Crítica à ideia de causalidade de Marx: o Prefácio de 1859

 

Gedeão Mendonça de Moura[1]

 

Resumo: O objetivo deste artigo é expor uma ideia de causalidade presente na concepção de Marx, levando em consideração algumas de suas alegações a respeito da história, precisamente referentes aos modos de produção como épocas progressivas da sociedade humana, encontrados no Prefácio de 1859. Com isso, pretende-se sustentar que Marx ainda recorre a uma ideia de causalidade em sentido forte, mais próxima das ciências naturais. Pensa-se que a utilização dessa categoria como recurso teórico vai ao encontro da ideia de uma filosofia social enquanto ciência social, à qual não é estranha toda e qualquer causalidade, mas convém tomá-la em sentido fraco.  pois se tenciona levar em conta a ideia de causalidade, sem deixar de considerar a ideia de imprevisibilidade como um marcador significativo no que tange às ciências do homem.

 

Palavras-chave: Causalidade. Materialismo. Modo de Produção. Ciência Social.

 

§1

À guisa de introdução, destaco os seguintes pontos:

1. Há uma tradição teórica, particularmente de língua inglesa (Cohen, 1970, 2013; Shaw, 1979; Wood, 2004 etc.), responsável por uma importante discussão crítica em torno das categorias forças produtivas (Produktivkräfte) e relações de produção (Produktionsverhältnisse) presentes na obra de Marx, especialmente como elas se consolidam a partir do prefácio à Zur Kritik der Politischen Ökonomie, originalmente publicada em 1859. Forças produtivas e relações de produção são tomadas como categorias fundamentais para o estabelecimento da ciência social advogada por Marx, cuja noção de progresso histórico ocupa a função de ideia reguladora. Dado isso, é imprescindível tecer algumas considerações críticas à ideia de causalidade intrínseca a essas categorias. Sem menosprezo à fortuna crítica, mas por apreço ao espaço, opto pela análise direta do próprio texto de Marx, afetada certamente pelas opções teóricas que tenho assumido, no desenvolvimento do meu trabalho em filosofia.

2. Quando me refiro à “concepção de Marx”, estou tratando daquela exposta a partir da análise de um texto específico, portanto, datado[2]. Não ignoro – inclusive sinalizo, neste texto – que talvez no “último Marx” as categorias forças produtivas e relações de produção, a ideia de causalidade e, com esta, a noção de progresso histórico tenham passado por significativas transformações. No entanto, penso ser mais relevante considerar que o espólio do último período da atividade intelectual de Marx não foi publicado. Por outro lado, tanto a Zur Kritik der Politischen Ökonomie quanto o seu respectivo prefácio vieram à luz com a incontestável anuência do autor. Aliás, Marx (1962, p. 11), oito anos depois, abre sua obra magna, O Capital, endossando a sua Crítica de 1859, tomando aquela como uma retomada ou continuação (Fortsetzung) dessa [3].

3. A crítica que pretendo apresentar envolve aquilo que chamo de causalidade forte a envolver as categorias forças produtivas e relações de produção como força motriz do processo histórico. Atribuo essa causalidade à concepção de Marx exposta no Prefácio de 1859, pois entendo que o próprio Marx a diz – como tentarei mostrar – com base na forma como maneja as categorias supracitadas.

4. Este texto é uma primeira tentativa, como ensaio, de firmar uma base a partir da qual pretendo tecer considerações acerca de uma possível utilização tácita da indução por Marx, sem o devido recurso à crítica[4]. Tal texto se localiza, portanto, no espaço de uma pesquisa mais ampla, cujo fim é aclarar as possibilidades e os limites da relação entre ciência e metafísica.

 

§2

Com o que se segue não quero sustentar, em hipótese alguma, que uma análise rigorosa de uma forma social não possa reunir elementos que indiquem certos desdobramentos posteriores, caso contrário, a ciência social ficaria restrita à mera positividade. Sustento que, em virtude da abertura [ontológica] do ser humano, qualquer conjunto daqueles elementos é, de saída, limitado, para que seja possível formular uma ideia acabada daquilo em que uma determinada forma social vai se desdobrar como um todo[5]. Aliás, de um ponto de vista materialista e prático, simplesmente conceber que uma dada forma social tende, uma vez superada, a se transformar em uma outra forma social “superior” requer alguma consideração crítica. Do contrário, seria ignorar que também nossa faculdade de julgar é circunstanciada, logo, qualquer juízo de valor – ou epistêmico – está sempre vinculado, além de ao sujeito que o enuncia, a um tempo e lugar específicos, por conseguinte, é por esses fatores também determinado.

