A interminável questão: por que (devo) agir moralmente?: análise do capítulo 12 de Ética Prática de Peter Singer

 

Paulo Alexandre e Castro[1]

 

Resumo: Este ensaio procura fazer uma análise minuciosa do capítulo 12 da Ética Prática de Peter Singer, capítulo fundamental não apenas para a compreensão do pensamento ético e moral do autor, mas igualmente para a compreensão do pensamento cultural e civilizacional que o autor tem da humanidade. É nesse sentido que a pergunta plasmada em título – por que agir moralmente? –, não se limita ao horizonte da discussão redundante do interesse pessoal ou dos fatores educacionais mas se transforma no exercício filosófico-ético de indagação pelo agir humano no mundo, e, portanto, uma questão que radica no interior da própria ética (como refere o autor), isto é, enquanto fundamento do agir humano. O ensaio termina com uma reflexão sobre a validade do pensamento ético do autor nesse capítulo específico, e algumas considerações sobre o pensamento geral ético do filósofo.

 

Palavras-Chave: Peter Singer. Ética. Utilitarismo. Ação moral. Dever.

 

Uma questão como introdução

É ou não a questão “por que devo agir moralmente?” uma questão ética por excelência? A resposta não se esbate simplesmente tomando partido de uma posição, porém, exige uma análise aprofundada que não se deixe sucumbir pelo engodo das palavras em uso. Se, por um lado, se evidencia a procura de uma justificação, de uma fundamentação para a ação moral, por outro lado, é o dever que se enfatiza como centro da mesma. O dever (“devo”) está no âmago da ação moral de tal forma que instaura obrigatoriedade na pergunta; de resto, já havíamos visto em Kant, que como se sabe, perguntava “que devemos fazer?”, sendo a resposta, “devemos fazer o nosso dever” (talvez por isso, no tal “reino dos fins” idealizado por Kant, a máxima seria “Eu devo, logo posso”).

Ora, do simples exercício de desmontagem da pergunta não se segue efetivamente uma resposta. E mais, ela não é, stricto sensu, uma pergunta ética, contudo, é uma pergunta que, apesar da sua conotação ética, se determina segunda uma esfera de atuação que perpassa a sociologia, a antropologia, ou mesmo a psicologia, se sofrer, por exemplo, uma reconversão: devemos ter algum tipo de preocupação ética? Se a pergunta se constitui como necessária, no horizonte reivindicativo de uma ética, de uma moral que institua a prática da vida social, há autores, como refere Peter Singer, para quem essa pergunta parece evidenciar uma inadequação lógica, ou se se preferir, parece manifestar-se ao pensamento lógico como sendo desconcertante. É-o, porque ninguém pensa nessa questão quando está a decidir algo; a ética prática do cidadão comum parece já pressupor um conjunto de conhecimentos para avaliar as situações. Uma das teses para essa rejeição “[…] é a afirmação de que os nossos princípios éticos são, por definição, os princípios que assumimos como fundamentalmente importantes” (Singer, 1994, p. 332).

O que Singer está a dizer é que, se alguém tem como princípio ético distribuir a sua riqueza pelos menos favorecidos, então, é porque já tem essa decisão tomada como sendo importante. Ora, observe-se precisamente esse caso da distribuição da riqueza e aquilo que parece ser a asserção comum de que os ricos devem ajudar os pobres. O que se coloca em causa, nessa afirmação? O problema surge porque, por um lado, se se tentar instituir esse tipo de juízo, corre-se o risco de não se considerarem os interesses dos outros e, por outro lado, querer universalizar um juízo que diz respeito a valores que alguém assumiu como importantes (o exemplo absurdo: se alguém escolheu viver desprovido de bens materiais, verá essa atitude como ofensiva ou mesmo desprovida de sentido). Ou seja, é insustentável querer universalizar uma atitude particular.

Um outro tópico importante desse assunto é que tal princípio (distribuir a riqueza) pode envolver uma máxima pessoal e egoísta do género “devo fazer aquilo que me beneficia” (por exemplo, através da lei do mecenato, alguém distribui riqueza em troca de isenções fiscais). Assim, destaca Peter Singer: “[…] o que ganhamos por sermos capazes de rejeitar a pergunta ‘por que devo agir moralmente?’”, perdemos por não sermos capazes de usar a universalidade dos juízos éticos – ou de qualquer outra característica da ética – para defendermos conclusões específicas sobre o que é moralmente certo” (Singer, 1994, p. 333). O filósofo está consciente da dificuldade da questão e do facto de haver outros autores que também a rejeitaram, sobretudo porque acreditam que fazer essa pergunta corresponde à mesma ordem de raciocínio da pergunta “por que devemos ser racionais?”. Para Peter Singer, a questão resolve-se assim: as perguntas só seriam iguais se se considerasse o “devo” como um dever moral (isso pressuporia que se teria de perguntar as razões morais para ser moral, o que constituiria um absurdo).

Explicitando de outro modo, se toda a ação é moralmente obrigatória, então, não faz sentido perguntar nada, porque, nesse caso, se estaria numa redundância de questionar por que praticar uma ação que, à partida, já se sabe como um dever moral; não há, pois, “[…] necessidade de interpretar a pergunta como um pedido de justificativa ética da ética” (Singer, 1994, p. 334). Talvez por isso Peter Singer sugira que, sendo possível colocar tal pergunta, se deva fazê-la a partir de um ponto de vista neutro e não de qualquer tipo de envolvimento. Ora, a pergunta inicial é uma pergunta que procura a resposta de um ponto de vista absolutamente neutro e, portanto, não é de fácil respondimento, como o filósofo admite, em virtude de não ser “[...] possível fazer perguntas sem pressupor um ponto de vista, somos incapazes de dizer algo inteligível sobre as escolhas práticas mais fundamentais” (Singer, 1994, p. 334).

