Decidindo pela fragilidade: uma análise de argumentos contra teorias multiplicadoras sobre a individuação entre-mundos de eventos

 

Ícaro Miguel Ibiapina Machado[1]

 

Resumo: Este artigo aborda uma questão clássica na Metafísica dos Eventos relacionada às condições em que um evento específico permanece inalterado diante de mudanças contrafactuais possíveis. Multiplicadores, os quais admitem pouca ou nenhuma variação nas categorias de propriedades para a individuação de eventos, contrastam com os unificadores, mais tolerantes a essas variações. Dois argumentos fundamentais são criticamente analisados. Primeiramente, são discutidos argumentos baseados em práticas linguísticas comuns, que sugerem falarmos comumente sobre mesmos eventos como podendo ocorrer em distintos pontos temporais. Contraexemplos demonstram a falta de confiabilidade dessas práticas, do ponto de vista da metafísica da individuação de eventos. Em segundo lugar, aborda-se o argumento de que a posição não fragilista entra em conflito com o princípio das possibilidades alternativas e a intuição de que casos com alternativas de ação muito próximas não envolvem responsabilidade moral. A análise indica que tais casos podem envolver ações numericamente distintas, sugerindo a necessidade de uma modificação no princípio das possibilidades alternativas. Conclui-se que não há razões plausíveis para rejeitar a postura fragilista, sendo possível decidir abdutivamente a favor dela.

 

Palavras-Chave: Eventos. Individuação. Modalidade. Práticas Linguísticas. Princípio das Possibilidades Alternativas.

 

Introdução

Eventos, ou acontecimentos, estão por toda parte e fazem parte de nossa vida cotidiana. Falamos e pensamos sobre sorrisos, danças, casamentos, explosões, guerras, trovões etc. de maneira similar, e tão natural quanto, como pensamos e falamos sobre objetos, como rostos, pessoas, bombas, elétrons.

Contudo, apesar dessa familiaridade, quando paramos para pensar sobre a natureza dessas entidades (especialmente em oposição a outros elementos constitutivos de nossa ontologia, como objetos, propriedades, fatos e instantes temporais), rapidamente ficamos perplexos. Isso deu origem, especialmente dentro da Metafísica Contemporânea, a vários problemas filosóficos difíceis relacionados a eventos (Simons, 2003).

Contemporaneamente, um dos principais problemas metafísicos envolvendo eventos é a questão da individuação de eventos entre diferentes mundos possíveis (Bradie, 1983; Davidson, 1969; Unwin, 1996). Como veremos a seguir, um ponto que pode ser sugerido como bastante alinhado com nossa maneira habitual de pensar (e falar sobre) eventos é que, embora eles sejam efetivamente do modo como são, poderiam ter tido outras propriedades, caso o mundo fosse diferente, sem que isso implique que não seriam mais os mesmos eventos.

Nesse contexto, indaga-se sobre as condições que determinam se um evento específico permanecerá o mesmo ou se se transformaria em outro evento (numericamente distinto), ao longo das variações contrafactuais possíveis no cenário em que ocorre atualmente[2]. Nesse sentido, abordagens filosóficas destinadas a lidar com essa questão devem justificadamente especificar uma condição C, onde “[...] para todos os mundos u e para todos os mundos v, o evento x-em-u é idêntico ao evento y-em-v se e somente se tanto x-em-u quanto y-em-v satisfazem a condição C” (Vance, 2016, p. 3, tradução nossa, itálicos nossos).

Uma divisão clássica nesse debate diz respeito a quão forte C deve ser. Aqui, há aqueles que pensam que C deve permitir pouca ou nenhuma persistência dos mesmos eventos, em diferentes mundos possíveis (Lemmon, 1967; Quine, 1985). Por outro lado, há a perspectiva de admitir condições mais flexíveis de identidade de eventos (Kim, 1966; Goldman, 1971; Chisholm, 1971). O primeiro partido considera os eventos como tendo uma granulação mais fina, semelhante a fatos ou estados-de-coisas, enquanto as últimas defendem que eventos possuem uma granulação mais grossa, sendo mais semelhantes, nesse sentido, a objetos. Os proponentes das primeiras abordagens são frequentemente chamados de “multiplicadores” ou, ainda, associados à ideia de “fragilidade modal” para eventos[3]. Por outro lado, os advogados do segundo partido são referidos como “unificadores”.

Uma maneira interessante de definir os lados do presente embate é relacionada ao grau de variação permitido dentro das categorias escolhidas para especificar C[4]. Nesse âmbito, presume-se que as posições sobre a questão de como individuar eventos devem especificar C com base em certas categorias de propriedades. Assim, são variações dentro dessas categorias, entre mundos possíveis, que irão determinar se dado evento mudará ou não de identidade entre tais mundos. Tipicamente, as opções escolhidas para tais categorias são relativas a aspectos espaço-temporais (Brand, 1977), histórico causal[5] (Davidson, 1969; Van Inwagen, 1978; Kripke, 1980), objetos constituintes e/ou o tipo de ocorrência em questão[6] (Kim, 1969, 1976).

Nisto, por exemplo, um defensor da fragilidade modal que escolhesse especificar C com base em aspectos espaço-temporais admitiria pouca, ou nenhuma, variação contrafactual no tempo e espaço de um dado evento para considerá-lo o mesmo. Nesse sentido, ele consideraria que um dado evento que ocorreu atualmente em t¹, se tivesse ocorrido em t², onde t² é, digamos, 2 segundos após t¹, teríamos aí um segundo evento, numericamente distinto daquele que se deu no mundo atual. Já os unificadores correspondentes poderiam ser mais tolerantes (embora não completamente) em relação ao tempo em que ocorreu um mesmo evento, para que ele seja considerado o mesmo, não defendendo que ligeiras variações poderiam acarretar mudanças de identidade de eventos, ao longo de mundos possíveis.