Por isso, uma noção forte de progresso histórico, portanto, de causalidade, deve ser posta de lado, embora saibamos que existem evoluções consideráveis, como, por exemplo, é o caso da medicina, a qual hoje dispõe de tratamento simples para doenças que no tempo de Marx eram fatais. Mas isso não significa que avançamos em trajetória linear – ou até mesmo oblíqua – rumo à superação de tantas outras mazelas.

Marx (1847, p. 100; 2009, p. 125) acerta, quando afirma que o moinho de vento é um artefato através do qual podemos entender certas características da sociedade feudal, bem como a máquina a vapor fornece indícios para que pensemos a nascente sociedade burguesa. Esse tipo de análise reflexiva se mantém dentro dos limites e horizontes históricos a partir dos quais é formulado e, por essa razão, tem a capacidade de apanhar de maneira apropriada o específico de dada forma social. Por conseguinte, tange apenas ao que foi ou é experienciado, sem que isso se ponha como condição suficiente de experiências futuras[6]. Nessa perspectiva, isso é diferente de afirmar que uma determinada forma social gesta em seu ventre as condições de uma outra forma, não apenas futura, mas superior à forma anterior. Ora, é um importante ganho da ciência social ter chegado ao conhecimento de que toda forma social tem aurora e ocaso, assim, elas são compreendidas como transitórias, por isso, contingentes, não necessárias. Logo, parece que esse é um limite que, uma vez ultrapassado, só resta a especulação ou, quando muito, insignes aspirações sobre o futuro de alguma forma social vindoura.

De acordo com isso, é certo que os seres humanos fazem a história, todavia, não segundo suas próprias vontades e consciências, como oportunamente Marx já suspeitava. No entanto, isso não ocorre simplesmente porque os seres humanos são engendrados no âmbito de uma forma social na qual a alienação é uma das suas características marcantes. Tudo indica que não o fazem, porque se trata de um conjunto de subjetividades de cuja abertura somente é possível esperar o inesperado, restando a certeza de que a trajetória humana é pouco previsível. Portanto, não há qualquer legalidade a priori, a partir da qual seria possível estabelecer aquilo em que o futuro se desdobrará[7].

Mas é preciso reconhecer que as condições materiais, ou melhor, o modo como elas são postas diz muito sobre nós e tem peso na formação da própria subjetividade. E, embora pareça contraditório, é a própria abertura do ser humano que permite essa determinação material. Ora, o modo como o ser humano produz, pondo através disso aquilo que denominamos condições materiais, é perpassado por uma plasticidade que não é possível presumir em outra espécie animal. Não há nada na base material que um dia não tenha sido uma novidade, bem como aquela é sempre o âmbito constitutivo desta. Nessa perspectiva, o ser humano determina aquilo que faz, pois tal fazer é fruto de uma deliberação, isto é, de uma escolha entre fazer uma coisa e não outra. Por outro lado, o ser humano é determinado por aquilo que faz, uma vez que todo fazer é histórico; dessa maneira, o próprio ser humano não pode escapar a essa condição, mesmo porque ele é essa própria condição, de acordo com um materialismo prático.

Isso posto, parece significativa a alegação de que não são apenas mudanças na base que provocam transformações na superestrutura; alterações nesta, visto que constituem parte do espectro do fazer humano, podem, em alguma medida, produzir modificações naquela[8]. Assim, é possível pôr em suspenso a ideia de determinação, em última instância[9] – da superestrutura pela base –, segundo a qual, no fundo, as transformações na base fomentam as mudanças fundamentais na superestrutura. Isso também ocorre, mas talvez não conforme uma noção de causalidade forte. Por exemplo, não é possível decidir a seguinte questão, facilmente: foram as novas ideias que surgiram no início da Modernidade e com o Renascimento, donde foi sendo engendrada a forma social burguesa, ou foi o início rudimentar dessa forma que foi forjando as mudanças nas ideias? Essa é uma questão diante da qual decidir radicalmente tanto por um lado como pelo outro resulta em um problema, já que acolher uma é advogar pelo abandono da outra, quando tudo indica que ambas se implicam.

