Escrever (n)o feminino com Malabou: anarquismo e morfologia

 

Gabriela Lafetá [1]

 

Resumo: Catherine Malabou escreve o clítoris desde o que ela própria chamará de “pensamento clitoriano”, em trabalho, em curso, em Filosofia e anarquismo; e ela o faz, por meio de um vínculo entre a “teoria de gêneros” ou teoria crítica americana, em seus estudos culturais, e o pensamento do ser (Heidegger) revisitado pela Desconstrução. Desse vínculo, desprende-se a diferença em uma filosofia contemporânea, a qual soube ver o espaço de uma pluralidade de identidades possíveis em direção àquilo que será privilegiada, no presente texto, como distância. Tal distância, por sua vez, aparecerá como o efeito mais atualizado do pensamento político descentralizado e desidentificador, enquanto deslocamento do conceito de “diferença ontológica”, possível apenas pelo pensamento da diferença sexual e de gêneros. O “feminino” será abordado como uma forma do pensamento e a partir de uma distância que o clítoris estabelece com as determinações conceituais e políticas fixadas pela metafísica ocidental. Um segundo vínculo será mais difícil de se desfazer, aquele entre a feminidade e o corpo da mulher, embora Malabou procure na distância entre eles um lugar político-filosófico de equilíbrio entre a extrema dificuldade e a extrema urgência de dizer hoje o feminino.

 

Palavras-chave: Malabou. Ontologia contemporânea. Feminino. Anarquismo.

 

Introdução

Quando margear o desígnio das lutas prontas pelos movimentos identitários é dar ao clítoris uma outra possibilidade de escrever o feminino. O presente texto se situa e acompanha a filósofa francesa Catherine Malabou, nesse intento.

O clítoris é um anarquista que transita em seu conceito por entre um símbolo mudo, uma posição política não dominadora[2] e avessa a qualquer dominação, além de ter (como o cérebro) uma função invisível. O clítoris é uma subjetividade que, tal como o feminino, tem uma relação com o poder, antes do que uma relação de poder e, sobretudo, pensa. Ainda assim, é um impensado político, já que sua visibilidade escapa à estrita exploração econômica, para alcançar os espaços muito pequenos da vida, embora no espectro de uma certa forma da exposição com múltiplos focos. O clítoris é um impensado político, tal como o é, especialmente por parte dos filósofos contemporâneos que pensam a política, o anarquismo.

            Essa inversão subjetiva de uma abordagem objetável, quase inaugural na filosofia, retira o clítoris do estatuto temático do pensamento e do âmbito biologista, em suas parcas ou quase nulas discussões acerca dele, para colocá-lo como sujeito que pensa, participa da organização política e simbólica de um corpo que resiste ao modelo, ao menos clássico, do patriarcado, e ressente uma distância necessária.

É nessa distância e por ela, e não exatamente pela diferença, que Malabou escreve o clítoris em um singular alargamento ao que ela faz ver como “pensamento clitoriano”, em seu trabalho em curso, Filosofia e anarquismo, e que se dá por um vínculo delicado, pouco preciso, entre a “teoria crítica” americana, em seus estudos culturais, e o pensamento do ser (Heidegger) revisitado pela Desconstrução. Vê-se, ademais, uma distinção estruturante entre o que é ingovernável, porque é incontrolável e porque resiste ao poder com poder de igual natureza, e, de outro lado, o que não se deixa governar ou escapa totalmente à estrutura normativa do governo e da natureza da dominação. É por esse segundo lado, de onde a “distância” de um tema não assujeitável se desdobra, que a presente reflexão se dá como um convite ao pensamento desde uma tripla margem anarquista, clitoriana, metamórfica.

 

1 O clítoris e a distância anarquista

Em obra que nos servirá de base à escrita pelas mãos de Malabou e em muitos femininos dados à letra – Le plaisir effacé: clitoris et pensée (2020) –, a autora se pergunta: por que a escolha pelo clítoris? E ela responde: por um tocar o que não se deixa governar, tocar o clítoris, que é o abordar filosófico de um sujeito avesso à dominação – o “sentido figurado” de que se fala, de que fala tão politicamente Proudhon, no seu Ser governado é...; mas, é também fazer sempre a experiência de uma distância em sentido literal, como que em eco ao tocar de Jean-Luc Nancy [se toucher toi[3], tocar-se a ti], com o qual Derrida lê o tocar o sexo, situando-o entre o sensível e o conceito, sem ser nenhum dos dois. Diz-se de algo contornável, formável, diz-se de um sujeito, com Malabou. E diz-se com ele, e por ele, da distância (e não da diferença) entre o clítoris e a vagina; entre o clítoris e o pênis; entre o clítoris e o falo, nessa recusa não dita de submeter-se à lei do segundo; bem como a distância entre o destino anatômico do sexo e a plasticidade social do gênero; a distância entre a reivindicação da existência da mulher e a recusa a uma categoria como essa; entre, portanto, os muitos e próprios feminismos; a distância entre a fetichização metonímica do órgão e o lugar anárquico do prazer. Como se respeitar a distância fosse encontrar um lugar político filosófico de equilíbrio entre a extrema dificuldade e a extrema urgência de dizer hoje o feminino.

