As reflexões de Leonhard Euler sobre o “espaço” e o “tempo”[1]

 

Vinícius França Freitas[2]

 

Resumo: O artigo discute as teses apresentadas por Leonhard Euler, nas Reflexões sobre o espaço e o tempo. Após uma breve introdução ao debate sobre a natureza do espaço e do tempo, nos séculos XVII e XVIII, e como Euler nele se posiciona (seção 1), avançam-se duas hipóteses. A partir de uma aproximação com os textos de Isaac Newton, defende-se que Euler entende a noção de “reflexão” como uma atividade racional de pensamento (seção 2). Ademais, sustenta-se que o silêncio de Euler sobre a natureza do espaço e tempo absolutos deve ser entendido à maneira da recusa de Newton de falar sobre a natureza da força da gravidade. Espaço/tempo e gravidade existem, contudo, suas naturezas não são acessíveis à mente humana (seção 3).

 

Palavras-chave: Metafísica. Mecânica. Espaço. Tempo. Euler.

 

Introdução

Leonhard Euler (1707-1783)[3], um dos mais renomados matemáticos do século XVIII, realiza contribuições no âmbito da filosofia. De uma perspectiva histórica, ele poderia ser identificado tanto como um cartesio-leibniziano quanto um newtoniano[4]. Wolfgang Breidert (2007), em seu sistemático estudo dos trabalhos de Euler, busca sistematizar os interesses filosóficos do matemático[5]. A seu ver, suas reflexões filosóficas poderiam ser entendidas como fundamentalmente reativas[6]: surgem sobretudo da necessidade de responder a certas ideias que poderiam ameaçar, aos seus olhos, as crenças religiosas e as descobertas da Nova Ciência (2007, p. 100). Três questões o teriam motivado, principalmente:

 

1.               O dualismo corpo e mente de René Descartes (1596-1650) (2007, p. 98);

2.               As filosofias de G. W. Leibniz (1646-1716) e Christian Wolff (1679-1754) (2007, p. 98);

3.               As noções de “corpo” em Descartes, Isaac Newton (1642-1727) e Leibniz[7].

 

Debate-se há séculos o mérito de Euler como filósofo. As veementes palavras do filósofo francês Émile Saisset (1814-1863), na introdução das Cartas a uma princesa alemã (1843), o mais extenso escrito de filosofia de Euler[8], são inequívocas a esse respeito. Saisset afirma (1843, p. XIX), com efeito:

Encontramos aqui, como em qualquer outro lugar, o caráter um tanto estreito das visões filosóficas de Euler. Podemos supor com justiça uma rara penetração associada a uma admirável boa índole, certa fertilidade de percepções engenhosas e, sobretudo, uma incomparável clareza de concepção. Mas, no geral, Euler talvez fosse uma mente mais firme do que ampla, mais engenhosa do que profunda. Parece que a natureza, que tão ricamente o dotou como geômetra, negou-lhe o gênio da metafísica.

 

Dois matemáticos, um do século XVIII, outro do século XIX, são testemunhas de sua falta de credibilidade em filosofia. O primeiro deles, amigo íntimo de Euler, Daniel Bernoulli (apud Felmann, 2007, p. 75) diz-lhe: “Você não deveria se envolver em assuntos deste tipo, porque de você não se espera nada além de coisas sublimes, e não é possível se destacar nisso”. O segundo, Otto Spiess (apud Felmann, 2007, p. 74-75), não é menos duro em suas palavras: “É incrível que um tão grande gênio em geometria e análise se encontre, na metafísica, abaixo do menor aluno, ao falar tanta banalidade e absurdo. Pode-se muito bem dizer: os Deuses não concederam [74] tudo a um e o mesmo”. Filósofos também criticam suas pretensões filosóficas, como, por exemplo, Pierre de Maupertuis (1698-1759), Jean d’Alembert (1717-1783) e Johann Georg Sulzer (1720-1779)[9].

Os limites de Euler como filósofo talvez expliquem a razão de seu aparente esquecimento como pensador do século XVIII. Entretanto, historiadores e historiadoras da filosofia têm revelado interesse por um tema, em particular: a sua relação com Immanuel Kant (1724-1804). Tal interesse diz respeito sobretudo a como as reflexões de Euler sobre o “espaço” e o “tempo” poderiam ter influenciado o filósofo alemão. Cito, como exemplo, Andreas Speiser (1885–1970)[10], H. E. Timerding (1919), Robert Palter (1971, p. 57), Yehuda Elkana (1974, p. 280-285), Jill Vance Buroker (1981, p. 50-51), H. P. Harman (1983, p. 229-230), Carlos Minguez (1985, p. 412), David Walford (1999, p. 312-313, 316-328), Emil Felmann (2007, p. 75), Erik Watkins (2009, p. 181), Michela Massimi (2017, p. 13), Huaping Lu-Adler (2017, p. 39) e David Hyder (2019, p. 477).

Com algumas exceções, apenas um pequeno número desses autores e autoras – aparentemente mais interessados pela filosofia kantiana – se dedicam a estudar detidamente as reflexões eulerianas sobre o “espaço” e o “tempo”. É justamente este o objetivo do presente artigo: contribuir para o esclarecimento do modo como o matemático suíço compreende tais noções, em suas Reflexões sobre o espaço e sobre o tempo (1750/2019)[11], escrito apresentado à Academia Real da Prússia, no ano de 1748, e publicado dois anos mais tarde, no Volume IV da Histoire de l'académie royale des sciences et belles lettres de Prusse.

Divido o trabalho em três seções. Inicialmente (seção 1), apresento uma breve introdução – de caráter fundamentalmente descritivo – sobre a discussão da natureza do espaço e tempo, nos séculos XVII e XVIII, contexto no qual as reflexões de Euler são desenvolvidas. Considero também as provas oferecidas pelo matemático para demonstrar a existência absoluta do espaço e do tempo, nas Reflexões. Em seguida (seção 2), avanço uma hipótese sobre como compreender a obscura noção de “reflexão”, origem, segundo Euler, das ideias reais de espaço e tempo – e que representam existências absolutas. O matemático não parece se deter suficientemente sobre a explicação do que seria esse processo reflexivo. No meu modo de ver, os escritos de Newton poderiam ajudar a esclarecer o sentido do termo, nas Reflexões. A origem das ideias reais de espaço e tempo é uma atividade racional de pensamento. Por fim (seção 3), exponho uma hipótese explicativa do silêncio de Euler sobre a natureza do espaço e tempo absolutos. O matemático pretende provar que eles existem, contudo, nada menciona sobre o que são, de fato. Se estou certo em minha leitura, é possível aproximar as considerações de Euler do tratamento oferecido por Newton a uma das forças fundamentais da natureza, a gravidade. Espaço e tempo, assim como a força gravitacional, existem, e esse é o limite do conhecimento que a filosofia pode ter sobre eles.