Mesmo em face das observações anteriores, uma proposição importante, a qual merece uma consideração a mais, feita pelo materialismo de Marx, diz respeito à noção de que o modo específico como o ser humano põe objetos no mundo e, por consequência, produz e reproduz a sua existência, enquanto um ser que se distingue em aspectos relevantes de outros animais, engendra um modo de pensar específico. Dessa maneira, isso afeta o modo de fazer ciência, arte, enfim, cultura, que é em larga medida um resultado, não estritamente causal – devemos considerar que há aí espaço para o acaso –, do seu intercâmbio material. Assim também a linguagem, a razão, a consciência são atributos que se aprimoram, à medida que esse intercâmbio deixa de ter como finalidade exclusiva o suprimento das necessidades mais prementes do ser humano e se torna um processo mais plástico. Em razão disso, as transformações pelas quais esse ser passa têm uma ligação considerável com a forma como ele executa o seu trabalho, bem como com os propósitos a que os produtos dessa atividade atendem.

Em Marx, a dificuldade em torno dessa proposição, a saber, que a forma do intercâmbio material determina a compreensão das formas de manifestação culturais e das formas de consciência em geral, é que isso pode resultar em uma concepção menos aberta da realidade social. Seguem alguns exemplos. Marx (1978, p. 38) vai sustentar que não se explicam as condições materiais, partindo-se das ideias, porque essas decorrem daquelas, porém, que o esclarecimento de quaisquer ideias passa pelo conhecimento das condições materiais; essas explicam aquelas, por isso, as últimas parecem ser a causa, enquanto as primeiras parecem ser o efeito. Essa ideia, de certa maneira, é reforçada ainda quando Marx (1961, p. 8-9) afirma que toda mudança na base produz modificações na superestrutura, isto é, transformações na forma de produzir alteram necessariamente o modo como o ser humano pensa ou prefigura a sua atividade. Em outro lugar, Marx (1962, p. 94) assevera que o reflexo do mundo religioso só pode desaparecer quando as circunstâncias materiais da vida cotidiana forem transformadas, de sorte que tais circunstâncias passem a constituir relações claras e racionais entre os seres humanos. Nesse caso, a religião se circunscreve, inicialmente, a determinadas condições materiais, donde tem sua origem ou causa.

Pondo de lado o aspecto segundo o qual, em última instância, as condições materiais sempre determinam as formas de consciência, é possível reconhecer que tais condições traçam características importantes da subjetividade. No entanto, é preciso lembrar igualmente que as condições materiais somente podem ser postas por sujeitos. Assim, entra em questão o elemento de indeterminação que está estritamente vinculado à abertura do ser humano. Por essa razão, não podemos ter muitas certezas sobre o desdobramento futuro do processo histórico, visto que este sempre permanece em aberto, dado que é um produto que realmente, em certa medida, determina o ser humano, mas é ele também determinado pela atividade desse ser.

Isso posto, parece que o materialismo prático pode passar sem que precise recorrer a uma ideia de determinação em última instância ou de causa, em sentido forte, que acaba resultando em uma noção de que os sujeitos são, à revelia, arrastados pela corrente das condições materiais. Portanto, parece que o mais adequado é sustentar que as condições materiais determinam os sujeitos, mas somente na medida em que aquelas já foram determinadas, de alguma maneira, por esses últimos, uma vez que elas são também um produto da atividade prática dos seres humanos, legadas e igualmente transformadas, por uma longa série de gerações. É nesse sentido que as condições materiais moldam aspectos importantes da subjetividade.

 

§3

Uma análise pormenorizada[10] de um conhecido parágrafo de Marx pode ajudar a fundamentar algumas das alegações anteriores, assim como pode auxiliar as alegações subsequentes acerca da ideia de causalidade. Esta aparece claramente, a meu ver, quando Marx sumariza a sucessão dos principais modos de produção historicamente postos, mesmo estando presente aí o modo “asiático”.

No prefácio da Zur Kritik der Politischen Ökonomie (1859), é possível encontrar algumas alegações que sustentam uma ideia de causalidade em sentido forte. Isso parece que se evidencia, quando Marx elenca os modos de produção que a história engendrou até o advento da socialidade burguesa. Embora Marx (1978, p. 60) somente se refira à história universal [Weltgeschichte] depois de instaurada a grande indústria, parece que as histórias particulares tenderam, de alguma maneira, ao estabelecimento daquela. Aliás, a grande indústria fornece a ocasião para que os seres humanos, não somente enquanto proletários, possam estabelecer a história do homem universal [ou total – totaler Mensch (Marx, 1968, p. 536-537, 539)], dada a superação da alienação e a instauração daquela forma de produzir condizente com a sua própria natureza (Marx, 1964, p. 828).

