com os fatos. O contexto dessa forma de entender a lógica é uma concepção prática do significado que possibilita a investigação filosófica sobre a certeza e os conceitos da psicologia. A regras gramaticais (lógicas) que presidem os jogos de linguagem constituem a unidade da experiência, por isso, a experiência só pode ser compreendida como um elemento interno aos jogos de linguagem, jamais como uma causa dos conceitos, exterior aos jogos de linguagem. Neste artigo, analisa-se a concepção de necessidade lógica nesse contexto conceitual e as razões que sustentam o caráter lógico da reflexão filosófica de Wittgenstein, em especial, nos textos sobre a certeza e a gramática da psicologia.

 

Palavras-Chave: Lógica. Certeza. Filosofia da Psicologia. Fatos. Experiência.

 

Introdução

As observações gramaticais de Wittgenstein acerca das palavras e conceitos da psicologia não consistem em considerações psicológicas sobre as condições que tornam possível que as sensações sejam lançadas para fora do espírito; do mesmo modo, as observações sobre a certeza não compreendem um apanhado psicológico das situações, nas quais a segurança a respeito do que se passa no mundo à volta do sujeito se mostra indubitável. Pelo menos do ponto de vista do próprio Wittgenstein (1972, § 447), deve ser um ponto pacífico o pertencimento de suas observações ao domínio da lógica: “Minha observação não é psicológica, mas lógica.” A investigação filosófica, assim, não se volta a considerações a respeito de estados mentais, com o propósito de desvendar os processos empíricos que os engendram; como também os diferentes graus de certeza não são remontados à diversidade de estados mentais eventualmente correlatos.

É bem o caso de combater uma determinada forma de entender a certeza como articulada em um cenário mental, a partir do qual se passaria a atribuir necessidade ao pensamento e às ações. Os efeitos dessa noção de certeza são, quando menos, tão indesejáveis quanto conceber o significado das palavras para estados mentais como determinado por caracteres de posse exclusiva de um sujeito. É inequívoca a vinculação entre a recusa àquela maneira de entender a certeza ou a essa concepção de significado e a atribuição do caráter lógico, feita por Wittgenstein, às suas observações sobre a certeza e a gramática da psicologia. Todavia, não parece ser possível inferir imediatamente disso o sentido e o alcance de serem lógicas suas observações, e não de qualquer outra natureza. Tudo leva a crer que o caráter lógico da investigação significa que o seu alvo não são as relações empíricas que poderiam muito bem estar envolvidas na ligação de uma palavra a um determinado estado mental, mas a possibilidade de um critério capaz de discernir, dentre os usos da palavra, quais os significativos. Com isso, trata-se de uma investigação não essencialista da essência do anímico, o que quer dizer que a investigação tem natureza gramatical. Se for mesmo assim, então, o caráter lógico das observações significa que elas miram os critérios e as regras, ambos de natureza lógica, os quais presidem o uso das palavras e, portanto, segundo os quais discriminamos o correto do incorreto. Afinal, se a natureza do que se investiga não é um espelho fiel da natureza da investigação, a natureza da investigação, por outro lado, é relativa ao objeto investigado.

Em sendo assim, a afirmação de que a lógica lida com o observável, feita por Wittgenstein, seria suficiente para inferir que os critérios e as regras de determinação do sentido, dos quais a investigação se ocupa, não podem senão ser exteriores (Wittgenstein, 2000b, p. 133). Afinal de contas, são dessas regras e critérios que a análise lógica se ocupa.[2] Não é por outra razão que Wittgenstein nega que a pergunta sobre os critérios seja psicológica (Wittgenstein 2007b, § 139). Os critérios que presidem o uso das palavras funcionam de maneira semelhante às determinações conceituais que permitem um químico saber que um átomo de sódio está num determinado lugar da estrutura. Nesse caso, tal como se passa quando da aplicação de um critério, não se trata de uma determinação empírica, como se um tal saber pudesse coincidir unicamente com o próprio dado da percepção, tomado como critério. Pelas mesmas razões, não pode se tratar de uma determinação de natureza psicológica.

A recusa de Wittgenstein a caracterizar as suas observações como de natureza psicológica tem o sentido de situar o interesse da investigação como voltado para as razões conceituais que determinam a expressão dos estados psíquicos, pouco lhe importando, nesse sentido, as suas causas ou os processos empíricos de que eles são construídos. Muito embora não haja qualquer obstáculo para compreender que caracteriza, no essencial, uma filosofia menos aquilo ao que ela tende ou que estaria pronta a aceitar do que aquilo ao que ela resiste, essa recusa, por si só, não parece ser suficiente para esclarecer o significado da afirmação de Wittgenstein sobre o caráter lógico de suas observações. Por outro lado, nada mais claro que processos empíricos constituam alvo de uma investigação psicológica, e não da lógica, à qual interessaria o lugar dos conceitos na gramática que torna exprimíveis os estados psíquicos.

É comum aos textos sobre a certeza e sobre a filosofia da psicologia a ideia de que uma estrutura constituída por fatos (ein Gerüst von Tatsächlichem) funciona à maneira de um quadro de referência e, por isso, condiciona a ação e o pensamento (Wittgenstein, 1998b, § 190). Essa perspectiva tem amplos efeitos no modo de Wittgenstein entender a necessidade lógica, a qual só pode ser instituída ao longo do tempo e em meio aos fatos que deve determinar. E, pelo menos à primeira vista, é essa forma peculiar de entender a necessidade lógica que provoca a interrogação a respeito da natureza de suas observações gramaticais, conduzindo-o a reiterar o seu caráter lógico. Com isso, afirma-se também a natureza lógica da necessidade. A dificuldade é compreender como a necessidade lógica pode ser concebida desse modo, ou melhor, como fatos podem exercer a função, se é que exercem, de determinantes lógicos e, com efeito, o sentido de terem natureza lógica as observações sobre a certeza e a gramática da psicologia. Exploraremos, assim, as razões, que reputamos as mais importantes, tanto para Wittgenstein sustentar essa concepção de necessidade lógica quanto para afirmar o caráter lógico de suas observações.