De modo semelhante, caso multiplicadores escolhessem especificar C com base em histórias causais, não admitiriam, enquanto mantenedoras do mesmo episódio, mudanças nas peças que formam a linha causal que vai até o evento em questão. Assim, por exemplo, se a Primeira Guerra Mundial fosse deflagrada não pelo assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, mas por outro conflito diplomático que poderia ter acontecido naquela época, multiplicadores diriam que se trataria de outro evento (embora ainda uma guerra de aspectos bastante parecidos com a que ocorreu, de fato, em 1914). Tais raciocínios aplicam-se, obviamente, a outras categorias que podemos escolher para especificar C.

O presente artigo tem como objetivo abordar criticamente dois dos principais argumentos para a tese de que eventos não são modalmente frágeis, no sentido exposto. Em cada uma das seções abaixo, iremos reconstruir cada um desses argumentos, apresentando, em seguida, estratégias de defesa que multiplicadores poderiam empregar. Ao final, pretendemos mostrar que, ao contrário do que tais argumentos (e boa parte da ortodoxia contemporânea) sugerem, há bastante espaço para adotarmos posturas fragilistas a respeito da individuação de eventos.

 

1 Argumentos do atraso

1.1 Os argumentos

Uma linha de raciocínio já consolidada na presente discussão procura mostrar que, no mínimo, não devemos adotar uma postura radicalmente favorável à fragilidade modal (Lewis, 1986, 2000)[7]. O exemplo mais notável desse tipo é a nossa forma de falar sobre um evento como tendo sido atrasado (ou adiantado). Logo, note-se como dizemos naturalmente que a caminhada matinal de João (do dia de hoje) foi atrasada (e.g., devido à chuva) em dois minutos.

            Ora, se interpretarmos que esse tipo de afirmação é sinônima, ou pelo menos logicamente equivalente, a “a caminhada iria ocorrer em t0, mas acabou por ocorrer em t1, após t0”, podemos montar um raciocínio contra a posição de fragilidade modal. Para tanto, apenas precisaríamos assumir como uma alternativa para entendermos a veracidade de contrafactuais como pressupondo um mundo possível, no qual a caminhada em jogo ocorre em t0, conforme é sugerido pela teoria modal dos contrafactuais de Lewis (1973a). Diante disso, concluímos que tal modo de falar sobre eventos pressupõe que mundos possíveis existem, nos quais eventos têm propriedades diferentes das que eles possuem atualmente, em particular no que diz respeito ao momento de ocorrência.

            Com base nisso, podemos concluir que nossa maneira de falar e pensar sobre eventos, a qual aceita proposições contrafactuais desse tipo como verdadeiras, de maneira natural, nos indica que um mesmo evento pode variar em relação ao tempo em que ocorreu, ao longo de dois mundos possíveis. Do contrário, nossas intuições linguísticas não permitiriam, por exemplo, dizer que a caminhada de João foi apenas atrasada (pela chuva), mas sim que foi impedida (por tal fenômeno natural), e que, na realidade, aconteceu em seu lugar uma outra caminhada.

            Uma maneira análoga de demonstrar o mesmo ponto baseia-se nas intuições de Mackie (1992) e pede que voltemos nossa atenção mais especificamente para os elementos que determinam que um dado evento seja atrasado, no sentido acima. Chamemos esses elementos de “atrasadores”, por brevidade.

            O raciocínio se inicia sugerindo que adotemos uma teoria contrafactual da causalidade[8], a qual assere que um evento e causa um segundo evento f somente se caso f não ocorresse, então e também não ocorreria (Lewis, 1973b, 2000). Observa-se, no entanto, que, se o teórico da fragilidade modal radical de eventos estivesse correto, então ele, caso se vinculasse à teoria contrafactual da causalidade, teria de se comprometer que atrasadores são, na realidade, causas de eventos. Isto porque, se um atrasador não ocorre, o evento atrasado ocorreria num momento anterior. Todavia, a postura fragilista desse teórico hipotético o faria nos dizer, dada a diferença temporal, que o evento atrasado, na realidade, não é o mesmo que ocorreria depois, caso o atraso não se desse. Assim, atrasadores são tais que, se não ocorrer o evento atrasado, também não ocorreriam. Logo, de acordo com a teoria contrafactual da causalidade, atrasadores são causas.

            O problema com essa conclusão é que ela está em desacordo com nosso modo cotidiano de pensarmos e falarmos sobre eventos, pois fazemos, de maneira natural, distinções bastante claras entre causas e atrasadores para eventos. Por exemplo, se você conseguisse atrasar a explosão de uma bomba em 30 segundos (ao reconfigurar a disposição dos fios, na tentativa de evitar uma catástrofe), você, segundo nosso juízo natural, não teria causado essa explosão, mas apenas a atrasado. O teórico fragilista que adote a teoria contrafactual da causalidade, por outro lado, se comprometeria com o estranho juízo de que você não só atrasou, mas também causou a explosão em jogo.

            Os presentes raciocínios demonstram diretamente que, caso escolhêssemos abordagens multiplicadoras, não poderíamos escolher as propriedades temporais para especificar, nem mesmo parcialmente, C, pois isso nos comprometeria com a noção de que um mesmo evento nunca poderia ter ocorrido em intervalos temporais nem mesmo ligeiramente diferentes. Contudo, tais argumentos, na verdade, são capazes de demonstrar muito mais, mostrando, na realidade, que não podemos especificar C com base em tipos de propriedades em relação às quais não seja admitida nenhuma variação (por mínima que fosse) por um mesmo evento, ao longo de mundos possíveis distintos.

