O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno

 

Reginaldo Aliçandro Bordin[1]

José Francisco de Assis Dias[2]

 

Resumo: O tema deste estudo é o pensamento político de Theodor Adorno, referente às suas contribuições sobre o radicalismo de direita e a personalidade autoritária. Na conferência que pronunciou, em 6 de abril de 1967, intitulada Aspectos do novo radicalismo de direita, Adorno partiu do pressuposto de que o novo radicalismo em nada diferia do antigo, isto é, não havia rupturas nas posições políticas autoritárias que se estabeleceram no Pré-Guerra e no Pós-Guerra, de 1945. Essa constatação o levou a considerar o fascismo-nacionalismo um fenômeno social e político vinculado à sociedade burguesa e à personalidade autoritária, que ele investigou nos Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Para o estudo do tema, a compreensão dos acontecimentos e ideias aludidas por Adorno se faz relacionada à história, em sua dinâmica de mudança e permanência, e à Teoria Crítica, capaz de pôr em discussão esse movimento. A permanência de ideias e políticas autoritárias, mesmo na atualidade, suscita interesses de investigadores desejosos em entender as motivações e fundamentos. Isso justifica um retorno ao pensamento de Adorno. Por isso, o objetivo proposto é o de compreender, em Adorno, a permanência (ou retorno) de posições políticas autoritárias, num momento no qual elas foram vencidas, com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Palavras-chave: Escola de Frankfurt. Teoria Crítica. Theodor Adorno. Radicalismo de direita. Personalidade autoritária.

 

Introdução

Theodor Adorno (1903-1969) pode ser considerado um dos principais colaboradores do Instituto de Pesquisa Social, mais conhecido como Escola de Frankfurt, fundado por jovens preocupados em compreender os principais problemas oriundos dos anos de guerras contínuas que abalaram o mundo, nos anos 1914 e 1945. Entre esses problemas, os quais ainda hoje interessam a pesquisadores das humanidades, consta o fenômeno do radicalismo político da extrema direita, enaltecido por setores sociais atuais. Adorno, um judeu exilado no Estados Unidos da América, se ocupou desse tema e não sem motivos: assistia, às vésperas de sua morte, à permanência desse fenômeno e não se mostrou passivo em face dele. Empenhou-se em compreender os aspectos que caracterizam aquilo que ele chamou de radicalismo de direita, tal como mostrou dedicação em estudar a personalidade autoritária. Ao que parece, os dois são “chifres de uma mesma cabeça”, o capitalismo e a sociedade burguesa que o acompanha.

Essa constatação faz parte dos estudos de Adorno e, por isso, o que propomos para esta reflexão é limitar a discussão ao pensamento desse filósofo, referente a dois de seus estudos: o primeiro, Aspectos do novo radicalismo de direita, conferência proferida em 6 de abril de 1967, que se dedicou a entender a permanência (ou retorno) das posturas autoritárias do século XX. Acrescente-se, a essa discussão, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (1950), pesquisa que procurou identificar o modo como, em sociedades capitalistas e democráticas modernas, há traços do autoritarismo vinculado em uma cultura geral, ancorada no modelo socioeconômico que predominou na sociedade americana, inclusive. Claramente, essa tendência levanta problemas interessantes ao filósofo, ao historiador e ao cientista e psicólogo social, quando se constata, sem muito esforço aparente, a “serpente” do fascismo chocando seus “ovos” no cesto de democracias relativamente consolidadas. Como isso é possível? Que forças gestam e alimentam posturas politicamente autoritárias, mesmo após o fracasso dessa tendência, no fim da 1945?

Essas questões ensejam respostas urgentes, o que justifica um retorno às reflexões de Adorno, atento aos avanços de Hitler na Europa e aos perigos que essa tendência apontava para os tempos posteriores, ameaçando os vestígios de liberdade e democracia. Em face disso, Adorno assumiu a tarefa filosófica da crítica social à sociedade industrial e à sobrevivência de comportamentos (políticos ideológicos) de tipos específicos de radicalismo, os quais perduraram mesmo depois de findada a era de guerra total e a consolidação de sociedades supostamente mais suscetíveis ao cultivo de valores mais humanitários.  

 

1 O novo radicalismo de direita, na perspectiva de Adorno

O texto de Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita (1967), propõe pôr em discussão o caráter fundamentalista do fascismo-nacionalista dos chamados países subdesenvolvidos, que vigorou após o término da Guerra Mundial, em 1945. Ele pensou não só a partir das consequências fatídicas, provocadas pelos campos de extermínio, mas também pelo cultivo e pela permanência do ideal fascista, no período em que o ambiente de guerra e aniquilamento pareciam estar encerrados. Fatos coetâneos ao seu tempo despertaram o interesse de Adorno. Entre os anos 1959 e 1964, uma série de acontecimentos indicavam a permanência dos ideais autoritários: o aumento dos ataques às sinagogas e cemitérios judaicos e a fundação, em 1964, do Partido Nacional-Democrático (NPD), de apelo à extrema direita, advertiam para a conservação de comportamentos antissemíticos. Na compreensão de Catalani (2020), Adorno vincula essa conservação à conexão entre fascismo e capitalismo, algo intrínseco ao processo social e histórico da modernidade e não estranho a ela. Para isso, Adorno percebe que o fascismo não foi um mero desastre histórico, um acidente de percurso, mas está entranhado nos fenômenos culturais e políticos expressos pelo capitalismo. Ele não surgiu do acaso, diagnostica Horkheimer (1980, p.116): o fascismo é a verdade da sociedade moderna, que foi alcançada desde o início pela teoria.[3].