É comum argumentar – em geral de forma ad hoc – no sentido de salvaguardar a teoria de Marx de um determinismo histórico e mesmo teleológico. Não me contraponho a essas tentativas em si mesmas, muitas plausíveis. Minha desconfiança é quanto ao fato de não se aludir à presença de uma ideia de causalidade no sentido que aqui atribuo a essa. É claro que é preciso operar com a causalidade, se se quer fazer ciência. No entanto, a causalidade, no que concerne às ciências do homem, melhor, da subjetividade, deve ser tomada em um sentido razoavelmente deflacionado. Evidentemente, penso que Marx não opera dessa maneira, ao menos no Prefácio de 1859. Daí a minha relutância em conceber as miríades de defesas do ponto de vista de Marx quanto ao determinismo. Aliás, no mais das vezes, defesas sem crítica que, por isso mesmo, não resultam em crescimento do conhecimento[11].

É indiscutível que Marx privilegia, em termos epistemológicos, a realidade material e/ou objetiva (aí inclusas as relações sociais que envolvem a produção, as instituições, a filosofia, a arte, a ciência etc.); essa mesma realidade, por sua vez, tem peso decisivo na determinação das supracitadas relações. O problema consiste no fato de que, para que existam as relações em geral, essa forma de realidade objetiva, os seres humanos terão de ser, ontologicamente, a pedra de toque. A análise a seguir tem em vista, dentre outras, também essa questão.

Depois de um primeiro estudo a respeito da matéria da economia política, Marx (1961, p. 8-9; 1974, p. 135-136)[12] chegou a um resultado que o levou a declarar que as “[...] épocas progressivas [progressive Epochen] da formação econômica da sociedade” se manifestaram nos seguintes “modos de produção: asiático, antigo, feudal e burguês moderno”. Essa proposição é a conclusão, mas também pode ser tomada como o ponto de partida ou premissa maior de um parágrafo contido no Prefácio de 1859, cujo conteúdo é o entrelaçamento entre forças produtivas e relações de produção.

Seguem alegações de Marx que nos autorizam a sustentar que a ideia de causalidade é central no seu argumento. “Na produção social” da vida, os seres humanos [die Menschen] “[...] contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade”. Entendida a liberdade como manifestação da vontade livre, não haveria aí, a rigor, indício de liberdade. Tais “relações de produção”, por sua vez, “[...] correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais”. Isto é, tais relações penetram o substrato e se adequam às forças produtivas. Notemos que as forças produtivas, enquanto condições materiais, parecem gozar de certa independência no que concerne às relações de produção. Estas “correspondem”[13] no sentido que se adequam àquelas, posta a relativa plasticidade das relações de produção em face de uma maior estaticidade das forças produtivas. Nesse sentido, as forças produtivas seriam a causa das mudanças nas relações de produção, daí a vontade dos seres humanos ficar circunstanciada a esse caudal de determinações.

“A totalidade [Die Gesamtheit] destas relações de produção”, continua Marx, “[...] forma a estrutura [Struktur] econômica da sociedade” e assim constitui “a base real [die reale Basis]” ante e sobre a qual “[...] se levanta uma superestrutura [Überbau] jurídica e política”. Penso que essa Überbau pode ser entendida como o conjunto das instituições punitivas, reguladoras, administrativas etc. Ademais, a essa ou a essas superestruturas “[...] correspondem [entsprechen] formas sociais determinadas de consciência”. Logo, o “modo de produção” é a causa cujo efeito necessário é o condicionamento do “[...] processo em geral de vida social, político e espiritual”. Dessa maneira, a causalidade ou a teleologia hegeliana é invertida, na medida em que não é mais “a consciência” dos seres humanos “que determina [bestimmt] o seu ser”; o que se dá é o oposto, visto que “é o seu ser social que determina sua consciência.” Esse último, portanto, se constitui enquanto substância social, ao determinar a forma das consciências singulares.

Manifestamente, essa inversão da causalidade ou da teleologia não resulta em um abandono da causalidade em sentido forte, ou da própria teleologia em si, pois parece que a teleologia idealista é substituída por outra, a materialista. Vejamos. “Em uma certa etapa [Stufe] de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade [...]”. Marx aí não elenca nenhuma “sociedade” determinada, o que nos autoriza a declarar que se trata do trajeto da sociedade humana como um todo, cuja socialidade se estabelece quando começam – os seres humanos – a não apenas prefigurar o resultado final do produto do trabalho, mas também os meios – instrumentos, ferramentas – para atingir tal fim.