Para entender por que isso se dá, basta notar que eventos atrasados poderiam, sem infringir nossas práticas linguísticas, ter várias propriedades bastante diferentes do evento tal como “iria ocorrer” (caso o atraso em questão não tivesse ocorrido). Por exemplo, a caminhada que foi atrasada pela chuva provavelmente não teria acontecido exatamente da mesma forma, se esse atraso pela chuva não tivesse sido introduzido (por exemplo, João poderia ter de se desviar de algumas poças, no caminho). Da mesma forma, não esperaríamos que ela tivesse a exata mesma história causal (pois se passaram alguns processos internos em João, enquanto ele esperava a chuva passar, os quais poderiam ter influência causal em sua decisão de ir caminhar). Exemplos análogos nos mostrariam que quaisquer candidatos para especificar C poderiam sofrer variações semelhantes.

Portanto, conclui-se que argumentos a partir do atraso nos evidenciaram que os defensores da fragilidade modal para a individuação de eventos entre-mundos estariam em apuros, independentemente das categorias que eles escolhessem para individuar C. Assim, abordagens fragilistas, em geral, teriam a desvantagem dialética de implicar que há algo fundamentalmente equivocado com nossas práticas linguísticas e pensamentos cotidianos sobre eventos e causalidade.

 

1.2. Objeções aos argumentos do atraso

            Diante disso, poder-se-ia argumentar que os teóricos da fragilidade modal deveriam se contrapor às teorias metafísicas subjacentes utilizadas nos argumentos acima, em particular, a teoria modal dos contrafactuais (empregada no primeiro argumento) e, por outro lado, a teoria contrafactual da causação (usada no segundo argumento). Alternativamente, poderiam optar por “morder a bala”, mantendo sua teoria e reconhecendo que há algo incorreto no modo como falamos cotidianamente sobre eventos e suas causas. Entretanto, tais alternativas se mostram indesejáveis, posto que tais teorias metafísicas, como apontado acima, são independentemente motivadas. Além disso, dialeticamente, parece óbvio que é desejável nos mantermos em linha com nossas práticas linguísticas e pensamentos cotidianos, a menos que haja uma boa razão para pensar o contrário, pois, no contexto da inferência à melhor explicação, como realçam, por exemplo, Thagard (1978) ou McMullin (1996), a coerência com outros sistemas de crença já bem-estabelecidos, como outras teorias ou até nossas crenças ordinárias, é uma vantagem teórica que pode justificar a escolha de uma certa teoria em detrimento de suas concorrentes, mesmo que sejam equivalentes em outros aspectos. Logo, pode-se considerar que os teóricos da fragilidade modal estão em uma posição de desvantagem abdutiva em relação a seus concorrentes menos radicais.

Todavia, sendo esta a primeira contribuição original do presente estudo, acreditamos que os teóricos da fragilidade dos eventos não precisam enfrentar essas consequências indesejáveis, uma vez que existem fundamentos sólidos para neutralizarmos os argumentos da seção anterior.

Nesse sentido, pode-se começar por perceber que nossas expressões convencionais sobre eventos atrasados (ou adiantados) ignoram quaisquer limites razoáveis de tempo para sua aplicação. Nessa linha, poderíamos afirmar (esperançosamente num futuro real), de maneira bastante natural, que as medidas preventivas contra o aquecimento global atrasaram o fim da vida na Terra em 150 anos. Dessa forma, se seguíssemos o mesmo raciocínio baseado em nossas práticas linguísticas, empreendido pelos fragilistas, teríamos de aceitar que o mesmo evento (o fim da vida na Terra) poderia ter ocorrido em momentos radicalmente distintos, entre mundos possíveis. Na verdade, o predicado “atrasa” não estabelece, em nosso discurso cotidiano, quaisquer limites de aplicação em relação ao tempo de atraso relevante. Assim, teríamos de aceitar, caso aplicássemos qualquer um dos dois argumentos levantados acima, que há a possibilidade de um mesmo evento acontecer, em dois mundos possíveis diferentes, em intervalos temporais completamente diferentes, o que nos levaria à conclusão de que fatores temporais não apenas podem variar em alguma para um mesmo evento, ao longo de mundos possíveis, mas são completamente irrelevantes para a individuação entre mundos de eventos.

O problema com essa conclusão é que, embora haja, certamente, espaço para defender condições mais flexíveis para a individuação de eventos com respeito ao tempo, é implausível que eventos poderiam ter ocorrido em intervalos temporais arbitrariamente distintos. Por exemplo, “Boddie faz uma grande refeição e, em seguida, [...] come chocolates envenenados. O veneno ingerido com o estômago cheio passa mais lentamente para o sangue, o que afeta ligeiramente o momento e a maneira da morte” (Lewis, 2000, p.198, tradução nossa). Nesse caso, Lewis argumenta que temos razões para acreditar que fazer uma grande refeição não causou a morte de Boddie, mas apenas a atrasou ligeiramente, o que nos levaria à conclusão de que tal evento poderia ter ocorrido ligeiramente antes.

No entanto, para chegar à conclusão de que eventos poderiam ter ocorrido em momentos completamente distintos, há uma grande lacuna a ser superada. Tomemos, novamente, o exemplo da caminhada de João. Embora se possa argumentar, seguindo o raciocínio de Lewis, destacado acima, que a caminhada atrasada por cinco minutos devido à chuva é a mesma que ocorreria, se tal evento climático não ocorresse, parece óbvio que não devemos considerar a caminhada que João fez em determinado mundo possível, quando era jovem, como sendo a mesma que, em outro mundo possível, ele fez quando já era idoso (considerando que João é um indivíduo altamente sedentário e que, nos dois cenários, ele fez apenas caminhada uma vez em toda a sua vida). Caminhadas, nesse sentido, parecem ser entidades modalmente frágeis, quando se trata de passagem temporal. Tal intuição parece nos orientar para o veredicto, aceito por Brand (1977), de que, pelo menos em alguns casos, intervalos temporais distintos parecem afetar a individuação dos eventos.