Antes de iniciar a discussão, faço um esclarecimento. Além das Reflexões, existem ao menos três outros escritos de Euler nos quais as noções de “espaço” e “tempo” são tratadas mais detidamente: Mechanica sive motus scientia analytice exposita (1736)[12], Institutiones calculi differentialis (1755) e Theoria motus corporum solidorum seu rigidorum (1765). No presente artigo, não pretendo considerar tais escritos, senão de maneira marginal. O principal motivo para essa decisão é teórico: Euler, em ao menos dois deles, assume compreensões distintas daquelas defendidas nas Reflexões. No meu modo de ver, essas mudanças de visão justificariam estudos à parte de tais textos.

 

1 Euler no debate acerca do espaço e do tempo

Euler, nas Reflexões, assume uma posição no debate acerca da natureza do espaço e tempo. Grosso modo, a questão é desenvolvida, nesse período, a partir da disputa entre duas teorias distintas sobre o que ambos – espaço e tempo – seriam[13].

Em uma teoria absolutista, espaço e tempo são compreendidos como realidades absolutas. Eles são coisas reais que existem independentemente dos corpos materiais. Newton, no “Escólio” das “Definições” dos Princípios matemáticos da filosofa natural (2016 / 2012)[14], expõe suas célebres definições de espaço – “[...] o espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa externa, permanece similar e imóvel” (2016, p. 45, destaque meu) – e tempo – “[...] o tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração” (2016, p. 45, destaque meu). O filósofo da natureza enfatiza, em ambas as definições, sua existência independente em relação aos corpos. A seu ver, é justamente pela associação do espaço e tempo com os corpos que se torna necessária a apresentação de definições dessas noções tão conhecidas[15]. Não me aprofundo sobre a discussão das teses newtonianas. Julgo que seja suficiente, para a contextualização do debate no qual Euler se insere, notar que, apesar de defender a existência absoluta do espaço e do tempo, Newton se limitava a apresentar suas definições e um breve experimento, conhecido como “experiência do balde”. Não há, nos Princípios, uma discussão do que seriam espaço e tempo enquanto entidades absolutas. Na Óptica (1983)[16], é verdade, Newton parece sugerir – mais do que defender – uma hipótese metafísica a esse respeito, nas Questões 28 e 31: o espaço absoluto seria como que o sensorium de Deus[17] – em algumas leituras, até o próprio tempo absoluto é identificado com o sensorium divino[18].

Em uma teoria relacionalista[19], espaço e tempo são compreendidos tão somente como relações. Eles não são coisas reais que existem independentemente dos corpos, visto que existem somente enquanto os objetos se relacionam simultaneamente e sucessivamente, isto é, espacial e temporalmente. Leibniz, na célebre Correspondência (1983)[20] com Samuel Clarke (1675-1729), não apenas se ocupa com a crítica das noções newtonianas de espaço[21] e tempo[22], como também defende sistematicamente a sua compreensão relacional: “[...] quanto a mim, deixei assentado mais de uma vez que, a meu ver, o espaço é algo puramente relativo, como o tempo; a saber, na ordem das coexistências, como o tempo na ordem das sucessões” (1983, p. 177, destaque meu). Sobre a ordem das coexistências: “[...] o espaço não é mais que essa ordem ou relação, e não é, sem os corpos, senão a possibilidade de aí os pôr” (1983, p. 177). Sobre a ordem das sucessões: “[...] os instantes não são nada fora das coisas, e não consistem senão em sua ordem sucessiva” (1983, p. 177).

Como no caso de Newton, não me aprofundo sobre as reflexões de Leibniz sobre o tema. Julgo que seja suficiente observar, para os propósitos do presente artigo, que as objeções de Leibniz à teoria absolutista se assentam sobre um princípio de implicações metafísicas, a saber, o “princípio da razão suficiente”[23] (PSR). Espaço e tempo precisam ser relacionais, na medida em que a sua compreensão como existências absolutas contrariaria esse princípio fundamental da razão humana. Wolff, anos mais tarde, segue Leibniz em sua compreensão relacional. Nos Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo e a alma dos homens (2019)[24], por exemplo, espaço é compreendido como “[...] a ordem das coisas que existem simultaneamente”: o modo como a mente representa para si as coisas que coexistem[25]. O tempo, por sua vez, é entendido como “[...] a ordem das coisas que se seguem umas às outras”: o modo como a mente representa para si as coisas que se sucedem[26].

As Reflexões de Euler devem ser lidas no contexto do debate entre teorias absolutista e relacionalista. Os alvos de seus ataques são Leibniz e Wolff, os “metafísicos”, constantemente referidos no texto das Reflexões como aqueles que negariam a realidade do espaço e do tempo – como se estes fossem meramente “imaginários”. Nesse escrito, Euler se coloca ao lado dos newtonianos, os quais entendem o espaço e o tempo como existências absolutas. Se, nos Princípios, Newton não avança nenhum argumento em favor de sua compreensão absolutista – limitando-se a apresentar definições – e Leibniz, na Correspondência, parte de um princípio metafísico para defender a visão relacional, Euler, nas Reflexões, assume uma estratégia alternativa. Seu objetivo é partir da mecânica, a ciência a posteriori sobre o movimento dos corpos materiais[27].

O debate não é desenvolvido com base em uma discussão da natureza e das propriedades do espaço e tempo, a priori, como na metafísica. Euler refletirá em função da observação do comportamento dos corpos. Em carta dirigida a Maupertuis, datada de 2 de dezembro de 1747, antes da apresentação do escrito à Academia de São Petersburgo, no ano seguinte, Euler observa a necessidade de se conhecer os princípios da mecânica, para que se possa compreender os argumentos que, a seu ver, refutariam os fundamentos da filosofia Leibniz-Wolff. O filósofo (apud Arana, 1994, p. 73-74) ressalta:

Atrevo-me, senhor, a pedir-lhe que examine com alguma atenção a peça anexa, que trata de um dos assuntos mais importantes da metafísica, a saber, o espaço e o tempo. As provas que forneço da realidade destas duas coisas parecem-me tão fortes que os metafísicos [74] dificilmente encontrarão algo a que responder, a menos que sejam ignorantes da mecânica [destaque meu]. Agora, já que a maior parte é isso, abster-me-ei de publicar este artigo, especialmente com o meu nome, por medo de que aqueles senhores fiquem muito irritados comigo. Porque este é o fundamento de toda a filosofia leibniziana e wolffiana.