 

1 Uma investigação lógica

            O que porventura poderia ter de psicológica uma investigação filosófica acerca da gramática que torna possível a expressão de fenômenos psicológicos? Para Wittgenstein (2007c, § 792), uma investigação sobre as determinações lógicas do exercício da subjetividade é tão psicológica quanto uma investigação sobre os conceitos matemáticos, a qual, na melhor das hipóteses, mereceria o título de “fundamentos da matemática”. Uma investigação filosófica da psicologia é tão possível quanto uma tal investigação sobre a matemática. Assim como não se calcula, numa investigação dessa espécie sobre a matemática, em se tratando da psicologia, essa investigação não tem a pretensão de descortinar para nós as causas e processos que engendram estados mentais.

            A investigação filosófica da psicologia tem em vista o que Wittgenstein (2007d, § 22) chama de “leis de evidência do anímico”. A análise de tais leis da evidência é exatamente aquela por meio da qual se pode atingir a essência do anímico. E não é algo que possa ser apresentado de uma vez por todas e a um só golpe. Trata-se, isto sim, de atingir a essência por meio da descrição, um a um, dos seus traços conceituais. Tal descrição consiste em explicitar o enlaçamento lógico entre o interior e o exterior, fazendo ver que suas conexões, na verdade, remontam a regras que possibilitam que os estados mentais tenham lugar em caracteres exteriores. Com isso, pretende-se não simplesmente negar que a conexão entre exterior e interior seja de natureza empírica, porém, de afirmar que, antes de tudo, ela é de natureza lógica. Mais do que isso, que, se a conexão entre o interior e o exterior pode ser abordada experimentalmente, isso não impede que seja objeto de uma exploração lógica, a qual se distingue de uma abordagem psicológica, na mesma medida em que os traços que permitem compreender a essência do anímico não se confundem com propriedades empíricas que poderiam simplesmente não passar de características acidentais, não se deixando captar pelos sentidos (Wittgenstein, 2007d, §§ 23-4). Isso não quer dizer que fenômenos sensoriais sejam redutíveis ao uso de palavras, muito embora a compreensão desses fenômenos esteja identificada com o que se pode chamar de “ação comunicativa intersubjetiva” (Peruzzo Jr., 2015, p. 208).

A essência é prontamente identificada por Wittgenstein com os conceitos que possibilitam a expressão do fenômeno psicológico correlato. Já que um conceito ganha corpo nos usos do nome para o objeto, então, ele não pode ser identificado com nenhuma das características do próprio objeto, como se o enfeixamento delas pudesse corresponder ao conceito do objeto, à sua essência. Aqui, a separação feita por Wittgenstein entre as propriedades do objeto e a sua essência quer dizer que interior e exterior não podem ser compreendidos como nomes que remetem a realidades distintas. E é bastante característico que, a propósito de tratar da “essência do anímico”, Wittgenstein empregue o exemplo de um objeto físico, um tinteiro. Não apresentamos o conceito de “tinteiro”, frisa ele, repassando o tinteiro às mãos de alguém (Wittgenstein, 2007d, § 24) Isso poderia ser feito, como também se poderia enumerar todas as propriedades de um objeto, porém, não se depreende o conceito disso. Ao contrário, esse gesto supõe terem já sido estabelecidas as condições de uso do conceito, ou seja, “[...] pressupõe um certo jogo entre nós” (Wittgenstein, 2007d, § 25).

 A diferença entre interior e exterior é conceitual. Como tal, reflete-se no uso das palavras que fazem remissão a um e a outro domínio, evidenciando que os conceitos psicológicos se encontram fundamente enraizados em contextos ordinárias de nossa vida, de cuja referência eles não podem se furtar. Não é sem razão que uma das principais dificuldades concernidas pela perspectiva metafísica sobre o anímico compreenda os estados psíquicos à maneira de objetos para os quais não nos falta um nome e cujo conceito pode ser captado na mesma medida em que a ligação nome-objeto é explicitada, tendo sido compreendida a existência do objeto como a fonte da significação. A enunciação da ordem “Vá para casa!”, por exemplo, pressupõe a existência de uma casa e o saber de quem ordena a esse respeito. No entanto, caso alguém ordene “Vá para esta casa” numa situação na qual não haja de fato uma casa, reagiríamos com algo como “Ele crê que há uma casa ali”, mas nem por isso nossa reação passaria a ser menos correta se, de fato, houvesse uma casa ali (Wittgenstein, 2007b, §§ 325-328). É porque as coisas se passam assim que Wittgenstein está em condições de afirmar que, para ele, o anímico é um adjetivo lógico, e não um epíteto metafísico (Wittgenstein, 2007d, § 16). Essa afirmação faz preponderar laços internos à gramática sobre aspectos exteriores, a precedência lógica das razões sobre as causas.

O caráter especialmente lógico do anímico é efeito da complexidade singular dos conceitos psicológicos. É verdade também que, diferentemente dos conceitos da física ou da química, que não passam do resultado de manipulação simbólica das ciências às quais pertencem, os conceitos psicológicos refletem o entrecruzamento entre situações ordinárias de uso e componentes lógicos, de modo que se encontram enraizados em nossa vida. Os sinais exteriores nos quais o anímico tem a sua expressão pertencem a um emaranhado de conceitos que, relacionados tanto a matizes de comportamentos quanto a diversas situações da vida ordinária, refletem modelos, segundo os quais compreendemos as situações de seu emprego e, por conseguinte, o comportamento alheio (Wittgenstein, 2007b, §§ 316-368).

Graças à aplicação desses modelos, somos capazes de discriminar a dissimulação das situações nas quais não teria sentido sequer suspeitar de sua ocorrência, o que quer dizer que eles instauram uma espécie de objetividade no domínio das expressões psicológicas. Contra a ideia de que a possibilidade de dissimulação neutralizaria a perspectiva, segundo a qual a evidência a respeito da manifestação do anímico se vincula a sinais exteriores, tendo concebido os conceitos psicológicos como dispostos dessa maneira, Wittgenstein pode dizer que também a dissimulação tem sinais exteriores. Caso contrário, não seria sequer possível falar em dissimulação. Desse modo, se alguém tem dores ou está simplesmente a fingir, os sinais exteriores exprimem, tanto numa situação quanto na outra, tanto a dor quanto o fingimento de dor. Imersos e comprometidos com o curso da experiência de uso ordinário das palavras, os conceitos psicológicos, do ponto de vista de Wittgenstein (1998b, §§ 60-63), estão para os das ciências como os conceitos da medicina estariam em relação aos conceitos das velhas mulheres, que se dedicam ao cuidado de enfermos. A consequência mais geral disso é que o esclarecimento dos conceitos psicológicos pode ser feito apenas na medida em que eles forem confrontados com situações de uso, sendo possível, somente assim, compreender corretamente a trama na qual eles são tecidos.

