A insólita a-generidade da filosofia masculinizante
Janyne Sattler[1]
Resumo: O objetivo deste artigo é repassar os termos de uma chamada para dossiê temático e responder criticamente a algumas perguntas suscitadas por sua linguagem e por alguns dos conceitos presentes nos requisitos listados para o aceite das publicações. Assim, começa-se por perguntar sobre o significado (linguístico-político) da generificação do pensamento filosófico tomando como chave crítica de leitura uma parte da vasta produção das epistemologias feministas, a fim de insistir na parcialidade e na localização de toda e qualquer manifestação filosófica contra a especificidade do gênero feminino relativamente à autoridade epistêmica e à autoria textual em filosofia; em seguida, trata-se da distinção entre ‘sexo’ e ‘gênero’ para proceder a uma correção quanto à enunciação quase biológica sobre o ato de escrita filosófica; e, por fim, trazem-se questões sobre a generificação dos “conteúdos” filosóficos e sobre os interesses da filosofia feminista e da história feminista da filosofia, de sorte a se proceder à denúncia sobre os modos como nossa linguagem filosófica e seus suportes epistemológicos de fundo seguem ainda as sendas dicotômicas valoradas desigualmente.
Palavras-chave: Filósofas. Feminismo. Gênero. Epistemologias feministas.
Introdução[2]
Os recentes movimentos das filósofas brasileiras no campo da filosofia contemporânea, ou os movimentos da filosofia feminista, ou, ainda, o que temos chamado de revisão feminista da história da filosofia, têm promovido e operado significativas mudanças práticas e teóricas numa área acadêmica sabidamente excludente e elitizada. Em termos práticos, as demandas das filósofas caminham junto de ações de cunho político e público e institucional, e balizam documentos contra o assédio moral e sexual na academia (cujos alvos prioritários são as mulheres ou as pessoas femininizadas e racializadas), a favor de cotas e de outras ações de inclusão e de representatividade (como a reivindicação de que bancas de seleção, bancas de concurso, comissões organizadoras de eventos, mesas e palestras em eventos, não sejam compostas unicamente por homens, mas demonstrem a pertença e a presença de mulheres, na filosofia) e em direção à construção de uma educação filosófica mais democrática, a partir de currículos e bibliografias mais plurais (e não unívoca e canonicamente “masculinos”). Essa construção incide, por sua vez, sobre os termos teóricos desses movimentos, já que ela demanda uma reflexão concomitante sobre os significados do fazer filosófico e de seus conteúdos legitimados em função de critérios epistemológica e filosoficamente inquestionados pela agora já longa institucionalização da filosofia.
Assim, o pensamento levado a cabo pelas filósofas feministas tem preocupações que são também de cunho metafilosófico, metodológico e epistemológico, cujo objetivo é a compreensão dos modos concorrentes de produção do conhecimento que validam o escopo, o texto e a autoria como genuinamente pertencentes à área – ou não. Tudo isso tem igualmente exercido certa pressão sobre a filosofia acadêmica como um todo e, se algumas dessas demandas encontram respostas efetivamente comprometidas no seio da comunidade filosófica, outras tantas se manifestam de modo hipócrita, quando o intuito é aquele do mero cumprimento da cota (o fenômeno do tokenismo), o qual nada faz senão manter o status quo, mas com pose de bom-mocismo, ou de modo esdrúxulo, quando a intenção é aquela da abertura pela metade, que aparenta um interesse genuíno pelas questões levantadas pelos movimentos feministas na filosofia, contudo, que, no fundo, só deseja o elogio da iniciativa ou do suposto esforço e que, em sua falsa escuta, incorre em contínuas, inconscientes e impensadas camadas de reprodução masculinista, quando não implicitamente machista.
Com efeito, os casos de reprodução involuntária por parte de filósofos com boas intenções podem ser facilmente sanados, se houver também boa vontade e escuta sincera sobre o que as filósofas têm dito, e sobre a linguagem que elas têm usado, para que saiamos todos dos registros que produziram e produzem ainda as hierarquias de valor e a ratificação do que conta ou não como filosofia.[3] Isso nos pouparia um bocado de vergonha alheia e impediria a publicização de casos de reiterada e empedernida reapresentação da masculinização da filosofia. É sobre um desses casos em particular que eu gostaria de me debruçar, no presente artigo, a fim de deslindar os modos pelos quais uma linguagem (epistemológica e filosófica) viciada na generificação fantasmaticamente universal da filosofia trai as melhores das intenções.