Essa expressão indica o alcance da análise de Horkheimer e Adorno, ao apontar a responsabilidade da Teoria Crítica em diagnosticar a consolidação de posições políticas autoritárias presentes no capitalismo do século XX e mesmo em tempos posteriores. Com efeito, Horkheimer (1980, p. 119) menciona que, “[...] se efetivamente o fascismo emerge do princípio capitalista, então, não se adapta apenas aos países pobres, por oposição aos países saturados”[4]. Por isso, a análise cobra um posicionamento que relacione a estrutura econômica com a política totalitária: “[...] quem não quer falar do capitalismo deve silenciar sobre o fascismo”[5] (Horkheimer, 1980, p. 115). Essa sentença se dirige ao capitalismo de Estado e às alianças estabelecidas com os setores industriais, em nome do progresso dessa mesma sociedade. Logo, indica uma mudança substancial: sugeriu o fato de que os empresários livres só podem manter suas posições mediante a abolição da liberdade burguesa e reconhecendo o totalitarismo como horizonte de possibilidade de manutenção da ordem econômica.

Também Marcuse percorre esse caminho, ao afirmar que o movimento totalitário não era uma revolução e não atuou para alterar as relações básicas do processo produtivo, que ainda é administrado por grupos sociais que controlam os instrumentos de trabalho. A constatação feita por Marcuse (1999), no texto intitulado “Estado e indivíduo sob o nacional-socialismo”, sugere que a organização econômica do Terceiro Reich era constituída em torno de conglomerados industriais, com auxílio governamental. Esses setores mantiveram assegurada sua produção na maquinaria de guerra e na sua expansão. Desde 1933, afirma Marcuse (1999, p. 107), “[...] estiveram amalgamados com uma nova ‘elite’, recrutada nas altas esferas do partido nacional-socialista, mas não perderam suas funções sociais e econômicas decisivas”, mas as afiançaram.

O diagnóstico de Marcuse leva para um caminho que nos permite entender o fundamento dessa configuração de Estado e as forças mobilizadas para atos de conservação da sociedade correspondente a esse ideário. O nacional-socialismo, postula Marcuse (1999, p. 108), não é nem uma revolução nem uma restauração. Ele tende a abolir qualquer separação entre Estado e sociedade, transferindo as funções políticas para os grupos sociais que estão no poder. Marcuse (1999, p. 108-109) argumenta que o nacional-socialismo “[...] tende ao autogoverno direto e imediato dos grupos sociais dominantes sobre o resto da população” e, para a realização dessa finalidade, “manipula as massas liberando os instintos mais brutais e egoístas dos indivíduos”.

Com efeito, a conservação dos privilégios garantidos pelo Estado totalitário, alma de uma ordem social burguesa tida como natural, parece justificar a permanência dos movimentos fascistas, apesar de seu colapso, em 1945. Na compreensão de Adorno, perdura socialmente, mas não na forma imediatamente política, porque existe uma tendência de concentração de capital, a qual se pode eliminar do mundo pelas mais diversas artes estatísticas. Em síntese, a tendência de concentração significa a possibilidade de desclassificação permanente de camadas burguesas, as quais procuram assegurar privilégios e status sociais. Nessa perspectiva, esses grupos elegem inimigos, mesmo que sejam fictícios, e mobilizam sentimentos profundos contra eles: cultivam o ódio ao que entendem por socialismo, ao transformar a sua própria desclassificação potencial não às suas causas, que eles ignoram, mas àquelas que se opuseram criticamente a eles (Adorno, 2020a, p. 46).

O rebaixamento das classes burguesas, proporcionado pelo realinhamento produtivo, é, por consequência, atribuído aos direitos sociais e às políticas públicas, revestidos falsamente de ideais socialistas, e estes são convertidos em inimigos. Esses setores não atribuem a si mesmos a responsabilidade pelos fracassos e crises que promovem, pela atuação que desempenham para assegurar seus privilégios. Talvez, pelos baixos níveis intelectuais, morais e opções teóricas (ideológicas) realizadas, as modificações das bases materiais e suas rupturas e crises não são pensadas como inerentes ao sistema produtivo. São, ao invés, atribuídas a indivíduos ou a teorias que apontam as contradições de uma ordem social, reclamada pelo radical de direita como natural e que a justifica como sagrada e perene. Não comportam, portanto, rupturas e descontinuidades. Por esse motivo, os fascistas elegem inimigos a serem erradicados: cooptam a classe trabalhadora, erradicam a ciência, o marxismo e, naquele momento, os judeus, enquanto síntese do que desprezam: estes “[...] não são uma minoria, mas a antirraça, o princípio negativo enquanto tal; de sua exterminação dependeria a felicidade do mundo”, ponderaram Adorno e Horkheimer (1985, p. 139).

Nesse quadro, o desejo de conservação e eliminação dos que consideram ser causadores de crises é, por conseguinte, a bandeira que tremula no mastro da militância radical. Essa mesma militância, desejosa de autopreservação e manutenção da propriedade e da prosperidade, sente-se acuada pelo avanço do desemprego, associado ao desenvolvimento tecnológico e à automação industrial. O sentimento dessa militância é o de perda da capacidade produtiva e, por isso, ela nomeia seus culpados, mesmo que sejam irreais. Ao ignorar as causas materiais daquilo que as assombra e, sentindo-se dispensáveis pela ordem produtiva, as pessoas, potencialmente supérfluas e ameaçadas pelo desemprego tecnológico, tomam para si como rival a ameaça externa, isto é, os blocos do Leste e seu estilo e condições de vida: “[...] o medo do Leste, tanto por causa do baixo nível de vida ali, como devido à ausência de liberdade que é experimentada de forma imediata e bastante real pelas pessoas, também pelas massas” (Adorno, 2020a, p. 47).