Os conceitos da psicologia estão mais fundamente enraizados em contextos ordinários de nossa vida do que os conceitos das ciências. Não parece ser diferente disso o que Wittgenstein pretende dizer, ao afirmar que os conceitos da psicologia são cotidianos, ao contrário dos conceitos da física e da química. Todavia, o caráter lógico desses conceitos, por certo, não é proveniente dessa característica peculiar. Não se pode perder de vista que o anímico ser lógico compreende, antes de tudo, uma escolha metodológica de Wittgenstein. Ao estabelecer a afirmação de que o anímico é um epíteto lógico, como uma espécie de palavra de ordem de suas observações sobre os conceitos da psicologia, Wittgenstein não simplesmente a enuncia, mas a faz ser seguida de “para mim”[3] (Wittgenstein, 2007d, § 16). Além disso, o caráter lógico do anímico relaciona-se, como é natural, com a maneira de Wittgenstein entender filosoficamente as formas que estruturam a linguagem, permitindo a construção de expressões significativas sobre um domínio que aparentemente não se deixaria exprimir.

O caráter lógico do anímico não se desdobra naturalmente do próprio anímico. Não pode, por conseguinte, simplesmente ser compreendido como uma derivação da complexidade em que os conceitos que o exprimem se enredam. A esse respeito, é importante reiterar que a afirmação de Wittgenstein de que o anímico não é para ele “um epíteto metafísico, mas lógico” trata de caracterizar um objeto de investigação filosófica. Não é sem razão que, nas páginas que se seguem dessa afirmação, no MS 173, Wittgenstein dirá que o que lhe interessa são as leis da evidência que tornam possível a expressão dos variados estados psíquicos.

“Se investigo as leis de evidência do anímico, investigo a essência do anímico”. Isto é verdade?

Sim. A essência não é algo que possa ser mostrado, só pode ser descrito nos seus traços (Wittgenstein, 2007d, §§ 22-23).

 

Nesse caso, é mesmo como se afirmasse que o que lhe interessa são as regras lógicas, de cujo exercício depende a expressão do anímico, ou a gramática segundo a qual os estados mentais podem ser ditos, e não propriamente tais estados. Com isso, está realçando, em outras palavras, que a sua investigação é lógica, não psicológica. Por essa perspectiva, o anímico compreende um exemplo privilegiado de que a lógica não precisa pressupor que tudo o que pode ser dito seja dito a respeito de algo, de cuja ligação com as palavras dependeria a significação do que é dito. Nessa medida, a complexidade dos conceitos psicológicos é razão suficiente para Wittgenstein preferi-los, quando se trata de desenvolver uma narrativa da origem da necessidade, da qual parece resultar uma considerável ampliação do campo do sentido. Aliás, as expressões psicológicas, que seja possível situá-las no campo do sentido compreende por si mesmo a ampliação do campo do sentido, pois são um bom exemplo de expressão linguística que não se inscreve na categoria de enunciado declarativo.

            A análise dos conceitos psicológicos compreende uma investigação não essencialista da essência do anímico. Embora pretenda descrever os traços característicos das determinações lógicas do anímico, a investigação não deixa de conceber os limites das categorias conceituais como relativamente fluidos, de modo a não pretender a fixação dos conceitos a determinadas categorias segundo notas características essenciais. A fluidez dos limites é, sobretudo, resultado do entrecruzamento entre as categorias e o quanto elas se manifestam vagas, em algumas situações (Wittgenstein, 2007b, § 319).

            A indeterminação experimentada pelos conceitos favorece uma perspectiva não essencialista, mas a vagueza tem limites. Ela não é uma exclusividade dos conceitos da psicologia. Por essa razão, não necessitamos do conceito de “anímico” para justificar o caráter indeterminado de certos juízos ou expressões. Ao invés disso, a indeterminação é imprescindível à explicação do uso dos conceitos psicológicos. Não se trata de uma ameaça com força suficiente para fazer ruir a objetividade dos critérios que regem o emprego dos conceitos e sem a qual a expressão dos estados psíquicos não seria possível. A vagueza, na verdade, diz respeito ao fato de modelos lógicos, que determinam a margem de manobra do uso, refletirem os movimentos dos jogos de linguagem nos quais os conceitos têm lugar. Com efeito, a necessidade das regras de determinação do significado materializa-se no concurso entre uma certa margem de liberdade e a determinação lógica, o que significa que não se trata de pontos de determinação que doam sentido ao pensamento e às ações, todavia, de determinantes cuja necessidade é fixada pelos próprios atos de pensamento e pelas ações.

Ao tomar a essência do anímico como alvo, a investigação filosófica de Wittgenstein, por isso mesmo, tem em vista a identificação da origem da necessidade lógica. Os conceitos são constituídos de forma pragmática, o que não permite a fixação de essências à revelia das práticas de uso, de sorte não ser possível, também, separar o contingente do necessário conforme um procedimento essencialista. A esse respeito, a investigação caracteriza-se por uma dupla recusa: (1) a necessidade lógica não remonta ao domínio mental; (2) tampouco ela consiste na generalização de situações empíricas. Essa maneira de entender a necessidade lógica reflete tanto que as regras são justificadas pela própria forma como ordinariamente pensamos e agimos quanto a ideia de que nossos juízos e ações são determinados pelo exercício de uma estrutura de fatos, à qual se submetem o pensamento e a ação. No primeiro caso, compreende-se a ausência de limites entre atividades simbólicas e não simbólicas concernidas nas práticas de elaboração de juízos. No último, está em questão a ideia de que partes do mundo são assimiladas pelo exercício dos jogos de linguagem e passam à condição de modelos lógicos da significação.

A necessidade lógica nada tem de etéreo. Essa maneira de, por assim dizer, contar a história da necessidade é acompanhada por uma concepção prática do sentido. Tanto uma como outra são apresentadas e desenvolvidas por Wittgenstein, nos textos sobre a certeza e sobre a filosofia da psicologia, e é por essa razão que eles encerram uma narrativa do modo como a necessidade é instituída. Um dos aspectos mais importantes dessa narrativa é a ampliação do campo do sentido, a qual encontra na noção de “certeza” como uma questão prática uma das suas principais expressões. A questão, portanto, passa a ser como compreender as implicações quer da concepção de necessidade, quer da concepção prática do sentido, as quais, à primeira vista, parecem tornar a lógica algo absurdo, pois em linha de conta com fatos. 