O caso é de uma chamada de artigos em que a “perspectiva feminina no pensamento filosófico” é tomada notadamente como exceção e alternativa a uma perspectiva filosófica supostamente a-generificada, requerendo, portanto, uma abordagem específica para sua elaboração e devida compreensão. Meu objetivo é repassar os termos da chamada e responder criticamente a algumas perguntas suscitadas por sua linguagem e por alguns dos conceitos presentes nos requisitos listados para o aceite das publicações. Assim, começo por perguntar sobre o significado (linguístico-político) da generificação do pensamento filosófico, tomando como chave crítica de leitura uma parte da vasta produção das epistemologias feministas, para insistir na parcialidade e na localização de toda e qualquer manifestação filosófica; em seguida, a distinção entre ‘sexo’ e ‘gênero’ servirá a uma correção à enunciação quase biológica sobre autoria textual filosófica; e, por fim, trago questões sobre a generificação dos “conteúdos” filosóficos e sobre os interesses da filosofia feminista e da história feminista da filosofia para o campo da filosofia composto por homens, mulheres e pessoas de gêneros diversos.
1 “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”
Nós poderíamos começar pela pergunta sobre se o pensamento filosófico é (pode, ou deve, ser) generificado. Como a resposta longamente construída pelas denúncias e reflexões das epistemologias feministas nos encaminha para uma resposta positiva acerca da generificação do conhecimento (mas, note-se, de todo o conhecimento, e não apenas aquele desenvolvido por filósofas), eu gostaria de proceder ao desvelamento dos significados presentes na “feminização” do pensamento filosófico, tomado como específico relativamente a algo que é de antemão tomado como geral – que é o que se lê no título desta seção. Dados os termos dessa especificidade, nós poderíamos também nos perguntar o que exatamente, no pensamento filosófico, é “feminino”, por oposição às suas características “masculinas” – e por que isso seria importante para um campo da reflexão humana que exulta a sua capacidade de universalidade e neutralidade, em seus procedimentos supostamente intercambiáveis, apesar da variabilidade corporal e espiritual (cuja camada cultural sequer precisa entrar na conta aqui) observada mundo afora.
Ora, se o acesso aos modos de apreensão e desenvolvimento cognitivo e filosófico são universalmente dados para qualquer mente pensante, independentemente de seu suporte material, então, o pensamento filosófico não só é neutro relativamente ao sujeito específico que o pensa, como também é desprovido de gênero, de sorte que falar de características “femininas” e “masculinas” da filosofia afronta tanto o seu ideal epistemológico como sua história (supostamente) “humana”. Ou, então, as coisas não são tão neutras, objetivas e gerais como se pretende, e a ‘universalidade’ é apenas um critério epistêmico-filosófico universalmente excludente e, portanto, incongruente.
As epistemologias feministas, em suas diferentes vertentes, mas a partir de um eixo crítico comum, têm se debruçado sobre ambos os fenômenos acima mencionados: tanto a contradição que ainda se faz ver no ambiente acadêmico, entre “universalização” e “feminização” do pensamento filosófico, quanto o desvelamento da localização das enunciações e dos critérios epistêmicos elegidos também como critérios de legitimação e validação filosófica ou de textos filosóficos que também respondem ou ecoam os modos de construção do cânone filosófico.
