Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude: um projeto aristocrático de vontade de domínio
Adilson Felicio Feiler[1]
Resumo: Desde a fase de escrita de seu Para a genealogia da moral, Nietzsche desenvolveu um projeto marcado por uma desconfiança cada vez mais radical sobre as bases fundamentais da cultura, projeto este que, inclusive, reverberou em diversas trocas epistolares com Georg Brandes, das quais sobressai a de 02 de dezembro de 1887[2], com a expressão “Radicalismo Aristocrático”. A aristocracia se depreende pela crítica que o filósofo realiza a toda a dimensão gregária, mediante a qual a cultura vem marcada. E, como resposta, Nietzsche, nos Póstumos de 1887, apresenta a virtude que se afirma na vontade de domínio. No decorrer deste trabalho, será observado em que medida o esforço de Nietzsche por essa concepção de virtude transvalorada, ou seja, despida da moralina, é capaz de contribuir para o projeto político de domínio e de superação. A própria noção de aristocracia tem, na sua dimensão de radicalismo, a virtude como vontade de domínio, um de seus diferenciais. Seria essa virtude compreendida exclusivamente como força e, por isso, despida da moral, informada pelo cristianismo como projeto civilizatório?
Palavras-chave: Nietzsche. Política. Aristocracia. Ética. Vontade de Domínio.
Introdução
Que Nietzsche seja um autor com contribuições para um pensamento político permanece ainda uma questão disputada, pois, diante das críticas demolidoras que se depreendem de seu pensamento, torna-se difícil visualizar alguma menção a fazer dele um autor que traga referências capazes de ser revertidas em contribuições afirmativas. Essas contribuições são praticamente nulas em diferentes campos do conhecimento, particularmente aquelas que apontam para uma referência política. No entanto, autores como Michel Foucault, ao tratar sobre as abordagens políticas baseadas nas estruturas sociais de poder, bem como Giorgio Agamben, ao tratar da biopolítica, possuem em Nietzsche um terreno comum. Que o pensamento de Nietzsche não apresente uma referência robusta sobre a política até pode ser considerado um lugar comum. Contudo, ele tem despertado inúmeras provocações e pistas de reflexão que constituem solo fértil para a elaboração de um pensamento político, porque, como filósofo da cultura, a política necessariamente é parte fundamental, ou seja, não há como tratar sobre política sem passar pela cultura. Pode-se dizer, em última análise, que Nietzsche apresenta uma reflexão político-moral, já que a dimensão política não pode ser compreendida como desconectada de todas as suas considerações sobre a moral.
As referências nietzschianas sobre política se apresentam bastante esparsas, no decorrer de seus escritos, desde aqueles denominados Textos Publicados, passando pelos Póstumos e chegando até o Epistolário. Em nenhum desses conjuntos de escritos há um tratado eminentemente político, senão apenas referências em doses homeopáticas, como na primeira parte de Assim falava Zaratustra, quando o filósofo aborda o rebanho, para aludir à chamada Pequena Política. Nos Póstumos de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, o filósofo, ao tratar sobre a guerra e a vontade de potência, refere-se à chamada Grande Política, bem como no Epistolário de 1887-1889, principalmente em sua troca epistolar com Georg Brandes. O tema da política vem associado ao tema da força, mostrando que o seu rebaixamento e fraqueza se associam a um tipo de política de rebanho, daqueles cansados da vida, diferentemente daqueles que se lançam à vida, como num campo de luta e batalha. São os que fazem a vida prosperar, demandando sempre um quantum maior de força.
Estes segundos são aqueles que representam a Grande Política, a política afirmativa, aquela baseada na vontade de sempre mais potência. Representam estes os que, pela busca de assenhoramento, vão alcançando pontos sempre mais culminantes de potência, dentro de uma escala hierárquica de poder. Nessa perspectiva, a política é pensada, em Nietzsche, dentro de um registro orgânico[3], o qual, em última análise, está ligado ao registro da moral. Pelo aumento ou diminuição das forças é que se vai configurando uma dada estrutura política: sua negação, a chamada Pequena Política, a política da massa, do rebanho ou de afirmação, e a chamada Grande Política, a política daqueles que se lançam no campo da luta, por alcançar níveis sempre mais culminantes de forças, portanto, os fortes, aqueles que se destacam pela busca da afirmação.
As considerações sobre política em Nietzsche consistem na busca de superação, no sentido de se pôr a caminho do alcance de mais potência. E é o trilhar esse caminho que o filósofo qualifica como sendo virtuoso. Por conseguinte, o cultivo da virtude passa pela aspiração ao domínio, sendo considerado degenerado todo o que se opõe a esse caminho, a não ser que essa oposição leve ao desencadeamento de ainda mais potência. Representa, por essa razão, um verdadeiro obstáculo ao alcance de mais potência tudo o que resulta em diminuição da força, como seria o desencorajar à aspiração de níveis mais elevados da potência. Concretamente, essa diminuição da força e rebaixamento encontra-se consignada em máximas, a exemplo daquela de se buscar o último lugar, como o Cristianismo tem orientado. Dentro dessa concepção, ser virtuoso é ser aquele que se coloca como último de todos, aquele que se rebaixa e se esquece de si mesmo. Tal concepção de virtude representa, aos olhos do filósofo, um atentado à própria vida, negando-a naquilo que seria a sua possibilidade de afirmação e aumento, a saber, a ativação de suas forças para a sua superação.
Pelo contrário, Nietzsche conclama a constituição da virtude, que passa pelo aumento constante das forças; assim, virtuoso é aquele que almeja o primeiro lugar, aquele que não se cansa de lutar. O virtuoso é, por consequência, aquele homem forte, distinguido pelo valor e pela coragem, dotado de energia, qualidades viris, vigor e mérito. Tudo isso destituído do sentido moral, o qual conduz a uma deturpação do sentido genuíno do virtuoso, como forte e vigoroso. Essas considerações sobre política Nietzsche apresenta para um público seleto, ou seja, para aqueles que não foram contaminados pela fraqueza e pela doença, típicas da moral. Portanto, trata-se de homens seletos, não para qualquer ouvido, porém, para aqueles dispostos a aprender como se tornar virtuoso, ou seja, como se superar mediante a força. Isso envolve uma decisão, ao mesmo tempo de renunciar a tudo aquilo que conduz ao oposto ao da força e da superação. Essa concepção, pela força, pressupõe sempre algum sacrifício; contudo, trata-se de um sacrifício que resulta em uma capacidade maior de domínio pela afirmação de si.
Esse caminho de afirmação se dá em meio a uma estrutura social composta por uma multiplicidade de pontos de força que almejam alcançar a sua culminância. Eis, portanto, o que Nietzsche entende por política: uma estrutura social de pontos dispostos hierarquicamente, aos quais é encorajada a aspiração por alcançar níveis sempre mais culminantes da potência, de forma aberta e irrestrita, sem qualquer vestígio de fraqueza ou desânimo, mas movido unicamente pela coragem e pela vontade de superação. Por isso, nenhum tipo de nivelamento é admissível, pois prende o homem ao registro gregário, aquele que vê como virtuoso o igual aos demais, conformando-se ao estamento daqueles que desistiram de lutar. E mais, daqueles que concebem a luta como pecado e como desagregação da massa gregária, e que toda a divergência incorre em dívida para com os demais membros gregários. E, enquanto persistir a dívida, permanece a culpa, que é o fardo que se carrega, impossibilitando a sua superação por alcançar níveis mais potentes da força.
Embora em Nietzsche não exista um pensamento que reflita de maneira exaustiva e com propriedade sobre a política, de modo a desenvolver uma teoria política, no sentido estrito, há, no entanto, elementos bastante sugestivos que possibilitam o desenvolvimento e que culminam numa determinada teoria política. Para tanto, o conceito de vontade de potência é fundamental. A vontade de potência constitui-se como o efetivar-se das forças; nela, os obstáculos e resistências fazem com que as forças se exerçam num combate interminável. No âmbito da política, é da intensidade das forças, das lutas e das resistências que se depreende uma força política forte, grande, afirmativa, ou, pelo contrário, uma forma política fraca, pequena, negativa. E é para uma política forte, grande, que Nietzsche vincula o conceito de vontade de potência, para além de uma política fraca e pequena, à qual está ligado o conceito de rebanho.