O que o filósofo está a dizer é que, antes de alguém se resignar a uma conclusão dessa natureza, deve pelo menos tentar perscrutar a intenção da pergunta, tentar interpretá-la com neutralidade e, portanto, não se compromete com nenhum ponto de vista específico. O ponto de vista ético parece radicar na exigência e no traço distintivo de que os juízos éticos devem ser universalizáveis. A ética como disciplina exige que se abandone o ponto de vista pessoal dos estados de coisas do mundo e se adote o ponto de vista do espetador universal que procura ajuizar, de um modo universal. Assim, a pergunta “por que devo agir moralmente?” é uma pergunta que pode ser feita por quem se quiser questionar sobre o dever de só agir moralmente com base em proposições razoáveis e universais; ou seja, a pergunta remete para a ultrapassagem da esfera da individualidade agindo só com base em juízos que se esteja aberto a receber como universais.

 

1 Razão e ética: um problema e algumas perspetivas

 

De acordo com a tradição filosófica, sobretudo associada a Kant (mas cujas raízes remontam aos estoicos), o agir racional consubstancia-se no agir ético.[2] A forma básica na qual tal constatação é apresentada se baseia fundamentalmente nas seguintes premissas (Singer, 1994, p. 335):

1. Alguma exigência de universalidade ou imparcialidade é fundamental em ética.

2. A razão é universal ou objectivamente válida. Se, por exemplo, decorre das premissas “todos os seres humanos são mortais” e “Sócrates é humano” que “Sócrates é mortal”, então esta inferência vale universalmente. Não pode ser válido para mim e inaceitável para você. Este é um ponto geral sobre a razão, tanto teórica como prática.

Logo,

3. Só um juízo que atenda à exigência descrita em (1) como condição necessária de um juízo ético objectivamente racional em conformidade com (2). Pois não posso esperar que outros agentes racionais aceitem como válido, para eles, um juízo que eu não aceitaria se estivesse em seu lugar; e, se dois agentes racionais não pudessem aceitar os seus juízos mútuos, estes não poderiam ser juízos racionais, pela razão oferecida em (2). […] Portanto, a razão exige que ajamos com base em juízos universalizáveis e que, nessa mesma medida, ajamos eticamente.

 

Peter Singer aceita tanto a primeira (ética implica universalizabilidade) como o segunda (a razão deve ser universal), o que é perfeita e filosoficamente razoável. Contudo, surge o problema da conclusão que se devia seguir natural e diretamente das premissas, mas “[…]esse movimento envolve um resvalo, do sentido limitado em que é verdade que um juízo racional deve ser universalmente válido para um sentido mais forte de “Universalmente válido”, que equivale à universalizabilidade” (Singer, 1994, p. 336).

A diferença desses dois sentidos verifica-se, como refere o autor, se considerarmos um imperativo não universalizável, puramente egoísta, de um imperativo do egoísmo universalizável. Quanto ao primeiro, pode ser expresso pela máxima “que todos façam o que for do meu interesse”, o qual difere do segundo, “que todos façam o que for do interesse dela ou dele”, pois “[…] contém uma referência não eliminável a uma pessoa específica” (Singer, 1994, p. 336).

Isso significa que não pode ser considerado um imperativo ético, porque especifica claramente o interesse individual, quer dizer, “o meu interesse”. Porém, não lhe parece faltar universalizabilidade para se constituir como base racional para a acção, uma vez que é perfeitamente humano e justificável que todo e qualquer agente racional aceitasse o egoísmo puro se este fosse adotado por todos. Aparentemente controversa uma tal posição e aceitação, bem o sabemos, mas se repare no seguinte: eu aceito a actividade puramente egoísta de outros agentes racionais se ela for racionalmente justificável.

Peter Singer dá um exemplo prático: Jack e Jill têm interesses diferentes.[3] Jill insiste com Jack para este fazer A, mas Jack decide racionalmente que não vai fazer A. É claro que essa divergência não incompatibiliza a aceitação do egoísmo puro (eles adotam diferentes direções porque partiram de posições diferentes); quando Jack adota o egoísmo puro, leva em consideração os seus interesses, acontecendo o mesmo com Jill.

Ora, é nesse ponto que o egoísmo puro pode ser aceite como válido pelos agentes racionais neles envolvidos: se se perguntar a Jill confidencialmente (garantindo não contar ao outro agente racional, Jack) que seria verdadeiramente racional Jack fazer, ela (Jill) responderia, estando a ser sincera, que ele faria o que estivesse de acordo com os seus interesses e não com os dela. Assim, isso significa, em termos práticos, que as divergências que se verificam, quando agentes racionais se opõem nos seus interesses, são divergências dos agentes e não propriamente sobre a racionalidade do egoísmo puro. Não se pode esperar que se estabeleça um princípio universalizável a partir dessas considerações, todavia constitui (para os agentes racionais) uma base racional para a acção (note-se que o termo “racional”, na asserção anterior, pode denotar uma certa fragilidade no nível daquilo que pode ser defensável ou não como racional, numa tomada de posição). Conforme adianta Peter Singer “[…] o facto de que uma acção vai-me beneficiar, em vez de beneficiar uma outra pessoa, poderia ser uma razão válida para praticá-la, embora não pudesse constituir uma razão ética para que fosse praticada” (Singer, 1994, p. 337).