Por um lado, trata-se de dar corpo ao sujeito do conhecimento e mostrar a inescapabilidade de sua situação no mundo contra o esvaziamento de um “S” a princípio generalizadamente intercambiável – mas apenas se passível de cumprimento e realização dos critérios que asseguram a lisura do processo de justificação de crenças. Aqui, estão em pauta os conceitos de neutralidade, objetividade, racionalidade e universalidade do conhecimento e do conhecedor, assim como o que conta como boa justificação e como ‘verdade’. Por outro lado, trata-se de mostrar que esses critérios só são atendidos por um determinado tipo de conhecedor, cujas características são de antemão atribuídas a um determinado tipo de corpo, com cor e gênero, restando a todos os demais corpos ou bem a parcialidade ou bem a incapacidade cognitiva e, portanto, a inaptidão epistêmica que obstrui o desenvolvimento do pensamento filosófico. Evidentemente, o corpo histórica e simbolicamente determinado para padrão do conhecedor ideal é o corpo “masculino”, preferencialmente branco e (pelo menos teoricamente) heterossexual.[4]
Essa breve configuração das denúncias das epistemologias feministas dá conta do outro lado da contradição acima mencionada, que é o fato de que a “universalização” ainda se faz ver no ambiente acadêmico como “masculinização” do pensamento filosófico. Ou seja, a filosofia é espaço institucional, epistêmico-linguístico e conceitual, o qual privilegia pessoas que representam o gênero masculino e práticas filosóficas masculinizantes. E isso simplesmente não pode ser “universal”. E isso também nos ajuda a explicar a necessidade que a academia ocasionalmente tem de especificar os elementos “femininos” que a filosofia possa ter, para além da generalidade e da padronização do “masculino”. E, antes que se levante a objeção a respeito da crescente (mas ainda absolutamente insuficiente)[5] presença de filósofas, no ambiente institucional, é necessário perceber que sua formação filosófica foi e ainda é inteiramente baseada nesse esquema masculinizante de produzir filosofia e que também elas podem reproduzir e replicar os mesmos elementos criteriais hierárquicos dados com o arcabouço epistemológico ainda vigente. E, antes que se levante a objeção de que esse arcabouço de generalidade e padronização masculina da filosofia está datado, é necessário perceber a massiva adesão aos conceitos epistemológicos centrais que balizam a contínua construção de nossos textos filosóficos acadêmicos e a autoridade atribuída aos seus autores, até mesmo nas mais aparentemente arejadas áreas da epistemologia social, a qual, apesar do qualificativo de tonalidade política, segue ancorada sobre uma epistemologia de primeira ordem que persiste em reapresentar os dualismos hierárquicos basilares que excluem as filósofas como legítimas conhecedoras de par com os filósofos.
Ademais, o fato de que filósofos e filósofas possam estar presentes ao mesmo tempo no mesmo ambiente é irrelevante, quando a consideração da autoridade epistêmica é dada a partir da presunção da generalidade do “masculino” – até porque os meandros de exclusão epistêmica são multifacetados e, inúmeras vezes, sutis, imagéticos e não explícitos, os quais são mais facilmente percebidos pelas filósofas treinadas em perceber os muitos mecanismos de marginalização e silenciamento vivenciados em primeira pessoa. É essa presunção de generalidade e padronização do “masculino” que exclui de imediato a pergunta sobre os elementos “masculinos” ou a perspectiva masculina do pensamento filosófico – ponto sobre o qual voltarei, subsequentemente.
É também com base nessa presunção que podemos deslindar aquilo que chamei de “adesão aos conceitos epistemológicos centrais”, quando se trata da atribuição de autoridade epistêmica e de autoridade autoral, no escopo de nossas práticas filosóficas institucionais e textuais. Para mostrar como o fantasma do dualismo hierárquico persiste em assombrar até mesmo as boas intenções do universo acadêmico contemporâneo, tratarei abaixo de alguns conceitos diferentemente valorizados pela epistemologia canônica e pelas epistemologias feministas, chamando em auxílio algumas epistemólogas, entre várias – o que decerto contará positivamente também para a autoridade de meus próprios argumentos, já que minhas reflexões não são apenas minhas, todavia, construídas em conjunto com leituras e em coletivo com pessoas, e já que referenciar autoras (mas, sobretudo, autores) é também, segundo os critérios vigentes de publicação, o que confere competência e perícia à autoria de textos filosóficos.
A ideia de que o sujeito do conhecimento deve ser neutro e universalmente substituível por qualquer conhecedor é uma ideia presente nas construções epistemológicas oriundas da modernidade – com Descartes como figura informativa proeminente – que prescindiram de qualquer indicação de corporeidade em sua lida com o mundo e com a realidade. O ideal de imparcialidade parece ser importante para a asserção de que, quando se trata de teoria do conhecimento (se quisermos usar esse termo) e dos fins cumulativos de saber filosófico e científico, questões políticas e sociais devem ser mantidas de fora. Nesse sentido, corpo e política não contariam, não ajudariam e atrapalhariam, na explicação sobre os nossos modos humanos de conhecer e justificar como verdadeiro aquilo que afirmamos conhecer, já que os vieses podem distorcer a realidade e a própria “verdade”.