Pela vontade de potência, o filósofo alemão pensa a política como uma guerra. Não uma guerra que se trava entre nações, no sentido propriamente de interesse político, mas uma guerra no sentido de potência, uma disposição psicológica afirmativa, capaz de provocar o enriquecimento instintual, embora Nietzsche veja a guerra, entendida como guerra entre nações, como algo necessário, desde que venha a criar uma disposição psicológica afirmativa, no sentido de ativar um quantum maior de forças. O papel da política, nesse sentido, se vincula ao aumento das forças imprescindíveis para a afirmação da vida. Esta tem na seletividade uma importância fundamental, porque é pela luta e pelo embate entre forças que se consegue atingir a maximização, em termos de potência; somente aqueles espécimes mais fortes, que ocupam níveis mais altos na hierarquia, são capazes de prevalecer.
Esse prevalecimento lhes confere virtude, que é o enaltecimento de seu vigor e força, atributos estes não despidos do caráter político-moral, mas que fazem parte da dimensão orgânica. E é justamente como organicismo que a política é compreendida no pensamento de Nietzsche, tendo ela um papel fundamental para o aumento das forças, que é a condição fundamental para a afirmação da vida. Embora as considerações de Nietzsche sobre política façam parte do grande projeto de cultura, que é um projeto de crítica à moral, não se reduz estritamente a este. Nesse sentido, a hipótese de investigação é a de que o projeto político de Nietzsche se filie a uma concepção de forças, as quais lutam por afirmação, constituindo uma cultura da aristocracia espiritual. Como o projeto político de Nietzsche é uma parte de todo o seu projeto de cultura, a sua meta é constituir uma nova ética, a partir da vontade de potência.
O presente itinerário se dá em três momentos, cada qual refletindo sobre algum aspecto fundamental que se depreende das bases que formam o projeto político de Nietzsche. Um primeiro momento reflete sobre como a cultura ocidental tem-se estabelecido e a necessidade de conversão dessas mesmas bases, a conversão de uma cultura fundada sobre a dimensão de uma virtude moral racional para uma dimensão perspectivística, despida da moral de fraqueza e da razão, ou seja, nas forças. Intitula-se esse movimento “A superação das bases fundamentais da cultura ocidental: um projeto baseado nas forças.” Num segundo momento, aborda-se o papel que o conceito de vontade de potência exerce sobre a dimensão de renovação das bases culturais, no sentido de promover as forças que são imprescindíveis para a constituição da virtude. Intitula-se “A vontade de domínio como base da cultura: um projeto permeado pela virtude.” E, finalmente, no terceiro e último movimento, focaliza-se a dimensão de radicalidade do projeto cultural, a partir da vontade de potência, despida da moral. Intitula-se: “Um projeto político de superação da moral: um projeto radical.”
1 A superação das bases fundamentais da cultura ocidental: um projeto baseado nas forças
Se a cultura ocidental foi compreendida como tendo por base o desenvolvimento do conjunto dos costumes que, aos poucos, foi se institucionalizando em normatizações morais, então, tudo o que representou desconstrução foi considerado ameaça. Wilson Frezzatti apresenta uma genealogia do termo “cultura”, que vem ao encontro do que aqui se evidencia, quando se refere a ela como “[...] o trato do homem com a natureza, tornando-a adequada à vida humana” (Frezzatti, 2016, p. 173). Ora, o que torna adequado à vida humana acaba se solidificando em ordenamentos sólidos e inquestionáveis. Pensada nesses termos, a cultura foi concebida como sendo pautada única e exclusivamente por aquilo que representa estabilidade e fixidez, portanto, ausência de mudança. Nietzsche, a respeito dessa solidificação da cultura em normas morais, assim se expressa: “A cultura se originou como um sino, no interior de uma camisa de material grosseiro e vulgar: falsidade, violência, expansão ilimitada de todos os “Eus” singulares, de todos os diferentes povos, formavam essa camisa. Será o momento de realizá-la? Solidificou-se o que era líquido”. (Nietzsche, 1999, MAI/HHI, 245, KSA, 2.204-5)[4]. Tudo aquilo que não passa pela mudança é considerado destituído das marcas daquilo que se compreende como cultura, sendo, inclusive, tomado como obstáculo à constituição, promoção e manutenção desta.
Toda e qualquer possibilidade de mudança, nesse âmbito, é tida como impostação e ameaça à cultura, pois estaria perdendo a orientação externa, que acaba ditando o caminho e a direção de seu desenvolvimento. Desse modo, em nada se pode fugir aos ordenamentos previamente estabelecidos. E, dentro desse contexto permeado por tais ordenamentos, é considerado cultura tudo aquilo que se encaixa nesse esquema previamente determinado. Assim, todo o resultado cultural é produto de um filtro altamente determinado por mecanismos de controle e capacidade de previsibilidade de tudo aquilo que for acontecer em termos de cultura[5]. Diante disso, há que se perguntar o lugar que ocupa a criação. Ou melhor, se ainda tem sentido falar de criação, dentro de uma lógica marcada pelos mecanismos de controle, próprios da cultura ocidental.
Ora, se o criar traz implícito em sua compreensão a dimensão da inspiração, abertura a mudança, então, qual o espaço que essa lógica do criar encontra, numa base cultural em que tudo é previamente determinado por mecanismos altamente coercitivos? No que tange a esse duplo aspecto da criação – como fixidez ou como mudança –, Nietzsche assim se expressa: “[...] atentar se a causa da criação é o desejo de fixar, de eternizar, de ser, ou o desejo de destruição, de mudança, do novo, de futuro, de vir a ser” (Nietzsche, 1999, FW/GC, 570, KSA, 3.621). Todo o arcabouço compreendido pela lógica da essencialidade que subjaz à compreensão da cultura ocidental tem por base a noção de que tudo se conforma à relação sujeito-objeto, de sorte que, por trás de todo o fazer, há um agente responsável, cumprindo essa lógica de causa efeito, portanto, de uma relação dicotômica, marcada pela separação.
Dentro dessa lógica dicotômica, há ainda um outro componente que atua para demarcar bem tal posição, que é a razão. Pela razão, a cultura ocidental tem perseguido o seu caminho, marcado por uma constante vigilância, controle e simetria de todos os processos que compõem a trajetória cultural. Por consequência, trata-se, no Ocidente, de uma cultura que possui, na sua essência, o adjetivo “racional”. A razão demarca o seu raio de ação, no intuito de exercer controle e submissão para a consecução de uma meta e objetivo previamente determinado, o qual é a busca da verdade. E essa busca traz consigo uma espécie de necessidade de aproximação de uma realidade pétrea, decisiva, contundente, capaz de pôr um ponto final a tudo. Ora, ao atingir essa verdade, já não há mais nada a ser buscado, porque tudo aquilo que se almejava já se alcançou – e isso de uma vez por todas. Por isso, com a ausência de provocações que mobilizem mudanças e desdobramentos, tudo passa a se estagnar em uma paralisia estéril, apática e destituída de motivações. A verdade possui uma propriedade de tender a igualar o que, em si mesmo, é desigual, como é o caso da linguagem, pelo atributo de signos linguísticos a realidades que carregam em si uma gama imensa de possibilidades. “Todo conceito nasce por igualação do não-igual” (Nietzsche, 1999, WL/VM, I, KSA, 1.880).
Logo, ao designar alguma coisa como sendo vermelha, pesada ou dura, acaba por degenerá-la, pelo fato de estancar a imensa gama de possibilidades que esta contém em si. Pelo engessamento acéfalo, mediante o qual se pauta a verdade, não há como uma dada cultura se desenvolver, pois toda a sua gama de possibilidades passa a ser cristalizada em um conceito que delineia seus fins, portanto, limitando-a[6]. Uma vez delineada em seu conceito, a realidade passa a ser encarada como uma verdade absoluta, como degenerescência aureolada. Ou seja, como o baixo, fraco, degenerado, considerado santo, o que, inclusive, de maneira profunda, fez o Cristianismo, com toda as os seus mecanismos e expedientes, como o da verdade universal, vida eterna e moral cristã. Essa é razão pela qual Nietzsche tem, em suas críticas à cultura ocidental, reservado um acento especial ao Cristianismo, como o golpe de maior intensidade a tudo o que é alto, forte, próspero, em nome dos ideais de amor e compaixão. Evaldo Sampaio, ao realçar o aspecto da moral de compaixão, como central nas críticas de Nietzsche ao Cristianismo, enfatiza:
Se o Cristianismo, e em especial, a sua moral de compaixão, é um modo de pensar e valorar no qual se mostra “desde sempre a hostilidade à vida, a rancorosa e vingativa aversão contra a própria vida”, o embate com o Cristianismo permite problematizar o caráter ascendente ou decadente da filosofia de Nietzsche mais do que qualquer outra de suas incursões (Sampaio, 2013, p. 250).