            Essa distância a partir da qual tocaremos o clítoris deve ser precisada no ambiente filosófico em que Malabou o faz. Ela traz a emergência da forma e, por que não, das infinitas formas existentes, aceitáveis ou não, acolhidas ou não, lutáveis ou não, enlutáveis ou não, humanas ou não, mas sempre visíveis, as quais resistem à estabilidade daquilo que vem ao ser e persiste nele; no mesmo passo que essa emergência das formas resiste à concepção estável da Forma – da Ideia (eidos) –, esta que se torna visível apenas porque, vinda de outra parte, se impõe ao espírito como fenômeno que é preciso acolher, captar, interiorizar. Ou bem, resistir à Ideia da maneira como o fazem Levinas e Derrida, quando dela apagarão o contorno formal, qualquer que seja ele, para assumirem um messianismo relido por uma certa ontologia do acontecimento. Precisamente desta, Malabou fará ver uma distância no lugar de uma diferença e resistirá a essa outra Forma, desde sempre essencial, para a assunção de um outro trabalho conceitual que não o idealismo nem o messianismo.

Malabou quer levar a noção hegeliana de plasticidade, a qual aparece no horizonte de concepção da subjetividade, no Prefácio da Fenomenologia do Espírito[4], ao patamar de um conceito e, por ele, à condição de inteligibilidade. Ver a forma da plasticidade até à sua metamorfose, como conceito, é o que quer Malabou, sem que precisemos voltar às formas fixas, mas seguindo a sugestão hegeliana em ver a forma que não cessa de requerer reparação e tempo, mas também acidente e explosão.

Por uma leitura que reage até certo ponto às leituras francesas de Hegel por Kojève e Koyré, em que a negação desaparece no saber absoluto e no fim da história, Malabou enfrenta a necessidade que traz o conceito com o trabalho especulativo de ver vir o tempo de uma trama sobre a contingência, sobre o acidente, e na qual se enreda uma subjetividade que não é preservada no liame lógico da predicação, senão transformada no percurso ontológico de uma vida.

            Entre a sucessão de decorrências de ocorrências e o tempo especulativo, entre acontecimento e acidente, está o que nos cabe detalhar entre diferença e distância.

            Na contramão da escritura [écriture] que se traduz em técnica [techné; eis a persistência, talvez inglória, do termo “escritura” em Derrida, que mantenha o sufixo [tura] denunciador da técnica] – escritura que é o movimento artificioso do traço [trait] e do apagamento do traço, isto é, do apagamento do significado e da origem que se (re)tornam, por esse apagamento, rastro [trace], remetimento, adiamento, iteralidade, envio ao outro, resposta, acontecimento e que, ao fim, escapa, segundo Derrida, ao sistema hegeliano do conceito –, Malabou escreve de outro modo o desígnio da escritura, devolvendo a ela uma materialidade resoluta e tripartite da forma: suas capacidades de doação, de recebimento e de explosão. Mas, o que diz a forma – “substituto e vestígio de um augúrio” – e o que se julga de sua inteligibilidade? Antes de responder a tal pergunta, sigamos ainda com Derrida.

Mediante um longo trabalho com a escritura, Derrida entende a forma como identidade, presença a si do conceito, unidade da consciência que traria a marca já desgastada de uma metafísica do sujeito, cujo princípio estaria sempre atrás da sua “verdade”, esta, apenas lida en retard como suplemento. Gramatologia (1967) responde às estruturas pelas quais Saussure, Lévi-Strauss e Rousseau visualizam a “primeira coisa” (de status originário) do conceito, com a operação fronteiriça da différance, ou do suplemento que evidencia que a “segunda coisa” já estava no próprio conceito; ou seja, aquilo que a estrutura denuncia como origem (o signo, a cultura ou a natureza) já abriga a sua ameaça intrínseca (o rastro, o tabu, a corrupção).

A noção de suplemento serve-se do liame da différance entre conceitos, no qual se pode ler o espaçamento temporal e escritural (de rastro) entre um e outro, de um pelo outro, até que um e outro se apaguem enquanto tais e se leiam disseminados e suplementares na quase inscrição do significado. Qualquer empreendimento de formação proposicional carece, nesse sentido, do trabalho do tempo do adiamento, pois, da impossível decisão pelo significado e do porvir de um rastro que jamais tomará corpo.

Seguindo a forma do movimento da escritura derridiana, Malabou a deforma, partindo de um argumento de grande força narrativa rumo ao trabalho distanciado que a forma assumirá, qual seja, o de que, havendo sofrimento, há sintoma, havendo ferida, há contorno, havendo subjetividade, há visibilidade – e é por isso que a informação e sua aniquilação não podem reunir-se como em suplemento, num mesmo conceito.[5] A corrupção no estado de natureza, em Rousseau, não seria mais ou menos danosa no mesmo conceito de natureza, assim como a justiça não saberia ser mais ou menos justa, ou mais ou menos possível, no mesmo conceito de desconstrução, como quer Derrida, em rara ocasião de resposta pela definição do seu trabalho em filosofia – “La déconstruction est la justice (1994, p. 35).

O seu cuidado ético com a palavra, com o conceito ademais, jamais fixado em letra, em nome da menor violência possível, não tomará forma, unido que está à violência na arena da linguagem (logos), que é sua violência intrínseca – é só lembrar de onde se deu o parricídio parmenídico pelo Estrangeiro de Eleia, qual seja, o parricídio de um “filho” de Eleia, o qual, no idioma e no mesmo “espírito de um tempo”, se apresenta como “bastardo” de uma filiação então respondida pelo ateniense anfitrião, n’O Sofista de Platão, trama política e filosófica de notório engajamento conceitual que acontece justo sob a luz da lei da hospitalidade –, jamais tomará forma a violência e a menor violência no conceito (e no trabalho) de escritura, portanto. Jamais tomará forma a justiça – qualquer forma de justiça – no conceito que se propõe o trabalho da justiça e como justiça, jamais encontrará a sua expressão a menor violência que não se incorpora, eis a tese contra Derrida.