A questão é que há muita política envolvida no desenrolar dessa história epistemológica, e um ponto crucial para as epistemologias feministas é precisamente a devolução da “política” e do “corpo” como termos inseparáveis, ou mesmo, imprescindíveis à epistemologia: “Uma vez que reconhecemos que valores, política e conhecimento estão intrinsecamente conectados, as hierarquias e divisões dentro da filosofia serão substituídas por modelos mais holísticos e coerentistas” (Alcoff; Potter, 1993, p. 03, tradução minha). Modelos holísticos e coerentistas e, talvez, poderíamos acrescentar, mais democráticos também.
Poder-se-ia argumentar que a questão dos valores e dos aportes subjetivos da investigação epistemológico-científica já havia sido salientada pelo “giro histórico-sociológico” operado com Thomas Kuhn. Mas a ênfase das feministas na corporeidade e no modo como o que pensamos sobre o próprio corpo humano é igualmente construído social, política e conceitualmente ultrapassa as questões kuhnianas relativas à incomensurabilidade teórica e aquelas relativas aos interesses subjetivos competitivos, para insistir que o filtro de todas as decisões epistêmicas em epistemologia e em ciência é sempre político e, portanto, sempre negociado, comunitário e público e, portanto, continuamente passível de correção. Mesmo a provisoriedade kuhniana ainda responde à ideia de “evolução da ciência”, porém, para as epistemólogas “[...] não há ciência normal” (Harding, 2019, p. 99) paradigmática, madura e concorde. Nesse sentido, se, para as epistemologias feministas, o horizonte é efetivamente político, ele não é necessariamente teleológico. E o caráter instável das “categorias analíticas feministas” não deve ser compreendido aqui como uma falta ou uma falha, mas antes como um recurso para a contínua elaboração dos nossos problemas epistêmicos e como um critério contra os feitiços das “teorias totalizantes” (Harding, 2019, p. 100-101).
Sandra Harding tem suas próprias propostas teóricas desenvolvidas a partir da rejeição das teorias patriarcais e de quaisquer outras teorias universalizantes, em direção a um quadro de experiências compartilhadas e mutuamente corretivas que favoreçam a “[...] solidariedade em torno de objetivos possivelmente comuns” (Harding, 2019, p. 111) e caminhem rumo a uma objetividade epistêmica e científica forte (porque submetida a constante escrutínio comunitário e político e não porque isolada e acessível apenas no mundo da ideias), mas ela partilha com outras epistemólogas o dado fundacional da corporeidade e da localização como plataforma primeira para nossas reflexões sobre quem é o sujeito o conhecimento, o que conta como razão e justificação e o que conta como legitimação de nossas práticas epistêmicas.
Afirma ela: “Em primeiro lugar, nós enfatizamos que os seres humanos são de carne e osso – e não mentes cartesianas que, por acaso, habitam uma matéria biológica em movimento” (Harding, 2019, p. 112).[6] E isso significa também reconhecer o amplo espectro de diversidades corpóreas que nos faz homens, mulheres e pessoas transgênero como diversas, mesmo “no interior” das instáveis categorias de gênero, diversidade que deveria prevenir qualquer aplainamento cosmoperceptivo e que deveria impedir generalizações generificadas. Isso significa também questionar os conceitos de “feminino” e “masculino” como atrelados a corpos assim identificados, com base em algumas características dualistas que não são simplesmente e inconsequentemente descritivas, porém, que estão a serviço das atribuições de importância e mérito construídas hierarquicamente e a partir de posições políticas hegemônicas.
Ora, nossos corpos se movem publicamente num mundo material e cultural com outros corpos que possuem mais ou menos poder de negociação ou barganha e decisão epistêmica. O fato de que aos corpos “femininos” e femininizados se apensem as características da emotividade, da parcialidade, da passividade e receptividade, do cuidado e da sensibilidade, assim como as características sub-repticiamente negativas somadas a essas, porque contrárias às características atribuídas aos corpos “masculinos” (racionalidade, imparcialidade e neutralidade, frieza e distanciamento, assertividade e clareza), só adquire peso classificatório porque os processos de legitimação de algumas qualidades epistêmicas em detrimento de outras são processos de dominação e controle levados a cabo pelos corpos que tipicamente (ou bem, supostamente) usufruem das qualidades escolhidas como legítimas.