De fato, o Cristianismo consagra a verdade institucionalizada em torno dos valores que se depreendem de uma vida que abdicou de si mesma, para devotar-se a um além, ou seja, a uma vida qualificada como eterna. Em sua dimensão de eternidade, nada mais se pode fazer no intuito de ampliar, melhorar esta vida, pois esta foge ao alcance de toda e qualquer modalidade intervencionista. Portanto, em sua intocabilidade aureolada, na compreensão do filósofo, ao invés de constituir impulsionamento, desafios para a frente, mobilidade, acaba impondo limites que impedem o seu florescimento e avanço. Esse impedimento do florescimento da vida consiste na condição doentia do homem: “Se a ‘condição doentia do homem até agora existente’ tem sido o quadro fisiológico comum ao menos a todo o homem domesticado, a questão não seria como em si para quem a negação da vida pode ser uma força de cura e proteção” (Sampaio, 2013, p. 275).
A verdade, por essa razão, torna-se responsável pelo imobilismo e estagnação de tudo o que representa movimento e avanço. Por ela, tudo passa a se recolher em uma posição de resignação passiva, incapaz de interpor qualquer indício de superação em prol de movimentos que apontem para a mudança, condição esta para que a cultura se desenvolva, no sentido de pôr-se um passo sempre à frente, o que, em última análise, implica movimento. Logo, só é possível movimento, desde que a força, compreendida no plural, o desencadeie. A força é mobilizada pelo querer, e o querer, pela vontade situada no âmbito da moral, proporciona relações de dominação, dos quais demanda a vida: “[...] o querer em si no âmbito da moral – moral, entenda-se como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’” (Nietzsche, 1999, JGB/BM, 19, KSA, 5.33.4). A pluralidade das forças, em seu atuar, pela sua ação e resistência, faz com que seja mobilizada a capacidade afirmativa da vida e a cultura desenvolvida.
O projeto cultural de Nietzsche tem nas forças o seu ingrediente fundamental. Para tanto, o filósofo vê como necessário o desmantelamento daquelas bases anteriores sobre as quais a cultura do Ocidente tem se firmado. De um engessamento cristalizador, a cultura passa a uma flexibilidade em porvir, porque é justamente o movimento promovido pelas forças que irá proporcionar a dinamicidade necessária, de sorte que a cultura possa dar passos na direção de sua superação. Na compreensão de Nietzsche, a cultura somente poderá caminhar em direção à sua ascendência, quando se despir dos estatutos imperativos externos, que a mantêm dividida, para assumir e afirmar a sua vontade interna que quer superação. Por isso, trata-se de pautar a cultura mediante parâmetros que se depreendem do organicismo. Nesse âmbito organicista, a vida está pautada pela vontade que almeja superação, pelo assenhoramento. A respeito desse movimento de assenhoramento, Roberto Machado apresenta uma condição de ser, ou seja, uma postura fundamental, que é a postura nobre aristocrata. Por essa razão, alude à “[e]xigência de se livrar do disfarce da moral, de se situar para além do bem e do mal, de se posicionar acima da ilusão do juízo moral como condição de ser aristocrata: de afirmar, de ‘enobrecer’ a vida” (Machado, 1984, p. 83).
Esse movimento de assenhoramento pressupõe luta, embate de forças, pelo atingir de pontos sempre mais culminantes de potência. Ora, para isso, não há nenhuma regra que iniba a atuação das forças. Todas elas podem atuar livremente na direção do alcance de mais potência. Por essa razão, a cultura que Nietzsche almeja fundar está alicerçada sobre a potência, para a qual somente espécimes dotados de força, altura, resistência serão capazes de contribuir com o seu estabelecimento. Nesse contexto cultural, permeado pelas forças, a guerra, a luta, o embate não são considerados mais como uma certa concepção moral preconizada, todavia, como salutares e necessários para que a cultura possa atingir a sua superação. A cultura tem necessidade de movimento, transformação; nesse sentido, tudo o que para isso aponta acaba contribuindo para a sua promoção. Noeli de Melo Sobrinho, sobre esse fenômeno da cultura, assim se expressa: “Os fenômenos da cultura dos quais a história se ocupa não podem ser explicados a partir da sua gênese utilitária, pois a concepção de utilidade não é a mesma em todos os períodos e em todo as culturas” (Melo Sobrinho, 2015, p. 37).
O que na guerra é apresentado como destrutivo, mortífero e aniquilador, sem contar com toda a questão da impiedade e dureza, passa, nessa concepção cultural organicista, a ser tomado como exatamente o contrário, isto é, como construtivo, vital, restaurador. Ademais, toda construção requer uma guerra de morte a tudo o que na cultura constitui vício, fechamento, inflexibilidade. “Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte de meus instintos” (Nietzsche, 1999, EH/EH, I, 7, KSA, 6. 274). É em nome dessa guerra que a nova cultura pode se afirmar. Nela tudo respira aumento de forças, grandeza, desacomodar-se[7]. É justamente, em nome do comodismo, que Nietzsche endereça uma crítica virulenta à burguesia europeia de seu tempo, por se estagnar em uma posição comodista e inerte, diante dos desafios do mundo da vida. Essa posição de comodismo não permite que se enxerguem os desafios que se apresentam, por isso, tem sobre si um conceito de que tudo se configura de maneira tão perfeita, a ponto de que nada mais precisa ser feito. Como resultado disso, cai-se numa resignação e degenerescência que desintegram as próprias bases do agir.
O projeto de cultura nietzschiano passa pela dimensão fisiológica, portanto, nela as forças[8] cumprem um papel fundamental. Há uma dimensão fisiológica da força que, necessariamente, reflete as práticas políticas, contudo, sem a pretensão de inflacionar a própria dimensão da força, de modo a não cair num reducionismo naturalista[9], como se a economia das forças determinasse as posições político-morais. Uma cultura, na visão do filósofo, somente poderá alçar os mais altos cumes da potência, quando nela forem cultivados os diversos desafios, no intuito de demandarem a necessidade de superação, pois, ao superar um determinado desafio, outros lhe seguem, num processo interminável. Ao contextualizar a importância que cumpre o papel da luta e dos desafios, no âmbito da política, Melo Sobrinho assim se expressa: “A esfera da política é um campo de lutas e batalhas pelo controle dos instrumentos de poder, quer dizer, dos meios do seu exercício. Os homens realmente se digladiam, mas estas lutas são necessárias para a conservação da sociedade” (Sobrinho, 2007, p. 15-6).
Ora, na medida em que houver qualquer desafio a ser superado, permanece a luta e a tensão, dos quais demanda a força necessária para que a vida seja afirmada. E é justamente sob esse registro da luta, da força e do assenhoramento instintual que o problema político-moral se inscreve. “O tempo da pequena política chegou ao fim: já o próximo século traz a luta pelo domínio da terra – a compulsão à grande política” (Nietzsche, 1999, JGB/BM, 208, KSA, 5.140). Por conseguinte, trata-se de uma política baseada no rebanho submetido ao mando de uma autoridade externa. Embora nessa última forma de política exista uma hierarquia, constituída pela autoridade externa que ordena e pelo rebanho que obedece, a hierarquia instaurada pela política da vontade de potência é uma grande política: “[...] um povo que se dispõe a praticar a grande política e a garantir uma voz decisiva entre os Estados mais poderosos não experimenta as suas maiores perdas onde geralmente os encontramos” (Nietzsche, 1999, MAI/HHI, 481, KSA, 2.315).
Nessa forma de política, a hierarquia não se firma em forma vertical e engessada, na qual quem manda somente manda e quem obedece se coloca numa posição passiva. Mas há uma mutação constante, de modo que a qualquer um é facultada a posição de mando, desde que consiga atingir pontos mais elevados, na escala hierárquica. E, constantemente, há alguém que consegue atingir esse nível, sendo nada mais somente um instante, mas um instante pleno, que dá espaço a intermináveis novos instantes. Numa política assim constituída não há espaço para qualquer forma de engessamento, porque tudo está em ebulição a todo instante, quando uns vencem e outros são vencidos.
Contudo, é aqui que reside a política, ou seja, na política de potência, há uma disposição psicológica afirmativa em todos os seus componentes, desde os que estão na base até os que estão no cume; ao passo que, na pequena política, na imensa massa formada pela base, há resignação e passividade e, no cume, há comodismo e estagnação, comportamento típico da burguesia do tempo de Nietzsche. Ora, em considerações sobre política, constituídas por dirigentes estagnados num comodismo a regerem uma massa resignada numa passividade acéfala, não há possibilidade de qualquer modalidade de superação, senão degenerescência e apequenamento. Pelo contrário, num projeto promovido pela grande política, há superação, pois nela nada está estagnado, tudo se move na direção do assenhoramento, pois não há nenhum tipo de limites interpostos pela moral que impeçam a conquista da maximização do poder. Enquanto houver vontade, persiste a capacidade de superação, numa luta interminável entre vencidos e vencedores.