Além disso, como observamos anteriormente, passagens temporais entre-mundos podem acarretar várias diferenças entre eventos, que transcendem a esfera meramente temporal. Da mesma maneira, quando um evento é atrasado ou adiantado indefinidamente, ele também pode ter variações imensas em diversos outros tipos de propriedades. Assim, por exemplo, a festa atrasada (pela tempestade) – mas não impedida – poderia acontecer em um local totalmente diferente do que estava originalmente previsto, tendo, adicionalmente, uma história causal relevantemente distinta. Em acréscimo, os tipos relativos a esse evento (que envolvem a maneira exata como os seus participantes festejam etc.) também podem ser plausivelmente bastante distintos da festa, caso não ocorresse tal atraso. Ademais, os objetos envolvidos não seriam plausivelmente os mesmos. Afinal, quem esperaria que exatamente as mesmas pessoas aparecessem para uma festa (que originalmente aconteceria hoje), a qual, por conta da tempestade, foi atrasada até amanhã?

Na realidade, o discurso convencional sobre eventos parece ser especialmente descomprometido, de um ponto de vista metafísico, quando levamos em conta a classe de sentenças das quais asserções de atraso/adiantamento fazem parte. Como vimos acima, podemos entender os tipos de sentenças relevantes como equivalentes a frases do tipo “o evento X iria ocorrer em t0, mas acabou por ocorrer em t1, após t0”. Com base nisso, podemos extrair um tipo mais geral de sentenças que, não obstante típicas dos modos com que costumamos falar sobre eventos, servem para sugerir como nossas práticas linguísticas podem não ser os melhores guias metafísicos, quando se trata da discussão sobre a individuação de eventos.

Vejam-se, por exemplo, as seguintes fórmulas, onde X representa um evento qualquer:

 

1)     X iria ocorrer em L¹, mas (X) acabou por ocorrer em L² [em que L¹ e L² são locais diferentes].

2)     X iria ser um F, mas (X) acabou por ser um G [em que F e G são tipos distintos de eventos].

3)     X iria ocorrer com a, mas acabou acontecendo com b [em que a e b são objetos diferentes].

4)     X iria ocorrer por causa de Y¹, mas acabou ocorrendo por causa de Y² [em que Y¹ e Y² são eventos diversos].

 

As fórmulas apresentadas evidenciam a notável flexibilidade de nossas práticas linguísticas, ao empregar sentenças contrafactuais sobre eventos do tipo dos relatos de atraso. Por exemplo, as sentenças do tipo 1) podem ser utilizadas de forma natural e sem restrições quanto à diferença ou distância dos locais relevantes. Poderíamos afirmar, com naturalidade, que a assinatura de um tratado de guerra importante estava planejada para ocorrer em um país específico, porém, por questões de segurança, acabou acontecendo em outro país relevantemente distante, digamos, noutro continente.

De maneira semelhante, baseando-nos em sentenças do tipo 2), poderíamos descrever que o golpe planejado pelo lutador seria um chute, mas, devido a uma mudança de ideia, no último instante, acabou se transformando em um soco. No contexto do tipo 3), ao abordar um sequestrador de ônibus, poderíamos ressaltar que o sequestro iria ocorrer a um ônibus específico, contudo, acabou acontecendo com outro ônibus, visto que o veículo originalmente pretendido a ser alvo do ataque não parou no local onde o sequestrador preparou o crime.

            Relativamente ao tipo 4), poderíamos facilmente afirmar que, inicialmente, o matrimônio de uma bela jovem modelo com o rico e idoso empresário iria ocorrer por conta de interesses financeiros dessa jovem, mas, uma vez que ela acabou por se apaixonar verdadeiramente pelo homem, acabou acontecendo por causa de sentimentos genuínos de amor. Logo, a lição extraída é que o discurso comum sobre eventos efetivamente não impõe limites à variação dos tipos candidatos que podemos escolher para especificar C.

Uma possível objeção a essas considerações poderia começar observando a diferença, amplamente destacada por Kripke (1980), entre descritores e designadores rígidos. Segundo essa distinção, descritores, geralmente expressos por termos do tipo “o [único] F”, não mantêm (pelo menos nem sempre) o mesmo referente em todos os mundos possíveis. Desse modo, por exemplo, o descritor em “o homem mais rico do mundo” refere-se, no mundo atual, a Elon Musk, porém, poderia, em outro mundo possível (bastante distante do atual), referir-se a mim, o autor deste artigo. Por outro lado, designadores rígidos, predominantemente representados por nomes próprios, caracterizam-se por manter o mesmo referente, independentemente dos mundos possíveis a que estão relacionados.

De posse disso, pode-se argumentar que o uso de descritores não pode nos indicar muito sobre a individuação entre-mundos de eventos, pois, de acordo com a interpretação modal dos contrafactuais do tipo relevante, as sentenças correspondentes do tipo 1-4 diriam que o (único) evento que tem tais e tais características (aquelas usadas no descritor para referir-se), num mundo possível, tem uma propriedade do tipo relevante e que, noutro mundo possível, o único evento (que tem aquelas características relevantes para o descritor) tem certas outra propriedade (desse mesmo tipo relevante) que é relevantemente distinta. Mas nada disso nos diria que tais eventos (entre os dois mundos possíveis distintos) são o mesmo; o que é exigido aqui é que eles satisfaçam a condição expressa no descritor, a saber, serem o único evento com tais-e-tais características).