 

2 A estrutura lógica da realidade

            A ideia de que uma estrutura factual orienta o pensamento e as ações é comum aos textos sobre a certeza e sobre a filosofia da psicologia. É verdade que apenas nos textos selecionados para edição em Über Gewissheit tal estrutura ganha o nome de imagem de mundo.[4] Entretanto, no que tem de essencial, a concepção de que uma estrutura de fatos funciona como o horizonte das práticas judicativas e, de maneira geral, das ações, encontra-se igualmente nos textos sobre filosofia da psicologia. Trata-se de compreender que fatos gerais da natureza pertencem à estrutura, a qual tem a força de condicionar o modo como agimos e julgamos. De tão gerais, esses fatos não são objeto de pensamento nem de juízos (Wittgenstein, 1998b, §§ 190-192). Com isso, Wittgenstein põe em cena a ideia de que os conceitos têm uma história cujo curso determina a margem de manobra de seu uso. Por essa perspectiva, tudo se passa como se a estrutura, segundo a qual os fatos podem ser pensados e o mundo pode ser dito, fosse constituída por fatos mundanos. Além do mais, está em questão também a ideia de que as atividades simbólicas e não simbólicas, constitutivas dos jogos de linguagem, dependem de elementos empíricos. Assim, por exemplo, não seria possível aprender a contar, se todos os objetos à nossa volta estivessem, a todo instante, a surgir e a desaparecer (Wittgenstein, 1998b, § 191).

            A estrutura de fatos (da realidade) à qual devem se submeter a formulação de juízos e as ações não pode, no contexto da concepção prática do significado, ser concebida como situada no nível do sublime, como se fosse constituída por pontos absolutos dos quais aqueles mesmos juízos e ações ora se distanciam, ora se aproximam. Afinal, essa estrutura de fatos não pode se furtar dos efeitos dos movimentos que ela própria determina, na medida em que é construída em interação com os fatos e com os jogos de linguagem contingentemente jogados por quem quer que domine a linguagem. Um andaime (Gerüst), afinal, caracteriza-se tanto pela provisoriedade quanto pela mobilidade, o que possibilita rearranjos. Com isso, a questão passa a ser como tal estrutura pode preservar-se autônoma em relação aos fatos, se ela própria não poderia ter sido constituída sem que interagisse com os fatos. A força de determinação de tal estrutura factual reflete exatamente a sua autonomia em relação aos fatos.

            A esse respeito, Bouveresse (1987, p. 593) afirma que alguns fatos poderiam muito bem tornar nossos jogos de linguagem impossíveis ou desinteressantes, contudo, nenhum dos fatos, cuja constatação ou menção estão ao nosso alcance, os tornou necessários. A consequência mais imediata disso é que, caso as coisas não funcionassem como funcionam, certamente nossos conceitos seriam diferentes, mas isso não quer dizer que uma alteração na maneira como as coisas funcionam seja a causa necessária da mudança dos conceitos. Determinados fatos tornariam alguns jogos de linguagem impossíveis, por desmanchar suas linhas de contorno, fazendo-nos talvez rearranjar a posição das tábuas do andaime factual, que condiciona os movimentos no interior deles (Wittgenstein, 1972, §§ 60-65).

Pelo menos à primeira vista, entretanto, a possibilidade de determinados fatos desintegrarem a estrutura na qual se baseiam os jogos de linguagem é de natureza lógica e, por isso mesmo, diante de um fato que não encontre lugar no conjunto de coisas que aprendemos a considerar normais, não estaríamos confrontados com a causa necessária da qual o redesenho da estrutura seria um claro e incontornável efeito. Não é diferente disso o que Wittgenstein (1972, § 619-620) parece afirmar, ao enfatizar que, caso fatos inusitados ocorressem, poderíamos alterar o conceito de indução, como também tudo poderia continuar como está, e continuaríamos a fazer inferências, tal como anteriormente. O que Wittgenstein recusa, com isso, é a afirmação de uma conexão causal entre conceitos e fatos. Afinal, ele próprio dirá que, se imaginarmos fatos bem diferentes dos que habitualmente nos cercam, o resultado inevitável disso seria que conceitos, com os quais não estamos habituados, passariam a parecer familiares ou naturais (Wittgenstein, 1998a, § 1311).

            O possível é logicamente determinado. A razão de Wittgenstein recusar haver uma conexão causal entre fatos e conceitos é a compreensão de que a possibilidade de alteração do mapa de conceitos só pode ser lógica. Fatos não tornam jogos impossíveis nem necessários, em virtude de a relação entre eles e conceitos ser causal. A relação entre a regularidade nas ocorrências dos fatos e os conceitos não seria possível, se não houvesse uma regularidade de natureza lógica, o que significa que não há problema algum em conceber que determinada regularidade torna possível um ou outro conceito, desde que “possível” seja entendido como “logicamente possível”[5] (Wittgenstein, 1972, § 618). Determinados fatos poderiam tornar certos jogos impossíveis, embora não sejam capazes de torná-los necessários, o que quer dizer que os jogos não são constituídos por causa dos fatos, bem como a ocorrência desses mesmos fatos poderia se passar como se nada tivesse acontecido. As coisas são assim, porque que a possibilidade dos jogos esteja na dependência dos fatos não torna uma tal possibilidade, ela própria, factual. Além disso, como assinala Donat (2022, p. 21), com razão, trata-se de compreender a experiência como um dos elementos constitutivos do jogo de linguagem, não como “[...] algo de fora da linguagem que dá a ela, de forma causal, o seu significado”.

Não há nada de paradoxal na autonomia do andaime constituído por fatos em relação à realidade. O papel desempenhado por ele não seria possível na ausência dessa autonomia. A margem de manobra que permite a afirmação dessa autonomia parece estar diretamente relacionada à maneira caracteristicamente arbitrária como determinados fatos são assimilados por esse andaime e convertidos em elementos constitutivos do constrangimento que ele é capaz de exercer sobre juízos e ações. Arbitrariamente estabelecidos como condicionais, os fatos que constituem a estrutura que condiciona o uso de nossas palavras e conceitos podem muito bem, arbitrariamente, continuar a limitar o uso que fazemos das palavras e conceitos.