Esse ambiente de luta interminável instaura a própria existência, marcada por um acontecimento político, como pontua José Amorim de Oliveira Júnior: “[...] em que pese ser possível vislumbrar aí uma conotação transformadora da atividade filosófica, há também a tese de que não cabe à filosofia remover ou solucionar, por meio de um acontecimento político, o problema da existência” (Oliveira Júnior, 2004, p. 22). Nesse jogo entre vencidos e vencedores, há uma configuração política a marcar um acontecer, recordando que os vencedores de hoje poderão ser os vencidos de amanhã e vice-versa. Independentemente do que for, algo deve permear a disposição psicológica de ambos os lados e/ou tipologias: a afirmação. Desa forma, tanto do lado dos vencidos como dos vencedores, ao permanecer o desejo afirmativo de superação, a cultura pode ultrapassar os umbrais de um niilismo passivo para o âmbito de uma grande política, a política de uma vontade que quer. Em que medida a cultura, a qual tem como mote uma vontade que quer dominar, pode operar no registro da virtude?
2 A vontade de domínio como base da cultura: um projeto permeado pela virtude
A capacidade de domínio, pela força, tem sido o distintivo mediante o qual Nietzsche buscou estabelecer a sua reforma cultural. A vontade de domínio[10] é a vontade de potência, no âmbito político, no qual se caracteriza a virtude do nobre que procura assenhoramento. Essa virtude parte do indivíduo, aquele que acredita em si, para que deste se vá constituindo uma cultura nobre[11], forte, aristocrata, o que, no contexto contemporâneo contribui para se pensar um projeto ético-político pautado na capacidade de afirmação de si, como superação. A cultura é o âmbito da “[...] vontade mesma, a vontade de potência – a inexausta, geradora vontade de vida” (Nietzsche, 1999, Za/ZA, II, Da superação de si mesmo, KSA, 4.147).
Essa nova cultura deixou o velho registro metafísico, que funcionou como mecanismo externo a ditar normas sobre o agir, para se estabelecer sobre a própria faculdade do querer. Esse novo fundamento passa a atuar no sentido de impulsionar o desejo de querer superar: “[...] sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo” (Nietzsche, 1999, Za/ZA, II, Da superação de si mesmo, KSA, 4.148). Por isso, a vontade mobiliza todos os instintos, passando a atuar como vontade que quer dominar. A força do querer faz com que nada permaneça estático, mas que, a todo instante, se alcancem estamentos mais culminantes de potência[12]. É este que, na nova lógica da cultura, será considerado virtuoso. A virtude, dentro dessa nova lógica, não é mais aquela regida pelo rolo compressor do nivelamento e do apequenamento, fruto do rebaixamento instintual, porém, do livre atuar com vistas à ascendência aos mais altos cumes da potência.
Tal inversão do apequenamento para o engrandecimento é possível, graças à ausência da moral. Pela moral, há uma contaminação de todos aqueles instintos altos, os quais querem superação; estes são neutralizados, pela imposição de um contra sentimento: o de que é um pecado se colocar acima dos demais. Por essa razão, todos os que ousam ultrapassar esses limites morais são considerados réus de culpa. Como culpados, tornam-se incapazes de realizar qualquer movimento que seja em prol da superação. Impõe-se, pela moral, a obrigação de se autodiminuir, de se esquecer de si, em prol de um sentimento crescente de alteridade. E, somente nessa condição, se é tido como virtuoso. A compreensão nietzschiana de vontade vai na contramão dessa leitura, porque “[...] Nietzsche elabora a concepção de vontade enquanto vontade de poder que lhe permite avaliar o valor ascendente ou decadente dos preconceitos morais” (Sampaio, 2013, p. 135). Uma virtude moral não é condizente a uma vontade que quer dominar, contudo, de fato, que quer rebaixar, diminuir e, mais que isso, que dedica mesmo da sua faculdade de querer, lançando-se a uma situação de degenerescência acéfala, despida de qualquer resquício de faculdades que apontam para alguma abertura e superação.
Em sua nova política da vontade de potência, Nietzsche introduz a guerra dos instintos de dominação contra os instintos de decadência: “Eu trago a guerra através de todos os casos absurdos do povo, posto, raça, profissão, educação, cultura, vida e rancor contra a vida, subida e decadência, entre criação do direito e embaraço insidioso...” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1880, 25[9], KSA, 13.637). Nietzsche vê a possibilidade da instauração de uma grande política somente na base da guerra, que é condição para a desconstrução daquelas antigas bases culturais, a fim de que seja possível o estabelecimento de novas bases. Por essa razão, é preciso repensar a própria figura e função do Estado, de uma representação de um homem moderno apático para a de um homem guerreiro, forte e atuante. Nesse sentido, a guerra ocupa espaço fundamental nessa configuração da força. Contudo, a guerra, aqui nesse contexto, está muito mais associada a uma dimensão espiritual que propriamente fisiológica: “Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte de meus instintos. Poder ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo o caso condição de toda a natureza forte. Ela necessita de resistência, por que busca resistência: o pathos agressivo está ligado tão necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança” (Nietzsche, 1999, EH/EH, Por que sou tão sábio, 7, KSA, 6. 274). Como reflete Jorge Luiz Viesenteiner, o argumento de guerra vinculado à grande política, “[...] não opera por desconstrução, por aniquilação ou extermínio” (Viesenteiner, 2006, p. 79).
A guerra anunciada pelo filósofo alemão se situa para além dos antípodas “[...] de subida e descida (decadência), entre vontade de vida e rancor contra a vida, entre criação do direito e embaraço insidioso...” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25[1], KSA, 13.637). É uma guerra que desconstrói todos os registros sobre os quais essa noção de cultura tem sido compreendida até então. Uma guerra que solapa, até as bases, toda a sorte de dualismos sob os quais a cultura investiu seus esforços. Se outrora era costume em um alto grau de importância o número, a quantidade, assim como o rigor na alimentação, no vestir e em outras prescrições dietéticas, agora, através dos novos valores, resultantes dessa guerra cultural, já não possuem mais relevância alguma. A cultura, dentro dessa nova compreensão, pensa todos os seus domínios mediante uma mentalidade renovada. E, entre esses domínios, se destaca a política. Por isso, longe de pensar Nietzsche como um autor cujo pensamento caminha distante dessas preocupações, passa a ser um autor que mantém essas questões em seu horizonte de análise. Contudo, não se trata de uma política com recorte sociológico, entretanto, psicológico. Por essa razão, Nietzsche escolhe pensar uma grande política, concebida para além daquela pequena política, ou seja, aquela ocupada com temas sociológicos, próprios do rebanho.
A esse respeito, Frederick Copleston, em seu clássico Nietzsche, Filósofo da Cultura, argumenta que “[...] é absolutamente incorreto que Nietzsche deva ser considerado como um ‘totalitarista’ ou como um absolutista, pelo que se refere ao Estado [...] nem o Estado, nem a nação, nem a raça eram para ele as mais altas produções da cultura humana” (Copleston, 1979, p. 227). No entanto, “[...] a grande política quer conduzir a psicologia para o nível de senhoridade sobre todas as outras questões” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25 [1], KSA, 13.638). Tudo na política, assim como na cultura, como um todo, é pensado tendo em vista a elevação, o aumento, a ruína, a decadência, o declínio. Por essa razão, a política se configura, no pensamento de Nietzsche, enquanto um domínio de pensamento que se atém a refletir sobre tudo o que move e conduz para cima, até os mais altos níveis do vigor e da força. Nessa perspectiva, segue aquela primeira proposição supracitada, uma segunda que anuncia “[...] uma guerra de morte contra o vício; viciosa é toda forma de antinatureza. O sacerdote cristão é a forma humana mais viciosa: pois ele ensina a antinatureza” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25 [1], KSA, 13.638).
O filósofo alemão vê algumas instâncias da cultura, a saber, o Cristianismo, como uma das mais perversas manifestações a conduzirem a natureza para baixo, tornando-a pequena, degenerada. Nesse sentido, a expressão desse rebaixamento vem a se fazer sentir em outros domínios, como o da política, tornando-a “pequena política”, quer dizer, desvirtuada, destituída de vigor e de força suficiente para se afirmar, porque reduzida a um número, ao sociologismo, ao rebanho. E, quando a cultura se reduz ao número, acaba inevitavelmente degenerada, pois deixa de lado o mais importante e essencial, que é o vigor, a qualidade, a força. A isso somente uma política grande será capaz de se ater. Pela grande política, Nietzsche inaugura um projeto de conversão da própria política, marcada pela criação de um tipo elevado de homem. Por essa razão, não pode ser considerado como pensador político, aos moldes de como, tradicionalmente, a política foi pensada até então.