 

Nas Reflexões, as verdades da mecânica parecem ter dois propósitos metafísicos. Em primeiro lugar, elas servem de ponto de apoio para se recusar a compreensão relacional do espaço e do tempo. Espaço e tempo não podem “ser” apenas a ordem dos coexistentes e das sucessões, na medida em que isso não permitiria a explicação mecanicista de certos fenômenos naturais. Em segundo lugar, as verdades da mecânica são ponto de apoio para a tese absolutista do espaço e do tempo. Os princípios que explicam o comportamento dos corpos exigem a existência absoluta de ambos. Desse modo, a ciência mecanicista não apenas é capaz de descrever com acerto o comportamento dos corpos, como também seria capaz, nesse sentido, de estabelecer verdades sobre as coisas como elas são – objetivo da metafísica.

Euler, por isso, rompe com a tradição do século XVIII, ao inverter o primado da metafísica em relação à mecânica[28]. Para se compreender a estratégia euleriana, é preciso entender que o matemático assume o compromisso ontológico de que há apenas duas ontologias possíveis em relação ao espaço e ao tempo. Em outras palavras, é possível ser tão somente absolutista ou relacionalista, visões que seriam incompatíveis, de modo que a verdade de uma implicaria a falsidade da outra[29]. Demonstrar a falsidade da teoria relacionalista significa demonstrar a verdade da teoria absolutista.

O teste mecânico das ideias metafísicas de espaço e tempo proposto nas Reflexões parte da Primeira lei do movimento de Newton, entendida por Euler como duas leis distintas, a Lei do repouso absoluto e a Lei da conservação do movimento uniforme. Euler pergunta: é possível explicar o repouso absoluto e a conservação do movimento uniforme, a partir dessas ideias metafísicas, ou, diferentemente, esses princípios dependem de “ideias reais” – absolutas – de espaço e tempo (§ 4, 2019, p. 121)? Caso a resposta seja negativa, isto é, caso a explicação dessas leis dependa de ideias reais, os metafísicos serão obrigados a abandonar suas ideias imaginárias em favor de ideias reais, ideias que representam realidades fora da mente (§ 5, 2019, p. 121-122).

 

1.1 A ideia imaginária de espaço

Euler (§ 6, 2019, p. 122) parte da Lei do repouso absoluto para considerar a adequação da ideia metafísica de espaço e, do mesmo modo, a ideia de lugar:

Posso aceitar que as ideias de espaço e de lugar não sejam senão noções imaginárias, desde que me mostrem as realidades pelas quais se regulam os corpos ao obedecer a essa lei [(de) repouso absoluto] e que, no lugar delas, os matemáticos contentam-se em servir-se de ideias imaginárias de espaço e de lugar.

 

Inicialmente, o fenômeno do repouso absoluto parece ser passível de explicação tanto pelas ideias metafísicas quanto pelas ideias reais: um determinado corpo estaria em repouso em relação ao espaço absoluto e em relação aos corpos circundantes com que mantém as relações que constituem o espaço – desde que tais corpos circundantes também se mantenham em repouso. Nesse último caso, se as relações são mantidas, o corpo se mantém no lugar – isto é, em repouso. Quando há movimento dos corpos circundantes, no entanto, o corpo, do ponto de vista absolutista, se manteria em repouso. Do ponto de vista relacional, ele se deslocaria, visto que as relações (com os corpos circundantes) se modificam (§ 9, 2019, p. 124). A experiência, nesse caso, entra em conflito com as ideias metafísicas, de modo que o repouso de um corpo não poderia se regular pelas relações que ele mantém com os corpos circundantes[30]. Por isso, “[...] o que é denominado lugar na mecânica não é passível de ser explicado pela metafísica, que pretende que o lugar nada mais seja que a relação do corpo com respeito a outros corpos que o circundam” (§ 10, 2019, p. 125). A lei do repouso absoluto, portanto, depende das ideias reais, como afirma Euler (§ 13, 2019, p. 127-128, destaque meu):

Ora, não se poderia dizer que esse princípio mecânico esteja fundado em uma coisa que não subsista senão em nossa imaginação; por isso, é absolutamente necessário concluir que a ideia matemática não é imaginária, mas que há alguma coisa real no mundo que corresponde a [128] essa ideia. Logo, há no mundo, além dos corpos que o constituem, alguma realidade que nós representamos pela ideia de lugar.

 

Seis parágrafos adiante, nas Reflexões, Euler realiza um novo teste mecânico da ideia metafísica de espaço, dessa vez, a partir da Lei da conservação do movimento uniforme – um corpo posto em movimento deve continuar em movimento com a mesma velocidade, descrevendo espaços iguais em tempos iguais (§ 19, 2019, p. 132). O argumento de Euler (§ 17, 2019, p. 130) diz respeito à impossibilidade de se explicar a noção de “direção” à luz de uma noção relacional:

Se o espaço e o lugar fossem apenas a relação dos corpos coexistentes, que seria a mesma direção [destaque meu]? Haveria enorme embaraço para dar uma ideia de direção unicamente pela relação mútua dos corpos coexistentes, sem introduzir a ideia de espaço imóvel.

 

Portanto, mais uma vez se prova que a compreensão metafísica, acredita Euler (§ 17, 2019, p. 131, destaque meu), deve ser abandonada em favor de uma ideia real:

É evidente que a identidade da direção, que é característica verdadeiramente essencial dos princípios gerais do movimento, não pode absolutamente ser explicada pela relação ou pela ordem dos corpos coexistentes. Portanto, é necessário que exista ainda outra coisa que seja real, além dos corpos, à qual se refira a ideia de mesma direção; e não há dúvida nenhuma de que seja o espaço, cuja realidade acabamos de estabelecer

 

1.2 A ideia imaginária de tempo

O teste mecânico da ideia metafísica de tempo também é empreendido a partir da Lei da conservação do movimento. A dificuldade notada pelo matemático concerne à explicação da noção de “tempos iguais”: como explicar a igualdade dos tempos, em uma perspectiva relacional (§ 20, 2019, p. 133)? Para um metafísico, o tempo é tão somente as sucessões dos corpos, contudo, cada corpo tem as suas próprias sucessões. Dois tempos só poderiam ser iguais, portanto, pela identificação do número de sucessões de dois corpos[31]. Visto que os corpos têm sucessões diferentes, qual deles deveria ser apontado como critério para se aferir a igualdade das sucessões? Euler salienta (§ 20, 2019, p. 133-134):