Ao afirmar o trabalho sobre a forma, e

[d]ado que tem em si mesma todos os significados do trabalho da forma, a plasticidade aparece como uma instância demasiado sintética, demasiado integrativa, demasiado “cicatrizante”: seria já, em virtude mesma do seu nome, uma cura para o sofrimento que está encarregada de expressar (Malabou, 2005b, p. 36).

 

Contra Levinas, para quem o sofrimento não seria plástico, Malabou imprime seu profundo materialismo na impossibilidade do “salto” ou de qualquer transcendência que dá lugar, como ela diz, à impossibilidade de fugir. O que é uma saída, o que pode ser uma saída, aí mesmo onde não há nenhum fora, nenhum outro lugar, ela pergunta: o que segue, ainda, o que é uma saída frente ao que nenhum outro tempo pudesse resolver, o tempo sem solução de uma dor extrema, de um mal-estar que persiste desde sempre para dentro, como seria escapar na clausura mesma?

Sabe-se que a saída, em Levinas, é o salto ético em direção ao Outro e por ele, por tu; o que não assume mais o lugar da subjetividade, mas da responsabilidade ao infinito. Essa responsabilidade se endereça ao rosto sem desvios, sem recusa, sem atraso, e onde conhecimento e pensamento não podem alcançar, de onde cessa, portanto, qualquer possibilidade do trabalho sobre a forma. O rosto sempre transborda os contornos da plasticidade, atesta Malabou, sobre esse que é o cerne da metafísica levinasiana, já que outrem se expressa antes de toda forma e de uma anterioridade tal, cuja presença suprema assiste a seu próprio aparecer como ausência, de cujo rastro é o passado do Outro. Ou, ainda, se manifesta por uma “outra presença” que é e não é integrada no mundo: visitação. A presença do Outro no mundo não toma, em Levinas, outra forma senão a visitação – como pobreza, em exílio e na nudez desprotegida do rosto, cuja expressão só se inscreve ao modo de um reconhecimento e de um limite: “Você pode me matar, mas não o faça”.

A forma que, na relação com outrem, pareceria imediatamente me dar alguma solidez, para Levinas, ao contrário, deformaria a inscrição ética do rosto e confundiria o que se dá na reta e irrestrita resposta àquela inscrição (“Você pode me matar, mas não o faça”); o que, por fim, caso reivindicasse sua concretude material, impediria o salto ético, ao direcionar a responsabilidade pelo Outro segundo o aparato jurídico ou a retórica do afeto (da amizade ou do amor), e não na direta e infinita resposta ao rosto.

Mas, então, o feminino não tem rosto, não se dá em e como um ente? Ou haveria uma outra forma da entidade que não passasse pelo trato jurídico ou pelo ambiente objetal do afeto? Malabou toca nessa questão, lembrando um Levinas mais jovem, em seu ensaio fenomenológico Da existência ao existente (1947), no qual o autor denuncia em Heidegger um esquecimento do existente pela assunção “fria” de uma existência neutra, anônima, sem posição ou expressão éticas, que ele chama [il y a].

O ente, ou o existente, faz legível a diferença, e essa legibilidade, inscrita em nós como uma exortação ética, é justamente o outro nome do feminino. [...]

Podemos perguntar mais uma vez que mal haveria em vincular a alteridade com um ente, o feminino, e o feminino, às vezes, com a mulher. Que mal haveria justamente quando, para Levinas, o feminino designa a fragilidade, a exposição ao mal, que não podemos separar de um certo rol esquemático [...] (Malabou, 2009, p. 295, 296, livre tradução).

 

 

            Com Derrida, ela segue:

A feminidade é unicamente violável, quer dizer, como o segredo o é, inviolável. “Feminino” designa o lugar dessa contradição da “lógica formal”: violável inviolável, tocável intocável (Derrida, 2000b, p. 101, 102 apud Malabou, 2009, p. 296, livre tradução).

 

Distanciando-se desses dois pensamentos (Derrida e Levinas), que conduzem às margens da metafísica e da subjetividade, em um único gesto de desmonte da ontologia, Malabou resgata a ontologia no pensamento contemporâneo pós-Heidegger. Afastando-se, pois, de uma filosofia que assume, com ou sem restrições (Derrida e Levinas, respectivamente), uma ética cujo cerne é a alteridade que-chega-antes e guarda, como em segredo, o vestígio de uma inviolabilidade, Malabou chama à ordem das relações com o Outro uma demora precisamente na ontologia da forma e nas formas presentes da subjetividade que chamam, por sua vez, à ordem do ente feminino a distância com o ser mulher. O clítoris aparece em meio a essa distância que vê chegar, como em aporia[6] e em diversas formas, o que a ferida da violência faria recuar já em seus contornos.

Para ver chegar uma forma do feminino, e em vez de conferir ao clítoris a forma clássica das ninfas – imagem da mulher ideal, pois transitória, sempre entre, nunca pronta, nunca prontificada a..., mulher-entre meninas entregues à pureza natural e acompanhantes perfeitas de Diana, na narrativa mitológica, e, ainda, mulheres-ninfas destituídas de clítoris e, porque nunca gozam, são mulheres perfeitas –, prefiro tocar na velhice precoce de Marguerite Duras, que Malabou toca em Ontologia do acidente (2014).

A intenção é sustentar a dimensão anarquista do clítoris, adentrando a terceira capacidade da forma, a qual é precisamente a explosão ou, em termos de ontologia, o acidente, que, em Hegel, assume tanto o sentido lógico oposicional à necessidade e, portanto, acidente de uma substância à maneira aristotélica, quanto o seu sentido cronológico, que irá nos importar mais, de uma forma do acontecimento como o não antecipável, contudo, que deixa claro que o surgimento e a explosão da forma são indissoluvelmente ligados.