Apesar disso, Adorno (2020a, p. 47) identifica o caráter antagônico do novo radicalismo de direita: há nele algo de fictício, diante do agrupamento do mundo de hoje, em alguns blocos nos quais nações e Estados individuais desempenham papel subordinado. Para Adorno, a nação individual é restringida em sua liberdade de movimento pela integração de blocos de poder, isto é, o nacionalismo desempenha papel contraditório: defende liberdade (de mercado) de blocos, ao mesmo tempo que procura excluí-los, em razão de suas convicções ideológicas. Engajados na luta pela conservação de uma sociedade tida como correta, os radicais de direita, os fascistas, alimentam o sentimento de ressentimento contra políticas externas, porque veem nelas um perigo em potencial. No desejo de autopreservação, tudo o que era estranho à utopia germânica era posto em suspeita, do mesmo modo que imprimiam na política uma mudança determinante: erigiram uma atividade expansionista das ações políticas e militares, justificadas por tropas de intelectuais a serviço dos cálculos e planos na execução de uma lógica assassina, adotada no tratamento dos povos estrangeiros, tal como sugeriu Chistian Ingrao (2015).

Esses princípios aludidos por Adorno oferecem algumas consequências, as quais ele tratou na conferência de 06 de abril de 1967. A primeira delas diz respeito ao medo das decorrências dos desenvolvimentos gerais da sociedade. Ora, o que Adorno (2020a, p.48) constata é que representantes do velho e do novo radicalismo de direita estão presentes por toda a população: grupos de pequenos burgueses, pequenos comerciantes que são ameaçados pela concentração do comércio no varejo, nas lojas de departamento, além de agricultores que se encontram em crises permanentes, tendem a ingressar em movimentos nacionalistas radicais, uma vez que atribuem o seu rebaixamento a causas fictícias, como o comunismo, por exemplo (Adorno, 2020a, p. 48-49). Para Adorno, “[...] o comunismo tornou-se puramente uma palavra para assustar” (Adorno, 2020a, p. 60). Com efeito, Horkheimer (1980), no texto de 1939, já havia indicado a tendência de que o capitalismo subtrai a cidadania e o juízo ou o arbítrio, de maneira a abolir as mediações e estabelecer o fascismo como a verdade do tempo.

Em face disso, outra implicação é constatada por Adorno: esses movimentos parecem cultivar uma oposição entre província e cidade. Embora Adorno seja cauteloso nessa afirmação, ele leva em conta o fato de que os interesses econômicos possibilitam o ingresso no fascismo, apontado como a ultima ratio regum. Ele se apresenta como uma possibilidade diante de uma indústria falida, na Alemanha. Esse quadro não é exclusividade dos velhos grupos nazistas, mas também de jovens, os quais são atraídos e cultivam o sentimento de que a Alemanha deve se reerguer. Sob esse ponto de vista, há um sentimento de terror, de pânico relacionado à dissolução e sentimento de catástrofe social, alimentado pela tendência de pauperização. Por outro lado, Adorno (2020a, p. 52) afirma que, de modo psicanalítico, existe um sintoma sociopolítico importante e característico, pois esses movimentos querem a catástrofe, nutrem-se com fantasias de fim de mundo. E eles se convertem em apelo organizativo da massa desejosa de estabelecer compromissos políticos. O êxito desse movimento, sustenta Adorno (2020a, p. 53), é o de atrair as pessoas por meio do fingimento de que são os garantidores do futuro.

Por isso, não se deve subestimar esses movimentos, devido ao seu baixo nível intelectual e à sua ausência de teoria: eles não são malsucedidos em razão disso, salienta Adorno. O mérito deles, e o que os caracteriza, é o uso dos meios propagandísticos, combinados com uma cegueira, com uma abstrusidade dos fins que aí são perseguidos. Usam meios racionais (perfeição de técnicas) para fins irracionais (o extermínio em massa). A propaganda nivela a diferença entre os interesses reais e os falsos objetivos simulados: “Nesses movimentos de direita radical, a propaganda constitui a substância da política” (Adorno, 2020a, p. 54-55). Mas o radicalismo de direita revela traços específicos na atividade propagandística: serve menos para a disseminação de uma ideologia, que é demasiado pobre, e mais para tornar as massas engajadas. Ela é uma técnica de psicologia de massa e, subjacente a isso, está o modelo de personalidade fixada na autoridade (Adorno, 2020a, p. 67).

A esse respeito, nos Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, de 1950, Adorno pontua sobre o crescimento fascista nas propagandas radiofônicas, panfletos e publicações semanais. Essa produção propagandística evidencia, segundo ele, uma natureza psicológica, condição que revela o esforço desse filósofo em dialogar com as noções psíquicas de Freud à teoria social que formulou. Na compreensão de Theodor Adorno (2015, p. 138), esse material “[...] almeja convencer as pessoas manipulando seus mecanismos inconscientes, e não apresentando ideias e argumentos”. Conforme Adorno, programas políticos positivos, ideias políticas concretas, desempenham um papel menor, quando comparados aos estímulos psicológicos direcionados à audiência, que recepciona um modelo personalizado, homogêneo e alienante de ação política, portanto. É, segundo Adorno e Horkheimer (1985), uma mentalidade de ticket fascista, a qual contém um inventário de slogans propagandísticos que levam o eleitor descuidado a apoiar governos reacionários. Por isso, a indústria cultural mobiliza suas ações, nos veículos que lhe são próprios, para o supérfluo, de sorte que o público consumidor perde a capacidade de síntese e formulação adequada de juízos avaliativos.

Sob esse estatuto, Adorno e Horkheimer enfatizaram que os radicais de direita, os fascistas, põem em movimento a máquina do partido de massas, o qual persuade no sentido de impor aos eleitores os perfis e nomes de pessoas sem conhecimento, mas com pautas ideológicas definidas e claras, entre as quais a cruzada anticomunista e antissindicalista. Esses repertórios são hostis ao contraditório e à faculdade discriminatória, porque são ausentes de reflexão: “[...] o juízo não se apoia mais numa síntese efetivamente realizada, mas numa cega subsunção [...]. Na sociedade industrial avançada, ocorre a regressão a uma forma de efetuação do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, do poder de discriminação” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 166). Nessa perda da faculdade de estabelecer diferenças, as categorias analíticas não encontram adesão, tampouco o conhecimento, agora transformado em dado. As massas se veem esvaziadas da habilidade cognitiva, restando-lhes os impulsos e paixões que as atraem religiosamente ao líder.