Segundo quais mudanças ou segundo qual corpo teremos de julgar a igualdade desses dois tempos? Ou talvez se queira sustentar que todos os [134] corpos estejam sujeitos a mudanças igualmente frequentes, de modo que pouco importaria qual corpo seja escolhido para medir a igualdade dos tempos com base no número de mudanças que nele acontecem

 

Uma vez que não é possível pensar em uma maneira de se explicar a noção de tempos iguais, à luz de uma ideia metafísica de tempo, é preciso reconhecer a falsidade da visão relacional e admitir, consequentemente, a realidade absoluta do tempo. Euler afirma (§ 21, 2019, p. 134):

Trata-se da igualdade dos tempos durante os quais um corpo que se move em movimento uniforme percorre espaços iguais. Como essa igualdade não pode ser explicada pela ordem das sucessões, assim como o espaço tampouco o pode pela ordem dos coexistentes, e como ela integra essencialmente o princípio do movimento, não poderemos dizer que os corpos, ao seguir seu movimento, regulam-se por uma coisa que subsiste apenas em nossa imaginação. Seremos obrigados a admitir, então, como no caso do espaço, que o tempo é alguma coisa que subsiste fora de nosso espírito, ou que o tempo é alguma coisa real, tanto quanto o espaço [destaque meu].

 

2 A noção de “reflexão”

Euler entende que o erro dos metafísicos se deve à suposição de que a “abstração” é a origem das ideias de espaço e tempo (§ 14, 2019, p. 128). Quinze anos antes, na Mechanica, o matemático tomaria justamente essa faculdade de abstrair como a origem de ambas as ideias. Há, no entanto, uma justificativa teórica para essa mudança da Mechanica para as Reflexões: uma mudança de perspectiva. Na obra de 1736, o espaço é considerado por Euler apenas como um “conceito matemático puro”, de modo que ele não pretende se comprometer com nenhuma tese existencial sobre sua realidade. No segundo escólio da Definição II, Euler (1736, p. 03) ressalta, com efeito:

Não assumimos que o espaço infinito, tendo limites fixos e imóveis, existe [namque non asserimus dari spatium infinitum, quod habeat limites fixos et immobiles]. Indiferente à sua existência ou não [sive sit, sive non sit non curantes], nós, ao invés, apenas postulamos [postulamos] que alguém, desejoso de considerar o movimento absoluto [motum absolutum] e o repouso absoluto [quietem absolūtam], representa um tal espaço para si [sibi tale spatium repraesentet], e que é pela referência a essa representação [ex eoque] que ele julga o estado de repouso ou movimento dos corpos.

 

A abstração é suficiente para explicar a origem de ideias imaginárias que não implicam a existência absoluta das coisas que representam. Nas Reflexões, Euler não nega a existência de ideias desse tipo – a ideia geral de extensão, por exemplo, é adquirida dessa maneira (§ 15, 2019, p. 129). O matemático nega tão somente que ideias formadas por processos de abstração possam garantir a realidade absoluta do espaço e do tempo.

Euler (1736, p. 03) entende que os metafísicos pensam na abstração como fonte de ambas as ideias, em virtude de elas não terem uma origem empírica:

É verdade que os sentidos não são capazes de fornecer as ideias de espaço e de lugar e que é apenas por reflexão que nós formamos essas ideias [destaque meu]. Disso concluem que não são senão ideias abstratas, semelhantes às ideias de gênero e de espécie, que só existem em nosso entendimento e às quais não corresponde nenhum objeto real

 

A passagem acima é importante, por duas razões. Primeiramente, ela revela, sobretudo para aqueles a quem Euler escreve, que as ideias de espaço e tempo não podem ser ideias sensíveis. Ambos, espaço e o tempo, enquanto existências reais, não são dados aos sentidos. Portanto – e esse é segundo ponto que destaco na passagem –, elas têm uma origem alternativa, chamada por Euler de “reflexão” [réfléxion]. Poucas linhas abaixo, o matemático reitera a origem “reflexiva” de ambas as ideias: “[...] seria um grande equívoco querer sustentar que não existem coisas das quais só temos ideias por reflexão (§ 14, 2019, p. 128, destaque meu).

No meu modo de ver, um dos pontos mais obscuros de todo o escrito de Euler se refere justamente ao significado da noção de “reflexão”. O matemático, em momento algum, esclarece qual atividade mental ele tem em vista como fonte das ideias de espaço e tempo. Julgo que o pouco interesse que os intérpretes têm demonstrado por tal noção, em seus estudos, é outra evidência da obscuridade desse termo. Em toda a bibliografia consultada para o presente estudo, poucas referências são feitas ao termo “reflexão”. Doravante, pretendo avançar uma hipótese sobre como entender a noção, nas Reflexões. Para isso, apelo aos escritos de Newton:

 

1. Em um rascunho não publicado durante sua vida do “Prefácio” dos Princípios – provavelmente escrito depois do ano de 1713 –, Newton (1999, p. 54) faz uma breve menção ao “sentido da reflexão”:

O que é ensinado na metafísica, se derivar da revelação divina, é religião; se for derivado de fenômenos através dos cinco sentidos externos, pertence à física; se deriva do conhecimento das ações internas de nossa mente através do sentido de reflexão [the internal actions of our mind through the sense of reflection], é apenas filosofia sobre a mente humana e suas ideias, pois os fenômenos internos também pertencem à física.

 

Na passagem, Newton tem em vista uma espécie de sentido interno, o qual se contrapõe aos cinco sentidos externos, que seria responsável pelo conhecimento dos fenômenos relativos à própria mente humana. A menção de Newton ecoa explicitamente a compreensão encontrada no Ensaio sobre o entendimento humano (1999),[32] de John Locke (1632-1704): “[...] a outra fonte a partir da qual a experiência provê de ideias o entendimento é a percepção das operações interiores da nossa própria mente enquanto se debruça sobre as ideias que recebeu” (1999, p. 107).

Inicialmente, a interpretação de reflexão à maneira de Locke/Newton parece promissora, pois o autor do Ensaio entende que a própria ideia de duração seria adquirida por meio dessa atividade reflexiva. Locke destaca, com efeito (1999, p. 230):

É evidente, para quem observar o que acontece na sua própria mente, que há uma sucessão de ideias que constantemente se sucedem umas às outras no seu entendimento, enquanto está acordado. A reflexão sobre este aparecimento de várias ideias, uma após outra, na nossa mente, é o que fornece a ideia de sucessão.