É intenção ainda enfrentar o trabalho com o negativo que assume o pensamento de Malabou, ao dar visibilidade ao ser como plasticidade, ou enfrentá-lo como distância das filosofias que marcam a diferença por sobre a forma, quando assumem os dois termos de um conceito. Prefiro levar-nos, nesta feita, à assunção a termo de um conceito: o conceito plástico – uno e trino, se dado à leitura kenótica hegeliana e à leitura relevante[7] derridiana –; embora percorrendo a “borda externa” e excedente do clítoris por uma escrita que volta ao trabalho especulativo, ao vasculhar uma certa estrutura metamórfica que autoriza a passagem de uma época a outra do conceito, e de uma forma a outra da subjetividade.

 

2 Duras na contramão dos movimentos identitários

 

            Como uma reserva de dinamite escondida na fina casca do ser-para-a-morte (Malabou, 2014, p. 11), um acidente ou traumatismo interrompe o curso natural das coisas e transforma alguém num personagem novo, sem precedente. E, no entanto, afirma Malabou, a gente se torna exatamente aquilo que é, a gente só se torna aquilo que é, na lógica que conduz à morte, lógica guiada por uma ontologia do acidente que nada desarruma. Uma nova forma nasce das intrusões no curso da vida – acidente –, mas que referência alguma a levaria de volta ao ser antigo. Torna-se finalmente o que se é, na permanência de uma identidade que se transforma e cujas transformações nunca a contradirão. Estas podem fixá-la, caricaturá-la, não a reconhecer em nenhum passado e, ainda assim, abrem a ela uma subjetividade rasgada. Um novo personagem surge e coabita a história bifurcada de uma identidade.

Ora, os exemplos que estão nessa ontologia, nessa capacidade destrutiva que a plasticidade pode conferir, são os mais diversos e singulares: a súbita identidade cindida dos traumatizados de guerra, de regimes de tortura, de acidentes cerebrais ou de catástrofes naturais, ou a identidade desertada num processo – os doentes de Alzheimer, a indiferença afetiva de certos cérebros lesados, a perda gradual da condição mais ou menos estável da sobrevivência ou a possibilidade sempre latente de nos percebemos absolutamente outros, sem redenção nem resgate, sem reconciliação com a antiga forma, para sempre estranhos aos outros e a nós mesmos.

            Tem-se, nessa possibilidade explosiva da forma, uma precisa volta do pensamento sobre o negativo.

            Entre as imagens de juventude de Marguerite Duras e aquelas da escritora já madura, há um hiato mudo de um tempo apagado, o qual nos faz duvidar de sua declarada velhice precoce. N’O amante, quando do encontro com um homem no aeroporto, Duras relata como a impressão deixada era a do tempo discorrido de uma vida, no qual, dos dezoito aos vinte e cinco anos, o seu rosto tomara um rumo imprevisto. O homem dizia preferir dela aquele rosto “devastado”.

Esse envelhecimento foi brutal. Eu o vi ganhar meus traços, um a um, mudar a relação que existia entre eles, aumentar os olhos, entristecer o olhar, marcar mais a boca, imprimir profundas gretas na testa. Ao invés de me assustar, acompanhei a evolução desse envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura (Duras, 1980 apud Malabou, 2014, p. 48).

 

O álcool e o gozo acompanharam os dois envelhecimentos de Duras: nas duas vezes que envelheceu, nas duas formas que assumiu, eles estiveram e anunciaram a consciência de uma metamorfose atestada por si e no seu rosto visionário. O que Malabou faz ver da ontologia destrutiva é o que pôs Duras à prova do que se via marcar. A frieza com que Duras experimenta a determinação negativa das suas possibilidades sugere a Malabou que também, como com os afetos, o desamor é brutal; de repente, tal como aquela súbita alteridade estampada no rosto, deixamos de amar quem quer que seja, e uma indiferença cobre a memória do que fomos antes e do que sentimos antes, como uma névoa. À maneira às avessas de uma estratégia psicanalítica, o desamor e a indiferença brutais que apareceriam como o improvável ou a estranheza de um acontecimento [Unheimlichkeit] se mostram, de modo absolutamente familiar, na formação de um possível negativo.

            Não obstante o acidente e suas implicações negativas, uma ontologia se abre à leitura minuciosa, especulativa, para além do saber absoluto levado a cabo no conceito, para além de um saber à risca do devir determinado por uma ontologia que dá e recebe de si mesma suas próprias imagens sensíveis. Para além de Hegel e ainda vendo vir o seu futuro, Malabou entende e prossegue com a morte de Deus até encontrar o desamparo e sua extrema possibilidade, em um Hegel que se despede de sua juventude, em Fé e Saber (1802). Aí, é Malabou que leva à risca o momento conceitual de descoberta da plasticidade, no qual a filosofia conhecerá o seu espaço plástico, quando desmontar as partes estáticas de uma proposição (vide nota 3).

Malabou toma, assim, a morte de Deus como a mediação contingente entre as negações que resistem à determinação positiva dos possíveis: a autonegação de Deus pela falta originária segue os três passos especulativos: 1. um Deus faltante de si, que encontra na [sua] ausência o tempo da conversão; 2. sua alienação e seu sacrifício à conversão, ao lançar-se ao ser e ao não ser, à encarnação e à morte; 3. e o adeus a si mesmo, sua inteligibilidade velada, seu reconhecimento negado. Entre a razão que predica a fé pelo trabalho grego de constituição do ser e da identidade (em que Deus falta) à fé adulterada pela predicação da razão no trabalho cristão do sacrifício e da desconstituição da presença, é onde se faz possível ver o sujeito como processo desindêntico a si.