Esses processos não são necessariamente realizados à força ou com o uso de violência física apenas, mas são às vezes longos processos coletivos de negociação nos quais estão em jogo os argumentos que melhor cumprem e realizam políticas circunstanciais de conhecimento: conquistas científicas, exploração territorial, desenvolvimento armamentista, desenvolvimento tecnológico, aperfeiçoamento médico e sanitário etc. A ideia de que o conhecimento humano segue uma linha ascendente e cumulativa, tão cara aos ideais de progresso que herdamos do iluminismo, oblitera as lutas epistêmicas travadas entre cosmopercepções concorrentes que poderiam ter resultado em outros modos de se lidar com o mundo material e cultural, animal e humano. Para exemplificar, sem, contudo, aprofundar esse ponto (já que esse não é meu objetivo aqui e outros de meus artigos o comentam), podemos recorrer aos trabalhos em epistemologia feminista e de história da epistemologia de Elizabeth Potter e Elizabeth Grosz.
Ambas as autoras perscrutam e compreendem os processos de construção da filosofia moderna como projetos epistemológicos profundamente comprometidos com crenças classificatórias negociadas e decididas por comunidades de indivíduos interdependentes (e não por sujeitos epistêmicos solipsistas) e interessados na realização de ideais que não são “puramente” epistêmicos e que assentam sobre corporeidades especificamente marcadas. Para Potter, a ideia de indivíduos interdependentes que compartilham certas perspectivas e missões, ao pensar sobre a possibilidade mesma do conhecimento, é o que também nos permite questionar o modelo moderno-tradicional de agência epistêmica como centrada no indivíduo, de sorte a avançar a comunidade epistêmica como “o agente primário da produção de conhecimento”, uma vez que tudo aqui tem a ver com procedimentos sociais e políticos e com “[...] políticas de gênero, classe, e outros eixos de opressão que são negociados na produção de conhecimento” (Potter, 1993, p. 165, tradução minha).
Note-se que essa compreensão requer localização e corporeidade específica, e o desvelamento dos pressupostos subjacentes às decisões classificatórias tomadas ao longo da história da filosofia e que foram e podem ainda ser androcêntricas e sexistas. Potter faz uma análise de caso de um momento do século XVII, na Inglaterra, quando duas visões concorrentes sobre pesos e molas do ar estavam em disputa, e lança mão dos conceitos de ‘micronegociação’ (em interações epistêmicas e científicas práticas e cotidianas) e de ‘macronegociação’, cujo cerne entre partes dará conta daquilo que “[...] será aceito como conhecimento autoritativo” (Potter, 1993, p. 170) e daquele que será julgado o sujeito legítimo de sua enunciação. Vou supor que a leitora do presente artigo se interesse o suficiente pela pesquisa de Potter, para que leia o seu texto e compreenda os desvelamentos feitos por ela sobre a negociação em curso na modernidade e que responde à pergunta sobre “[...] qual o papel desempenhado pela política de gênero na produção do conhecimento de que ‘a atmosfera ambiente’ tem pressão” (Potter, 1993, p. 174), para chegar à conclusão de que a teoria explicativa vencedora dos mecanicistas sobre os organicistas tinha, entre seus membros, pessoas preocupadas com dissidentes religiosos e políticos em sua própria sublevação burguesa contra uma filosofia natural partícipe de uma política sectária e herética e popular.
O entendimento de Potter sobre essa detalhada história epistemológico-política é de que precisamos reconhecer que, quando dados e evidências parecem concordar com teorias e percepções diferentes e concorrentes, a teoria selecionada será aquela que melhor se adequa à visão de mundo de uma comunidade de interesses compartilhados, com “[...] o significado social mais adequado” (Potter, 1993, p. 182), coletivamente assim decidido.