 

Contudo, há uma dificuldade nessa aproximação das reflexões euleriana e lockiana. Para o filósofo inglês, com efeito, existem duas fontes empíricas de ideias na mente humana, a sensação – origem das ideias referentes às qualidades sensíveis dos objetos externos – e a reflexão. Essa noção, no escrito lockiano, está ligada à experiência: a reflexão é apenas uma capacidade mental sensível de ter ideias sobre os próprios fenômenos mentais. Euler, nas Reflexões, nega explicitamente que a ideia real de tempo possa ser sensivelmente adquirida. O matemático observa que a ideia formada pela observação das sucessões é apenas uma ideia imaginária, isto é, não poderia representar o tempo enquanto realidade absoluta: “[...] temos uma ideia muito clara do tempo, e concedo que a formamos a partir das sucessões das mudanças que observamos; desse ponto de vista, concordo que o tempo só existe em nossa imaginação” (§ 18, 2019, p. 131, destaque meu). A ideia de tempo que tem uma fonte empírica – a observação das mudanças – não pode ser identificada com o tempo real: “[...] mas cabe perguntar: a ideia de tempo e o próprio tempo não são coisas diferentes entre si? Parece-me que [132] os metafísicos, ao destruírem a realidade do tempo, confundiram o próprio tempo com a ideia que dele temos” (§ 18, 2019, p. 131-132). Consequentemente, a primeira chave de leitura da noção de “reflexão”, à luz da compreensão de Locke-Newton, não parece adequada.

 

2. Apelo novamente a um escrito de Newton, a uma passagem do texto publicado dos Princípios. Agora ao Livro III, o filósofo da natureza faz a única menção, em toda a obra, a uma atividade reflexiva da mente humana: “[...] suas substâncias interiores [dos corpos] não são conhecidas nem por nossos sentidos, nem por qualquer ato reflexivo de nossas mentes. Muito menos podemos formar qualquer ideia da substância de Deus” (2012, p. 330, destaque meu). Na passagem, Newton apresenta uma oposição entre os sentidos e a reflexão, uma oposição que talvez favoreça a leitura do ato reflexivo como uma fonte de conhecimento não sensível.

Julgo que existem ao menos duas passagens da Óptica que podem contribuir para reforçar essa leitura de uma faculdade sensível e outra racional. Na Questão 28, no contexto da discussão do sensorium, Newton observa: “[...] somente as imagens das coisas são levadas através dos órgãos dos sentidos até nossos pequenos sensórios e são aí vistas e observadas por aquilo que em nós percebe e pensa [perceives and thinks] (1983, p. 40, destaque meu). Se estou certo em minha proposta de leitura, a oposição perceber/pensar poderia ser identificada com a oposição sentidos/reflexão, de modo que o ato reflexivo seria um ato racional de pensamento não sensível. A segunda passagem está presente na versão latina da Óptica, na Questão 20[33]. Newton (apud Kassler, 2018, p. 22-23) argumenta:

Não é todo o Espaço o sensorium de um Ser Incorpóreo, vivo e inteligente, visto que ele vê distintamente e compreende de perto as próprias coisas mais íntimas, [23] e os observa total e completamente por estarem nele presentes; das quais [coisas], certamente, aquilo que em nós sente e pensa [sentit et cogitat], examina apenas as imagens no cérebro?

 

Na passagem, Newton opõe novamente o sentir e o pensar. Na literatura secundária consultada, ao menos Jamie Kassler (2018) entende que a noção de “reflexão” poderia ser identificada com esse ato de pensar não sensível[34].

Haja vista as dificuldades de interpretação do texto de Euler, minha sugestão é que a noção de “reflexão” seja entendida da maneira mencionada nas passagens acima dos textos newtonianos: um tipo de atividade racional de pensamento, uma atividade que não envolve nenhuma dimensão sensível – visto que, como Euler realça, o espaço e o tempo reais não podem ser conhecidos pelos sentidos. É ao raciocinar que a mente é capaz de formar para si as ideias reais de espaço e tempo. Tais raciocínios certamente são a posteriori, pois parecem depender da observação dos fenômenos naturais. O que as Reflexões não esclarecem, no entanto, é se esses raciocínios dependem da consideração dos verdadeiros princípios da mecânica.

Essa compreensão geraria, acredito, uma perplexidade. Apenas filósofos e filósofas comprometidos com uma visão mecanicista dos fenômenos da natureza teriam acesso às ideias reais de espaço e tempo? Todo o restante da humanidade – inclusive filósofos e filósofas não newtonianos – disporiam tão somente de ideias imaginárias, jamais tendo uma compreensão verdadeira do que são essas realidades? Uma estranha consequência dessa suposição, parece-me, é o fato de que a filosofia – e a humanidade – teriam tido conhecimento de ambas as existências, espaço e tempo, apenas a partir do estabelecimento da mecânica, nos séculos XVII e XVIII. Até então, filósofos/as e não filósofos/as teriam acessado apenas ideias imaginárias de espaço e tempo, o que contraria uma visão, a meu ver, intuitiva, de que o espaço e o tempo são reais. Isto é, que elas não podem ser intuitivamente conhecidas, a não ser com o conhecimento da mecânica.

 

3 A natureza do espaço e do tempo

            Euler, nas Reflexões, não se dedica à discussão da natureza do espaço e tempo, limitando-se apenas a demonstrar as suas existências absolutas. O que eles são, que realidade lhes atribuir? Espaço e tempo são substâncias? Acidentes? Propriedades da mente divina? O sensorium de Deus[35]? Euler não se ocupa com questões desse tipo. O matemático, no entanto, de modo indireto, reconhece que o espaço – e o tempo – não poderiam ser reduzidos a uma das duas substâncias existentes, isto é, a substância corporal ou espiritual. Ao discutir o Princípio da identidade dos indiscerníveis, com efeito, Euler admite que talvez o princípio em questão se aplique tão somente aos corpos e espíritos, mas não ao espaço e ao tempo[36].

Minguez, em seu detido estudo da compreensão euleriana do espaço e tempo, julga que Euler passa muito rapidamente pela importante questão acerca da natureza de ambas as existências[37]. Contudo, o intérprete faz a sugestão, sem desenvolvê-la, de como a questão poderia ser resolvida: Euler teria seguido o modo de filosofar newtoniano. Minguez faz notar (1985, p. 426):

Entende-se que a razão disso é que [Euler] imita a prudência dos escritos publicados por Newton (não a dos seus seguidores), ou repugna tanto ao seu primitivo e soterrado cartesianismo como à sua imodificável sensibilidade religiosa. Certamente, em trabalhos posteriores, defenderá sem titubear que só podem existir duas classes de substâncias: matéria e espírito, e, pelo que vimos, nenhuma dessas cabe ao espaço e ao tempo.