            Dessa desidentificação a si, com a qual Freud anunciará um sujeito desde já clivado – eu e isso –, é onde, parece-me, Malabou faz emergir a figura literária bem como a subjetividade desde sempre clivada de Marguerite Duras, especialmente pela forma da coragem com que também Freud pensava o desamparo. Só haveria emancipação onde há desamparo, eis a ideia freudiana, a qual, longe de constituir uma saída melancólica, produz essa forma da coragem que é possível ouvir ecoar na esfera política de onde Malabou pensa o clítoris por sua subjetividade anarquista (não anárquica).

O desamparo [Hilflosigkeit] que Freud afirma à emancipação ou, como bem traz ao idioma português o filósofo Vladimir Safatle, “a condição de estar sem ajuda”, não é um abandono ou uma alienação do sujeito entregue à inconsciência política, ou mesmo a confirmação moderna do valor da autonomia que marcaria a condição moral da igualdade; diferentemente, é uma despossessão de si pelo profundo reconhecimento de uma alteridade (em mim ou no outro) avessa a qualquer identificação e, dessa maneira, ao modo de uma relação com o poder, sem que se identifique com o ele (não uma relação de poder); é demanda política por excelência de destituição da dominação. De certo modo, a subjetividade entregue à política anarquista bem como ao pensar (n)o feminino passa por uma afirmação do desamparo, pela recusa da tutela de si, sem que se eximisse de responder por si. E, no entanto, essa condição política do psiquismo aproxima Malabou mais de Hegel do que de Freud.

            De Freud, Malabou herda, ao mesmo tempo que descarta à negação requerida, as noções de denegação [Verneinung] – quando um sujeito se recusa a reconhecer como seu um objeto recalcado –, de foraclusão [Verwerfung] – a recusa do sujeito em tomar consciência de suas próprias recusas – e mesmo a noção de pulsão de morte [Todestrieb] – quando o possível negativo se confunde com a pulsão de destruição –; todas elas liberam sem saber a possibilidade de uma outra história, o desfecho esperado pelo sentido ou a saída consciente de uma clausura porosa, já que preservam, na origem, uma potente forma da afirmação.

O que Malabou pensa, não com Freud, mas com Hegel (o qual, por sua vez, desprezava a gênese preservada, a memória resgatada, em nome da efetividade) é que um Deus se despede de si para entrar em uma história sem memória ou, ao menos, sem a memória resgatada pela roupagem simbólica. Embora jamais renasça, é um Deus que pode renascer que essa ontologia anuncia; embora seu nascimento terá sempre sido um segundo, um terceiro, um sem número de nascimentos, esse nunca será um renascimento, tampouco uma redenção.

Aí reside a dificuldade filosófica que acompanha o pensamento de uma acontecimentalidade e de um regime causal inéditos que nada devem, paradoxalmente, ao pensamento do acontecimento nem à teoria alguma da etiologia psíquica (Malabou, 2014, p. 70).

 

            Aí reside a herança hegeliana em Malabou, herança plástica como esquema-motor do tempo presente, que faz do Deus do desamparo o sacrifício de si do pensamento e a sua suprema possibilidade. Alguma coisa que se pode ver vir do passado, à luz da contingência (o álcool, o gozo, a cicatriz no rosto de Duras), toma uma forma súbita à sombra da necessidade (a velhice precoce, o desamor, o desamparo); ambas – presença e forma – estampam algo como a necessidade da contingência e colocam a primeira no abismo da segunda. Necessidade e contingência tomam, ademais, a coadjuvação onde identidade e alteridade assumem o protagonismo. Malabou recusa considerar que o acidente, o advento de uma nova forma a partir de uma metamorfose, responda a qualquer chamado de uma identidade. A própria escrita de Duras resiste a todo encadeamento causal do qual se vislumbrasse a silhueta de um efeito resultante ao fim, e se dá por uma assindética[8] como uma forma do vício no interior da linguagem.

Meu desejo obedece a meu irmão mais velho, ele rejeita meu amante. Cada vez que os vejo juntos, acho que nunca mais vou conseguir suportar essa visão. Meu amante é negado justamente em seu corpo frágil, nessa fragilidade que me arrebata de gozo. Diante de meu irmão ele se torna um escândalo inconfessável, [...]

Explico quando nos encontramos de novo na garçonnière. Digo que essa violência de meu irmão mais velho, fria, insultante, acompanha tudo o que nos acontece, tudo o que chega até nós. Seu primeiro movimento é matar, eliminar a vida, dispor da vida, desprezar, perseguir, fazer sofrer. Digo que não tenha medo. Que não corre nenhum risco. Porque a única pessoa que meu irmão mais velho teme, que curiosamente o intimida, sou eu (Duras, 2009, p. 25, 26).

 

 

A subjetividade sobrevive ao fim. O sujeito despossuído de si, em sua própria trajetória, inerte à arremetida do tempo rumo ao “porvir de parte alguma” que o conferisse sentido e direção, esse mesmo sujeito, Duras, que não sai de um devir necessário de suas negações determinadas, todavia, avessa à ordem, porque não fálica[9], da especulação lógica dos acarretamentos conceituais, esse sujeito no feminino alinha-se à ordem de uma deserção, de um desamparo que toma forma.

É possível dizer “não”? Um “não” completamente seco, inconversível e, “sim”? Essas questões determinam a necessidade de uma ontologia do acidente. Existiria uma maneira, para a vida, de dizer não a si mesma: não à continuidade, não à resistência da memória ou da infância, não à bela forma, não à metamorfose sensata, não ao declínio progressivo, não ao progresso do próprio negativo? Essas questões se deixam resumir nesta: há uma modalidade do possível que esteja exclusivamente ligada à negação? (Malabou, 2014, p. 60).