Dentro da concepção nietzschiana, a política não pode ser pensada como fim em si mesma, porém, como aporte para se pensar o domínio da vida, em sua conotação afirmativa. É por essa razão que justamente muitos sentem alguma resistência em tomar Nietzsche como autor político. Suas abordagens sobre política são, no fundo, apenas propedêuticas para pensar outros temas, de modo especial aqueles relacionados à vida e seus desdobramentos. Por isso, segundo Nietzsche, em sua segunda proposição dos Póstumos de 1889, “[...] um partido cria a vida, forte o suficiente para a grande política: a grande política conduz a fisiologia para o senhorio sobre todas as outras questões” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25[1], KSA, 13.638).
Na concepção do filósofo alemão, somente faz sentido o investimento em algum partido político, na medida em que essa força frutificar uma grande política, isto é, uma política baseada na força e no poder, pensados no registro espiritual como boa constituição de alguém que diz sim a si mesmo e à vida. Já que a dimensão própria do partido é, em si mesma, problemática, porque, como filósofo da totalidade, tudo o que ressalta a parte acabou contribuindo para a separação, inadmissível para uma concepção filosófica que enfatiza a unidade total[13]. A única exceção válida para essa situação diz respeito ao fomento de força que pode resultar de um determinado partido, ou seja, em que medida esse partido promove a vida, pensada em sua dimensão afirmativa, a qual se assenhore sobre todas as demais questões. Nesses moldes, o que Nietzsche propõe, em termos de reflexão política é, na verdade, uma espécie de fisiopolítica, uma política concebida a partir de um desdobramento da natureza humana, em que a fisiologia é um componente importante. Somente uma política imaginada nesse âmbito é capaz de contribuir não apenas para a vida, na sua dimensão afirmativa, mas, inclusive, para a própria política, quando esta não mais se retraia sobre uma acefalia partitiva, contudo, se abra a tudo o que venha a contribuir para a promoção das forças.
Por isso, uma política pensada nesses moldes de grandeza prescinde de todo o reducionismo centrado em um povo, raça ou costume, ou mesmo para uma finalidade, abrindo para a dimensão própria de humanidade, entendida como garantia para a vida. Estar em consonância com a vida representa um verdadeiro exercício de integridade, o que, na avaliação de Nietzsche, falta nos alemães. Essa falta, inclusive, é expressa pela mentira: “[...] o mentiroso o sabe que ele mente, está contra um alemão correto, virtuoso...” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25[2], KSA, 13.638). A mentira representa não apenas falta de integridade, mas também atentado contra a virtude, requisito fundamental para que a vida possa ser afirmada. E a afirmação da vida somente se dá pela grandeza, por consequência, é uma capacidade que se depreende de grandes homens, aqueles capazes da realização do aumento de potência. E, pelo aumento de potência, a força que lhe é constituinte em sua maximização aponta caminhos que conduzem na direção de uma cultura superior, aristocrática[14].
Portanto, os homens que fazem parte dessa cultura superior se distinguem, como recorda Clademir Araldi, “[...] pela nobreza, que é a qualidade daqueles que transmutam impulsos e novas virtudes, em valores qualitativamente superiores” (Araldi, 2016, p. 418). Essas virtudes não prescindem do campo político-moral. A grande política se inscreve como contramovimento, sem prescindir em assumir que esse novo estado já se exprime também como nova forma de moralidade. E, por essa razão, são capazes de ultrapassar a decadência, que é responsável pela desagregação fisiológica, pela fraqueza e esgotamento do homem que vive na condição gregária.
Pelo contrário, a virtude, resultado da transvaloração dos valores morais, comunga com os valores que compõem a grande política. A virtude, em sua dimensão transvalorada, tem como diferencial e meta não a obediência, a coerção e a submissão, mas o prazer, o deleite e a vontade. Com efeito, se as virtudes morais eram fruto da observância estrita das leis e costumes da comunidade, funcionando como “[...] uma espécie de ‘segunda natureza’, que transfiguraria a natureza primária dos impulsos” (Araldi, 2016, p. 418), as virtudes passam a ser compreendidas como elevação, ultrapassagem, maximização de tudo aquilo que inspira força, coragem, nobreza, altura. Por conseguinte, a virtude capaz de proporcionar elevação da cultura é aquela que se inscreve num registro extramoral; a virtude que se inspira na força, na potência, na ultrapassagem de todas as barreiras representadas pela moral. A virtude, dentro do registro das forças, representa um verdadeiro triunfo daqueles valores da elevação e do domínio, os quais servem de boas novas para a cultura. Por essa razão, o projeto de cultura de Nietzsche implica superar um de seus principais obstáculos, a moral.
Ora, sendo a moral uma das principais bases sobre as quais a cultura ocidental tem se assentado, o projeto nietzschiano de renovação cultural é considerado um projeto radical, porque traz, em sua constituição íntima, extrapolar aquilo que até então foi tido como mais sagrado, como algo impossível de ser negado. Pode-se mesmo afirmar que o projeto de cultura, em Nietzsche, envolve um grande sacrifício, o qual inclusive responde às próprias bases da política: de uma política grande, para além daquilo que até então se convencionou denominar política, a saber, a dimensão do rebanho, meramente sociológica. A grande política de Nietzsche não é rebanho, número, massa, porém, força, potência, elevação, portanto, não está inscrita no registro sociológico, mas no fisiológico[15]. Dentro desse registro, é permitido aludir a estrutura social, mas não de número, massa, rebanho, e sim de estrutura social de impulsos e afetos, os quais ensejam fazer com que a política se torne grande. Em que medida esse projeto político, em sua grandeza e radicalidade, é capaz de superar o maior de seus obstáculos: a moral?
3 Um projeto político de superação da moral: um projeto radical
Dada a grande incidência que a moral exerce sobre todos os domínios da vida, no sentido de limitá-la, impossibilitando a sua afirmação, o projeto de sua superação é também considerado um projeto político, ou melhor, um projeto político-moral. Contudo, não se trata de um projeto político, tal como tradicionalmente é conhecida a política, com seus delineamentos centrados num âmbito sociológico, todavia, está para além desse âmbito, estendendo as suas influências ao âmbito fisiológico, pois é desse contexto que se depreendem todas as condições necessárias para que a vida possa ser afirmada em todas as suas dimensões. É do fisiológico que os instintos se manifestam, não isoladamente, mas em forma de uma estrutura social, que se expressa em impulsos e afetos. Por isso, é nessa estrutura pulsional que a política propriamente se apresenta: em forma de instintos buscando assenhoramento na base da luta entre forças diversas dispostas hierarquicamente. A cada instante, um desses instintos alcança seu ponto de culminância, contudo, trata-se de um instante de plenitude, de maximização plena da capacidade do exercício das forças, que é o exercício do poder: “[...] toda a vontade é vontade para o poder [...] esta vontade de poder denota algo que é preposto ao ‘eu’ ou à ‘consciência de si’ [...] a expressão mais básica da vida ou mesmo o próprio elã vital” (Sampaio, 2013, p. 333).
Essa expressão da vida compreende uma organização hierárquica dos diversos impulsos vitais, a alcançar estágios mais elevados. Porém, para que tal estágio seja alcançado, é preciso neutralizar as barreiras representadas pela moral. Por isso, tamanha é a contraforça que a moral detém em si, no sentido de impedir que os pontos de força alcancem a sua culminância e plenitude. Ora, dado o tamanho de tal obstáculo, a sua superação necessita contar com um projeto de proporção magna, radical. A radicalização desse projeto de superação da moral implica, justamente, desfazer o próprio vetor responsável por manter a fonte e a base das forças em estado de inanição. Para fazer frente a um tal obstáculo, somente dispondo de uma força superior àquela, portanto, capaz de exercer uma verdadeira comoção, como jamais foi, até então, possível. A força deve se valer de uma vontade ilimitada, todavia, não de conhecimento ou verdade, o que equivaleria a associar a vontade à ciência, a qual, por sua vez, carrega um instinto de decadência, por estar ligada à moral. A ciência é uma forma elevada de ideal ascético. “Tanto quanto a moral cristã, a ciência é uma atividade niilista que possibilita a dominação da vida pelas forças reativas.