            Todavia, mesmo com essa restrição, os teóricos da fragilidade modal ainda poderiam argumentar que nosso uso de sentenças 1-4) pode ser igualmente flexível, quando nos referimos aos eventos relevantes por meio de nomes próprios. Poderíamos dizer, sem violência a nosso discurso cotidiano, que a Conferência de Potsdam iria ocorrer no Palácio Cecilienhof, em Potsdam, Alemanha. Entretanto, devido a preocupações com a segurança e outras considerações logísticas, partes da conferência foram transferidas para a Casa Branca, em Washington, D.C., Estados Unidos, resultando em uma mudança de local para alguns aspectos do evento.

De igual modo, poder-se-ia asseverar que a missão espacial Apollo 13 iria ser uma missão de pouso na Lua, mas a Apollo 13 acabou por se tornar uma missão de resgate e retorno seguro à Terra, em função de uma série de problemas técnicos, incluindo uma explosão a bordo. Portanto, a missão Apollo 13 iria ser um pouso na Lua, mas acabou sendo uma missão de retorno seguro. Raciocínios similares se aplicam aos outros tipos de sentenças contrafactuais que disponibilizamos acima.

            Diante de tudo isso, podemos concluir a estratégia que os defensores da fragilidade modal poderiam empregar contra argumentos do tipo apresentado nas sentenças sobre atrasos e atrasadores, conforme introduzidos na seção anterior. Conforme argumentado, eles têm razões suficientes para impugnar os usos linguísticos relevantes como sendo não confiáveis, do ponto de vista metafísico, dado que são demasiadamente permissivos em relação às variações nos tipos de propriedades que estão disponíveis para se especificar C[9].

 

2 O argumento da responsabilidade moral

3.1 O argumento

            Um segundo desafio que a tese de Fragilidade Modal Radical a respeito da individuação dos eventos enfrenta refere-se a sua suposta incompatibilidade com uma explicação plausível a respeito de alguns fatos morais que nós plausivelmente deveríamos aceitar.

            Vance resume bem essa objeção:

A fragilidade modal dos eventos é relevante para a avaliação do louvor e da culpa moral. É comumente acreditado que eu devo ser considerado moralmente responsável por um resultado, apenas se for um evento que eu poderia ter evitado. No entanto, se os eventos forem muito frágeis modalmente, então, eu poderia ter evitado o evento que foi eu, acidentalmente, empurrando um estranho, se estivesse balançando freneticamente meu braço esquerdo em vez do direito, numa tentativa de me equilibrar enquanto caía. Isso não servirá. Queremos uma explicação sobre a individuação de eventos que permita que eventos reais difiram ligeiramente em vários mundos possíveis e, ainda assim, sejam exatamente o mesmo evento (Vance, 2016, p. 2, tradução nossa).

 

De maneira mais clara, podemos reconstruir o argumento, nas seguintes linhas. De acordo com a posição filosófica supostamente mais plausível sobre responsabilidade moral, para um dado agente S, se S que faz uma ação f, se S pudesse ter-se abstido de realizar f (fazendo alguma ação alternativa e, em seu lugar, por exemplo), então S é moralmente responsável por f. Contudo, nossas intuições dizem que uma pessoa que, ao se desequilibrar, move os braços freneticamente para cima e para baixo, a fim de recobrar o equilíbrio, mas, nisto, acaba por acertar alguém, não pode ser responsabilizada por tal ação. O problema é que, se seguirmos a posição multiplicadora sobre eventos, teríamos que nos ater ao veredicto de que o agente poderia, de fato, ter-se abstido de fazer aquela ação. Por exemplo, em vez de abanar freneticamente a mão esquerda, da maneira que realmente ocorreu, ele poderia ter feito um movimento ligeiramente diferente, para se equilibrar, o que estava dentro de suas possibilidades de ação. Logo, conclui-se, contrariamente à tese de fragilidade, que devemos ter uma concepção de individuação modal dos eventos (e, portanto, das ações) que comporte tais “pequenas” diferenças, às quais devemos admitir na coleção de possibilidades que os agentes poderiam ter, em exemplos de “desresponsabilização”, como os acima.

Antes de tudo, porém, é necessário compreender as razões morais por trás desse raciocínio. Em primeiro lugar, a segunda sentença (sendo essa a suposta “posição filosófica supostamente mais plausível”) nos indica uma versão do Princípio das Possibilidades Alternativas (PPA).

O problema é que ali nós somos colocados com uma condição de suficiência para responsabilidade moral. Usualmente, no entanto, (PPA) nos coloca uma condição necessária para a responsabilidade moral de um agente em relação a uma dada ação. Nessa perspectiva, (PPA) normalmente é defendido como derivando de nossas intuições de que não devemos culpar ou punir alguém por uma ação, quando essa pessoa não poderia tê-la evitado. Intuitivamente, consideramos plausíveis desculpas para uma dada ação indesejável, quando um agente afirmaria justificadamente algo como “Eu não pude evitar” ou “Eu não tive escolha” (Frankfurt, 1969; Robb, 2023). De igual modo, somos menos propícios a louvar uma ação benéfica, quando estava para além das possibilidades de o sujeito não fazê-lo (Bennett, 2016). Defende-se, portanto, que, nesse tipo de situações, o sujeito está alheio às suas capacidades completas de agência, pois a ação está além de seu controle. Nesse caso, a ação se assemelha mais aos eventos causados pelas forças da natureza (convulsões etc.) do que a algo originado por um agente e pelo qual poderíamos responsabilizá-lo. Esse princípio é amplamente aceito, tendo sua força reconhecida, ao longo da história da filosofia (Irwin, 1999, p.225; Pasnau, 2003, p. 226; Rowe, 1987, p.43).