A consequência de este assumir de posições puramente egoístas é que qualquer um dos agentes racionais pode tentar impedir um outro agente de fazer aquilo que está racionalmente justificado a fazer. Tal é o caso a que alude o autor, quando, por exemplo, dois vendedores disputam uma venda importante e, apesar de aceitarem a conduta do adversário como racional, tentam impedir o sucesso do outro. Ou seja, é perfeitamente normal que um vendedor de automóveis (A) por exemplo, aceite como racional qualquer estratégia de um outro vendedor (B), pois provavelmente ele fará o mesmo para vender os seus carros. Desse modo, facilmente se conclui que a ligação razão e ética é muito ténue e insustentável (Singer, 1994, p. 338).[4]

A possibilidade de sucesso para uma ligação razão-ética parece comprometida. Não se vislumbram soluções para essa ligação, dado que nenhum obstáculo pode apresentar mais dificuldades do que a própria natureza da razão. A razão não é exclusivamente teórica e, nessa vertente prática, utilitária, choca-se com um plano que tem a sua raiz numa teorização mais ou menos abstrata, a ética. Quer isso significar que, embora o ser humano aplique ou tente aplicar quotidianamente um determinado posicionamento ético, é levado mais a agir pelo uso prático da razão e, queira-se ou não, essa vertente prática da razão apela interiormente à satisfação de vontades e desejos dos sujeitos.

Uma das conceções de razão prática mais inflexivamente formuladas é a de David Hume,[5] o qual sustenta que, num raciocínio de ordem prática, se toma como ponto de partida as coisas que se desejam (recorde-se que as paixões são as causas diretas das ações). Assim, os vendedores de automóveis estariam preocupados com os seus interesses, com os seus desejos. Na ótica de David Hume, seria perfeitamente aceitável que o vendedor A preferisse a destruição dos carros do vendedor B, a um simples risco num dos seus carros. A posição de David Hume não é viável, ou melhor, compromete o acesso a uma ligação razão-ética (recorde-se que a razão não é ativa nos juízos éticos); é uma posição comprometedora, porque, embora se vislumbre a possibilidade de um ténue altruísmo, ele é fruto de um desejo de um sujeito que faz uso da sua razão prática. Na verdade, isso é facilmente compreensível se se disser que a maioria das pessoas não tem grandes sentimentos ou comportamentos éticos com quem se cruza no seu dia a dia, ou, para utilizarmos as palavras do filósofo escocês, isso acontece porque “[…] não existe nos espíritos humanos a paixão do amor pela humanidade, enquanto tal, independentemente das qualidades pessoais, serviços ou relação connosco próprios” (Hume, 2001, p. 521).

O que Peter Singer pretende, realçando o quão difícil é refutar a conceção de David Hume, é um argumento que mostre “[…] que é racional para nós todos agir de modo ético, independentemente do que queiramos” (Singer, 1994, p. 338). Assim, Peter Singer entende que David Hume não se presta exatamente a demonstrar a necessidade racional do agir ético, pelo que se socorre do ponto de vista de Thomas Nagel.

Para Thomas Nagel devem ser tomados em consideração os desejos futuros nas deliberações práticas. Isso irá significar uma perspectiva relativamente diferente: se não se tiver em vista essas deliberações, não se será capaz de se situar no tempo, ou seja, vivendo apenas o tempo presente que será, segundo o autor, como um “[…] tempo dentre outros que existem na vida humana” (Singer, 1994, p. 338). Expressando de forma mais simples, interessa, conforme Thomas Nagel, considerar a conceção que faço de mim enquanto sujeito racional e de estabelecer, ou melhor, de considerar os meus desejos, os meus interesses em longo prazo, isto é, com uma certa projeção para o futuro. Ora, uma conceção assim formulada aponta necessariamente para uma projeção individual da existência, não podendo ser tida por  irracional. Tome-se de novo o exemplo dos vendedores de automóveis: se o vendedor A estabelecer um determinado interesse para daqui a X tempo, pouco lhe interessará (à partida) a própria existência do vendedor B ou dos seus interesses.

Thomas Nagel tenta um argumento semelhante, que possibilite uma forma de altruísmo, quer dizer, o qual seja possível levar em conta (de algum modo) os interesses alheios (que se pode traduzir, de modo genérico, na frase “gostarias que te fizessem o mesmo?”). Assim, num argumento em favor do altruísmo propõe-se alterar a frase “ver o presente como nada mais que um tempo entre outros” para “ver-se como nada mais que uma pessoa entre outras” (apud Singer, 1994, p. 338). Será tal “exigência” eticamente possível ou aceitável? Não é tal desígnio uma exigência de resignação ou renúncia à individualidade, à identidade existencial? O problema (e, por isso mesmo, a dificuldade de afirmar a possibilidade do altruísmo, 1970) parece residir não tanto na dificuldade de um determinado indivíduo se limitar a viver o tempo presente, deixando de se considerar existente no tempo, mas mais na dificuldade de se encarar como uma pessoa entre outras (Thomas Nagel reformula algumas das sua conceções, cerca de três dezenas de anos depois, culminando na obra Mind and Cosmos, de 2012).

Henry Sidgwick afirma que é contrário ao senso comum ignorar que essa distinção seja real e fundamental, pois é na própria distinção que o sujeito se permite determinar o fim da acção racional.[6] A conhecida passagem de Henry Sidgwick (presente unicamente na primeira edição) da obra The Methods of Ethics é explícita quanto a isso:

 

O velho paradoxo imoral, de que “o meu desempenho do Dever Social é bom não para mim mas para os outros”, não pode ser refutado completamente através de argumentos empíricos; não, quanto mais estudarmos esses argumentos, mais somos forçados a admitir que, tendo apenas esses para nos basearmos, terá de haver casos em que o paradoxo é verdadeiro. E, no entanto, não podemos senão admitir com Butler que em último caso é razoável que cada um possa procurar a sua própria felicidade. […] Mas, o Cosmos do Dever é então verdadeiramente reduzido a um caos: e o esforço prolongado do intelecto humano para enquadrar o ideal perfeito da conduta racional é visto como condenado desde o início a um inevitável fracasso. (Sidgwick, 1874, p. 473, tradução nossa).