O perigo representado pela vontade ilimitada de conhecimento faz Nietzsche aproximar vontade de verdade e vontade de morte, o que mostra como para ele a ciência é um sintoma de decadência” (Machado, 1984, p. 87). E, disso, o próprio Nietzsche faz referência sobre a sua própria atuação frente a tal estado de decadência: “Eu vejo às vezes, por conseguinte, minha mão, que eu tenho o destino da humanidade na mão” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25[5], KSA, 13.639). Uma mão responsável pelo destino da humanidade, somente que seja forte o suficiente para desmantelar a ordem até então estabelecida. Assim, os destinos para quem cabe tal projeto é envolvido num exercício de radicalidade, a ponto de demandar de seu agente um quantum maximizador de forças. Essa política, envolta na radicalidade, se impõe frente à política do apaziguamento, a qual, inerte e submissa, insiste em manter uma espécie de política de remendos. A manutenção de uma política de remendos não é capaz de promover uma verdadeira reforma cultural, mas, sim, uma política que desmantele radicalmente as próprias bases sobre as quais a cultura tem se estabelecido.
Daí a importância de se investir numa grande política, a qual pressupõe um projeto radical, que extrapola todos os estratos basilares sobre os quais a política se estabelece. “A política de potência, ou a chamada grande política, é alimentada por uma estrita necessidade de sentimento de poder, dos príncipes e dos homens poderosos, mas também das classes inferiores de uma nação” (Melo Sobrinho, 2007, p. 28). Uma política grande envolve a fonte de onde emerge todo o direcionamento responsável pela mobilidade que produz a vida. Por conseguinte, diz respeito à própria vontade de potência, à força mobilizadora da vida em todas as suas dimensões. E é, por essa razão, que a política pode ser grande, pois está sempre aberta a atingir dimensões mais amplas, mas elevadas, capazes de alcançar pontos culminantes. O atingir desses pontos implica traumas, crises, porque as mudanças são bruscas, envolvem uma dimensão gigantesca. “Eu conheço o meu destino. Uma vez ao meu nome se ligará a lembrança de algo monstruoso, - a uma crise, como não houve nenhuma sobre a terra, a uma colisão de consciência mais profunda, a uma decisão que evoca contra tudo o que se acreditou, exigiu” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1889, 25[6], KSA, 13.639).
O projeto de uma grande política traz consigo o destino de algo jamais imaginado, que vem atrelado a tudo o que há de mais grandioso, colidindo assim com maneiras de pensar diferenciadas, o que acarreta o enfrentamento do conflito, podendo atingir dimensões grandiosas. Por isso, tudo o que se acreditou passa a ser colocado sob suspeita. Tudo o que foi considerado como certo, indiscutível, passa a ser questionado, profundamente colocado em questão. E uma mudança desse tipo não passa sem trazer consigo inúmeras crises, pois aquilo em que até então se tem acreditado passa a ser questionado. E, com isso, uma nova maneira de pensar é inaugurada. Todo o novo é causa de grandes comoções de consciência; o filósofo alemão assume, dessa forma, um teor verdadeiramente profético, destruindo até a raiz tudo o que sobre todas as coisas, até então, se tem acreditado, de modo como se o próprio chão tivesse sido abalado para inaugurar um novo. “A origem do Estado e do direito é a violência, o anonimato, a crueldade, enfim, a conquista realizada por hordas hostis organizadas militarmente contra populações talvez mais numerosas” (Melo Sobrinho, 2007, p. 20).
Por experiência se sabe que todas as crenças, assim como levam anos, décadas e até séculos e milênios para se sedimentarem, também, por sua vez, podem levar tempo para se desfazerem. Contudo, a radicalidade do projeto de superação da moral de Nietzsche pretende desmantelar o solo mesmo de onde nasceram os valores, para de suas cinzas fazer brotar novos valores que signifiquem renovação e desmantelamento da ordem estabelecida. Nesse sentido, nada mais se pretende estabelecer como verdade última e inquestionável. Já que Nietzsche mesmo reconhece que a tradição profética anterior a ele foi devotada à mentira, daí a necessidade premente do estabelecimento de uma fórmula que venha a pôr a descoberto a falsificação em torno de tudo o que foi considerado verdade: “Transvaloração de todos os valores, esta é a minha fórmula para um ato de liberdade mais alto da humanidade: meu destino, que eu devo mirar para baixo, o mais profundo, mais valente, mais íntegro nas perguntas de todos os tempos como jamais um homem deveria revelar até agora[...]” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 – início de janeiro de 1889, 25, [6], 1, KSA, 13.640).
Nietzsche evoca, na passagem acima, o tema da transvaloração dos valores, o qual é justamente o tema que caracteriza o terceiro e último período de sua produção. Nela, seus escritos crescem em radicalidade, no que tange à sua crítica à moral. A passagem dos Póstumos, acima mencionada, inspira o capítulo de Ecce Homo “Porque sou um destino”. O destino que o filósofo apresenta é o dele mesmo, como o de um transvalorador de todos os valores, daquele que supera, em tudo, a moral em todas as suas manifestações. Portanto, um destino que se abre não como fatalidade, no sentido de algo determinado, mas como porvir, como algo aberto, prenhe de realizações, como o mais alto gesto de liberdade que, até então, a humanidade experimentou. “A visão de futuro de Nietzsche é a de uma crise profunda e inaudita de consciências que anuncia a inversão de todos os valores, ou seja, um retorno da humanidade à sua própria natureza” (Melo Sobrinho, 2007, p. 30). Esse ineditismo que marca a história da humanidade, com a derrocada dos valores correntes, faz com que o acontecimento seja o mais radical possível, porque destrói, desde a própria base, ou seja, o solo mesmo de onde nasceram os valores. A radicalização das estruturas, as quais assinalam a passagem de um processo decadencial para um processo ascensional, não consiste em um processo de contraforça, contudo, antes, num desdobramento, ao longo do tempo, que abre suas condições internas até operar um ato contra si mesmo, como momento mesmo de autossuperação da cultura.
Desse modo, as mesmas condições que constroem o ser humano mediano e decadencial, o último homem pertencente à pequena política, geram também as condições para o homem de exceção[16]. Esse movimento radical de autossuperação da pequena política, pelo desdobramento da lógica interna das suas próprias condições, a partir do seu próprio solo, consiste num megamovimento que inclui a totalidade do processo. E, como tudo faz parte desse processo, a própria decadência está nele envolvida e não simplesmente excluída deste, sob o risco de não se cair numa dicotomia, todavia, antes, de superá-la. Por isso, o encetamento de tal tarefa aponta para algo, ao mesmo tempo que grandioso, também incerto, já que aquele controle capitaneado pela moral racional já não existe mais. Não havendo mais nenhum tipo de previsibilidade nos acontecimentos, resta nada senão uma posição de acolhida afirmativa ao porvir, que se avizinha, para nele tomar parte no sentido de amá-lo, desejá-lo.
Dada a magnitude daquilo que o filósofo anuncia, assemelhando-se aos vaticínios proféticos, a sua preocupação vai na direção de que não se venha a confundi-lo com um santo. Para Nietzsche, por consequência, é melhor que se o reconheça, antes, como a um bufão, a um palhaço, aquele que desconstrói tudo com sátira, leveza, sem que, com isso, seu nome venha a ser santificado e endeusado, o que é, muitas vezes, causa de tornar a mentira verdade. A integridade do filósofo não permite reconhecê-lo como Deus, mas antes como o desmantelador da ordem, até então, estabelecida. Toda essa desordem oriunda da “[...] guerra pode trazer também um efeito positivo ao introduzir a barbárie em ambos os lados, ela torna os homens mais fortes para o bem e para o mal” (Melo Sobrinho, 2007, p. 26).
No entanto, o desmantelador dessa ordem não conduz ao estabelecimento de outra, caso contrário, Nietzsche estaria traindo o seu próprio projeto. Longe de instaurar uma nova ordem, o que se insurge é um vulcão que a tudo destrói, ao atingir o seu ponto caudal; “[...] assim nós temos convulsões sobre a terra, como isso ainda nenhuma havia. O conceito de política está inteiramente desfeito em uma guerra de espírito, toda formação da política é dinamitada – haverá guerras como ainda não houve nenhuma sobre a terra” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de dezembro de 1888 – início de janeiro de 1889, KSA, 13 [6], 1, p. 640). O destino que Nietzsche anuncia para a cultura possui uma incidência direta sobre a política, a qual se caracteriza como uma guerra de espírito, Geistes Krieg, no sentido de que se desfaz muito mais do que a expressão social da política, antes a própria fonte inspiracional dela, que o filósofo caracteriza como espírito. A guerra anunciada pelo filósofo é uma guerra que dinamita não os efeitos, porém, a própria base de tudo, a saber, uma guerra de mentalidades, que se estabelece mediante a artilharia de diferentes formas de pensamento: “[...] esta guerra conformara então uma nova política. Fazer a grande política é agir no sentido da inversão de todos os valores” (Melo Sobrinho, 2007, p. 27).