A dificuldade é compreender como elementos empíricos poderiam interferir na delimitação do sentido de ações e conceitos, mesmo porque é exatamente na medida em que os limites do sentido não se estabelecem à revelia da experiência que o aprendizado de determinadas técnicas, de cujo domínio depende a elaboração simbólica e a ação envolvidas no uso da linguagem, não seria possível, caso a normalidade não tivesse um forte acento normativo. Além disso, é difícil compreender como essa estrutura factual pode manter-se autônoma com respeito a elementos exteriores à linguagem dos quais ela própria se constitui. Esse gênero de dificuldade resulta do que nos parece ser um dos principais desafios da filosofia tardia de Wittgenstein: sustentar a autonomia da lógica em relação aos fatos em um contexto no qual não tem lugar a ideia de que a necessidade das regras do sentido seja determinada pela forma essencial que o mundo e o pensamento partilham; aos invés disso, a necessidade passa a ser concebida como relativa ao exercício de regras arbitrariamente instituídas e que refletem os compromissos, intenções e propósitos orientadores dos jogos de linguagem.

 

3 Sistema de referência

Contra a lógica sublime do Tractatus e seu compromisso com essências, entra em cena a elasticidade característica da aplicação dos conceitos. Contra a ideia de que a análise lógica deve fazer remontar ao pensamento como fonte de todo sentido, a gramática do uso das palavras (Moreno, 2007, p. 113). As regras, às quais se subordinam as ações e o pensamento, não passam de regras elaboradas a partir da incorporação de elementos do mundo exterior. A autonomia da lógica, nesse contexto, significa, antes de mais nada, que, pelas mesmas razões que a existência de unidades de medida é condição sem a qual não seria possível formular juízos de medição verdadeiros ou falsos de maneira inteligível, amostras usadas como modelos funcionam como instrumentos linguísticos, sem os quais não é possível elaborar juízos verdadeiros ou falsos que incorporem termos, cuja definição seja feita por referência a tais amostras (Ammereller, 2001, p. 74).

Com efeito, a dúvida a respeito da cor de um objeto só é possível se precedida pela capacidade de discriminar cores e, portanto, formar um juízo a respeito da cor do objeto em questão. Por essa razão, o desafio concernido pela noção de autonomia da lógica relaciona-se diretamente com a concepção segundo a qual os critérios de aplicação das palavras não são um mero espelho da relação entre linguagem e mundo, nem conformam uma estrutura a priori, mas, pelo contrário, têm como medida as próprias práticas de uso. E, já que têm origem nas próprias práticas, os critérios não se estabelecem como divorciados de componentes factuais com os quais as práticas interagem tomando como referência.

Por essa perspectiva, os pontos de determinação do sentido de uma expressão linguística qualquer remontam à maneira como essa mesma expressão é regularmente usada, de tal modo que o aspecto mais decisivo, no que respeita à correção da aplicação de uma palavra, passa a ser a conformidade com as práticas de seu uso (Stroud, 2015, p. 316). Compreender uma linguagem só pode mesmo significar, assim, o domínio de um conjunto de técnicas imprescindíveis ao ato de elaborar juízos de acordo com uma estrutura factual, cujo reflexo pode ser reconhecido na maneira como juízos são elaborados, o que é o mesmo que dizer que ser o domínio de um conjunto de técnicas significa que o domínio de uma linguagem envolve a capacidade de agir e responder simbólica e não simbolicamente da forma prevista na estrutura que condiciona nossas ações, juízos e reações.

Tudo se passa como se o domínio de uma linguagem encerrasse a capacidade de desempenhar aquele conjunto de atividades e reações que não seria possível, sem os instrumentos dos quais a linguagem é constituída. A ação recíproca dos instrumentos lógicos que marcam o funcionamento da linguagem com o universo contingente, ao qual eles se aplicam, envolve compreender que os limites da significação lógica não possuem um desenho definitivo. Que uma estrutura factual estipule o uso das palavras quer dizer, por conseguinte, que o núcleo de significação limita os usos que podemos fazer dos conceitos sem fechar-se à possibilidade de novos usos, porque o sistema de referência no qual consistiria essa estrutural factual se estabelece pela interação entre regras lógicas e elementos empíricos. O principal efeito disso é que a multiplicidade lógica, característica do domínio de significação de uma palavra, não estaria imune aos efeitos das práticas de seu uso. As regras determinam o que consideramos como correto no futuro, porém, o futuro não pode ser concebido como um mero desenvolvimento da regra, mesmo porque, caso o futuro fosse um desenvolvimento da regra, seria então inteiramente previsível, no sentido de que todos os usos possíveis de uma palavra poderiam ser determinados previamente à sua aplicação e, portanto, com atenção unicamente às regras a partir das quais é possível discriminar os usos corretos dos incorretos.

O sistema de referência contra o qual agimos e julgamos não poderia constituir-se à revelia dos nossos juízos e atos. Uma das consequências dessa maneira de conceber a necessidade e as regras de cujo exercício depende a delimitação do sentido do discurso e das ações é a ideia de que a verdade de proposições empíricas pertence ao campo de determinação do sentido [6] (Wittgenstein, 1972, § 83). Um tal sistema estabelece um pano de fundo a partir do qual é possível discernir o verdadeiro do falso, o que quer dizer que ele funciona como a fonte de sentido de nossas proposições e de nossas ações (Wittgenstein, 1972, § 94). No entanto, mais do que refletir um acordo sobre definições, que funcionam como instrumentos sem os quais não seria possível formular juízos de forma inteligível, um tal quadro de referência, do ponto de vista de Wittgenstein, deve envolver um acordo em torno de certos juízos.[7] Não é o caso, porém, de compreender a certeza essencial ao funcionamento da linguagem como consistindo no fato de determinados juízos serem certamente verdadeiros, todavia, de compreender que a suspeita acerca da verdade de determinados juízos é, no mínimo, sinal de incapacidade de formar juízos e de agir inteligivelmente. Afinal, se o quadro de referência é capaz de fornecer critérios segundo os quais distinguimos o verdadeiro do falso, é também porque ele é a fonte de inteligibilidade de nossas ações e juízos.