Adorno (2015), no texto Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista, de 1951, integra as noções psíquicas ao status quo social, isto é, a abordagem psicanalítica a serviço da compreensão de como os indivíduos são integrados à cultura de massa industrializada. Esses movimentos de massa possuem uma relação profunda com sistemas delirantes que encontram respaldo na personalidade autoritária de tipo manipulador. Adorno destaca que esses personagens característicos são frios, desprovidos de relação, estritamente inclinados à tecnologia, mas que justamente são, em certo sentido, maníacos, como o era Himmler. Na personalidade fixada na autoridade, há um apelo à exatidão positivista, pervertida para inibir a experiência, aquela forma viva de experiência (Adorno, 2020a, p. 68). Odeia-se a psicanálise e manifesta-se anti-intelectualismo, de modo que o caráter autoritário forma uma espécie de síndrome. Diante disso, Adorno ressalta o fato de que se ostentam conhecimentos que, dificilmente, podem ser verificados, mas que, justamente por sua dificuldade de verificação, dão um tipo especial de autoridade àquele que os enuncia (Adorno, 2020a, p. 69).

Cumpre, por fim, realçar mais um ponto: o quão rápido o horror foi esquecido, numa referência indireta a Auschwitz. O passado é esquecido, abandonado ou, na pior das hipóteses, usado como justificativa de ações – da mesma natureza – no presente. Para isso, há um uso habilidoso da propaganda como meio de tocar em pontos sensíveis, por exemplo, o desprezo pelos símbolos nacionais traduzido em ataques de fúria e ações violentas. Na verdade, os símbolos são apropriados e revestidos de novas finalidades: eles não ressoam apenas o nacional, todavia, quando não respeitados, o inconsciente reage de outras ameaças diferentes daquelas insinuadas pela propaganda (Adorno, 2020a, p. 72). Dá-se um complexo sistema de ação punitiva, justificada mediante a alegria de ver outros punidos, por serem acusados de não respeitar os símbolos. Além do mais, esse tipo de comportamento é também expresso na marginalização da força de trabalho estrangeira, sob a justificativa da ausência de emprego. O estabelecimento de uma arte concebida como degenerada justifica a defesa de um modelo puro, cujo protótipo é o retrato de realidades utópicas e ideais.

Adorno, enfim, aponta para uma direção que pretende superar essa tendência: a tática de calar-se sobre essas coisas nunca deu certo e hoje, escreveu ele (Adorno, 2020a, p. 74), certamente esse desenvolvimento foi longe demais para que se possa sair impune. Por isso, ele propõe uma cisão na consciência das pessoas, uma virada para dentro, isto é, tenta-se tomar consciência de que todo esse complexo da personalidade fixada na autoridade e na ideologia de extrema direita, na verdade, não tem sua substância nos inimigos designados, porém, trata-se de momentos projetivos. Os que devem ser estudados e combatidos são os radicais de direita e não aqueles contra os quais eles mobilizam seu ódio. Trata-se de desvelar uma gigantesca técnica de enganação psicológica, de uma trapaça que deve ser demonstrada. Por isso, a luta política contra essa tendência deve ocorrer por meios políticos e intelectuais e enfrentá-la em seu próprio terreno. Não se trata de combater a mentira com a mentira, mas de contrapô-la à força decisiva da razão. Ela deve agir criticamente no desvelo dos mecanismos que permitem a sobrevivência dos movimentos radicais de direita, sombras do fascismo, principalmente em ambientes democráticos, que não coadunam com esse tipo de postura. Por essa razão, Adorno se propôs não apenas estudar o radicalismo de direita, no quadro da teoria social, como também soube incorporar o pensamento freudiano, no esforço de responder como é possível ter sobrevivido um movimento derrotado. A questão permanece aberta.

 

2 A propaganda fascista e a personalidade autoritária do novo radicalismo de direita

Não deixa de suscitar interrogações, como fez Lukács (2021), nos anos 1940, sobre como o país dos poetas e pensadores se tornou o país da barbárie organizada e sistematizada e como um indivíduo mentalmente subalterno, moralmente pervertido, pôde se tornar um líder e exemplo do povo. Se essas formulações permanecem abertas, é porque o fenômeno aludido por Adorno é parteiro de ideias que se reproduzem e se espalham na indústria da cultura e da informação, as quais persistiram em tempos ulteriores. Todavia, é possível que somente esse aspecto não seja suficiente para oferecer um quadro elucidativo que explicite o complexo período a demarcar o nascimento do Instituto de Pesquisa Social e da ação de seus intelectuais, durante e depois da Guerra de 1945. Se esse fenômeno sobrevive, a compreensão dele deve considerar a base material e colocar o fascismo como um movimento político reacionário das camadas intermediárias da sociedade capitalista e um tipo específico de ditatura burguesa (Boito Júnior, 2020, p. 113). Ela instrumentaliza as superestruturas comunicativas, para assegurar a reprodução de um imaginário milenarista incorporado pelo líder, o qual tem a anuência das massas, e estas estão dispostas a consentir os atos mais cruéis que a história recente testemunhou.

As ações propagandísticas, sem dúvida, contribuíram para estimular um tipo específico de personalidade autoritária e estabelecer um vínculo afetivo, identitário, entre a massa e o líder fascista ou o radical de direita. Em razão disso, a pesquisa sobre a personalidade autoritária mobiliza o instrumental analítico da psicologia social e da psicanálise, associada a uma concepção sociológica de conjunto, a fim de responder a uma indagação ainda hoje válida: que traços de personalidade caracterizam o tipo de indivíduo suscetível a aceitar formulações e propagandas antidemocráticas e autoritárias? (Cohn, 1998).