 

Aquilo que Sidgwick está a dizer é claro: será muito difícil, senão mesmo impossível, conseguir conciliar (o desejo de) felicidade individual e conduta ética adequada e, por isso mesmo, o “inevitável fracasso” da ética enquanto projecto.

Das noções anteriormente abordadas, conclui-se: a demarcação de um argumento que exiba racionalidade para que todos ajam de modo ético parece inviável, na mera especulação teórica; não apenas pela exibição da razão prática de Hume, mas também pela constatação de que o senso comum diferencia a distância que nos separa uns dos outros.

 

2 Ética e interesse pessoal: continuação de um problema com felicidade em fundo

A pergunta “por que devo agir moralmente?” apresenta um certo embaraço, uma vez examinada no âmbito do agir racional e pessoal do indivíduo, quer dizer, ao ser considerada na esfera da moralidade que apela a interesses pessoais. Significa isso que o agir moral se poderia plasmar num qualquer imperativo condicional ou, para se usar a terminologia kantiana, um imperativo categórico, o que a ser defendido sugeriria uma má compreensão da ética, conforme assinalam alguns autores, de que F. H. Bradley pode servir de exemplo, quando refere: “[…] que resposta podemos dar quando a pergunta “por que devo agir moralmente?” no sentido de “que vantagens isso me trará?” nos for colocada? A este respeito, imagino, faremos bem em evitar todos os louvores ao carácter agradável da virtude” (apud Singer, 1994, p. 340).

Esse ponto é elementar: se se quer levar as pessoas a agir eticamente, dando-lhes razões coincidentes com os interesses pessoais delas, então, elas agirão conforme essas razões, não tanto por razões éticas, mas pelos interesses pessoais envolvidos. Retomando o exemplo dos vendedores de automóveis: se fosse dado a entender ao vendedor A que recomendando um seu colega – seja o vendedor B –, isso lhe poderia granjear mais reputação, mais admiração (por exemplo, de ser um vendedor honesto, eticamente sincero), e que, para além de aumentar o negócio, estaria também a agir de modo ético, muito provavelmente, ele o fará (não por ser eticamente correto mas por ver aumentar os seus negócios, isto é, pelos seus interesses pessoais).

Comece-se por anotar criticamente a esse respeito que o que interessa é a substância da ação e não o motivo; no caso dos vendedores de automóveis, não só aumentaria o prestígio e as vendas do vendedor A, como poderia oferecer ao vendedor B a possibilidade de vir a se beneficiar dessa ação “ética”, isto é, aumentando o seu negócio também (visto que estava a ser recomendado pelo vendedor A).[7] Desse modo, o vendedor B poderia fazer o mesmo em relação a ele ou a outros vendedores, agindo racional e eticamente em simultâneo, pois desse ponto de vista, o que interessa são os resultados. A objeção que pode ser imediatamente feita é que esta conceção reside no facto de assentar primordialmente em interesses pessoais, ou se se preferir, numa desvirtuação do sentido originário da ética. Ora, a ética não pode ser só tomada em função dos resultados ou em função dos motivos. A ética resulta substancialmente da vida comunitária, da vida social, da vida política, na aceção da palavra grega polis, e tem como função promover valores comuns dentro desse espaço de atuação. Os juízos emanados pela ética, indo ao encontro dessa promoção de valores, incentivam as ações que podem contribuir e conduzir a essa prática. Os juízos éticos remetem para as motivações, ou seja, para os motivos que levam a praticar uma ação; em outras palavras, os juízos éticos mantêm-se na dimensão dos motivos e são eles que indicam a tendência para uma boa ou má ação (repare-se que, se estivessem na dimensão dos resultados, provavelmente, ou não promoveriam as ações boas, ou, tão simplesmente não poderiam ser chamados de juízos éticos). É, pois, no nível das motivações que a ponderação moral atua, já que a reprovação ou o louvor da ação a praticar pode ser modificada, alterada, sem sair desse domínio. Assim, enfatiza Peter Singer a “[…] consciência moral (agir com o objetivo de fazer o que é certo) é um motivo particularmente útil” (Singer, 1994, p. 341).

Significa isso que, se todo o indivíduo dotado de consciência moral aceitar os valores da sociedade, tenderá sempre a aceitar e valorizar os valores que essa sociedade ditar. Nesse tipo de situação, acontecem essencialmente duas coisas: os que aceitam esses valores e que atuarão eticamente porque estão a agir de acordo com os valores promovidos pela sociedade onde estão inseridos, e os que agirão corretamente, não pela promoção desses valores, mas porque a atuação correta pode ir ao encontro dos seus interesses pessoais. Portanto, encaradas as situações dessta perspetiva, é-se tentado a dizer que o resultado tem muito maior peso na atuação moral. Ou seja, a suposta consciência moral (que é “[…] uma espécie de tapa-buracos de múltiplas funções…” Singer, p. 341) adquire valor pelas suas consequências práticas. E escreve-se suposta porque a “consciência moral”, assim considerada, reenvia para uma atuação que desconsidera o sentido primordial da ética e ou de juízo ético.