Por conseguinte, aquelas forças produtivas, presentes no modo de produção asiático, antigo, feudal ou burguês – posto que essas são etapas do desenvolvimento da sociedade humana [menschlichen Gesellschaft] – “[...] entram em contradição com as relações de produção existentes”, isto é, com as formas institucionais. Estas são varridas pelo desenvolvimento das forças produtivas vigentes em uma dada etapa do desenvolvimento da sociedade ou criam novos arranjos, de sorte que se adequem a elas. Em certos casos, tais arranjos não são possíveis, principalmente quando estão postas as condições de superação de uma dada forma social específica; por exemplo, a forma feudal, então “[...] de formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões.” Dado isso, tem lugar “[...] então uma época de revolução social” que, ao produzir “a transformação da base econômica”, acarreta, “com maior ou menor rapidez”, transformações em “toda a enorme superestrutura”.

Quando isso ocorre, é preciso distinguir, por um lado, a “transformação material” e, por outro, as “formas ideológicas”. Estas são circunstanciadas pelo contexto posto por aquela transformação, de modo que as formas ideológicas não podem ser explicadas por si mesmas, mas a partir da compreensão da transformação material que as originou. Aliás, em termos epistêmicos, a “transformação material das condições econômicas” encerra a vantagem de ser um objeto passível de “[...] rigorosa verificação da ciência natural [Naturwissenschaftlich]”[14]. Isso significa que a consciência, isto é, as formas ideológicas, da transformação material das condições econômicas de uma dada realidade é um efeito dessa própria transformação, porque a consciência, enquanto forma ideológica, precisa ser explicada “[...] a partir do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.

Ora, as formas de consciência, expressas em instituições jurídicas, religiosas, políticas etc., ou seja, formas institucionais que aglutinam aquilo que pode ser denominado relações de produção que, por sua vez, são a argamassa que dá a liga às forças produtivas, são, elas mesmas, causadas pela transformação material. Nesse sentido, as transformações não são necessariamente um resultado das projeções de um sujeito reflexivo, mesmo expresso em um grupo social, porém, de um sujeito automático. Parece que aí a liberdade do sujeito fica circunscrita à compreensão da necessidade, como já pensava Espinosa (1973, p. 84-85). É isso que chamo de causalidade em sentido forte. Desse modo, as ações humanas, quando conscientes, são orientadas por essa necessidade, ou melhor, segundo a compreensão dessa necessidade.

Assim Marx explica o surgimento e fenecimento das formações sociais:

O perecer de uma formação social[15] depende do completo desenvolvimento de todas as suas “forças produtivas” constituintes; logo, tudo indica que a potência dessas deve ser convertida em ato. Esse desenvolvimento, sem dúvida, é forjado levando-se em consideração a tensão que as relações de produção existentes conseguem suportar. Consequentemente, “novas [neue]” e mais avançadas “relações de produção” não tomarão o lugar das anteriores até que “suas condições materiais de existência” tenham sido gestadas no “seio [Schoβ]” da “velha [alten] sociedade”.

Certas expressões, como “perece”, “novas”, “velha” etc., indicam precisamente uma noção de sucessão e, portanto, causalidade. Esse trecho do argumento de Marx é o resultado de um raciocínio cuja inferência requer amparo causal. Isso fica ainda mais evidente, quando ele faz referência às “épocas progressivas”. Antes disso, ele alega ainda que “[...] a humanidade [die Menschheit] só se propõe as tarefas que pode resolver”, mesmo porque “a própria tarefa” só se manifesta quando “[...] as condições materiais de sua solução já existem” ou são concebidas “[...] no processo do seu devir [Werdens]”. Isso deixa claro que, embora o processo seja dialético efetivamente, o princípio regulador das transformações das relações de produção é a transformação das forças produtivas. É nesse sentido que essas são a causa e aquelas o seu efeito.

A parte final do parágrafo, acredito, fala por si só. “Em grandes traços [Umrissen]”, é possível circunscrever as “[...] épocas progressivas [progressive Epochen] da formação econômica da sociedade” nos seguintes modos de produção: “[...] asiático, antigo, feudal e burguês moderno”. Mesmo os piores esquemas analíticos, o de Stalin (1972), por exemplo, os quais apontam para uma causalidade mecânica de sucessão dos modos de produção, partem desse trecho – e não sem alguma razão. Assim, por mais fechadas, ideológicas, rasteiras que sejam certas interpretações, não há como negar que existe alguma autorização para tal. É o próprio Marx que menciona “traços” e “épocas progressivas”, isto é, ele o diz.