No entanto, o argumento utilizado explicitamente atribui suficiência ao “poder fazer de outro modo” para a responsabilidade moral, o que poderia ser percebida como uma versão injustificada do (PPA), pois parece evidente que há outros fatores relevantes para a responsabilidade moral, como, por exemplo, alguns aspectos puramente epistêmicos ou cognitivos (Levy, 2011; Rosen, 2004). Entretanto, multiplicadores podem defender a condição de “fazer de outro modo” necessária para a responsabilidade moral, mas, ao mesmo tempo, defender que as outras potenciais condições necessárias também facilmente ser defendidas como estando presentes no caso em questão. (Digamos que o sujeito estava ciente das consequências que tal empurrão teria, além de sua significância moral, entretanto, dada a inevitabilidade em jogo, ainda assim deveríamos dizer que ele carece de responsabilidade por tal ação). Desse modo, como fatores exaustivamente necessários são também conjuntamente suficientes, pode-se defender que, para o caso em questão, seríamos obrigados – na presença das possibilidades alternativas – a inferir (contra nossas intuições) pela responsabilidade moral do sujeito.

Com base em tudo isso, parece haver razões convincentes para não adotarmos a posição multiplicadora de eventos. Isso ocorre porque ela nos levaria ou a abandonar o PPA, o qual, como vimos, é um princípio intuitivo e amplamente aceito, ou a admitir que, em situações como as descritas (nas quais nossas intuições nos indicam fortemente a ausência de responsabilidade moral), o sujeito é, na verdade, moralmente responsável. Ambas as opções, contudo, parecem ser indesejáveis.

 

2.2 Objeção ao argumento da moralidade

            Diante disso, parece claro que, se o teórico da fragilidade modal de eventos tivesse que escolher uma dessas duas opções, ele teria de abandonar o PPA. De fato, em primeiro lugar, por mais que esse princípio seja intuitivo e historicamente endossado, contemporaneamente, ele já foi alvo de muito escrutínio na discussão acadêmica relevante (Fisher, 2006; Hankinson, 2014; Frankfurt, 1969). Por outro lado, a posição de que o sujeito do exemplo em questão está livre de culpa por sua ação parece ser uma posição longe de polêmica.

            Entretanto, sendo isso uma das contribuições deste estudo, os teóricos da fragilidade modal não precisam ir tão longe, a ponto de negar PPA por meio de abrir mão das intuições adjacentes, de uma vez por todas. Na verdade, sugerimos aqui que a reformulação do princípio, direcionada à possibilidade de exclusão numérica da ação candidata a ser alvo da responsabilidade moral, é uma representação inadequada das intuições subjacentes ao PPA. Dessa maneira, os teóricos da fragilidade podem justificadamente sugerir uma reformulação do PPA, sem abrir mão de nossas intuições envolvendo modalidade e ações contrárias.

            Para uma melhor compreensão de como fazer jus a tais intuições, de sorte a promover a reformulação de um princípio sobre alternativas relevantes que as capture, considere-se o seguinte caso. Imagine-se um cenário de desequilíbrio motor semelhante ao mencionado anteriormente, no qual o sujeito balança freneticamente o braço na tentativa de recuperar o equilíbrio. No entanto, nesse caso específico, dentro das possibilidades do sujeito não está uma ação ligeiramente semelhante à que ele efetivamente realizou, em Vance (2016, p. 2), mas sim uma ação significativamente diferente e, além disso, muito mais indesejável do que a simples ação de balançar os braços (atingindo, consequentemente, um transeunte, mas sem lhe causar danos maiores que um olho roxo). Para ilustrar, suponha-se que a única ação alternativa na abrangência de possibilidades do sujeito, nesse caso, seria, em vez de balançar o braço direito e recobrar o equilíbrio, jogar-se de vez no chão. Todavia, o indivíduo portava consigo (por forças alheias a ele) um potente dispositivo explosivo altamente sensível, capaz de pulverizar o quarteirão inteiro, diante de um movimento muito brusco, como uma queda.

Nessa circunstância, naturalmente, manteríamos nossa intuição original de que tal sujeito não pode ser verdadeiramente responsabilizado pela pancada desferida. No entanto, agora, se usássemos a formulação atual de PPA, teríamos de concluir que ações de tipos bastante diferentes e, portanto, com tipos de eventos relacionados bastante diferentes, devem ser numericamente a mesma ação.

Consequentemente, tais casos modificados demonstram que situações semelhantes às mencionadas anteriormente, nas quais se admite a possibilidade de agir de maneira “diferente”, de forma irrelevante para a avaliação da responsabilidade moral, não dependem de concepções específicas de individuação dos eventos. Podemos introduzir possibilidades que evocam as mesmas intuições morais, mas cujas alternativas de ação possíveis “irrelevantes” são indiscutivelmente eventos diferentes. Desse modo, ao contrário do argumento defendido na seção anterior, adotar uma teoria menos restritiva da individuação dos eventos não nos ajuda a manter tanto o PPA quanto o veredito de que os casos em questão realmente não envolvem responsabilidade moral[10].

            Essa discussão nos ensina que o que é relevante para a responsabilidade moral, quanto às suas condições modais, não é a ausência de uma “inevitabilidade” associada à ação a ser moralmente avaliada, considerada como uma individualidade numericamente concebida (como fazemos, ao discutir as condições de individuação de eventos). Segundo acabamos de ver, situações em que existe esse tipo de possibilidade de restrição das ações – mas, devido à natureza dessas possibilidades de ação, não devemos intuitivamente classificar o sujeito como moralmente responsável por isso – estão disponíveis.

            Obviamente, fornecer um relato completo sobre o que define as possibilidades alternativas relevantes envolvidas em casos de responsabilidade moral é uma tarefa que verdadeiramente transcende o escopo do presente trabalho, o qual se limita a avaliar argumentos disponíveis contra posições multiplicadoras. No entanto, abaixo apresento uma opção viável para entendermos o que está em jogo, quando cobramos do sujeito possibilidades de ação alternativas.