A ideia de que a verdade de proposições pertence a esse sistema de referência parece tornar inevitável concluir que o acordo do qual ele é o reflexo não se limitaria a determinar as condições de sentido do discurso e das ações, determinando também o que é verdadeiro ou falso. Parece ser essa consequência que inspira a suspeita a propósito da autonomia da lógica em relação aos fatos. A ameaça à autonomia da lógica, nesse caso, traduz-se na acusação de que uma tal perspectiva tornaria toda a lógica um absurdo. Essa acusação, como já sabemos, tem lugar na concepção segundo a qual o sentido se constitui em interação com componentes empíricos. E o problema que abriria o flanco para esse tipo de objeção é da mesma natureza daquele que está em jogo na consideração de que não seria possível aprender a contar, se todos os objetos ao nosso redor estivessem surgindo e desaparecendo a todo instante.

Pretender que Wittgenstein esteja reduzindo a lógica a algo absurdo é um modo de compreender que ele esteja a confundir o normativo com o factual. Curiosamente, é como se se pretendesse que Wittgenstein incorresse na confusão que ele próprio afirma ser característica da metafísica: a confusão entre o domínio do conceito e o domínio dos fatos (Wittgenstein, 1998a, § 1616). E não é outra a confusão que parece estar em jogo, na explicitação de razões como reduzida à explicação causal. A redução do normativo ao factual tem como consequência a heteronomia da lógica em relação aos fatos, e não é outra a questão que está em jogo na recusa da explicitação de razões como reduzida à explicação causal (Chauviré, 2007, p. 145-146).

O modo de Wittgenstein conceber as regras de uso das palavras funda a autonomia da lógica no comércio entre elementos normativos e componentes empíricos, pois ele as concebe não à maneira de uma majestade que governaria o uso das palavras à distância, mas como uma autoridade cujo governo não coincidiria com o exercício da força. Assim, as regras de uso das palavras, que a estrutura factual encerra, logram moldar ações e juízos muito mais por uma espécie de constrangimento, o que quer dizer que está envolvida na aplicação, sendo exatamente essa interação que garante a sua autonomia. Não nos parece ser outro o sentido da afirmação de Wittgenstein (1972, § 152):

Não aprendo explicitamente as proposições que são pacíficas para mim. Posso encontrá-las depois como o eixo de rotação de um corpo giratório. Esse eixo não é fixo no sentido de que se mantém firme, mas é o movimento em torno dele que determina a sua imobilidade.

 

Aquelas proposições de que se constitui o sistema de referência formam um eixo cujo movimento ao redor determina como imóvel. Por isso, as regras não poderiam determinar os casos possíveis, à revelia de sua interação com elementos empíricos envolvidos no domínio de sua aplicação.

 

4 Autonomia da lógica

Um dos principais sinais da autonomia dos elementos normativos consiste no seu caráter irrefletido, o que significa que esses elementos não jogam o jogo da verdade. Assim, esses elementos podem orientar a relação entre linguagem, realidade e pensamento, em virtude de a dinâmica dos jogos tê-los situado num lugar onde eles passam a funcionar como condição operatória de todo pensamento e linguagem. E é exatamente por exercerem essa função que esses elementos normativos devem ser assimilados de maneira irrefletida, e o uso dos conceitos cujo significado eles condicionam se situa em um plano no qual esses elementos não são objeto de pensamento. O caráter irrefletido do aprendizado de tais elementos, então, associa-se diretamente ao papel que esses mesmos elementos exercem nos jogos de linguagem. A atuação desses elementos consiste na constituição do sistema de referência que torna possível o sentido de nossos juízos e atos.

O sistema de referência não é constituído simplesmente por resíduos culturais, muito embora Wittgenstein considere que ele se materializa em gestos e palavras cuja forma de articulação simplesmente herdamos da tradição. O quadro de referência em confronto com o qual nossas ações e expressões passam a ter um sentido é, antes de mais nada, de natureza lógica ou, mais do que isso, o que nele interessa à análise filosófica coincide exatamente com o que ele tem de determinação lógica do sentido. Em perfeita sintonia com esse espírito e sem fazer qualquer mistério, Wittgenstein pode afirmar, pois, que o acordo que funciona como fonte do sentido de nossos juízos e ações não corresponde, evidentemente, a um acerto sobre o que é verdadeiro ou falso. O que dizemos, isto sim, é verdadeiro ou falso, e nada advoga contra o fato de ser possível haver divergência no plano das opiniões. Afinal, o acordo a partir do qual o verdadeiro e o falso são discernidos não é um acordo de opiniões, mas de formas de vida (Wittgenstein, 2009, § 241). Numa palavra, isso quer dizer que se trata de um acordo logicamente anteposto à elaboração de opiniões sobre o que quer que seja, um sistema no qual conclusões e premissas encontram apoio mútuo[8] (Wittgenstein, 1972, § 142).

O domínio da linguagem é marcado pelo aprendizado das coisas, antes de tudo, como uma norma. Nada mais do que efeito do quanto o domínio da linguagem compreende a apreensão de modos de pensar partilhados por todos os amestrados numa gramática. A introdução em uma linguagem não poderia, com efeito, prescindir da assimilação dos elementos normativos sem os quais os jogos não podem ser jogados, na mesma medida em que ela deve ocorrer sem contar com o pensamento. Concebida a linguagem como o resultado do desenvolvimento de formas de vida, passar a dominá-la compreende submeter-se à tradição da qual ela é a expressão. A noção de certeza é pensada por Wittgenstein no contexto dessa forma de entender a linguagem. Por essa razão, uma de suas principais características é o seu caráter prático. É esse mesmo contexto que permite a Wittgenstein compreender o aprendizado, assim como a atuação das regras de uso das palavras como divorciado, por um lado, do exercício de uma intuição e, por outro, como dissociado da noção de comportamento como efeito do qual a maquinaria corporal seria a mera causa.

Como efeito disso, o aprendizado não pode ser encarado como se fosse simplesmente determinado por processos psicológicos, os quais podem muito bem vir a ser correlatos de cada uma de suas etapas, pois o domínio do conjunto de técnicas, visado pelo aprendizado de uma linguagem, remonta a uma capacidade relacionada com as razões da ação, não com a sua causa. Com isso, avaliar se o aprendiz domina o conjunto de técnicas identificado ao uso da linguagem não pode ser mais do que julgar se ele é capaz de agir de forma adequada, do ponto de vista do sistema de referência, no qual o aprendizado pretendera amestrá-lo. Tão logo amestrado, será do mesmo ponto de vista que ele passará a pensar e elaborar seus juízos, a ponto mesmo de agir de acordo movido pela crença, segundo a qual os conceitos que emprega são os únicos dotados de racionalidade. Para Wittgenstein, essa crença é mais um sinal do vínculo entre os conceitos e os fatos e, além disso, do quanto o reflexo da ligação de nossos interesses a determinados fatos é um dado constitutivo dos conceitos[9] (Wittgenstein, 2007b, §§ 347-378). Tanto a conexão entre os conceitos e os fatos quanto a relação entre os interesses e determinados fatos se manifestam na certeza lógica, da qual o pensamento e a ação não podem abrir mão.