 

Doravante, ocupo-me em desenvolver a ideia apontada por Minguez. A hipótese que avanço estabelece que, para Euler, espaço e tempo devem ser compreendidos à maneira que Newton entende a força da gravidade: é possível tão somente conhecer as suas existências, não as suas naturezas.

 

1. No Livro III dos Princípios, Newton reconhece os limites do conhecimento humano – sobre os corpos e sobre Deus, um espírito. A seu ver, é impossível conhecer a natureza das coisas corporais ou espirituais, ou, em suas palavras, “as substâncias reais”. Esse conhecimento não está disponível aos sentidos ou à reflexão[38]. Em uma passagem já citada, com efeito, Newton afirma (2012, p. 330, destaque meu):

Temos ideias de seus atributos, mas não sabemos qual é a substância real de qualquer coisa. Nos corpos, vemos apenas suas formas e cores, ouvimos apenas os sons, tocamos apenas suas superfícies externas, cheiramos apenas os odores e provamos os sabores. Mas suas substâncias interiores não são conhecidas nem por nossos sentidos, nem por qualquer ato reflexivo de nossas mentes.

 

Na proposta de aproximação entre Newton e Euler que sugiro, o conhecimento da natureza do espaço e tempo, embora esses não sejam corpos ou espíritos, estaria, do mesmo modo, fora do alcance das capacidades humanas. Suas “substâncias reais” não poderiam ser alcançadas pela mente humana. Compreendem-se o repouso e o movimento dos corpos no espaço e tempo, todavia, esse seria o limite do conhecimento humano a esse respeito.

 

2. Na conclusão do Livro III dos Princípios, Newton reconhece, da mesma forma, a incapacidade de se explicar a causa da força da gravidade. Sabe-se que ela é real, que ela produz efeitos no mundo material. Explicam-se diversos fenômenos naturais, a partir da Lei da gravitação universal (2012, p. 331). Contudo, “[...] ainda não designamos a causa deste poder. Isto é certo, que ele tem de proceder de uma causa que penetra até os centros do sol e dos planetas, sem sofrer a menor diminuição de sua força” (2012, p. 331). Não seria possível conhecer o que é a gravidade, reconhece o filósofo (2012, p. 331):

Mas ainda não fui capaz de descobrir a causa destas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e não construo hipóteses. Pois tudo aquilo que não é deduzido a partir dos fenômenos é para ser chamado uma hipótese. E as hipóteses, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.

 

Para concluir, na aproximação que proponho, espaço e tempo podem ser entendidos, em Euler, como a força da gravidade, em Newton. A explicação de certos fenômenos naturais depende da existência absoluta do espaço e tempo, assim como os mesmos dependem da existência da força da gravidade. O filósofo da natureza é capaz de compreender esses fenômenos, a partir da existência destes – espaço, tempo e gravidade. Entretanto, tratar sobre as suas naturezas, suas substâncias, como no caso da gravidade, seria tão somente apresentar hipóteses. Assim como é suficiente, para a explicação mecânica, que a gravidade exista[39], é suficiente que se reconheça que espaço e tempo existam e de maneira absoluta.

 

Considerações finais

Julgo que as considerações apresentadas acima possam contribuir para esclarecer alguns aspectos das Reflexões sobre o espaço e o tempo de Euler. Dois desses aspectos mereceram uma consideração mais detida: a noção de “reflexão” e o silêncio do matemático sobre a natureza do espaço/tempo. Avancei duas hipóteses a esse respeito. A primeira delas (seção 2) estabeleceu que a noção de “reflexão” poderia ser compreendida a partir de uma aproximação com a obra de Newton. Para ambos os filósofos, reflexão, o ato mental que dá origem às verdadeiras noções de “espaço” e “tempo”, seria uma operação racional de pensamento não sensível. Reconheci, no entanto, que existem ainda alguns pontos obscuros sobre como compreender a origem dessas noções. Por exemplo: os raciocínios reflexivos – os quais permitem a descoberta das noções dessas noções – dependem da consideração dos verdadeiros princípios da mecânica? O texto de Euler não é claro sobre isso. Se a resposta é positiva, porém, haveria uma nova perplexidade: apenas filósofos e filósofas comprometidos com uma visão mecanicista dos fenômenos da natureza teriam acesso às ideias reais de espaço e tempo, de sorte que todo o restante da humanidade – inclusive filósofos e filósofas não newtonianos – disporiam tão somente de ideias imaginárias. Não lidei com essa dificuldade, que continua em aberto para pesquisas futuras.

A segunda hipótese estabeleceu que Euler, inspirado por Newton, não poderia se deter sobre a discussão acerca da natureza do espaço/tempo. Visto que suas “substâncias reais” estariam para além da experiência, a mente humana não seria capaz de conhecer tais naturezas. O filósofo da natureza é capaz de compreender certos fenômenos naturais com base na existência real do espaço/tempo. Contudo, explicitar sobre o que são seria tão somente apresentar hipóteses, o que Euler – inspirado por Newton – não poderia fazer. Julgo, portanto, que isso responderia à perplexidade sobre o silêncio do matemático a respeito da natureza do espaço/tempo.

 

 

Leonhard Euler’s reflections on “space” and “time”

Abstract: The paper discusses Leonhard Euler’s theses in Reflections on space and time. After a brief introduction to the debate about the nature of space and time in the 17th and 18th centuries and Euler’s position in it (section 1), the paper advances two hypotheses. Based on an approach to Isaac Newton’s writings, it is argued that Euler understands the notion of “reflection” as a rational activity of thought (section 2). Furthermore, it is argued that Euler’s silence about the nature of absolute space and time must be understood in the same way as Newton’s refusal to discuss the nature of gravity. Space/time and gravity exist; however, their natures are not accessible to the human mind (section 3).

Keywords: Metaphysics. Mechanics. Space. Time. Euler.

 

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Recebido: 30/12/2023 – Aprovado: 13/02/2024 – Publicado: 15/06/2024



[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES). Agradeço a Carlota Salgadinho Ferreira pelos valiosos comentários à primeira versão deste texto. Agradeço também aos membros do Grupo Ceticismo Moderno UFMG – CNPq, os quais participaram das reuniões em que as ideias presentes neste artigo foram discutidas.

[2] Residente pós-doutoral (PNPD/ CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8304-4732. E-mail: ffvinicius@yahoo.com.br.