Elizabeth Grosz concordaria com Potter, nos termos da “sexualização do conhecimento”, e, se a última reconta uma história de negociações e decisões epistêmicas do campo científico interseccionado com turbulências políticas da modernidade típicas dos jogos de poder e controle do capitalismo colonialista em plena expansão, Grosz atribui a essa mesma modernidade uma crise de autorreflexão, “uma crise da razão” como incapaz de conhecer a si mesma, sobretudo porque o conhecimento não é “[...] puramente conceitual ou meramente intelectual” (Grosz, 1993, p. 203), mas uma atividade e uma prática, através da qual “fazemos coisas” com nossos corpos e a partir de nossas posições sexuadas – e ela usa “sexualização” ao invés de “generificação”, mas me parece que, nesse ponto, a história dos corpos sexuados como hierarquicamente classificados em termos epistemológicos segue sendo replicada, mesmo quando aludimos a corpos generificados, independentemente de seu sexo.
Grosz está interessada mais do que Potter nas próprias representações epistêmicas dos sujeitos do conhecimento e de suas implicações para a história da epistemologia – a para a história da filosofia, por consequência. Ela aborda a masculinização do conhecimento, em razão da socialização de valores, significados e poder inscritos nos corpos “masculinos” e tornados imediatamente reconhecíveis para os homens, em seus procedimentos de autorrepresentação irrefletida. Há “[...] uma projeção ponto por ponto dos corpos sexualizados dos homens nas estruturas de conhecimento e, por outro lado, do poder de inscrição que conhecimentos, discursos e sistemas representacionais impõem sobre corpos, para constituí-los como tais” (Grosz, 1993 p. 205, tradução minha). Poderíamos quase sustentar que os corpos investidos de significado e valor social e político alimentam os corpos epistêmicos investidos de significado e valor cognitivo e mantêm circularmente os processos de legitimidade subjetiva e de autoridade autoral. Trata-se, frisa ela, de uma posição que é codificada sexualmente, “[...] na medida em que o acesso a posições de enunciação é sexualmente regulado e que paradigmas e valores teoréticos servem a interesses sexualmente específicos” (Grosz, 1993 p. 205), que é o que a história contada por Potter nos mostra, nas filigranas das negociações e decisões epistêmicas.
Isso não é sem consequências. Se o que governa os interesses teóricos e científicos dos pesquisadores é orientado sexual e generificadamente, os interesses de outras parcelas humanas ficam absolutamente sem representação e produzem um vácuo cognitivo. Contudo, esse é apenas um dos efeitos da masculinização do conhecimento e que diz respeito aos seus produtos, mais do que aos seus procedimentos. O outro efeito, o qual subjaz ainda continuamente aos pressupostos da atividade epistemológica contemporânea, é o vício da própria estrutura epistemológica, que não supõe sequer a possibilidade de um sujeito do conhecimento que não esteja ancorado sobre o corpo ‘masculino’, sobre o significado do ‘masculino’, sobre o valor do ‘masculino’, e sobre a superioridade do ‘masculino’, em todas as frentes discursivas possíveis de se imaginar – e mantenho as aspas simples, para implicar o peso que o vocábulo recebe como conceito e não meramente como adjetivo. Isso faz parte do que Grosz chama de “investimento patriarcal” como um ideal que governa o todo do conhecimento. Quando compreendemos isso, faz todo sentido afirmar que “[...] simplesmente não é possível suplementar os conhecimentos com a adição de mulheres a um conhecimento de outra forma neutro e objetivo: os conhecimentos não apenas ‘esqueceram’ as mulheres. Sua amnésia é estratégica e serve para assegurar os fundamentos patriarcais do conhecimento” (Grosz, 1993, p. 206). Isso apenas corrobora o caráter de excepcionalidade atribuído a perspectivas “femininas” do pensamento filosófico, quando supostamente somadas ou acrescidas à padronização generificada (no masculino) da filosofia, em suas mais variadas formas institucionais.
É, aliás, a institucionalização desses processos epistemológicos que avaliza uma outra camada de exclusão epistêmica aos corpos não conformes ao padrão eligido para a legitimidade cognitiva, intelectual e autoral e para a posição autoritativa de enunciação do saber. Afinal, as mulheres, assim como outros corpos femininizados e menorizados epistemicamente, foram excluídas até muito recentemente do universo acadêmico, científico e filosófico, bem como dos ambientes institucionais, como sociedades, laboratórios, escolas e grupos de pesquisa. As exceções dão conta de um lapso temporal anterior à modernidade (e penso aqui nas escolas médicas do medievo e nos conventos e instituições religiosas, abertas a e às vezes lideradas por mulheres, mas que não possuem o caráter de instituição igualitária, nos termos pretensamente desejados, por exemplo, para nossas academias contemporâneas).