Quando se trata de mudança de mentalidade, os esforços são sempre muito maiores, demandando forças hercúleas para que os resultados possam se fazer sentir. Por essa razão, é demandada uma verdadeira guerra em prol da obtenção dessas transformações. Trata-se de uma guerra que se impõe contra tudo o que se mantém inerte, sagrado, intocável, bem como aquilo que almeja, em tudo, paz, sossego, comodismo e tranquilidade, não uma guerra física, mas espiritual. Para o filósofo, uma política autêntica se debate constantemente contra a sociedade de paz, da qual faz surtir, inevitavelmente, a decadência. “A paz verdadeira – pois a paz armada é só um arremedo de paz e uma ameaça – que a paz dos espíritos só assim seria alcançada” (Melo Sobrinho, 2007, p. 27). De fato, quando há paz, cessa a atividade instintual, por não haver obstáculos a serem ultrapassados. Com essa falta de esforços a serem despendidos em prol da superação de obstáculos, toda aquela disposição instintual vai se atrofiando e, com isso, impedindo que qualquer forma de ação ocorra.
Essa contradição na política, que Nietzsche põe a descoberto, constitui obstáculo para a afirmação da vida. Ao vociferar contra aquilo que tem sido a expressão dos esforços das nações que lutam pela busca do estabelecimento da paz, o filósofo alemão defende, antes, a promoção da guerra e o embate, criando assim um campo anímico, do qual sempre novos quanta de potência são demandados e, com isso, a vida passa a ser afirmada. Nesse intuito, o filósofo, particularmente, se impõe contra aquilo que ele denomina Reino dos chanceleres alemães[17]. A estes Nietzsche atribui o qualificativo de espécie humana mais baixa a conduzir os destinos da humanidade. Estes, ao invés de promover a guerra, o conflito, em prol da afirmação da força, que seria condição da formação de uma grande política, investem em tríplices alianças, ou seja, em acordos de paz entre as nações, chamadas “casa de cartas”, portanto, uma guerra política. Um reino permeado por uma grande política somente é possível, na medida em que constitua a integridade espiritual, pois é justamente aí que habita a força necessária para que a vida se afirme, pois espírito é convicção, princípio, afirmação, o que só é possível quando a fonte desse espírito for ativada, que é o próprio indivíduo e não o rebanho, de sorte que promover uma cultura do espírito é o projeto que o filósofo enceta. E, na medida em que esta cultura vai ganhando corpo, a radicalidade do projeto de superação da moral é empenhada, de modo que a política, na sua modalidade de grandeza, vai se efetivando.
Considerações finais
Pelo percurso realizado, foi possível refletir sobre um de entre os vários dilemas que se apresentam sobre o pensamento de Nietzsche: o de em que medida seu pensamento contém elementos que apontem para a política. Para além de tudo o que se tem refletido, o pensamento nietzschiano possui um alcance político. Contudo, o modo como se revela é muito diferenciado. Nietzsche aborda o problema da política não pelo viés estritamente sociológico, como ele é usualmente tematizado pelos diversos cientistas políticos, mas, antes, por um viés fisiológico. O filósofo alemão focaliza o problema da política, mediante o prisma de relações societárias que se estabelecem entre os impulsos e afetos, por isso, como um caráter fisiológico. É na fisiologia, pelos diversos e complexos arranjos e relações que permeiam a vida, que se extraem elementos que servem de pistas de reflexão a apontar para os arranjos sociais firmados nas relações entre povos, nações e culturas.
De maneira especial, o pensamento de Nietzsche é devotado a refletir sobre a cultura. Por essa razão, é impossível enfocar a política sem passar pela cultura, já que a própria política é um dos componentes constituintes da cultura. O grande intento de Nietzsche é o de apresentar uma crítica à cultura ocidental, no intuito de desobstruí-la de um de seus maiores obstáculos: a moral. Um projeto de cultura, tal como se depreende das abordagens nietzschianas, não pode se fundar em jargões pré-determinados por regulamentos fixos e imutáveis, mas, antes, deve se reger pela única lei que rege o mundo da vida: a lei do movimento. Ou seja, um projeto de cultura se estabelece na medida em que as suas bases fundamentais se pautem pelas forças.
E não se trata de uma força, mas de forças, no plural, porque há um conjunto de forças que, a todo o instante, perfazem uma dada hierarquia, com o objetivo de alcançar superação. São impulsos e afetos a almejar sua maximização em termos de potência. E esse mesmo processo que se dá no aspecto da fisiologia, também se reproduz no âmbito da política: o aumento constante das forças, o assenhoramento, a maximização da potência que se compreende como aristocracia, o governo daqueles que se sobressaem pela força, pela capacidade de alcançar os cumes mais altos da potência. A estes é que cabe, de acordo com a leitura de Nietzsche, o cuidado e a autolegislação. Por isso, a reflexão política não pode caminhar dissociada da reflexão fisiológica, pois é nela que se apresentam as chaves fundamentais de leitura para se pensar o seu funcionamento e redimensionamento.
E é justamente pela força, pensada enquanto expressão maximizada, que a virtude pode se concretizar. Por essa razão, diferentemente de uma determinada concepção moral, a virtude não se coaduna com uma visão de que se deve permanecer sempre na posição daquele que é considerado, em tudo, o último de todos, e sequer se poder almejar algum espaço superior. Ser virtuoso não é se esforçar por se colocar na posição de subalterno e servidor de todos; antes, o virtuoso é aquele que mantém um esforço para se distinguir pela força e pela capacidade de superação. Essa mesma capacidade, no virtuoso, não está contaminada pela inveja e pela competição, que é raiz do ressentimento, contudo pela pura, incessante e livre busca de almejar os cumes mais culminantes de potência. O atingir esses instantes potenciais da força não se traduz pelo galgar o estamento último da força, restando somente o sentimento de acomodação, paralisia e inércia, própria daqueles que se sentem cumpridores de tudo o que lhes cabia realizar, mas, antes, num algo sempre por fazer. Nenhum instante culminante de força pode ser encarrado como ponto final, entretanto, antes, como uma provocação a ir sempre além.
Nesse sentimento de se estar sempre movido a ir além, em constante busca por superação, num desacomodar-se constante, reside a virtude. Trata-se de um impulso incessante da vontade por domínio no sentido espiritual, contudo, uma vontade descontaminada daquele sentimento moral de que, pelo domínio de um, os dominados sofrem as consequências, clamando, por isso, por justiça. A virtude passa longe daquela lógica do menos, do escondimento, do abandono de si, em prol da alteridade. Na lógica das forças, não há espaço para os interditos interpostos pela moral: tudo segue o livre fluxo do atuar em prol do atingir a maximização potencial. Como nesse processo estão envolvidos o livre atuar e a inocência, sequer se cogita algo como “não se é permitido colocar acima dos outros.” A ausência do fator moral se traduz como grande diferencial, para que a virtude possa se efetivar como caminho de força, por excelência.
Em termos políticos, a virtude assim pensada se traduz como triunfo de um indivíduo sobre outro indivíduo, em meio a uma verdadeira guerra, porém, não uma guerra compreendida como violência. E, quanto mais o conflito se acirra, com maior capacidade de luta saem aqueles que são afetados por este. Ora, ser afetado pelo conflito é ser provocado a dar o maior de si mesmo, num processo de desacomodar-se constante, próprio daquele em que a moral é superada no seio de um projeto de cultura radical. A grande política, em última análise, não traz a guerra entre povo e povo, não é domínio sobre outros, mas domínio sobre si mesmo e sobre suas próprias condições, no sentido da capacidade prática de fazer uso dessas condições, com vistas a um cultivo de si ou florescimento humano.
Como o projeto político de Nietzsche envolve um projeto de cultura, consiste em um projeto radical, pois está em jogo uma mudança de mentalidade. E essa mudança passa pelo embate e superação de um dos principais obstáculos que preside a cultura ocidental: a moral. Pela radicalidade que permeia uma conversão de mentalidade, acessa-se a possibilidade de ultrapassar os limites interpostos, de modo moral, de se posicionar diante da realidade. Por essa razão, para ilustrar o teor da radicalidade, Nietzsche se utiliza de metáforas, como da guerra – e uma guerra de baionetas, a fim de se superar a estreiteza com que a moral se interpôs na cultura. E uma das principais características da moral, frente às quais Nietzsche se impõe, é o rebanho. Para tanto, a vontade que quer dominar deve servir de motor para a consecução dos fins pretendidos pela vida da cultura. Esse domínio da vontade não implica atuar em rebanho, mas alçar níveis mais altos de domínio para superar, selecionando espécimes sempre mais capazes de alcançar pontos culminantes de potência.