Fischer (1986, p. 180-182; 1994, p. 239-240) e Fischer e Raviazza (1998, p. 99-101) discutem uma alternativa para lidar com dificuldades semelhantes relacionadas ao PPA. De acordo com esses autores, podemos formular um princípio para o qual as possibilidades relevantes em questão não estão relacionadas às ações em si, mas sim aos efeitos pretendidos pelo sujeito com tais ações. Nesse sentido, o sujeito seria responsável por uma determinada ação a, que resulta em um evento de um tipo F pretendido pelo sujeito, somente se estivesse ao seu alcance uma ação que causasse um evento “e'” que não fosse “F” (e que estivesse nas intenções do sujeito causar algo não-F)[11].

Nesse caso, o que deve estar “sob controle” do sujeito, no sentido relevante, não são as ações emitidas propriamente ditas, mas sim os tipos de eventos, os quais devem ocorrer de acordo com a pretensão do sujeito, por haver ou não tal tipo de acontecimento no mundo. Em outras palavras, “[...] para que o agente tenha controle deliberado (no sentido necessário para a responsabilidade), deve haver uma sequência alternativa na qual existe uma ação racionalizada por seu raciocínio prático” (Lombard, 1986, p. 181, tradução nossa). Desse modo, o PPA originalmente concebido teria a falha de confundir “[...] a capacidade de fazer deliberadamente de outra forma com a [mera] possibilidade de algo diferente ocorrer” (Lombard, 1986, p.181-182, tradução nossa).

Assim, podemos explicar por que as possibilidades alternativas de ação, tanto no caso de Vance quanto no caso modificado acima, são irrelevantes do ponto de vista da avaliação moral. Em ambos os casos, o sujeito não pode ser responsabilizado porque os eventos em questão estavam fora de seu controle, de acordo com suas intenções (as quais nunca envolveram ferir ou causar mal a terceiros). Consequentemente, meras possibilidades de ação alternativa são irrelevantes para essa avaliação.

 

Considerações finais

Concluímos o presente artigo com a observação de que há defesas disponíveis para os teóricos da fragilidade dos eventos. Caso essas defesas estejam corretas, eles não têm motivos para se preocupar. No entanto, essa conclusão nos deixa com um cenário lamentável dentro da disputa atual, pois parece faltar-nos meios para decidir entre teorias distintas de individuação de eventos. Nesse sentido, mesmo que não haja razões contra os multiplicadores, ainda não teríamos razões a favor. Esse cenário de subdeterminação evidencial naturalmente nos conduz à abstenção de crença entre as alternativas teóricas relevantes e ao consequente ceticismo em relação à maneira como os eventos são individuados.

Uma possível saída para esse impasse reside talvez em uma abordagem de natureza abdutiva, mais especificamente por meio da inferência que nos permite selecionar teorias com base em sua coerência com teorias adicionais que foram bem-sucedidas. Como é amplamente conhecido, os casos de “preempção” representam os principais desafios para a Teoria Contrafactual da Causalidade (Lewis, 1973b, 2000). Esses casos envolvem exemplos nos quais, digamos, você lança uma pedra em um vidro, quebrando-o. Todavia, milésimos de segundos depois, outra pessoa lança uma pedra da mesma forma em direção ao vidro. Isso sugere que a dependência contrafactual entre o seu arremesso de pedra e o estilhaçamento do vidro não ocorre, uma vez que este último teria acontecido na ausência do primeiro, dada a certeza de que o segundo arremesso teria realizado essa ação.

Não obstante, ao adotarmos a posição fragilista, chegaríamos à conclusão de que o estilhaçamento não poderia acontecer, uma vez que, em um cenário contrafactual, teríamos uma nova história causal envolvendo outra pedra lançada por outra pessoa. Portanto, não seria possível considerar o mesmo evento. Dessa forma, podemos sustentar a ideia de que, caso o lançamento da pedra por você não tivesse acontecido, o estilhaçamento também não teria ocorrido, no máximo, haveria um evento numericamente distinto.

Consequentemente, caso nossa discussão sobre como os argumentos apresentados contra posições multiplicadoras estiver correta, está aberto o caminho para se adotar a postura fragilista. Ao estarem livre de argumentos contra si, fragilistas podem abdutivamente argumentar que, diante da vantagem de mantemos a Teoria Contrafactual da Causalidade (a qual apresenta motivações independentes) em face de casos de preempção, nós podemos inferir pela sua posição acerca da individuação entre-mundo de eventos.

 

Deciding for Fragility: An Analysis of Arguments Against Multiplicative Theories on Event Individuation

 

Abstract: This article addresses a classic issue in the Metaphysics of Events concerning the conditions under which a specific event remains unchanged amid possible counterfactual changes. Multiplicators, who admit little or no variation in property categories for event individuation, contrast with unifiers, who are more tolerant of such variations. Two fundamental arguments are critically analyzed. Firstly, arguments based on common linguistic practices suggesting that we speak about the same events varying over time are discussed. Counterexamples demonstrate the unreliability of these practices from the standpoint of the metaphysics of event individuation. Secondly, the argument that the non-fragilist position conflicts with the principle of alternative possibilities and the intuition that cases with very close action alternatives do not involve moral responsibility is addressed. The analysis indicates that such cases may involve numerically distinct actions, suggesting the need for a modification in the principle of alternative possibilities. It is concluded that there are no plausible reasons to reject the fragilist stance, and it is possible to decide abductively in its favor.

 

Keywords: Events. Individuation. Modality. Linguistic Practices. Principle of Alternative Possibilities.

 

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Recebido: 15/12/2023 – Aprovado: 02/02/2024 – Publicado: 30/05/2024



[1] Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1759-2930. E-mail: icaro_machado@live.com.