 

3 Um “não” completamente seco, inconversível em “sim”

Dizer que algo é possível é dizê-lo capaz de vir ao ser e persistir nele. A ontologia tradicional, desde Parmênides, postula o possível como afirmativo a si próprio, numa exclusão tautológica do negativo (o ser é; o não ser não é), diz-se sim ao sim e não ao não. Mas, e quando se diz sim ao não? Não pergunto pela saída parricida na qual se diz não ao sim (por vezes, o ser não é; em outras, o não ser faz-se, vem contra a luz, sendo). Escrevo com Malabou de um não redobrado (o não ser é não ser), de quando não é possível simplesmente negar, mas redobrar a possibilidade. E não se trata da possibilidade do que se espera aparecer do outro lado do muro, na outra face da moeda, além da linha do horizonte, espera certa de esperado certeiro.

Contudo, ao tocar o seu lado negado, ao escavar o possível efetivo com que habitualmente seguimos um ou outro rumo – ou nos livramos efetivamente rápido demais pelo cansaço de um excesso, do que sempre poderia ser outro e de outro modo, e que nos faria perder tempo numa escolha demasiado frutífera, ou o cansaço de poder escolher nos levaria a rever a origem e a deduzir o seu decurso, “não se pode refazer a história” –, não pensamos ainda na outra possibilidade enquanto o outro da necessidade? A plasticidade destrutiva a que esse “não” responde proíbe vislumbrar a outra possibilidade necessariamente posta. A necessidade, por sua vez, seria ela “[...] uma lei surpreendida por seus próprios casos”? (Malabou, 2014, p. 30).

Nessa outra origem que temos por negativamente possível e que só pode ser pensada à maneira de uma metamorfose, é que é permitido ensaiar: e se tivéssemos o clítoris anarquista, no lugar de poder do falo? E se o pensar do primeiro metamorfoseasse o pensar do último ,em um “não seco” que conferisse um outro impulso ao pensamento do político?

Averiguar essa possível metamorfose de uma impossível oportunidade e de um avesso conceitual requer que sigamos Malabou, quando ela pensa a democracia moderna com Baudelaire (“a democracia é o segredo aristocrático da massa”) e com Élias Canetti (“o que acontece quando se está em massa é uma modificação, tão radical como enigmática”). A tese que Malabou leva adiante é a de que a democracia (e, seguindo Jacques Rancière, por uma forma pura da democracia moderna, qual seja, a de uma democracia que se nos mostrasse os contornos do anarquismo, é o que Malabou nos convida a pensar) nasce da transformação da igualdade massiva em igualdade distante. A distância que traz essa igualdade transformada é conquistada no desamparo de ser, ao mesmo tempo que é uma distância entre si mesmo e outro, em que ser todo o mundo sem ser ninguém em particular é ser singular na desidentificação consigo, e de cujo “vazio”, o qual pareça deixar esse oco identitário, vem a chance de regular a distância entre cada qual, num espaço de uma profunda igualdade.

É na condição dessa igualdade nas distâncias que uma metamorfose se dá, no intercâmbio de identidades, a que chamamos “massa”. Essa massa será lida plasticamente como máscara (persona) – limite ao contato, criação de uma defesa que, embora frágil em sua imanência, cria a distância com a qual a mimesis possa encenar o conhecimento mútuo, sem o reconhecimento, o fascínio sem a dominação, desamparo e forma política. Canetti e Malabou trazem algo a respeito dessa área sempre estrangeira do ser coletivo que contrasta com a transparência necessária ao espaço público democrático com que Rousseau idealizara, por meio da imagem das festas públicas genebrinas de seu tempo, a sociedade civil do contrato; ao contrário, a organização política mais violenta seria exatamente aquela que desmascarasse os indivíduos, que os colocasse a nu, destituindo-lhes a liberdade dos movimentos desidentitários (das ruas, dos estádios, dos hospícios) e que os encaminhasse rumo a uma forma generalizada e romantizada de ser-juntos.

Há, em contrapartida, por esse espaço coletivo distanciado, a possibilidade de manter um segredo que anima uma máscara, e que é o mesmo que anima a forma pública da massa. Malabou afirma, com Canetti e com Derrida, algo como: a massa protege o segredo, o segredo guarda a massa, e ela segue sozinha com a sentença “o anarquismo forma o clítoris”. A massa, assim como o anarquismo, guarda o segredo da coesão social pelo que lhe pareceria o mais díspar: as rupturas e as metamorfoses; o segredo, assim como o clítoris, ambos destinados a um destino errante comum, compartilham de um foro íntimo no coração do comprometimento com o manifesto e com um pensar coletivo, para esconder-se melhor. Assim o é como na relação entre os gêneros, “[...] esses lugares sem conteúdo” (Irigaray, apud Malabou, 2009, p. 285), e suas delimitações identitárias.

Ainda acerca da massa e sua relação com o não dito, Levinas bem lembra que o grande mérito do marxismo é denunciar a hipocrisia do sermão que se quer transparente, com a verdade velada e absolutamente pública da fome e da sede; Derrida o faz, recordando que Marx finge enumerar a massa, pois sabe que ela não provém de um cálculo, mas do quão são incontáveis os seus interesses, seus contornos, seus sonhos, suas mais-valias, no afã pelo manifesto público; Malabou os lembra, os articula, conferindo à massa a verdade da materialidade do sofrimento e a convertibilidade do que se inscreve como rastro e como cabeça em forma e em sujeitos. O segredo é, de fato, a cabeça das decisões públicas, a solidão na democracia e o limite absoluto da massa, sua negação e sua possibilidade silenciosa.