Peter Singer faz ainda uma advertência: a linguagem ética é inadequada ou imprópria para motivar os indivíduos. Não se pode dizer à pessoa A que deve fazer ou que tem o dever de fazer todas as ações que lhe deem prazer, porque isso já está presente nas motivações das pessoas. Da mesma maneira não se deve usar o condicional para promover uma ação ética – “se fizeres isto, então terás aquilo” –, porque isso acentua o caráter individual e egoísta de uma falsa ética. Peter Singer está a alertar para algo crucial: a noção de ética tornou-se enganadora, uma vez que, se a ação praticada for correta, por consequinte, terá valor moral. Acrescenta que, embora essa atitude esteja enraizada na sociedade, é talvez a mais benéfica, pois as pessoas praticam ações corretas sem se perguntarem pelas razões dos seus atos. Naturalmente, há aqui um espectro kantiano: se só tem valor moral uma ação praticada correta, então, cria-se o hiato de saber se a ação praticada correta foi conforme ao dever sem mais, ou se foi conforme ao dever por coincidir com os interesses pessoais ocultos. A noção de moral kantiana é demasiado fechada e como tal deve ser rejeitada, embora Peter Singer salvaguarde o plano prático: “[…] isso não significa, porém, que nunca devemos fazer o que nos parece certo simplesmente porque nos pareceu certo, sem outras razões que justifiquem os nossos atos” (Singer, 1994, p. 343).

Peter Singer revê a questão de partida e, seguindo Hare, faz a seguinte análise: quando pensamos na pergunta (“por que devo agir moralmente?”) e pondo de lado todas as minhas decisões éticas quotidianas, então, é de se esperar que analisando mais profunda e amplamente a questão, eu chegue a razões de interesse pessoal que me permitam levar uma vida ética; ou seja, se essa análise for bem-sucedida eu terei encontrado razões ou motivos para assumir um ponto de vista ético como modelo ou modo de vida. De facto, parece que, se uma pessoa se encara como pessoa ética, já não irá ponderar o que será certo fazer ou não, quer dizer, nas ações quotidianas, se assumir que fazer o que é certo é já fazer parte dos seus interesses, logo, assim que decidir fazer ou não algo, já não se irá perguntar pelas razões que a levam a fazer ou não essa ação. O problema dessa conceção é, como refere Peter Singer, “[…] deliberar sobre as razões fundamentais para fazer o que é certo, em cada caso, complicaria a minha vida de uma maneira impossível” (Singer, 1994, p. 344). Talvez não esteja na natureza humana (re)agir desse modo tão calculista e formal. E o problema parece residir precisamente aí, na natureza humana.

Muitos têm sido os pensadores que têm procurado esboçar conceções e definições em infindáveis parágrafos sobre a natureza humana e, por acréscimo, sobre as condições possíveis para se chegar à felicidade. Essa associação não é por acaso, e sabêmo-lo desde os gregos; na polis grega, o culto das virtudes seria um degrau a percorrer para (se criar condições para) atingir a felicidade, o Bem. Essa noção vingaria de tal forma que, nas conceções mais modernas, mais ou menos religiosas, a prática de ações morais relevantes configura-se como caminho para a autorrealização ou felicidade. Ora, considerando tais quesitos, surge a pergunta: “[…] que factos acerca da natureza humana poderiam mostrar que a ética e o interesse social coincidem?” (Singer, 1994, p. 344).

Existem muitas teorias sobre tal assunto, por exemplo, dizer que todos os seres humanos têm uma inclinação para a solidariedade, que os leva a ter preocupações com os outros, ou dizer que o ser humano tem uma consciência natural que experimenta um sentimento de culpa sempre que pratica uma ação errada, ou, se se preferir, para os defensores da ligação ética-felicidade, não se pode suprimir nem a benevolência nem a solidariedade pois isso significaria agir contranatura e, portanto, impedir a felicidade (cf. Singer, 1994, p. 345). Segundo Peter Singer, essa ligação entre o carácter, a consciência natural, a personalidade e as expectativas de felicidade não passam de meras hipóteses, acrescentando que as tentativas de as confirmar são quase nulas e inadequadas.

Para o psicólogo norte-americano Abraham Maslow, o ser humano tem necessidade de autorrealização (conforme a sua “hierarquia de necessidades”, publicada em 1943 na revista Psychological Review), o que implicaria a aquisição crescente de coragem, bondade, conhecimento, amor, honestidade e altruísmo. Maslow ressalta que, quando sentimos esse progresso, sentimo-nos mais alegres, podendo até sentir alguma euforia.[8] Peter Singer assume uma posição assaz curiosa: salienta que seria ótimo, se Maslow estivesse correto. Para o autor, os dados de Maslow estão, de alguma forma, contaminados, quer dizer, os estudos que Maslow fez são muito limitados (no objeto e extensão), e sugere mesmo que as pessoas foram escolhidas e, nesse sentido, devem ser apenas tomados como sugestivos.

Peter Singer levanta uma hipótese interessante, a partir dessas considerações: como se pode aplicar uma generalização sobre o caráter dos sujeitos, quando, por exemplo, se tem presente que, na nossa sociedade existem “psicopatas”? Esse rótulo, como se sabe, indica geralmente uma pessoa “[…] anti-social, impulsiva, egocêntrica, não emotiva, desprovida de sentimentos de remorso, vergonha ou culpa, e aparentemente incapazes de criar relações pessoais profundas e duradouras” (Singer, 1994, p. 345-346). No fundo, o que Peter Singer está a dizer é que a existência de psicopatas vem negar a afirmação de que a benevolência e a solidariedade estariam presentes em todos os seres humanos.[9] Isso também significa, segundo o autor, que, se se deixar de lado a crença religiosa, se encarando a vida como falta de sentido, por que não escolher a vida como a de um psicopata? A questão é, no fundo, saber se, abandonando uma dimensão religiosa, a vida tem ou não sentido (tal como, por exemplo, um ateu a vive). A busca de razões para o agir moral conduziu inevitavelmente à questão pelo sentido da vida, o que, parece, encobre a afirmação de que é o agir moral que confere sentido à vida.