Com isso, mais uma vez se constata que o projeto político de Nietzsche é um projeto aristocrático, o qual se exerce pela força que seleciona e não pelo rebanho que iguala. Dessa maneira, Nietzsche, em diversas passagens de seus escritos, tece elogios a diversas personalidades, que se destacaram pela sua capacidade de superação. Nestas se encarna o ideal nietzschiano de política, que passa necessariamente pela expressão da força que confere o caráter aristocrático. É preciso recordar que, por diversas ocasiões, a aristocracia de Nietzsche foi associada a movimentos de cunho totalitário, como o nazismo. No entanto, urge fazer as devidas distinções, a fim de apontar a distância desses movimentos com o ideal aristocrático de Nietzsche. De saída, uma das características que marcam tais movimentos é a do rebanho, o que, de maneira cabal, se distancia do projeto nietzschiano. Além disso, um movimento, como foi o nazismo, traz ainda características como as do rancor, do ódio, da vingança, as quais ferem diretamente as expressões de serenojovialidade, liberdade, movimento e plenitude de vida, que se depreendem do pensamento de Nietzsche. A política assinalada pelo movimento de Nietzsche é uma política grande, por isso, não pode permanecer refém da pequenez de um rebanho que carrega a doença do rancor, do ódio e da vingança.
Todavia, antes, trata-se de uma política marcada pela força que extrapola os limites da enfermidade rancorosa e vingativa, apontando para uma saúde que se afirma como grande. Dessa forma, grande saúde e grande política se unem em torno do projeto aristocrático nietzschiano de cultura. Uma cultura se sustenta pela força própria da dimensão filosófica que a caracteriza, em uma hierarquia de instintos que querem dominar – esse domínio é de si e de suas condições como capacidade prática para o próprio cultivo de si. Ademais, também pela vontade de dominar que, para além de uma conformação pautada pelo pudor da baixeza moralizante, se alcançam níveis sempre mais culminantes de potência, nos quais se expressa o vitorioso. Logo, ser vitorioso não é se conformar aos ditames morais de uma cultura, mas superá-los, na direção de uma radicalidade crítica e desconstrutiva. Nesta, a política, depurada de todas as enfermidades do ódio e da vingança, passa a ser grande e, assim, gozar de uma grande saúde, de uma virtude compreendida como força, aquela que permite a efetivação de um projeto civilizatório de cultura aristocrática, caracterizado pela vontade de domínio, de autossuperação.
Nietzsche and the political project based on the selectivity of virtue. An aristocratic project of will to dominion
Abstract: Since writing his For the Genealogy of Morals, Nietzsche has been developing a project marked by an increasingly radical distrust of the fundamental bases of culture. This project has even reverberated in several epistolary exchanges with Georg Brandes, of which the one on December 2, 1887 stands out, with the expression “Aristocratic Radicalism.” Aristocracy can be inferred from the philosopher's criticism of the entire gregarious dimension, through which culture is marked. And, as a response, Nietzsche, in the Posthumous of 1887, presents the virtue that is affirmed in the will to dominate. In the course of this work it will be observed to what extent Nietzsche's effort for this conception of transvalued virtue, that is, stripped of morality, is capable of contributing to the political project of domination and overcoming. The very notion of aristocracy has, in its dimension of radicalism, virtue as the will to dominate, one of its differences. Would this virtue be understood exclusively as strength, and therefore devoid of morality, informed by Christianity as a civilizing project?
Keywords: Nietzsche. Politics. Aristocracy. Ethic. Will to Dominion.
Referências
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Recebido: 20/12/2023 – Aprovado: 20/04/2024 – Publicado: 15/06/2024
[1] Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7352-927X. E-mail: feilersj@yahoo.com.br.
[2] Cf. Nietzsche, 1986, Br/Cr de 02 Dez. de 1887, 960, KGB, 8.206.
[3] Essa abordagem é comum no século XIX, nas considerações sobre a política desde o positivismo, o naturalismo e o utilitarismo. Em Nietzsche, o que há de novo é a inserção da luta de forças, das vontades de poder, de assenhoramento.
[4] Para as citações das obras de Nietzsche, adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas, Br/Cr, KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após o nome do autor, o ano e a sigla indicando a obra, em alemão/português: MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. I) (Humano demasiado humano (vol. I)), M/A - Morgenröte (Aurora), FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra), JBM/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além do bem e do mal), EH/EH – Ecce Homo (Ecce Homo), WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral) Nc/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.
[5] Essa dimensão de previsibilidade é uma marca característica da cultura moderna. Os mecanismos da ciência, com pretensão de controle, abrem para um modelo de conhecimento baseado na causalidade descritiva da realidade.
[6] Nietzsche utiliza o exemplo de um homem honesto para apresentar como se dá esse processo de igualar o desigual: “Denominamos um homem ‘honesto’; por que ele agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada de uma qualidade essencial, que se chamasse ‘a honestidade’, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto, desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora como ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas oculta com o nome: ‘a honestidade’” (Nietzsche, 1999, WL/VM, I, KSA, 1.880).
[7] Nietzsche emprega a imagem da guerra para significar o sentido de cultura, que é eterno desacomodar-se, o querer ser sempre mais forte: “A afirmação do fruir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer sim à oposição e à guerra, o vir a ser, com radical rejeição até mesmo da noção de ‘Ser’” (Nietzsche, 1999, EH/EH, NT, 3, KSA, 6.313).
[8] Em seu projeto de cultura superior, Nietzsche apresenta um programa, através do qual o sentimento de poder e superioridade ocupam destaque: “[...] a cultura respira poder, e, se com frequência os seus costumes exigem tão-só a aparência do sentimento de poder, a impressão que esse jogo produz nos são nobres, e o espetáculo dessa impressão, fazem crescer continuamente o verdadeiro sentimento de superioridade. Essa indiscutível felicidade da cultura, baseada no sentimento da superioridade, agora começa a subir em degrau ainda mais elevado” (Nietzsche, 1999, M/A, 201, KSA, 3.175).
[9] O viés do registro da vontade de poder – para uma prática política (moralmente motivada) deve seguir essa fisiologia da força que já foi advertida por Hume (cf. Hume, Tratado da Natureza Humana, L.3, P.1, S.2, §27, p. 509).
[10] A expressão “vontade de domínio” não pode ser confundida com o sentido de dominação que possui o modus operandi colonialista ocidental. Não se trata de dominar, no sentido de oprimir e subjugar, mas antes no sentido de estar imbuído da virtude, no sentido da força capaz de autossuperação, portanto, trata-se de um sentido eminentemente espiritual.
[11] No final de Além do bem e do mal, Nietzsche não define em que consistem as novas virtudes do nobre, todavia, apenas aponta as condições para o seu estabelecimento. Na Genealogia da moral e nos escritos de 1888, ele procura avançar nessa determinação, mas permanece mais na crítica à moral do rebanho e nos valores modernos decadentes.
[12] No Fragmento Póstumo de outubro de 1887, Nietzsche utiliza a expressão “Pontos Culminantes de Potência”, para mostrar o que ele entende por Deus, como a expressão mais culminante das forças: “Deus como momento culminante [...]. Porém nisto nenhum ponto culminante de valor senão apenas Pontos Culminantes de Potência” (Nietzsche, 1999, Nc/FP de 1887, 9[8], KSA, 12.343).
[13] A unidade e a totalidade apontam o cultivo de um indivíduo e uma civilização que estão aptos a sua superação, pelo cultivo de espécimes elevados.
[14] Diferentemente de uma moral de domesticação, que é a moral do rebanho, a qual rebaixa e enfraquece, a moral do cultivo é aquela que atua no sentido de opor resistência, tendo como resultado um quantum maior de força. “Com a moral do cultivo, aristocrática, hierarquizada, busca-se a criação de um tipo superior, que diz sim a si mesmo, com ‘boa-consciência’ quanto aos seus impulsos” (Sampaio, 2013, p. 275).
[15] Daí, mais uma vez, a importância da guerra, enquanto elevação das forças: “A guerra é benéfica, tanto quanto revigora o ânimo enfraquecido de uma nação, abre uma válvula de saída para o ardor militar e para a dedicação heroica e lança por terra o contentamento materialista e o convencionalismo” (Copleston, 1979, p. 250).
[16] Não é o homem de exceção que tem força fisiológica o suficiente – o qual insiste em uma concepção inflacionada de força – que agora se opõe ao homem decadencial (fisiologicamente enfraquecido), mas sim que esse homem de exceção também é produzido pela lógica do próprio movimento decadencial, um movimento intrínseco e não extrínseco ao próprio processo decadencial (Cf. Nietzsche, 1999, JGB/BM, 242, KSA, 5.183).
[17] Cf. Nc/FP de dezembro de 1888 – início de janeiro de 1889, 25[6], KSA, 13.640).