O livro de Adorno e seus colaboradores, Estudos sobre a personalidade autoritária e o texto Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise ensejaram oferecer respostas a essa interrogação. No capítulo “Antissemitismo e propaganda fascista”, redigido em 1946, presente nos Ensaios, Adorno (2015) pontua o fato de que os estudos sobre o antissemitismo, com patrocínio do Instituto, consultaram as notas taquigráficas, panfletos e publicações semanais e as palestras dos que chama de agitadores, demagogos e incitadores fascistas. Para Adorno (2015, p. 137), o material estudado sugere sua relevância, não tanto pelo seu conteúdo objetivo, mas especialmente pelo “aspecto psicológico da análise da propaganda”. Nela, estão presentes os estímulos psicológicos que visam a atrair as massas, aliciadas menos pelo sentido lógico e epistemológico das afirmações e mais pelo aspecto fantasioso e apelativo. As paixões e instintos coletivos são habilmente personalizados, de maneira positiva, no líder fascista, no sentido de ele ser porta-voz de uma imagem redentora de uma etnia ou cultura superior, difundidas nas propagandas. Ao mesmo tempo, as forças psíquicas elegem os obstáculos que ameaçam e impedem a implantação de uma sociedade revestida de ideais milenaristas. Os judeus, a classe trabalhadora politicamente organizada, os marxistas e comunistas, os estrangeiros são transformados nos empecilhos da visão de mundo que o fascista procura implantar.

Na consolidação desse propósito, as estratégias de sedução psicológica e adesão das massas alcançam aspectos mais amplos, entre os quais a perversão da religião como instrumento da propaganda do ódio. A esse respeito, Adorno e Horkheimer (1985), nos anos 1940, reconheceram o sequestro da religião para atuar na conservação de um modelo social que atua, como nostalgia, na eleição de puros e impuros e na defesa de um povo eleito, merecedor de um império milenar. Na compreensão de Carone (2002), Adorno, ao analisar os discursos radiofônicos do pastor americano Martin Luther Thomas (1883-1966), entendeu a força da religião como meio de difusão de ideias totalitárias de direita, nos Estados Unidos, de maneira a evitar um confronto direto com a democracia, no país. Nessa condição, o antissemitismo nunca é declarado diretamente, de modo diferente ao da Alemanha nazista. É, ao contrário, disfarçado de imagens tiradas do Novo Testamento, a partir do qual se constrói um novo discurso religioso contra, por exemplo, a esquerda e os comunistas.

O representante da Escola de Frankfurt, em 1943, se dedicou a esse tema, no texto “A técnica psicológica das palestras radiofônicas de Martin Luther Thomas”. Nele, Adorno (2008, p. 87) argumenta que a técnica psicológica do pastor americano continha uma ideia básica: ela “[...] consiste em seduzir pessoas de inclinações religiosas ortodoxas e até fanáticas, principalmente fundamentalistas protestantes, e transformar o seu fervor religioso em adesão e submissão a um partido político”[6]. Como se pode observar, Adorno (2008) percebeu que as religiões se veem tragadas por correntes totalitárias, o que mostra o alcance da racionalidade fascista, capaz de se introduzir em todas as diferentes e divergentes formas de vida. Essa formulação teórica pressupõe o fato de que as elocuções religiosas são constituídas pela antítese rígida entre bem e mal, certo e errado, natural e não natural. A ênfase nessa divisão é transformada em norma, a qual exerce considerável poder sobre os indivíduos.

A esse respeito, Adorno (2019) avalia que esses preceitos assumem um aspecto de rigidez e intolerância, como aquele comportamento que ele reconhece na pessoa preconceituosa e radical. Para ele, a religião se torna uma agência de conformidade social, alinhada com as tendências conformistas, etnocêntricas e alheias às diferenças. O autor alega que

[...] a religião foi privada da reivindicação intrínseca de verdade, ela foi gradualmente transformada em “cimento social”. Quanto mais esse cimento é necessário para a manutenção do status quo e quanto mais duvidosa se torna sua verdade inerente, mais sua autoridade é mantida e mais suas características hostis, destrutivas e negativas vêm à tona (Adorno, 2019, p. 488).

 

O importante papel desempenhado por líderes religiosos na disseminação de ideias fascistas levou Adorno a avaliar o fato de que, sob tais circunstâncias, nos Estados Unidos, a adesão ao cristianismo se prestou ao “[...] abuso, à subserviência, à sobreadequação e lealdade ao ingroup, enquanto uma ideologia que encobre o ódio contra o descrente, o dissidente, o judeu” (Adorno, 2019, p. 488). Revestido por essa compreensão teológica inadequada, o agente religioso, a exemplo do citado Luther Thomas, canaliza suas forças visionárias para sustentar um modelo de verdade que pretende ratificá-lo em seus ouvintes. A técnica por ele empregada consistiu em aproveitar aspectos do cristianismo para manipulações psicológicas de um determinado tipo de audiência, a favor de ideias totalitárias, ou seja, a religião para a defesa de motivações não religiosas (Carone, 2002).

Há, portanto, um componente religioso e, sobretudo, psicológico que leva a açodar a adesão das massas a posturas politicamente radicais. Os artifícios psicológicos estudados nos discursos dos agitadores fascistas norte-americanos – e que podem ser aplicados ao radicalismo postulado por setores político-religiosos brasileiros –, exprimem, segundo Adorno (2015, p. 154), “[...] a atmosfera de agressividade emocional e irracional propositalmente promovida por nossos pretensos Hitlers”. Os discursos propagandísticos dos novos radicais de direita mobilizam forças e paixões que alimentam a repugnância compulsiva, naquele momento, contra uma “raça”[7] eleita como não natural, impura e, ulteriormente, contra adversários políticos de outras matrizes étnicas e teóricas.