 

Considerações finais

Itens para uma primeira conclusão

Da interrogação primeira – por que devo agir moralmente? –, que procurava razões racionais a todo o agir moral, passou-se para o centro oculto da questão, o qual como se viu, indaga pelo sentido da vida; ou seja, a pergunta “por que devo agir moralmente?” sofre uma transformação que fará recair tal centralidade sobre o sentido da vida. Contudo, essa transformação parece ocultar a razão principal da pergunta que assim se reformula para “a vida tem sentido, se eu agir moralmente?”. Na verdade, tal variação pode significar uma nova aplicação da moral kantiana, uma espécie de imperativo hipotético: se eu agir moralmente, terei, pois, um sentido para a vida. Não é isso que se pretende. Pretende-se captar o sentido verdadeiro, válido e racional pelo qual se age eticamente e pelo qual, parece, se adquire um sentido para a vida.

Peter Singer propõe-se analisar a crença, isto é, pela colocação da hipótese de rejeição da crença na existência de Deus, sugerindo que essa rejeição implica a perda de sentido: “[…] quando rejeitamos a crença num Deus, devemos abrir mão da ideia de que a vida neste planeta tem algum significado pré-determinado. Vista como um todo, a vida não tem sentido” (Singer, 1994, p. 348). Ora, como se sabe pelas teorias biológicas, a vida começou a partir de uma combinação perfeitamente aleatória de células. Tudo parece ter acontecido segundo um processo de mutações causais e de seleção natural que nada tem a ver com necessidade: “[…] tudo isso simplesmente aconteceu; não aconteceu em decorrência de nenhuma finalidade geral” (Singer, 1994, p. 349). Nesse sentido, quer dizer, no sentido de que não houve um determinismo ou uma qualquer necessidade na ocorrência da vida, então talvez seja possível ao não crente (na medida em que este rejeita a necessidade de um Deus instaurador de sentido para a vida) vislumbrar um significado na e para a vida.

Peter Singer retoma o exemplo e a comparação de um “psicopata” com uma pessoa normal, o que lhe permite (a partir do primeiro) colocar a questão: por que não decidimos pelo egocentrismo que estes demonstram ao não se interessarem por ninguém? Por conseguinte, por que não tem sentido a vida deles, apesar do prazer de que (aparentemente) desfrutam? O filósofo diz-nos que facilmente alguém que tenha tomado a decisão de agir segundo o seu egocentrismo, de desfrutar da vida sem se preocupar com ninguém, conseguirá ser feliz. E por quê? Porque a nossa vida não se centra exclusivamente nos prazeres, e será, pois, necessário ir mais além. A razão é clara, é que se não se for mais além (do egocentrismo) cedo se esgotarão os prazeres e até mesmo o seu sentido, parecendo vazios. A vida não passa só pelo sentido da felicidade, pois se corre o risco de se entrar numa vertiginosa viagem sem sentido, isto é, corre-se o risco de entrar no “paradoxo do hedonismo”, que é

[...] o fato de que as pessoas que procuram a felicidade pela felicidade quase conseguem encontrá-la, ao passo que outros a encontram numa busca de objetivos totalmente diversos. Não se trata por certo, de um paradoxo lógico, mas de um postulado sobre o modo pelo qual chegamos a ser felizes. […] a nossa própria felicidade é um subproduto do desejo de conseguir uma outra coisa, não sendo alcançada quando o objetivo em questão é a felicidade pela felicidade (Singer, 1994, p. 349).

 

A felicidade é mais um modo de representar a conquista de um determinado objetivo, ou por outras palavras, a felicidade funciona como recompensa pelas conquistas que vamos alcançando. O segredo pode passar pelo estabelecimento de planos mais amplos, em médio ou longo prazo, mas pode também acontecer que isso não passe do plano especulativo (na verdade, os egoístas mais precavidos, mais cautelosos, podem fazer projetos em longo prazo). Ora, o ir mais além (que Peter Singer menciona) denota alguma fragilidade pois parece que nessa dinâmica também se estabelece a mera concretização dos interesses pessoais, pelo que se estaria a cair no egocentrismo; mas, ainda que se concretizassem, poderia acontecer que surgisse a angústia, como parece surgir na grande parte dos egoístas materialmente bem sucedidos, a qual é a angústia de não saberem se estão ou não felizes ou se isso será a felicidade.

Peter Singer, após todas essas considerações, recentra a questão no ponto de vista ético que é precisamente aquele que deve ser exigido para que se ultrapasse o ponto de vista pessoal e se possa assumir a postura de espectador imparcial: “[…] ver as coisas eticamente é uma maneira de transcender as nossas preocupações subjetivas e de nos identificar com o ponto de vista mais objetivo possível – nas palavras de Sidgwick, com o ponto de vista do universo” (Singer, 1994, p. 351). Assumir esse ponto de vista é assumir, como se depreende, a nossa “pequenez”, é assumir a nossa humildade perante o vasto universo. Trata-se de assumir uma atitude perante o universo, começando por reconhecer a sua situação no mundo, enquanto ser englobado e englobante, nesse conjunto.

É claro que se pode objetar que isso significa estabelecer um objetivo demasiado grandioso para uma sociedade que se encontra à deriva. Assim, a pergunta “por que agir moralmente?” pode não encontrar uma resposta que seja válida para todas as pessoas, isto é, que ofereça razões imperiosas para uma prática de ações morais. No fundo, isso significa que tanto pode ser estabelecido por um crente ou por um ateu um sentido para a vida, sem que isso signifique um encaminhamento por determinadas normas de regulação moral. A resposta talvez seja encontrada na consciência individual de cada um, de praticar ações que promovam o bem-estar do ser humano (adotando o ponto de vista ético) enquadrando-as no mundo.