Ora, a institucionalização é tanto um critério de legitimação quanto um espaço privilegiado de formação erudita, técnica e profissional, assim como um espaço privilegiado de negociação e decisão epistêmica entre pares. Quando o aparato epistemológico institucional é colocado como decisivo, não só para a legitimação das enunciações de conhecimento e de sua superior autoridade, mas também para a atribuição de valor histórico e historiográfico, compreende-se perfeitamente a massiva exclusão das filósofas do cânone filosófico e a unilateralidade da história da filosofia. Na expressão de Linda Alcoff e Vrinda Dalmiya, trata-se de um critério autorrealizável (Dalmiya; Alcoff, 1993, p. 223). E não importa que elas estejam tratando do saber médico usurpado pelos obstetras institucionalizados, em detrimento da longa experiência compartilhada das parteiras.
De certa forma, o saber das “velhas esposas”, das parteiras, das comadres filósofas que, por um tempo, puderam se encontrar nas tabernas ou que circularam um pouco pela força da audácia aos portões das universidades até que a modernidade lhes atribuísse as funções unívocas do ambiente doméstico, é o saber que a institucionalização e a masculinização daqueles processos sociais e políticos igualmente responsáveis pelo sucesso do capitalismo colonizador lograram suprimir dos corpos não hegemônicos e silenciar, a ponto de sua aparente inexistência. Daí, obviamente, que a política do conhecimento não é apenas a política do melhor argumento negociado e legitimado comunitariamente, mas é também a política do poder de vida e de morte que explica, entre outras violências, o longo e frutífero fenômeno da caça às bruxas. Silvia Federici (cf. 2017, 2019a, 2019b) é a autora que nos fornece as peças históricas as quais nos ajudam a completar o quebra-cabeças das ausências estratégicas que as epistemólogas têm tentado montar, apesar da incredulidade dos acadêmicos empedernidos do malestream epistemológico.
Em suma, e sintomaticamente, os argumentos, ideias e conceitos concorrentes que se tornaram os argumentos, ideias e conceitos hegemônicos quanto àquilo que constitui o ato de conhecer, o ato de investigar cientificamente, o ato de oferecer provas e evidências, o ato de construir hipóteses e teses, e justificá-las, o ato de realizar-se como sujeito do conhecimento (filosófico ou científico), foram aqueles cujos representantes corpóreos são também política, econômica e generificadamente hegemônicos.
Note-se, porém, que a denúncia das epistemólogas, a qual desmascara a neutralidade e a universalidade do sujeito do conhecimento como, na verdade, profundamente marcadas corporalmente e que desvela, com isso, a masculinização do conhecimento e a prioridade dos valores epistêmicos encontrados em sujeitos corporalmente hegemônicos ou naqueles que replicam os seus procedimentos de justificação, não significa necessariamente nem o desejo purista da absoluta descorporificação (que almejasse uma “verdadeira” neutralidade, universalidade e objetividade do conhecimento) nem a proposição da posição oposta, em termos de valores (a qual almejasse uma “feminização” do conhecimento).
Aliás, o binômio “masculino” versus “feminino” é agudamente insuficiente para retratar o que as epistemólogas estão chamando de localização corporificada e corporificação do conhecimento. Trata-se de uma miríade de experiências e vivências subjetivas, sociais, políticas, culturais, ancoradas sobre corpos que se localizam diferentemente, no mundo, e que se localizam epistemicamente como corpos que sabem. Trata-se, por conseguinte, do reconhecimento da posição de sujeito corpóreo para todo e qualquer sujeito do conhecimento, do reconhecimento de que todo conhecimento é situado e corporificado (e não apenas aquele produzido por corpos que se reconhecem como corpos e não como espíritos pairando sobre a terra), e do fato de que o ‘corpo’ é um conceito fulcral para uma epistemologia e para uma filosofia que privilegia critérios epistêmicos, também em termos de sua correção política e não excludente. É nesse sentido que Donna Haraway pensa sobre situação e corporificação “[...] contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas (Haraway, 1995, p. 22).