O aprendizado consiste em passar a agir de acordo com a normatividade que a certeza básica ao funcionamento dos jogos reflete. A propósito disso, não se pode perder de vista que o domínio de uma técnica envolve a capacidade de desempenhar corretamente as atividades que lhe são relativas, o que é o mesmo que dizer que alguém que enuncia ou reage a uma enunciação corretamente está seguindo a regra de uso da enunciação (Stroud, 1996, p. 303) No entanto, isso não significa que a regra seja uma espécie de mediação do contato do aprendiz com a sua aplicação, situando-se em um domínio heterogêneo, mas tão somente que aquele que usa uma expressão adequadamente já a emprega de maneira correta. Por isso, um conjunto de regras não é condição suficiente para estabelecer uma prática, na mesma medida em que não poderíamos aprender a formular juízos, por meio da aprendizagem das regras que governam a formulação de juízos, pois é somente formulando juízos que podemos aprender a formulá-los. Para Wittgenstein (1972, § 140), “[...] não aprendemos a prática do juízo empírico por meio do aprendizado de regras; aprendemos juízos e sua conexão com outros juízos”.

Os próprios juízos caracterizam uma forma de julgar. A concepção de aprendizado, associada à compreensão do papel lógico exercido por elementos normativos, realiza, pois, a ideia de que a harmonia entre realidade e pensamento é gramatical (lógica). A enunciação de uma proposição ou a compreensão do que é dito, desse ponto de vista, é algo mais complexo do que ser capaz de fazer uma asserção ou reconhecer a verdade de uma proposição. Afinal de contas, além de denotar objetos, as palavras podem muito bem ser não mais do que um mero acompanhamento de uma ação, e é exatamente essa possibilidade que faculta aos jogos de linguagem o título de único lugar onde as palavras estariam em casa (Wittgenstein, 1998a, § 945). As palavras possuem tantos usos quantos forem admitidos pelos jogos de linguagem, ao passo que os limites dos jogos são flutuantes. Por essa razão, a variação de sentido de uma proposição não poderia se limitar ao conjunto de usos nos quais ela pode ser verdadeira ou empregada de maneira assertiva. Os limites de sentido não podem, com efeito, ser traçados como se fosse possível prever todos os usos possíveis de uma palavra, discernindo, de uma vez por todas, os usos com sentido dos usos não significativos.

 

Considerações finais

A autonomia da lógica compreende um desafio em virtude de a relação entre os conceitos e os fatos não supor que os fatos apenas fornecem a matéria a ser moldada pela ação da lógica. Também em virtude disso não se trata de pensar a estrutura factual como um espaço que reuniria certos traços essenciais do discurso, inerentes a todo sentido da linguagem, mesmo porque não é mais concebível impor uma estrutura derivada de determinadas regiões da linguagem, fazendo-a valer para toda a linguagem.[10] Por outro lado, Wittgenstein deve evitar que a legitimidade das regras de operação simbólica seja concebida como um resultado da correspondência entre o sistema que elas constituem, com o domínio dos fatos. Afinal de contas, o próprio caráter de regra lógica significa que o seu estabelecimento deve ser anterior à pergunta pela correspondência, naquele mesmo sentido no qual o estabelecimento do método de medida deve ser anterior à correção das medições.

Entretanto, afirmar que o estabelecimento das regras possa acontecer à revelia dos fatos é o mesmo que afirmar que elas tenham um caráter prescritivo, e não parece se tratar nem de um, nem de outro caso. Ao invés de compreendê-las como prescritivas, Wittgenstein prefere a ideia de que tais regras seriam constitutivas do pensamento e da linguagem, no sentido de que a atuação delas define o que consideramos pensar e dizer (agir). Se as coisas se passam mesmo assim, a narrativa da constituição (instituição) da necessidade lógica, a qual reputamos ao pensamento de Wittgenstein, à primeira vista, depende do ajuste de contas de duas perspectivas. De um lado, o estabelecimento das regras deve ter prioridade lógica em relação à sua aplicação; de outro, esse mesmo estabelecimento não pode ser feito à revelia dos fatos. O principal saldo de um tal confronto parece-nos ser a ideia de que as regras seriam elaboradas no interior dos casos de sua aplicação, como se os critérios de medida pudessem resultar das próprias medições. Isso quer dizer que o método de medição, também ele, diz algo sobre o mundo no qual ele é aplicado.

A bem da verdade, Wittgenstein parece deixar margem à afirmação de que as regras e os lances do jogo não compreendem domínios demarcados categorialmente, quando, na realidade, sua ênfase nas práticas como lugar da instituição das condições lógicas da significação não passa da ideia de que o caráter regulador das regras do jogo se estabelece na dependência dos lances dos jogos. Por outro lado, mais do que afirmar serem as regras reconhecíveis unicamente na aplicação, está em realce a ideia de que a força de determinação das regras é possível apenas graças à sua diluição, nas práticas que elas governam. A força de determinação das regras está relacionada à sua ação silenciosa, por assim dizer. Não é, afinal, pela enunciação das regras que a força de determinação que as caracteriza encontra a sua afirmação, antes, é muito mais por não serem enunciadas. Mais do que desfazer-se da ideia tradicional de demarcação entre juízos empíricos e juízos lógicos, como constituindo universos incomensuráveis, nesse ponto, a reflexão de Wittgenstein parece encaminhar-se em direção à afirmação de que toda necessidade é instituída. E é no contexto dessa afirmação que tem lugar a pergunta sobre a relação entre a estrutura lógica e os fatos. Nesse mesmo sentido, é essa maneira de conceber a necessidade e a concepção prática do significado que vem acompanhada dela que permitem a exploração da gramática dos conceitos psicológicos de um ponto de vista exclusivamente lógico, sobretudo porque significam uma considerável ampliação do campo do sentido. E a principal característica dessa ampliação é a integração de conceitos e expressões psicológicas, as quais, com isso, passam a ter cidadania lógica.