[2] Nesse contexto, essa questão se enquadra como uma subcategoria das questões sobre persistência, as quais podem envolver a identidade ao longo do tempo ou em diferentes mundos possíveis (Oderberg, 1993; Gallois, 2016), que, por sua vez, também tem como uma subdivisão relevante as questões sobre identidade pessoal (Olson, 2002).

[3] A terminologia de “multiplicadores” vs “unificadores” deriva de Thalberg (1971). No entanto, em sua discussão original, o autor trata de outra abordagem acerca da identidade de eventos, sobre o que geralmente se apelida “condições de individuação intramundo”. Grosso modo, essa discussão gira em torno de como devemos, num mesmo mundo, contar eventos como idênticos ou como diferentes. Perguntas clássicas, nesse sentido, incluem “é o ato de atirar a arma numericamente idêntico ao ato de matar alguém?”; “é a caminhada lenta de João numericamente idêntica à caminhada de João?” etc. Para uma distinção entre condições de individuação entre-mundos (que abordamos neste artigo) e sua “irmã” intramundos, referir-se a Pfeifer (1989).

[4] Desse modo, uma maneira talvez mais precisa para conceber esse debate é visualizá-lo, na realidade, como um espectro entre polos estritamente unificadores e estritamente multiplicadores. Nessa perspectiva, podemos aludir a abordagens mais ou menos adeptas da fragilidade modal de eventos. Isso nos auxilia a reconhecer abordagens mais “moderadas”, como a proposta por Davidson (1969).

[5] Isso implica não apenas que os eventos candidatos à identidade entre-mundos devem ter suas causas compartilhando um ou mais tipos de propriedades dessa lista, mas também, como observa Forbes (1994, 2002), é crucial levar em conta a ordem causal em que estão dispostos os eventos compondo as respectivas linhas causais.

[6] Na abordagem de Kim (1976), na qual eventos são identificados como instanciações de propriedades, os objetos constituídos seriam a própria instância em questão, enquanto o tipo de ocorrência corresponderia à propriedade instanciada. No entanto, não é necessário adotar essa ontologia específica em relação a eventos para reconhecer essa distinção, porque parece bastante evidente, em primeiro lugar, que, para um dado evento, há objetos que essencialmente fazem parte dele. Em termos gerais, se considerarmos eventos como mudanças, conforme sugerido por Lombard (1986), os objetos constituintes são simplesmente o que efetivamente está sendo alterado ou o que sofre a mudança em questão. De maneira análoga, podemos afirmar que há tipos que classificam essencialmente uma determinada ocorrência. Nesse contexto, a intuição é que eventos podem ter a mesma tipologia relevante, mesmo envolvendo rigorosamente objetos diferentes, como ocorre quando dois dançarinos executam exatamente a mesma coreografia. Pelo menos de maneira preliminar, à guisa de uma definição rigorosa desses elementos, podemos definir ambos os objetos constituintes e tipos de eventos em termos de propriedades intrínsecas dos eventos: os tipos de evento seriam aquelas propriedades instrínsecas que não são, a rigor, propriedades de objetos. O objeto constituinte, por sua vez, seria o instanciador de tais propriedades.

[7] Esse tipo de raciocínio, no entanto, continua a impressionar filósofos contemporâneos, sendo considerado uma defesa-padrão contra a adoção da tese de fragilidade modal de eventos.

[8] Essa teoria é considerada intuitiva por diversas razões. Para um levantamento, ver, e.g., Menzies e Beebe (2020).

[9] Um avaliador anônimo gentilmente me apontou que se pode defender que nossas declarações sobre eventos – as quais podem ser alvo das construções modalmente, conforme discutidas acima – na verdade, não se referem a tokens, mas somente a tipos de eventos. Pessoalmente, penso que essa sugestão é desfavorável, porque ela pressupõe uma espécie de descritivismo necessário para eventos, de modo a nunca admitirmos nomes próprios (como designadores rígidos) para essa categoria ontológica, o que parece ser desmotivado. (Digo “necessário”, porque construções que apontamos como metafisicamente problemáticas poderiam se aplicar a nomes próprios de eventos admitidos, sejam quais forem). Contudo, mesmo em face dessa sugestão, não há mudanças nas conclusões pró-fragilismo do presente argumento, uma vez que tal leitura de nomes de eventos, assumindo apenas manutenção de tipos de eventos, ao longo de mundos possíveis, não permitiria a inferência de permanência numérica desejada pelo antifragilista.

[10] Que casos como o mencionado podem englobar eventos realmente numericamente diferentes como alternativa, levando-se em consideração qualquer teoria plausível de eventos, é facilmente algo demonstrável. O exemplo específico apresentado acima incluía uma situação na qual a ação alternativa envolvia um tipo significativamente diferente de evento. No entanto, é fácil, com exemplos semelhantes, perceber que abordagens unificadoras que usam outras categorias de propriedades de eventos para especificar C estariam sujeitas ao mesmo perigo. Em primeiro lugar, os objetos envolvidos nos eventos podem ser inteiramente distintos (bastaria que as ações em questão envolvessem partes do corpo, com diferentes instrumentos). Poderíamos estipular também, de posse disso, que tais ações tivessem histórias causais realmente diferentes. Da mesma forma, tais eventos podem ocorrer em lugares diferentes (se estipularmos, por exemplo, que o agente em questão é um gigante) e em intervalos diferentes (caso o tempo de reação relevante para realizar cada ação seja relevantemente distinto para esse agente).

[11] Não necessariamente, nesse sentido, precisamos supor que toda ação é orientada para eventos de transformação no mundo que são extrínsecos à própria ação. Todavia, como esta é uma adição ao PPA original, a presente explicação acomoda também “ações instrumentais”, nas quais elas servem a propósitos transcendentes.