[3] Euler vive como estudante na Basileia (1707-1727). Assume o posto de membro da Academia de São Petersburgo (1727-1741), da Academia de Berlin (1741-1766) e, nos últimos anos de vida, novamente da Academia de São Petersburgo (1766-1783). Seus mais de 850 trabalhos publicados podem ser distribuídos da seguinte maneira: Álgebra, Aritmética e Análise (40%), Mecânica (28%), Geometria (18%), Astronomia (11%), Arquitetura, Náutica e Artilharia (2%) e Filosofia, Música e Teologia (1%). Para uma introdução às publicações de Euler, ver Carlos Minguez (1985, p. 433, nota 8). Para uma introdução à sua vida intelectual, ver o primeiro capítulo – “Euler Study of Newtonian and Cartesian Physics” – da obra de Dora Musielak (2022).

[4] Para uma história da formação filosófica “mista” de Euler, ver Minguez (1985, p. 414-415). Asot T. Grigor’jan e Vladimir S. Kirsanov (1983) avançam a hipótese de que essa mistura de influências de Descartes, Leibniz e Newton nas reflexões filosóficas de Euler tem raízes na adoção de pressupostos das físicas desses autores (1983, p. 385).

[5] Emil Felmann também dedica algumas páginas de seu estudo às reflexões filosóficas de Euler (2007, p. 73-77).

[6] “Apenas incidentalmente foi ele filosoficamente produtivo, [visto que] não pretendia ser um filósofo, porque desdenhava os pretensos filósofos. E os seus contemporâneos dificilmente o estimaram ou aceitaram como filósofo. Talvez a filosofia seja, em qualquer caso, uma resposta e uma reação [98] à filosofia anterior, mas o filosofar de Euler é, de uma forma muito especial, uma disputa com as filosofias de outros autores” (2007, p. 97-98).

[7] A discussão dessa questão é que motiva Euler a abordar as noções de “espaço” e “tempo”. Breidert observa: “[...] na filosofia natural, o conceito cartesiano de corpo, que definia a extensão como a propriedade essencial do corpo, teve que dar lugar ao conceito de corpo difundido por Newton e Leibniz, incluindo a inércia ou força além da extensão. No entanto, o espaço absoluto de Newton opunha-se ao conceito relativista [relacional] leibniziano de espaço” (2007, p. 98).

[8] No original, Lettres a une Princesse d’Allemagne sur Divers Sujets de Physique et de Philosophie. As 234 cartas são escritas por Euler, entre os anos de 1760 e 1762, e dirigidas às princesas irmãs Friederike Charlotte de Brandenburg-Schwedt (1745-1808) e Louise Brandenburg-Schwedt (1750-1811). Os dois primeiros volumes da correspondência são publicados no ano de 1768; o terceiro, em 1774. Para uma introdução à história dessa correspondência, ver Michel Criton (2007, p. 20-23).

[9] Sobre essas críticas, ver Juan Arana (1994, p. 11).

[10] Ver Emil Felmann (2007, p. 75).

[11] No original, Réflexions sur l’Espace et le Temps. No presente artigo, utilizo a tradução brasileira realizada por Paulo R. Licht dos Santos (2019), com consultas ao texto original em francês (1750). Em todas as citações, indicarei também o parágrafo, tendo em vista tornar mais fácil o cotejo entre as duas edições.

[12] Menciono esse texto adiante. Para uma introdução à Mechanica, sugiro a leitura de Carlos Minguez (1985, p. 416-422).

[13] Para uma discussão mais detida das posições absolutista e relacional, sobretudo na filosofia contemporânea, ver Paul Horwich (1978).

[14] Publicada originalmente no ano de 1687. Doravante, apenas Princípios. Utilizo as traduções para o português dos Livros I (2016) e II / III (2012) da obra.

[15] “Admito que o leigo não concebe essas quantidades sob outras noções, exceto a partir das relações que elas guardam com objetos perceptíveis. Daí surgem certos preconceitos, para a remoção dos quais será conveniente distingui-las entre absolutas e relativas, verdadeiras e aparentes, matemáticas e comuns” (2016, p. 44).

[16] A Opticks: or, A Treatise of the Reflexions, Refractions, Inflexions and Colours of Light, é publicada originalmente em inglês, no ano de 1704. Dois anos mais tarde, uma edição em latim (Optice) é lançada. As Questões (Quaestiones) aparecem primeiramente na edição em latim de 1706.

[17] Na Questão 28: “[...] não parece, a partir dos fenômenos que existe um Ser incorpóreo, vivente, inteligente, onipresente, que no espaço infinito (como o espaço seria em seu sensório) vê as coisas em si mesmas intimamente, e as percebe totalmente, e as compreende totalmente pela presença imediata delas diante de si” (1983, p. 40)? Na Questão 31, por sua vez: “[...] e o instinto das bestas e insetos não pode ser o efeito de nada além do que a sabedoria e habilidade de um agente sempre vivo, poderoso, que estando em todos os lugares, é mais capaz por Sua vontade de mover os corpos em Seu sensório uniforme ilimitado, e desse modo formar e reformar as partes do Universo [...]” (1983, p. 56).

[18] Jamie C. Kassler (2018) observa, sobre as interpretações tradicionais da noção de sensorium em Newton: “[…] the divine sensorium has been glossed to mean to the world, the mind of God, absolute space and, sometimes also, absolute time” (2018, p. v).

[19] O adjetivo correto para qualificar a posição de Leibniz e Wolff é “relacional”, não “relativo”. David Hyder (2019) explica a distinção entre ambos os termos: “[...] ‘relacionalismo’, nomeadamente a visão de que as magnitudes espaciais e temporais são totalmente redutíveis às posições e velocidades relativas dos corpos, e ‘relativismo’, no sentido pós-einsteiniano, que não nega a existência do espaço-tempo como uma estrutura independente, embora rejeite as noções de repouso e movimento absolutos” (2019, p. 493).

[20] A correspondência entre Leibniz e Clarke ocorre entre os anos de 1715-1716. Ela é publicada por Clarke, no ano de 1717, com o título de A Collection of Papers which Passed Between the Late Learned Mr. Leibnitz, and Dr. Clarke, in the Years 1715 and 1716. Relating to the Principles of Natural Philosophy and Religion.

[21] No § 5 da “Terceira carta” de Leibniz a Clarke: “[...] se o espaço fosse um ser absoluto, sucederia alguma coisa de que seria impossível possuir uma razão suficiente, o que é ainda nosso axioma. Eis como o provo. O espaço é algo absolutamente uniforme; e, sem as coisas postas nele, um ponto do espaço não difere absolutamente nada de um outro ponto. Ora, disso se segue (suposto que o espaço seja alguma coisa em si mesmo fora da ordem dos corpos entre si) ser impossível que haja uma razão por que Deus, conservando as mesmas situações dos corpos entre si, os tenha colocado assim e não de outro modo, e por que tudo não se fez ao ‘contrário (por exemplo), trocando-se o Oriente e o Ocidente” (1983, p. 177).