Da manutenção do segredo para que a massa se articule democraticamente está a desconstrução que Derrida faz da posição kantiana por um suposto direito de mentir por amor à Humanidade, cujo apelo incondicional à verdade dita a quem quer que seja fere, paradoxalmente sob uma condição de hospitalidade, o direito ao segredo, ao foro íntimo, que guardasse a saída pela justiça ou, como em Malabou, que abrisse a uma ontologia morfológica. Partindo da incondicionalidade da justiça na lei prática da razão, Kant teria submetido condicionalmente a justiça ao Direito, segundo Derrida, retirando do trunfo a priori da justiça sua própria possibilidade pura; do mesmo modo que, descobrindo a plasticidade no coração da filosofia hegeliana, Malabou quer dar visibilidade (pelo conceito como forma) aos itinerários das transformações em curso na sociedade, nos sujeitos que ficaram à sombra da reta razão como impensados ou invisíveis. A transformação morfológica é o avesso da transcendentalidade e o outro patamar da contradição; ela é a negação que produz sua própria forma.

Insistindo tanto nos contornos de uma metamorfose política, Malabou quer mostrar que a coesão social e os acidentes e rupturas têm a mesma origem: o “não” aos messianismos ético levinasiano e ateu derridiano, bem como o “não” ao acontecimento que reservaria uma confiança ingênua, na concepção de Malabou, no “sim” da sobrevida pela “menor violência possível” a despeito do seu inevitável fracasso no perjúrio (Derrida), ou uma crença frágil, mas incondicional, na salvação, inclusive nas suas resistências, sem a qual a existência não seria possível (Freud). Não é verdade que essa dupla estrutura da promessa (Derrida e Freud) seja incondicional. “A filosofia que vem deve explorar o espaço dessa derrota das estruturas messiânicas” (Malabou, 2014, p. 69). Ora, o possível dobrado é aquele que torna a existência, como seja, impossível.

Quando Lacan, impressionado com a trama de Le ravissement de Lol V. Stein, afirma que Duras bem diz do que não sabe, ele procura detectar na escrita da autora uma ausência messiânica, constitutiva do feminino. Para além da “rocha da castração”, a qual faz cada sexo deter-se frente ao repúdio ao feminino, Duras faltaria a si mesma, segundo Lacan, quando procura dizer a própria falta sem conseguir, todavia, deixando epifanicamente o sentido à mostra. Embora o falo, viril por sua imagem, não encarne nenhum dos sexos, ainda segundo Lacan, e a relação sexual efetiva ou virtual (discursiva, ao dirigir-se ao Outro como objeto de um desejo para sempre insatisfeito) dissolva o masculino e feminino na irrealidade do falo, a falta e o acontecimento resistem, no pensamento messiânico.

Duras sobrevive à falta. Sua escrita marcada por silêncios e pausas que são eternas suspensões, não esconde o que deveria saber, porém, tão só, não há nada para ver. O negativo na obra de Duras, na escrita no feminino, não inscreve rastros a uma leitura essencial, a priori e postergada, senão se desenvolve plasticamente a partir do esgotamento dos possíveis, marcando a ocorrência vital e súbita da interrupção.

[...] quando toda virtualidade já se foi há muito tempo, quando a criança, no adulto, já se apagou, quando a coesão está destruída, o espírito de família esvanecido, a amizade perdida, os laços desaparecidos, na frieza cada vez mais intensa de uma vida desértica (Malabou, 2014, p. 70).

 

 

Considerações finais

Levar o clítoris ao patamar conceitual de um sujeito, conferir-lhe, portanto, uma identidade não essencial, não leva Malabou a considerá-lo um acidente “[...] que, em certo sentido, estaria apenas esperando por ele para se desdobrar”. Entretanto, é no esgotamento das possibilidades essenciais do sujeito clitoriano (clítoris) que Malabou lhe reserva um duplo núcleo duro: de um lado, o lugar inútil do prazer que destitui o sujeito de sua apropriação funcional rumo a um pensar político morfológico; de outro lado, o engajamento no argumento e em sua implicação acerca da violência contra a mulher, qual seja, o de que há uma violência específica ao feminino, seja lá o que “feminino” for – essencialmente ou não, sujeito de uma escrita e de uma narrativa heteronômicas e de um pensar apagado pelo discurso hegemônico a seu respeito –, há uma violência própria desferida a um alvo próprio.

Desse segundo núcleo duro, afirma-se uma violência específica que faz com que exista algo a ser lido e tido como feminicídio. A forma feminina é alvo privilegiado de uma certa agressão a ela apontada, por ela eleita, nela acertada: o mal como violação (Levinas, in “Fenomenologia do Eros”, Totalidade e Infinito, 2000). E só mesmo uma tal violência justificaria uma escrita feminina engajada, não “arrebatada” [ravissée] como seria (seria?) a escrita de Duras entregue ao jogo de olhares e de amores errantes pelo qual faz passar e saltar a personagem Lol V. Stein, mas, de um empoderamento anarquista que sobrevive à hermenêutica sedutora a seu respeito, e se dá desde uma distância tão secreta quanto eloquente, desde um “não” tão seco quanto inconvertível em “sim”.