O filósofo procurou demonstrar a inviabilidade dos percursos humanos através do individualismo ou egocentrismo, uma vez que isso conduziria o ser humano à infelicidade. Há, por conseguinte, um apelo à comunhão, à comunicação, à identificação com o universo que nos rodeia (de certa forma, o ponto de vista do universo nas palavras de Sidgwick); há o apelo moral para a consciência individual de cada agente (o que revela ainda uma ligação à moral kantiana, no estrito sentido em que a lei moral estaria inscrita em todos os indivíduos), como forma de estabelecimento de uma comunidade verdadeira de seres humanos em comunhão com o mundo. Todavia, não será tudo isso um exercício de retórica moralista para um mundo cada vez mais desumanizado? Um puro exercício académico sem grande utilidade prática? Uma atitude vazia dentro do absurdo do mundo? Os desafios são enormes e exigem atenção demorada, não apenas do ponto de vista teórico mas do ponto de vista prático considerando todas  as variáveis desta equação ética.

 

Uma segunda conclusão: o que criticar na metaética de Peter Singer

Não sendo o propósito deste ensaio fazer uma avaliação global do pensamento do eticista, não se pode, contudo, deixar de esboçar algumas linhas considerando a relevância da pergunta que deu mote ao ensaio, e sobretudo as críticas que lhe têm sido dirigidas. É de crer que, em certa medida, o filósofo terá percebido as limitações da sua resposta e talvez por isso mesmo, na sua obra posterior (mais de uma dúzia de anos depois) intitulada Como havemos de viver?, estabeleça o diálogo com Albert Camus (e o mito de Sísifo), precisamente através do questionamento pelo sentido da vida. Repare-se que em Albert Camus, o re-conhecimento do absurdo é uma questão essencial para determinar e legitimar o sentido da vida. Conhecer a realidade do mundo e aceitá-la para a ultrapassar é o que, segundo Albert Camus, justifica tal sentido. Ora, o eticista não terá captado isto.

Huemer (2009), uma das vozes mais atentas à narrativa de Peter Singer, critica-o relativamente ao problema-questão “por que ser moral”, referindo que a sugestão do filósofo parece remeter para uma certa racionalidade prudencial (a qual proporcionaria uma vida plena de sentido e feliz). Isso significaria também que a razão pela qual se agiria moralmente é porque isso satisfaria as preferências que cada indivíduo poderia ter na vida, o que contraria a tal universalidade ética (embora um indivíduo tenha o desejo de atender com primazia as pessoas que lhe estão mais próximas, isso não corresponde à demanda ética) e, portanto, torna a tese de Peter Singer muito insegura. Uma instabilidade que se torna mais visível se se pensar que Peter Singer deforma a dinâmica entre ética e prática ou, como frisa Korsgaard, “[…] a filosofia prática, como concebida por Kant e Rawls, não é uma questão de encontrar o conhecimento para aplicar na prática. Antes, ela é o uso da razão para resolver problemas práticos” (Korsgaard, 2003, p. 115).

Percebe-se que Peter Singer balança entre o não-cognitivismo humeano e o cognitivismo kantiano, que é percetível nas hipotéticas respostas que, numa linguagem corrente, poderiam ser as seguintes: “é nosso dever agir moralmente”, “há razões morais muito claras para agir moralmente”, ou “não se pode não ser um agente moral senão se agir moralmente”. Assim, nada mais é requerido (isto é, nenhuma outra razão) para se responder à questão inicial. Huemer (2009) afirma que isso nada mais é do que disfarçar o intuicionismo latente em Peter Singer, o qual faz um jogo entre apelar às intuições dos indivíduos, por um lado, e, por outro lado, as quer racionalizar no conjunto das ações humanas. Dizendo de outra forma, a metaética de Peter Singer, segundo Huemer, não consegue fazer coincidir as conceções morais com a metodologia ética que emprega.

De notar que o intuicionismo advoga o reconhecimento de verdades que se dão como evidentes, querendo isso significar, em termos práticos, que os agentes agem corretamente, pois as normas morais estão previamente fixadas à própria noção que podem ter de pessoa e de comunidade (aqui é Huemer que parece não perceber a herança cultural evolutiva, a qual subjaz a muitas das ações morais). Gowans (nos seus trabalhos de dilemas morais), mas sobretudo Sinnott-Armstrong (1996) e Audi (2004, 2008) associam intuições e crenças e assim, justificam muito daquilo que acontece, quando se age moralmente no mundo humano (as intuições morais de certo e errado, por exemplo).

Ora, mesmo nas obras mais recentes de Peter Singer, o jogo entre o intuicionismo racionalista (para se usar a terminologia de Huemer) e o cognitismo kantiano continua a manifestar-se de forma paradoxal como, por exemplo, em The Life You Can Save (2009) e The Most Good You Can Do (2015). Se, na primeira, o eticista parte da afirmação de que os países ricos não estão a contribuir como deveriam, para acabar com a pobreza – justificando tais atitudes com um modelo de compreensão psicológica que passa pela existência de uma dissonância cognitiva e uma difusão de responsabilidade –, na segunda obra, remete para uma moral (algo) utilitarista, para um certo objetivismo ainda difuso.