A cidadania lógica dos conceitos da psicologia é possibilitada, então, por uma concepção prática da certeza lógica. É o que enseja a consideração de que certas palavras, como “pensamento”, recobrem um campo de significação muito mais amplo do que os limites da palavra “sentença”; basta ter em vista o tanto de coisa que não concebemos como sendo sentença. Como essa concepção de certeza torna impossível traçar uma distinção precisa entre lógica e experiência, a tarefa lógica de determinação dos limites da significação já não confere tanta ênfase à ideia de limite, passando ser preferível a questão da unidade da experiência. Os limites, já que traçados ao longo do tempo, podem muito bem ser rearranjados. Não há, portanto, limites rígidos da significação. Com isso, a tarefa lógica de determinação da significação volta-se para a definição da margem de manobra de atuação do sujeito e de sua própria constituição, que se define ao longo das práticas subjetivas. A unidade da experiência, por sua vez, só pode ser encontrada no interior dos jogos, de sorte que qualquer explicação sobre ela já se trata de um esclarecimento sobre a dinâmica de funcionamento dos jogos de linguagem.

 

Wittgenstein’s logic and facts

Abstract: Wittgenstein's later thought develops a concept of certainty that places logic attached to experience. Thought and action are determined by a logical framework that is built up over time and in interacting with facts. The context of this way of approaching Logic is a practical concept of meaning that leads us to a philosophical investigation about certainty and the concepts of psychology. The grammatical (logical) rules that guide language games constitute the unity of experience and, then all experience has to be understood as an inner aspect to language games, never as a cause of concepts, as from outside. In this article, we examine the conception of logical necessity in this conceptual context and the reasons that sustain the logical character of Wittgenstein's philosophical reflection, especially in the texts on certainty and the psychology grammar.

 

Key-Words: Logic. Certainty. Philosophy of Psychology. Facts. Experience.

 

Referências

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Recebido: 20/02/2024 – Aceito: 26/03/2024 – Publicado: 25/06/2024



[1] Professor do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, BA – Brasil e do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UEFS/UFBA), Feira de Santana, BA –  Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1806-3785. E-mail: wtoliveira@uefs.br.

[2] A reiteração do caráter lógico das suas observações, presente nos textos sobre a certeza e sobre filosofia da psicologia, ao que nos parece, é feita em concurso com a caracterização da normalidade que preside o uso das palavras como sendo lógica. São exemplos disso os parágrafos 47-50, 56 e 82 do Da Certeza. É importante ter em vista, além disso, que a afirmação que restringe a lógica ao domínio do observável não implica nem envolve eventual tese a respeito da exterioridade dos critérios de determinação do significado, ao menos, para Wittgenstein. A afirmação de Wittgenstein sobre o caráter observável do que se caracteriza como lógico, antes de mais nada, reflete uma maneira de entender a lógica e uma determinada forma de compreender o que seria uma investigação a respeito da gramática dos conceitos psicológicos. Tal como desenvolvida por Wittgenstein, ela não pretende descrever processos ou estados mentais, mas apenas a gramática de uso das palavras.

[3] “[...] ‘seelisch’ ist für mich kein metaphysisches, sondern ein logisches Epitheton || Beiwort” [...] “‘Anímico’ não é para mim um epíteto metafísico, mas sim lógico” (Wittgenstein, 2007d, § 16, grifo nosso). Além do caráter eminentemente metodológico dessa observação de Wittgenstein, o que quer dizer que se trata de enfatizar o ponto de vista filosófico e, por conseguinte, o conceito de “anímico” que lhe interessa, Wittgenstein desenvolve, a partir dela, a ideia de que a ligação entre o interior e o exterior – a interioridade e o âmbito das expressões e manifestações – não é apenas relativa à experiência, mas também à lógica.

[4] É bem o caso, por exemplo, dos parágrafos 94, 162, 167, 233 e 262 do Da Certeza.

[5] “Nesse caso, seria como se o jogo de linguagem devesse ‘mostrar’ os fatos que o tornam possível. (Mas isso não é assim.) Então, pode-se dizer que apenas uma certa regularidade nas ocorrências torna a indução possível? O ‘possível’, como é natural, deve significar ‘logicamente possível’” (Wittgenstein, 1972, § 618).

[6]  “Verifica-se na verdade das minhas afirmações minha compreensão dessas afirmações. Ou seja: se eu fizer certas afirmações falsas, torna-se incerto se eu as entendo. O que é considerado uma verificação suficiente de uma afirmação, pertence à lógica. Pertence à descrição do jogo de linguagem. A verdade de certas proposições empíricas pertence ao nosso sistema de referência” (Wittgenstein, 1972, §§ 80-83).

[7] Isso quer dizer que o acordo no qual se baseia o funcionamento do jogo de linguagem, como recorda Segatto (2015, p. 172), não é apenas uma “condição factual”. Trata-se de uma condição conceitual do jogo, de sorte que é, com efeito, “condição de existência do jogo”.

[8] “Não são os axiomas isoladamente que se tornam evidentes para mim, mas um sistema no qual as consequências e premissas se apoiam mutuamente. Por exemplo, disseram-me que alguém escalou esta montanha há muitos anos. Será então que sempre investigo a credibilidade de quem me conta isso e se essa montanha existia há muitos anos? Uma criança aprende os fatos que lhe são contados e muito mais tarde que existem narradores confiáveis e não confiáveis. De modo algum, ela aprende que aquela montanha existiu há muito tempo, isto é, não surge a questão de ela ter existido ou não. Ela engole, por assim dizer, essa conclusão com aquilo que aprende” (Wittgenstein, 1972, §§ 142-143).

[9] “Em que consiste, pois, esta crença de que os nossos conceitos são os únicos racionais? No facto de não imaginarmos que outra pessoa se empenhe em algo completamente diferente e no facto de os nossos conceitos estarem ligados ao que nos interessa, àquilo que nos importa. Mas, além disso, os nossos interesses estão ligados a factos particulares no mundo exterior” (Wittgenstein, 2007b, § 348).

[10]  “Das Grunduebel der Russelschen Russell, Bertrand Logik sowie auch der meinen in der L. Ph. Abh. ist, dass, was ein Satz ist, mit ein paar gemeinplaetzigen Beispielen illustriert, und dann als allgemein verstanden vorausgesetzt wird“ (Wittgenstein 1998a, § 38).