[22] No § 6 da “Terceira carta” de Leibniz a Clarke: “[...] supondo-se que alguém pergunte por que Deus não criou um ano antes; e que essa mesma pessoa queira inferir daí que Deus fez alguma coisa de que não é possível haver uma razão pela qual a fez assim antes que de outra maneira, responder-lhe-íamos que sua inferência seria verdadeira se o tempo fosse algo fora das coisas temporais. De fato, seria impossível haver razões pelas quais as coisas tivessem sido aplicadas antes a tais instantes que a outros, ficando igual sua sucessão” (1983, p. 177).

[23] No § 2 da “Terceira carta” de Leibniz a Clarke: “[...] esse princípio importante que nada acontece sem que haja uma razão suficiente para que seja antes assim que de outra maneira” (1983, p. 176).

[24] Publicado originalmente em 1720.

[25] No § 46, Wolff ressalta: “Como, pois, muitas coisas que são simultâneas, e das quais uma não é outra, são representadas como exteriores umas às outras, surge com isso uma certa ordem entre elas, de modo que, se assumo uma dentre elas como primeira, então uma outra se torna segunda, uma outra ainda, terceira, e uma outra ainda, quarta, e assim por diante. E assim que representamos essa ordem, representamo-nos o espaço. Por isso, se não queremos considerar a coisa a não ser como a conhecemos, temos de tomar o espaço como a ordem daquelas coisas que são simultâneas. E, portanto, não pode haver espaço, se não existem coisas que o preenchem” (2019, p. 74).

[26] No § 94, Wolff salienta: “[...] conhecendo que algo pode surgir sucessivamente, assim como prestando atenção a que nossos pensamentos surgem um após o outro, obtemos o conceito de tempo. Daí fica claro que, se não devemos pensá-lo senão como o encontramos em nós, o tempo não é senão uma ordem daquilo que se segue um a um, de tal maneira que, quando se toma um como o primeiro, um outro se torna o segundo, e ainda um outro, o terceiro, e assim por diante” (2019, p. 74).

[27] No Prefácio da Mechanica: “[...] o nome mecânica permanece o único para aquela ciência do movimento e para o qual é conhecido que esses nomes são sempre utilizados” [alteri uero motus scientiae soli Mechnaicae nomem reliquisse [13], quo quidem sensu hae uoces iam passim sunt usurpari solitae] (1736, p.  12-13).

[28] Arana faz notar: “[...] o programa filosófico de Euler está assim claramente formulado, o que inverte a tradicional subordinação epistemológica da física à metafísica e torna esta última tributária da primeira, de facto e de direito” (1994, p. 74).

[29] Em escritos posteriores, o matemático abandona essa visão em favor de uma forma de compatibilismo entre absolutismo e relacionalismo. A respeito disso, assevera Walford: “Euler, na Theoria de 1765, defendeu tanto a abordagem relacional do movimento e do repouso (na prática das ciências naturais) quanto a visão absolutista do espaço (como uma exigência teórico-ontológica da física matemática). É estranho que, nas próprias Réfléxions de 1748, não haja vestígios nem do relacionalismo de 1736, nem do compatibilismo de 1765. Euler parece, em 1748, estar convencido da incompatibilidade irreconciliável do relacionalismo e do absolutismo, não apenas metafisicamente como ontologias, mas também no que diz respeito à prática ou método de investigação científica” (1999, p. 317-318).

[30] “A Mecânica nos faz ver de modo muito claro que o corpo só segue a água corrente porque é impelido pelas partículas de água e, por consequência, que [125] é uma força externa que o põe em movimento. Assim, sem essa força, o corpo permaneceria em repouso tanto na água corrente quanto na água parada; logo, o corpo, na conservação de seu estado de repouso, não se regula pelos corpos que o circundam imediatamente” (§ 10, 2019, p. 124-125). 

[31] “Pretende-se que cada ser do mundo esteja sujeito a mudanças contínuas e que a sucessão dessas mudanças seja a causa o tempo. Seguindo essa explicação, dois tempos deveriam ser iguais quando ocorresse o mesmo número de sucessões” (§ 20, 2019, p. 133).

[32] Publicado originalmente em 1689. A segunda edição da obra, revisada e com acréscimos feitos por Locke, data de 1694.

[33] Para uma discussão dessa passagem, ver Alexandre Koyre e I. Bernard Cohen (1961, p. 562-563).

[34] “Esta alma nunca sente ou reflete, percebe ou pensa, sem exercer o seu poder do intelecto para ver ou contemplar as imagens representadas no sensório” (2018, p. 102).

[35] Sobre essas questões, ver Arana (1994, p. 184) e Minguez (1985, p. 426).

[36] “Não sei, porém, se esse princípio é tão geral como se pensa; pode ser que seja aplicável apenas aos corpos e aos espíritos [destaque meu], generalidade com a qual se poderia estar bem satisfeito. Mas como o espaço e o lugar são coisas tão essencialmente diferentes dos espíritos e dos corpos, não podemos julgá-los pelos mesmos princípios” (§ 16, 2019, p. 130).

[37] “Este é um problema, o do tipo de realidade do espaço e do tempo, que Euler passa por ele com certa rapidez nesse escrito, porém, que tem, a nosso ver, muita importância. Sobre ele, convém-se deter um pouco. A posição de Euler nas Reflexões é clara: assinala que o espaço e o tempo não são nem um conceito abstrato nem algo corpóreo, porém não diz nada mais” (1985, p. 426).

[38] “Temos ideias de seus atributos, mas não sabemos qual é a substância real de qualquer coisa. Nos corpos, vemos apenas suas formas e cores, ouvimos apenas os sons, tocamos apenas suas superfícies externas, cheiramos apenas os odores e provamos os sabores. Mas suas substâncias interiores não são conhecidas nem por nossos sentidos, nem por qualquer ato reflexivo de nossas mentes. Muito menos podemos formar qualquer ideia da substância de Deus” (2012, p. 330, destaque meu).

[39] Newton (2012, p. 331) assevera: “[...] assim foram descobertas a impenetrabilidade, a mobilidade e a força impulsiva dos corpos, e as leis do movimento e da gravitação. E para nós é suficiente que a gravidade exista realmente e atue de acordo com as leis que explicamos, servindo abundantemente para explicar todos os movimentos dos corpos celestes e de nosso mar”.