Evidentemente, é possível empreender uma interpretação mais rica, complexa e elaborada desse trecho. Porém, fazer isso não seria unicamente salvaguardar Marx de uma noção de causalidade em sentido forte, pois, da crítica legítima? Aspiro, sem dúvida, a que a minha interpretação seja rica, elaborada etc., mas não posso simplesmente ignorar o que o próprio Marx pensou – e é preciso lembrar que essa reflexão foi maturada pelo menos durante 15 anos –, escreveu e, vejam só, publicou. Marx não publicou os Livros II e III de O Capital, quando tudo indica que ele já não via o movimento histórico da mesma forma, após levar a público o Livro I; tampouco publicou a sua Carta a Vera Zasulitch, tão aclamada por alguns. Mais ainda, nesse ínterim de 1867 à sua morte, em 1883, ele jamais rejeitou ou mesmo se propôs qualquer autocrítica do seu prefácio à Zur Kritik der Politischen Ökonomie (1859), autorizando-nos a pensar que o que foi declarado por Marx nesse texto corresponde, em grande medida, à sua concepção filosófica de base.

Antes de continuar com o restante da citação, gostaria de chamar a atenção para o fato de que Marx alude a “traços”, algo próximo a um perfil, contorno, portanto, padrão, o qual, de alguma maneira, une as diferentes épocas da humanidade. Logo, não se trata de algo aleatório, estanque e incomunicável – no sentido de totalmente acidental –, ao modo do clinâmen do átomo de Epicuro. Pelo contrário, os modos de produção estão interconectados. Isso se torna evidente, quando Marx emprega a expressão “progressivas” para tratar das etapas da formação econômica da sociedade. Ora, se uma coisa é progressiva, por definição, ela não pode ser ao mesmo tempo oblíqua ou acidental; no limite, seria elíptica. Progressão, portanto, envolve necessidade causal, de outro modo algo não poderia ser categorizado como progressivo. Outrossim, tudo indica que o modo “asiático” não se furta a isso.

Além do mais, como o trecho a seguir mostrará, Marx está tomando a humanidade em dois aspectos históricos distintos:

i.       a fase da humanidade que foi/é permeada pela exploração de uma classe sobre a outra, independentemente das formas sociais que prevaleceram até a forma burguesa, já que a história dessa fase é a história das lutas de classes (Marx; Engels, 2010); e

ii.     a fase da humanidade que se iniciará quando superada a forma social burguesa, na qual não haverá mais dominação de uma classe sobre as demais, dado que não haverá mais classes, à medida que a forma como o ser humano produzirá coincidirá com a sua própria natureza (Marx, 1964, p. 828).

As relações que sustentam a forma social burguesa “[...] constituem a última forma antagônica [antagonistische Form] do processo social de produção”; tal antagonismo emerge “[...] das condições sociais de vida dos indivíduos”, assim, não se trata de condições arbitrárias ou abstratas, mas necessárias e efetivas. Porém, são as próprias “[...] forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio [Schoβ] da sociedade burguesa” que fomentam “as condições materiais” que se constituem como a solução para esse antagonismo. Isso posto, finda-se a “pré-história da sociedade humana”. Logo, é dado a entender que a história humana somente começa quando desaparece o domínio de classes como superação [Aufhebung] das próprias classes.

Por conseguinte, considero que a) essa concepção se ancora naquilo que venho chamando, em outros trabalhos, de uma ideia de essência humana. Por essa razão, b) tal concepção se estrutura teoricamente a partir do método indutivo, cuja ideia de causalidade a ele inerente é tomada sem crítica.

O processo histórico, enquanto processo necessário, conduz a sociedade humana à superação da sua pré-história; esta é a “história” da divisão da sociedade em classes: assim, os seres humanos estão divididos entre aqueles que servem e aqueles que são servidos. Alego que esse processo é necessário, haja vista que, para Marx (1975a, p. 228), tudo indica que o ser humano possui uma essência comunal, sendo o processo de servidão um atentado contra essa própria essência. Logo, uma sociedade baseada em classes é a própria negação da natureza humana. Dado isso, é justificável que a verdadeira história da sociedade humana comece somente quando for abolido o sistema de classes e este substituído por um sistema de produção, no qual não mais se dê a negação da essência humana, mas se institua a sua afirmação.