Grupos de intelectuais postos a serviço de uma visão de mundo revestida de cientificidade hipotecavam essa adesão, como o fez Günther, o qual prestou auxílio intelectual para referendar a superioridade (biológica) germânica. Embora essas forças reacionárias não se constituíssem como doutrina filosófica ou como ciência, procuraram legitimar posições problemáticas, envolvendo-as com uma falsa ciência. Esse suposto apreço ao conhecimento tinha como finalidade conferir um tipo de autoridade àquele que os enunciava (Adorno, 2020a). Por isso, intelectuais se tornaram militantes, prestando seus serviços na ideologização dos saberes, conforme bem entendeu Ingrao (2015), estudioso da participação de intelectuais na Schutzstaffel (SS) nazista. Essa declaração sugeria que os radicais de direita, tanto os de ontem quanto os de hoje, procuravam ostentar conhecimentos sem a necessidade de demonstrar sua validade e verdade. De tal modo, a produção do saber também foi posta a serviço da visibilidade e legitimidade do sistema de crenças do radicalismo de direita, assim como a propaganda na mobilização dos afetos e paixões.

As publicações de Adorno indicavam que as forças passionais são projetadas nos meios de comunicação para o engajamento das massas e consolidação de crenças, mas com outros ideais: a manutenção da ordem social burguesa pressupõe a eliminação das oposições, a homogeneidade do pensamento e os estímulos a interesses descolados da vida imediata. Na efetivação desse propósito, Adorno (2015) considera três características da abordagem psicológica que predominam na propaganda fascista do novo radicalismo de direita, servindo de estímulo e engajamento. Na primeira delas, a propaganda assume características personalizadas, essencialmente não objetiva. Nos Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise, Adorno (2015, p. 138) partiu do princípio de que os líderes fascistas procuram falar de si próprios ou sobre suas audiências. Eles “[...] se apresentam como lobos solitários, como cidadãos norte-americanos saudáveis e sadios, com instintos robustos, como altruístas e infatigáveis”. Adiciona-se a essas preocupações e demonstrações de comportamentos saudáveis uma outra condição: a intimidade revelada, seja real, seja fictícia. O esforço parece ser o de confirmar a vida exemplar pessoal ou familiar. Nessa atitude de afiançar-se, o agitador, segundo Adorno (2015), ainda procura construir uma imagem de caloroso interesse humano, preocupado com querelas diárias e com a ideia de cristão nativo, de bom senso, contudo, não intelectual. Comunica-se com seu público diretamente, colocando-se como mensageiro daquilo que está por vir e portador de uma simplicidade a qual, sem pretensão de superioridade, o conecta com o público.

Essa imagem de “bom pastor” do líder fascista implica a condição de ser demagogo, ao substituir os fins pelos meios. Na segunda característica, Theodor Adorno (2015, p. 139) ressalta que essa personagem comunica a respeito de um grande movimento vindouro, sua organização e “[...] sobre um amplo renascimento norte-americano que espera realizar, mas raramente diz alguma coisa sobre aquilo a que se supõe que tal movimento conduzirá”. Na tentativa de construir o perfil da personalidade autoritária, Adorno menciona a tendência à glorificação da ação e mostra ao mundo a existência de patriotas, homens e mulheres tementes a Deus, dispostos a oferecer a vida à causa que acreditam corretas, entre as quais a Deus, à pátria e à família. O aspecto ritualístico da propaganda fascista hipotecava esse discurso, cuja ênfase era promover os meios, de modo que ela mesma se tornasse o conteúdo dos meios. Adorno (2015) leva em conta, por fim, o fato de que a propaganda funciona como um tipo de realização de desejos e de pertencimento ao grupo. Para ele, as “[...] pessoas são convidadas a entrar, tal como se compartilhassem uma droga. Elas são recebidas com confiança, tratadas como se fossem da elite que merece conhecer os obscuros mistérios, ocultos a quem está fora” (Adorno, 2015, p. 140).

Deve-se ter em vista, aqui, o fato de que a anuência a modelos autoritários pressupõe uma adaptação do indivíduo à estrutura psíquica acarretada pela sociedade burguesa. A aderência às práticas fascistas é explicada, segundo Puzone (2022, p. 92), pelo peso das determinações das relações capitalistas sobre o indivíduo, incluindo trabalhadores. A esse respeito, Puzone avalia o fato de que Adorno, ao enfatizar o aspecto psicológico do fascismo, parece ter ignorado o caráter de classe dos fenômenos fascistas. Ainda que não tivesse considerado a partir dessa referência, Adorno (2020b, p. 262) entendeu que o nivelamento das massas seria a “[...] sanção desesperada da diferença como sanção da identidade, que as massas, completamente prisioneiras do sistema, aspiravam a realizar ao imitar os governantes mutilados”, no sentido de essas massas esperarem receber dos governos totalitários o “pão de misericórdia”.

A aquiescência das pessoas a essa configuração social e política pressupõe, no caso, a compreensão de que a centralização do poder poderia harmonizar grupos sociais quando, pela força do Estado e da organização total da sociedade, eles se imporiam contra os inimigos. Nessa perspectiva, a luta de classes é banida, porque a contradição não é tolerável numa ordem social onipotente e racionalizada. É nesse sentido que os demagogos nazistas alemães e os americanos agiram, em seus discursos e propagandas: de um lado, racionalizaram as medidas repressivas e o terror; de outro, o prazer. No primeiro caso, o totalitarismo significa “[...] desconhecer limites, não permitir nenhuma pausa para fôlego, conquistar impondo dominação absoluta, exterminar completamente o inimigo escolhido” (Adorno, 2015, p. 141). Portanto, o império da força e do terror impõe os limites racionalmente delimitados e exclui da multidão a possibilidade de autodeterminação e a convicção kantiana de que os homens podem guiar-se por sua própria vontade. No segundo caso, em contraste com os alemães, a racionalização alcança níveis mais subjetivos: ela atua no campo dos desejos e dos prazeres.