O desejo de prescritivismo moral de Peter Singer parece expressar mais um paradigma de avaliação, ou melhor, um paradigma de aprovação ou desaprovação das ações morais do que relatar objetivamente fatos morais. Contudo, pode ser o caso de que o aparente jogo que Peter Singer realiza seja o mais adequado: ter uma conceção natural da moralidade (seja o intuicionismo moral, seja emotivismo) não significa que não haja lugar para a racionalidade e, sobretudo, para o desejo de objetividade moral. Por isso a pergunta “por que devo agir moralmente?”, se transmuta numa pergunta pelo sentido da vida, em que subjetividade e objetividade se controvertem também nesse jogo frágil, mas constante, entre expressar desejos latentes e afirmar razões objetivas para a existência.

 

The endless question: why (should I) act morally?: analysis of chapter 12 of Practical Ethics by Peter Singer

 

Abstract: This essay seeks to provide a detailed analysis of chapter 12 of Peter Singer's Practical Ethics. Fundamental chapter not only for understanding the author's ethical and moral thought, but also for understanding the author's cultural and civilizational thought. It is in this sense that the question posed in the title - why act morally - is not limited to the horizon of the redundant discussion of personal interest or educational factors but becomes the philosophical-ethical exercise of inquiry into human action in the world, and therefore, It is a question that is rooted within ethics itself (as the author states), that is, as the foundation of human action. The essay ends with a reflection on the validity of the author’s ethical thinking in this specific chapter and some considerations on the philosopher’s general ethical thought.

 

Keywords: Peter Singer. Ethic. Utilitarianism. Moral action. Duty.

 

Referências

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HUEMER, M. Singer´s Unstable Meta-Ethics. In: SCHALER, J. A. Peter Singer Under Fire. Chicago, Open Court, 2009.

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KORSGAARD, C. M. Realism and Constructivism in Twentieth-Century Moral Philosophy” IN: Journal of Philosophical Research, 28 (2003): pp. 99-122. doi.org/10.5840/jpr_2003_8

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NAGEL, T. A Possibilidade do Altruísmo. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009.

NAGEL, T. Mind & Cosmos: Why the Materialist Neo-Darwinian Conception of Nature is Almost Certainly False. Oxford: Oxford University Press, 2012.

SIDGWICK, H. The Methods of Ethics. London: Macmillan, 1874.

SINGER, P. Como havemos de viver? A ética numa época de individualismo. Lisboa: Dinalivro, 2005.

SINGER, P. Ética Prática. Tradução De Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

SINGER, P. The Life You Can Save: Acting Now to End World Poverty. New York: Random House, 2009.

SINGER, P., The Most Good You Can Do: How Effective Altruism Is Changing Ideas About Living Ethically. Yale University Press, 2015.

 

Recebido: 07/02/2024 – Aprovado: 11/03/2024 – Publicado: 15/06/2024



[1] Membro/Investigador do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, Coimbra – Portugal; Colaborador do CIAC da Universidade do Algarve, Faro – Portugal. Professor visitante na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8256-1343. Email: paecastro@gmail.com.

[2] Dizendo de outra forma: agir de modo racional é já ir ao encontro de uma disposição ética, pois, para Kant, como se sabe, o indivíduo que age racionalmente, que age de acordo com os mandamentos da razão, age igualmente conforme o dever moral, ou seja, o indivíduo orienta-se na vida por uma razão prática e por uma razão teórica, logo, o agir ético não pode ser separado do agir racional. Note-se que segundo Kant é inconcebível que o indivíduo atue de um modo ético sem que seja racional, pois se o não é, então não pode estar a agir de modo ético.

[3] “Deve-se admitir que existe um sentido em que um agente racional puramente egoísta – vamos chamá-lo de Jack – não pudesse aceitar os juízos práticos de outro agente racional puramente egoísta – vamos chamá-la de Jill”. (Singer, 1994, p. 336).

[4] Retome-se o exemplo dos dois vendedores de automóveis, no qual se verifica essa ligação muito frágil entre razão e ética. Se qualquer um deles adota racionalmente uma posição de egoísmo puro, podendo mesmo impedir o sucesso do outro, dificilmente se consegue descortinar uma atitude ética da parte de um deles, a não ser que se adote o ponto de vista de um deles em que haja essa aceitação racional da estratégia de vendas.

[5] A título de curiosidade refira-se que Alasdair Macintyre na obra Justiça de Quem? Qual Racionalidade? (São Paulo: Loyola, 1991), utiliza a expressão “racionalidade prática” para aludir à razão em David Hume.

[6] “Consequentemente, “eu” estou preocupado com a qualidade da minha existência enquanto indivíduo num sentido, fundamentalmente importante, no qual não estou preocupado com a qualidade da existência de outros indivíduos; e, sendo assim, não vejo como se possa provar que essa distinção não deva ser considerada fundamental para a determinação do fim último da acção racional para um indivíduo” (apud; Singer, 1994, p. 340).

[7] O exemplo que Peter Singer fornece é o seguinte: “As pessoas poderiam dar dinheiro para ajudar a acabar com a fome porque os seus amigos passarão a vê-las com melhores olhos, ou talvez deem a mesma quantia por acharem que é seu dever fazê-lo”. (Singer, 1994, p. 340). Nota: permita-se referir que o exemplo dos vendedores de automóveis é nosso; Peter Singer apenas menciona uma vez o exemplo de vendedores na página 337 dessa obra.

[8] O contrário também se verifica, isto é, “[…] quando agimos contra a nossa necessidade de autorrealização, sentimos ansiedade, desespero, tédio, vergonha, vazio, e geralmente nos tornamos incapazes de gostar de nós mesmos” (apud Singer, 1994, p. 345)

[9] Naturalmente, a problemática dos psicopatas é demasiado extensa e o propósito do seu uso neste ensaio está demonstrado. Uma última observação deve ser feita sobre isto: o argumento de Cleckey destaca que o comportamento dos psicopatas pode ser entendido como uma resposta à falta de sentido das suas vidas.