A verdadeira sociedade humana, enquanto devir, se configura, por isso mesmo, como um evento ainda a ser observado ou experienciado, ou seja, ainda não posto. Dessa maneira, essa hipótese se sustenta somente através de observações passadas. Todavia, observações de experiências passadas, por mais abundantes, não nos autorizam a inferir, como parece ser o caso de Marx, com qualquer grau de certeza, experiências futuras. É diante desse detalhe específico que sustento que a indução não é uma condição suficiente para justificar uma filosofia social, se se quer atribuir a essa filosofia alguma cientificidade, isto é, tomá-la como ciência social.

Entretanto, essa noção de causalidade alicerça a crítica da economia política empreendida por Marx, enquanto teoria científica do social. Lembremos que a Zur Kritik der Politischen Ökonomie é a primeira publicação do ambicioso projeto de Marx que resulta em O Capital. Portanto, suspeito que a estrutura metafísica desse projeto não se restringe à essência e à aparência, mas essas duas categorias são perpassadas e, talvez, unidas pela categoria da causalidade. Pode-se argumentar que não há problemas quanto ao emprego da causalidade na investigação científica, quando o objetivo é partir de fatos determinados para deles inferir uma conclusão, ao modo da dedução. Em algumas ocasiões, é realmente assim que Marx opera; contudo, partir de fatos estabelecidos para inferir contextos futuros – como é o caso, por exemplo, de uma determinada forma social futura – é uma extrapolação que encerra dificuldades lógicas relativas à indução.

 

§4

Por fim, concluo com as seguintes observações:

1. Lembremos que Marx alega que mudanças nas condições econômicas, nas formas de consciência ou ideológicas são produzidas somente através de transformações de ordem material. Tais transformações são as causas daquelas mudanças. A vantagem epistêmica em assim proceder consiste no fato de que, segundo Marx, um evento tal como uma transformação material pode ser tomado como um objeto passível de verificação rigorosa por uma espécie de “Naturwissenschaftlich”. Se isso conduz a uma importação da relação de causa e efeito da ciência natural para a ciência social, é algo que encontra, portanto, fundamentação no próprio Marx, porque aquela vantagem parece resultar justamente da aproximação do modus operandi da ciência natural ao da ciência social. Do ponto de vista histórico, há uma explicação para isso. Estava em voga, na época de Marx, a ideia de que os enunciados das ciências naturais eram passíveis de uma justificação racional mais fundamentada, posto que poderiam ser confrontados empiricamente; por essa razão, tal processo de aquisição de conhecimento era visto como mais rigoroso e seguro. Nada melhor, então, que procurar estabelecer alguma aproximação entre as ciências do homem e as ciências da natureza, no que concerne à noção de causalidade. Essa aproximação, no entanto, se limita ao processo de justificação do conhecimento, visto que os objetos de ambas são significativamente diferentes. Assim, a importação de uma noção de causalidade da ciência natural para a ciência social resulta, ao que tudo indica, de um esforço do próprio Marx, ao menos no que diz respeito ao trecho aqui analisado.

2. Ademais, acredito que não há ganho – talvez haja inclusive perda, do ponto de vista epistemológico – significativo, ao se conceber a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção segundo a perspectiva de uma “crítica imanente”, mesmo porque esse tipo de crítica encerra uma ideia epistemologicamente problemática, a saber, considera as “possibilidades reais” supostamente prenhes, uma vez posta tal contradição. Ora, dada a crítica à indução, carece de sentido tratar de algo como “possibilidade real”. Toda possibilidade, entendida como probabilidade, ou seja, como chance ou não de um evento ocorrer, é somente isso: possibilidade. Logo, há uma fronteira que não pode deixar de ser levada em conta entre aquilo que é “possível” e o “real”, embora a ideia de possibilidade seja associada diretamente à ideia de potencialidade, já que, no limite, a potência é condição necessária, mas não condição suficiente do ato. Por isso, longe de abrir caminho para a ação política, isso se converte em obstáculo, se o objetivo for tomar a política como teoria, isto é, enquanto ciência.