Quanto à racionalização do prazer, segundo Adorno (2015), a propaganda lida com pautas pouco reais e com características sexuais. Nos Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, o autor menciona histórias escandalosas de excessos sexuais e atrocidades, e essas obscenidades seriam a mais fina racionalização, propositalmente transparente de prazer que as histórias proporcionam ao ouvinte. Para além dessas histórias escandalosas, são alimentados, no público, detalhes sobre decretos que supostamente os russos teriam implantado, entre os quais a organização, pelo governo vermelho, de prostituição de mulheres. Assim, o dinamismo fascista – e, com ele, a atuação de seus líderes, quer o fascista alemão, quer o agitador americano, conscientes de sua função – enfatiza continuamente cerimônias ritualísticas e diferenciação hierárquica (Adorno, 2015), a partir das quais legitima estruturas rígidas da vida social e política. Essa abordagem, para o filósofo, autentica uma ambivalência de caráter, na medida em que lida com tendências opostas: de um lado, a responsabilidade e a devoção para com os de cima e, de outro, paradoxalmente, os de cima têm a “[...] tendência de pisar nos de baixo, que se manifesta de forma tão clara na perseguição das minorias fracas e desamparadas” (Adorno, 2015, p. 173).

Na consolidação de um projeto social e político, a manipulação fascista em países democráticos nunca ocorre diretamente. Os ideários do radicalismo de direita são habilmente acomodados pela propaganda e discursos das lideranças, os quais elegem os inimigos da “terra prometida”, do reino de “mil anos” a ser implantado. Para Adorno (2015), os agitadores americanos não ousariam professar abertamente objetivos fascistas e antidemocráticos, por isso, dissimulam com censuras políticas e táticas psicológicas que fazem o ouvinte não se engajar em atividades tidas como subversivas. As redes propagandísticas de comunicação são aqueles instrumentos privilegiados para formular uma identificação entre as lideranças radicais e seu público, intoxicado por informações e por estímulos psicológicos. Embora o conteúdo seja irracional, não quer dizer que não haja racionalidade. Com efeito, o filósofo do Instituto Social enfatiza que a “[...] propaganda antissemita não é de forma alguma irracional em seu todo” (Adorno, 2015, p. 143). Há método no discurso fascista e reacionário: ele emprega, nas exibições oratórias, alguma organização de ideias, no sentido de que as distorções de conceitos e modelos sociais são planejadas. Entretanto, avalia Adorno (2015), a relação entre premissas e inferência é substituída por vínculo de ideias baseadas em mera similaridade, frequentemente através de associações que são logicamente desconexas.

No quadro de referências para compreender o radicalismo de direita e como ele se estrutura, Adorno indica dois traços fundamentais. No primeiro deles, apoiado pela Psicologia das massas e análise do eu (1921), de Freud, ele considera a existência de uma característica primitiva, um aspecto psicológico destrutivo, ao mencionar que o fascismo é uma rebelião contra a civilização que se reproduz na e pela própria civilização (Adorno, 2015, p. 162). Essa revolta destrutiva pressupõe a manifestação, nas massas, de atitudes primitivas, arcaicas e violentas dos comportamentos políticos estimulados pelos agitadores, por meio dos discursos. Na efetivação dessa conduta, Adorno postula o fato de que os impulsos libidinais se transformam em vínculos psicológicos, em energia primária de coesão da massa que a identifica com o líder. As paixões e sentimentos que a turba cultiva são projetados como uma espécie de salvação religiosa, para uma realidade que Adorno (2015) sustenta não ser objetiva, qual seja: a nação, o Estado, a ordem, a moral ou, quem sabe, em outro tempo, algum gigante sonolento, o Behemoth da grotesca gramática bolsonarista.

No segundo traço, não menos importante e não desvinculado do primeiro, Adorno identifica que o interesse da caterva se centra no interesse do líder. É bastante característico que Adorno (2015) tenha apreciado – a partir do médico austríaco, com quem teoricamente dialogou – o padrão libidinal do qual esse tipo de fenômeno radical parteja. Nessa vinculação, sem desconsiderar o fato de que ele entendeu que Freud errou, ao não pensar o fascista em função de uma base sociológica, Adorno (2015) estabeleceu o perfil do líder radical de direita: ele é o eu do grupo cuja adesão a si não é racional, mas erótica. Essa condição reverbera nos seguidores, dispostos a adotar cegamente a imagem de um tipo de pai celestial, castigador e benevolente, cheio de contradições, sem que se importem com elas. Não se incomodam, porque há, aqui, um princípio de identificação, de mímeses: os pecados e debilidades do pai são os mesmos dos filhos, sem, portanto, comportar contradições ou oposições. Não se importam, porque são parte de uma sociedade industrial e racionalizada, sem oposição, na qual a crítica foi paralisada e as categorias de análise tendem a se tornar termos descritivos, ilusórios ou operacionais, como sugeriu Herbert Marcuse (1973), em O homem unidimensional.

Cumpre, enfim, destacar uma oportuna reflexão de Adorno sobre as particularidades da personalidade autoritária dos agitadores de outras e de nossa época: eles se esmeram em se parecer com pessoas medianas. A imagem do líder, formulada por Adorno (2015), em sintonia com Freud, sugere que ele tem sintoma de inferioridade e se gaba de se assemelhar a atores medianos, canastrões e psicopatas associais. Narcísico, mostra-se ambivalente, quando formula uma imagem onipotente de si e, ao mesmo tempo, se posiciona como homem do povo, “[...] pleno e viril, não maculado por riqueza material ou espiritual” (Adorno, 2015, p. 172). Na compreensão de Adorno, é essa ambivalência psicológica que permite a ele operar o milagre social, no sentido de que a imagem do líder contribui para satisfazer o desejo do seguidor em, ao mesmo tempo, obedecer à autoridade e ser ele mesmo a própria autoridade. É a psicologia do fascismo, por meio da propaganda, a responsável por homologar essa convergência de interesses e fazê-los coincidir com o radical de direita. Portanto, a chamada psicologia do fascismo é, no entendimento de Theodor Adorno, amplamente engendrada por manipulação, a partir de técnicas racionalmente calculadas.