Se o feminino não é essencialmente o lugar da criação, mas tão só o da gestação do criado, se tampouco o gesto e o ato de escrever no feminino e de escrevê-lo não leva o debate às cegas, ao se deixar determinar pelo gestar receptivo e reativo, ainda assim, assumindo a narrativa da criação, lega-se, com Malabou, o feminino a uma ontologia da catástrofe, pois está claro que o surgimento e a explosão da forma são originária e indissoluvelmente ligados. Funda-se, aqui, uma ontologia política do esgotamento das determinações, dos governos e dos projetos, dos planos e das inscrições, em que se haver com as formas imanentes do que resta é tocar o mais aventuroso e o mais despatriado dos sujeitos, aquele que não se deixa governar, porque não se deixa encontrar.

Uma ontologia como tal deve levar em conta os modos de ser e de pensar, suas formas possíveis, ainda que improváveis, rumo a um novo impulso, o qual seja o de ir o mais longe possível, como quer Foucault, no trabalho indefinido da liberdade[10] ou, pelas mãos de Malabou, no trabalho plástico da diferença. A partir daí, desse último termo, um já velho conceito toma a frente para que a novidade da forma plástica e de sua capacidade de ler o nosso tempo possam aproveitar, sem que isso soe como uma aposta ou uma espera, o espaço conquistado entre distâncias.

 

Writing (in)the feminine with Malabou: anarchism and morphology

Abstract: Catherine Malabou writes the clitoris from what she would call ‘clitoral thinking’ in work, in progress, in Philosophy and anarchism; and she does so through a link between ‘genre theory’ or American critical theory in their cultural studies and the thought of being (Heidegger) revisited by Deconstruction. From this connection, the difference emerges in a contemporary philosophy that knew how to see the space of a plurality of possible identities towards that will be privileged in the present text as distance. Distance which, in turn, appears as the most updated effect of decentralized and disidentifying political thought as a positioning of the concept of ‘ontological difference’, possible only through the thought of sexual and gender difference. The ‘feminine’ will be approached as a form of thought, and from a distance that the clitoris establishes with the conceptual and political determinations introduced by Western metaphysics. A second link will be more difficult to undo, that between femininity and the woman's body, even if Malabou searches the distance between them for a political-philosophical place of balance between the extreme difficulty and the extreme urgency of saying the feminine today.

 
Keywords: Malabou. Contemporary ontology. Feminine. Anarchism.

 

Referências

BENSUSAN, Hilan. A língua do futuro em Hegel. Notas sobre o projeto de Malabou. No prelo.

CANETTI, Élias. Massa e poder. Trad. de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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Recebido: 08/01/2024 – Aprovado: 28/05/2024 – Publicado: 05/07/2024



[1] Pesquisadora em pós-doutoramento na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del Rei, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0945-8013. E-mail: lafeta11@gmail.com.

[2] Em entrevista concedida ao Journées Molière de l’Institut Français de Serbie, em 26 de maio de 2021, Malabou define “dominação” como o ato de oprimir o que não pode ser governado, e é nesse sentido que o clítoris lhe aparece como o sujeito anarquista (não “anárquico”); e completa com a pergunta, ou melhor, com a demanda de que o anarquismo tem, ele mesmo, algo de uma política clitoriana [clitoridienne] como teoria da não dominação.

[3] “Se toucher toi” [“tocar-se a ti”] é o título do capítulo XII de Le toucher (Derrida, 2000b).

[4] Hegel (2003, p. 65). “[...] só conseguirá plasticidade aquela exposição filosófica que excluir rigorosamente a maneira como habitualmente são relacionadas as partes de uma proposição”.

[5] Para ver a argumentação completa, ir a “La plasticité en souffrance”. (Malabou, 2005b, p. 36-37.)

[6]  O termo “aporia”, que é operação de escrita em Derrida mediante o trabalho de desconstrução do que ele entende como metafísica da presença, aparece aqui, por Malabou, como um impasse posto e travado, não abandonado, pelo pensamento: no qual se converteria o feminismo, se apagássemos dele o lugar da mulher; por outro lado, se se confere ao feminino o lugar obrigatório da mulher, por sua anatomia sexual, convertemos o feminismo em um lugar ético um tanto suspeito, se bem entendido por Derrida e Levinas, como apagamento do ente ou neutralidade do ser. A “saída” aporética é o não apagamento de nenhum dos lados, para manter um dado intercâmbio na distância, e cuja origem não é a alteridade, senão a convertibilidade. “Assim é como começa a diferença”. Assim, é possível dizer do feminino à distância da mulher na passagem que se dá no e que forma o coração do gênero (Malabou, 2004).

[7] O adjetivo “relevante” [relevant] designa a tradução que fez Jacques Derrida do conceito hegeliano Aufhebung, ao propor a forma do relevo nas duas direções do termo-guia à dialética, quais sejam, a da supressão (relevar) e da conservação (dar relevo).

[8] Segundo o Dicionário de Retórica (apud Malabou, 2014, p. 51), trata-se de uma “figura obtida pela supressão dos termos de ligação”, por meio da qual se cortam as conjunções que unificam as preposições e os segmentos da frase.

[9] Lembro aqui a obra Glas (1974), de Jacques Derrida, na qual a metáfora fálica serve de ponto de desconstrução articulada entre o que, então, se faz ler em dois pensamentos de um fonofalogocentrismo reinante; em formato quadrado e alinhado em páginas pares e ímpares e colunas com linhas mutantes, Derrida escreve assim um livro que encontra a différance entre dois lados controversos da Aufhebung: de um lado, a filosofia sistemática e absoluta de Hegel e, de outro lado, o pensamento antiacadêmico e transgressor de Jean Genet.

[10] MALABOU, C. Like a Pollock painting. Leitura de Metamorphoses of Intelligence [in Wellek Library Lectures], por The Critical Theory Institute, em 5 de maio de 2015.