3. Essas observações críticas não diminuem a grandeza do trecho destacado, que consiste em atentar para a transformação social como uma saída para os impasses do capitalismo, portanto, encerra esperanças políticas. Não obstante, se pensada a “política” ou o “mundo social” enquanto teoria, isto é, como conjunto de hipóteses e conjecturas, ela esbarra em problemas lógicos e epistemológicos que precisam ser pensados e talvez sanados à luz da própria teoria, ou seja, teoria como empreendimento crítico a contribuir com o crescimento do conhecimento. Nesse sentido, a ideia de transformação social, enquanto esperança política e não como ciência, pode até “[...] nos dar algum encorajamento intuitivo, alguma esperança, mas nenhuma garantia de qualquer tipo” (Popper, 2017, p. 252). Além do mais, o estatuto, seja ele qual for, da transformação social como resultado da contradição entre forças produtivas e relações de produção só pode ser constatado post festum. Indícios, em ciência, do que pode vir a ser não garantem necessariamente o que será, posto que toda inferência indutiva, mesmo quando fundada em premissas verdadeiras, pode conduzir a conclusões falsas, conforme já somos alertados desde Hume.

 

Criticism of Marx's notion of causality: the preface to 1859

 

Abstract: The aim of this paper is to expose an idea of causality present in Marx's conception, considering some of his claims regarding history. Precisely, claims regarding modes of production as progressive epochs of human society, present in the Preface of 1859. With this I intend to maintain that Marx still resorts to an idea of causality in a strong sense, closer to natural sciences. I think that the use of this category as a theoretical resource goes against the idea of a social philosophy as a social science; to which all causality is not foreign, but it is convenient to take it in a weak sense. Because I intend to consider the idea of causality without forgetting to consider the idea of unpredictability as a significant marker regarding the human sciences.

 

Keywords: Causality. Materialism. Mode of Production. Social Science.

 

Referências

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Recebido: 12/02/2024 – Aceito: 01/04/2024 – Publicado: 15/06/2024



[1] Professor na Secretaria da Educação do Estado da Bahia, Salvador, BA – Brasil. ORCID https://orcid.org/0009-0003-2315-8302. E-mail: gedeaodemoura@gmail.com.

[2] Em que pese, en passant, referências aos Manuscritos Econômico-Filosóficos, A Ideologia Alemã, O Capital etc.

[3] “Das Werk, dessen ersten Band ich dem Publikum übergebe, bildet die Fortsetzung meiner 1859 veröffentlichten Schrift: ‘Zur Kritik der Politischen Oekonomie’”.

[4] Por exemplo, de Hume (2004), filósofo que, tudo indica, Marx conhecia.

[5] É preciso considerar que, se a indução é problemática nas ciências naturais, ela é ainda mais, no que diz respeito às ciências da subjetividade (ou do homem).

[6] Marx, infelizmente, parece que não se contenta com esse limite que convém impor à argumentação por indução. Como se segue, extrapola-o. Logo, uma causalidade forte, como teleologia, se impõe.

[7] Considerando o problema lógico da indução, tudo indica que não “[...] estamos justificados em raciocinar a partir de instâncias [repetidas] das quais temos experiências até outras instâncias [conclusões] das quais não temos experiências” (Popper, 2021, p. 18).

[8] De maneira oportuna, o próprio Marx (1974, p. 131) vai questionar por que a arte grega, mesmo passados quase 25 séculos, continua a produzir na gente gozo estético. Ora, mas a arte não é uma forma de consciência que, como toda forma de consciência, reflete um modo específico de produzir? A superação desse modo não supera aquela forma? Parece que as coisas não se dão bem assim.

[9] A expressão “determinação em última instância” – cunhada por Althusser (1979) – é tomada aqui como equivalente à “causalidade em sentido forte”.

[10] Até aqui, fiz alegações gerais sobre a passagem do texto de Marx que pretendo citar, agora, de maneira detalhada.

[11] Estou tomando em consideração o esquema tetrádico de Popper (2021): P1→TT→EE→P2.

[12] Para evitar a repetição da mesma referência, advirto que todas as citações que se seguem incluem somente o trecho acima referenciado.

[13] Utilizo, nessa análise do trecho de Marx, a seguinte regra de dedução [modus ponens]:  P → Q; P Q, em que, P = (forças produtivas) e Q = (relações de produção).

[14] Entendo essa rigorosa verificação (treu zu konstatierenden) como tentativa de justificação racional da relação causa e efeito (A→B). Retomo isso em um parágrafo da conclusão.

[15] “Eine Gesellschaftsformation geht nie unter [...]” (Marx, 1961, p. 9).