Quando revisitamos o pensamento de Adorno e, por extensão, o da Teoria Crítica, é porque consideramos que não se pode responder ao fascismo e às suas possíveis tendências mais contemporâneas, disfarçadas de discursos democráticos, apenas sob a ótica psicanalítica. Apesar das valiosas contribuições dessa análise, a permanência do radicalismo de direita, expresso num tipo de personalidade autoritária, requer uma compreensão teórica e metodológica que leve em conta o fato de que os objetos de pensamento, suas práticas, valores defendidos e negados, têm relações com as intermediações históricas, inclusive o fascismo e os fenômenos psicológicos que o acompanham. Amparam-se numa base material e em um tipo de sociedade, tal como a clássica sentença de Horkheimer, quando postula a relação entre a estrutura econômica com a política autoritária e seus mecanismos de reprodução social. É tarefa da Teoria Crítica, e mesmo da filosofia, compreender como são gerados esses fenômenos, no presente, desvelar seus pressupostos teóricos e suas estratégias de convencimento, com a finalidade de evitar que tragédias passadas sejam reproduzidas neste tempo, clivado por um horizonte de incertezas.

 

Considerações finais

As reconhecidas contribuições de Theodor Adorno ao Instituto de Pesquisa Social se devem pela abrangência e profundidade teórica com que tratou os múltiplos problemas que sua obra revela. Entre eles, merece atenção o fato de Adorno ter-se empenhado em responder aos funestos acontecimentos que a primeira metade do século XX produziu. A filosofia de Adorno se notabiliza pelo diálogo com matrizes teóricas diferentes, em um esforço de apresentar um diagnóstico e as disfunções de uma época complexa, entre as quais o marxismo e a psicanálise de Freud. Atento a isso, Adorno se empenhou em entender o radicalismo de direita, o fascismo, como também vislumbrou um radicalismo político que prospera nas democracias e contra elas. Os princípios defendidos por Adorno levam-no a compreender que a permanência de políticas autoritárias se consubstanciava com o rebaixamento da classe média, a qual, ao não entender as causas de seu alijamento, projeta a culpa em outros setores, entre os quais, os direitos sociais, os sindicatos, os comunistas e os estrangeiros. Em razão disso, esses movimentos tendem a considerar a possibilidade de formular uma organização política autoritária, antidemocrática, para conservar os interesses de classe.

Na consolidação desse objetivo, Adorno entendeu que há método na forma como os grupos radicais se articulam e atraem apoio: mobilizam a atividade propagandística, para disseminar as pobres e contraditórias ideias que defendem, e o fazem, a partir de recursos psicológicos e não epistemológicos. Os textos de Adorno sugerem que as propagandas cumprem a função de atração e homogeneização das massas, mobilizando suas paixões. Enquanto substância política, a propaganda reproduz uma mentalidade, pela repetição compulsiva, de uma estrutura social total, organizada e sem contradições a esse modelo totalitário.

Elege, pelos mesmos recursos, um personagem paternalista e autoritário, o qual é o líder fascista, tido como a alma da massa. Ele incorpora a condição de ser o porta-voz da suposta redenção das classes rebaixadas, as quais não se incomodam com as nuances patológicas e debilidades morais e intelectuais do líder fascista, porque, a rigor, elas são iguais. No afã de instaurar o Estado total como solução, estão dispostos a eliminar o que acreditam ser divergências, sejam elas ideias, sejam teorias ou expressões políticas. Essa condição, avessa aos marcos civilizatórios mais fundamentais, mesmo na atualidade, instiga a filosofia a prestar contas, a se posicionar. Quando caem as sombras da noite ameaçadora, a filosofia, como pensamento do mundo, deve esclarecer sobre as novas manifestações e relações de poder que se apresentam como soluções finais. 

 

The right-wing radicalism and authoritarian personality in Theodor Adorno

Abstract: The theme of this study is the political thought of Theodor Adorno, focusing on his contributions to right-wing radicalism and authoritarian personality. In the lecture he delivered on April 6, 1967, titled "Aspects of the New Right-Wing Radicalism," Adorno assumed that the new radicalism differed in no way from the old, meaning there were no ruptures in the authoritarian political positions that had been established in the pre-war and post-war periods, from 1945. This observation led him to consider fascism-nationalism as a social and political phenomenon linked to bourgeois society and authoritarian personality, which he investigated in the Essays on Social Psychology and Psychoanalysis. To study the theme, understanding the events and ideas alluded to by Adorno is related to history, in its dynamics of change and permanence, and to Critical Theory capable of discussing this movement. The persistence of authoritarian ideas and policies, even today, sparks the interest of researchers eager to understand the motivations and foundations. This justifies a return to Adorno's thought. Therefore, the proposed objective is to understand, in Adorno, the persistence (or return) of authoritarian political positions at a time when they were supposedly defeated at the end of World War II.

Keywords: Frankfurt School. Critical Theory. Theodor Adorno. Right-Wing Radicalism. Authoritarian Personality.

 

Referências

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Recebido: 25/01/2024 – Aprovado: 17/04/2024 – Publicado: 15/06/2024



[1] Professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Londrina, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4417-7951. E-mail: reginaldobordin@gmail.com.

[2] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5339-8652. E-mail: prof.dias.br@gmail.com.

[3] No original: “Der Faschismus ist die Wahrheit der modernen Gesellschaft, die con der Theorie von anfang an getrofeen war”.

[4] No original: “Wenn tatsächlich der Faschismus aus dem kapitalistischen Prinzip hervorgeht, ist er nicht bloss den ‘armen’, den ‘have not’- Ländern im Gegensatz zu saturierten angepasst”.

[5] No original: “Wer aber vom Kapitalismus nicht reden will, sollte auch vom Faschismus schweigen”.

[6] No original: “[…] consiste en seducir a la gente de inclinaciones religiosas ortodoxas e incluso fanáticas, principalmente a los fundamentalistas protestantes, y en transformar su fervor religioso en la pertenencia a un partido político y la sumisión a éste”.

[7] Os estudos de Hans F. K. Günther, The racial elements of European history, respaldaram a compreensão nazista de superioridade germânica em relação a outros povos, princípio usado na propaganda totalitária.