E antes que se levante a objeção acusatória de que uma epistemologia desse tipo fica exposta a relativismos que solapariam a possibilidade de um conhecimento objetivo, ou a possibilidade de um processo de justificação para além de crenças particulares, ou a própria noção de ‘verdade’ (que os epistemólogos na prática negligenciam, no escopo de suas pesquisas, como algo demasiadamente metafísico para interessar à teoria do conhecimento), é necessário perceber que ambas as supostas posições, a universalista e a relativista, são irrealizáveis nos termos da localização demandada pelas epistemologias feministas e impossíveis de uma caracterização situacional comprometida com os processos de justificação, em seu horizonte político-epistêmico. Ambas as perspectivas, enfatiza Haraway, são “[...] ‘truques de Deus’, prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, mitos comuns na retórica em torno da Ciência” (Haraway, 1995, p. 24).
O que o conhecimento situado requer não é, como também afirma Harding, mencionada acima, a totalização, a generalização, a universalização ou mesmo a pulverização do compromisso epistemológico com a objetividade por exemplo (entre outros valores), mas um engajamento coletivo e comunitário, de corpo inteiro, por assim dizer, com uma objetividade mutuamente construída, balizada e constantemente corrigida:
Mas é precisamente na política e na epistemologia das perspectivas parciais que está a possibilidade de uma avaliação crítica objetiva, firme e racional. Assim, como muitas outras feministas, quero argumentar a favor de uma doutrina e de uma prática da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver (Haraway, 1995, p. 24).
Poderíamos sustentar que nossas práticas epistemológicas e filosóficas seriam tanto mais objetivas e robustamente justificadas, se abertas ao escrutínio das experiências epistêmicas corporificadas de uma multidão de sujeitos localizados em contínuo diálogo, em contínua negociação conscienciosa e honesta, e em construção em rede. O ganho não é apenas político, no sentido de uma política-epistêmica engajada com a pluralidade, com a democracia e com a tentativa de correção ou, pelo menos, de reparo das injustiças epistêmicas e epistemicídios de longa data (as quais Sueli Carneiro (2005, 2023) denuncia, a partir especificamente do Brasil fundado sobre as práticas colonialistas racistas e sexistas), mas é também um ganho epistêmico e epistemológico, no sentido da disposição de melhores explicações sobre o que significa conhecer o mundo e o que significa tê-lo explicado, segundo as histórias epistemológicas dominantes. Em ambos os sentidos, trata-se, para todos os sujeitos envolvidos, de se “viver melhor” no mundo “[...] e na relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão que todas as posições contêm” (Haraway, 1995, p. 15). E, se esse horizonte soa incômodo para as pessoas que ocupam as cátedras filosóficas institucionais, é porque nunca foi sobre conhecimento ou construção epistemológica, contudo, sempre foi sobre o poder e o privilégio da enunciação irresponsabilizável.
Diante de tudo isso, a resposta acerca da generificação do conhecimento outorgada pelas epistemologias feministas só é positiva, porque compreende o ‘gênero’ como um dos traços de alocação epistêmica corporificada entre outros e porque, em seus procedimentos de denúncia e crítica, desvela o inescapável entrelaçamento entre subjetivação epistêmica e política, afirmando a parcialidade e localização de toda e qualquer manifestação filosófica, resistindo à especificidade e excepcionalidade do pensamento “feminino” face à normalização do ‘masculino’.
Note-se que, em todo esse desvelamento, nada ainda foi referido sobre diferenças explicitamente sexuais.
2 “Ser artigo de conteúdo filosófico produzido por autora/as ou que o primeiro autor seja do sexo feminino”
Os espaços de publicação e publicização de ideias abertos às filósofas são sempre bem-vindos, sobretudo devido aos mecanismos institucionais de exclusão mencionados acima, os quais seguem informando metodologias e práticas autorais ancoradas sobre os princípios da epistemologia tradicional, em que o sujeito autoral deve replicar o suposto sujeito epistêmico neutro e imparcial, inclusive nos termos gramaticais de enunciação – primeira pessoa do plural ou, significativamente, sujeito oculto, por exemplo. Eu voltarei a abordar as práticas feministas (mas não “femininas”) situadas e localizáveis da atividade e da escrita filosófica abaixo, mas, neste ponto, eu gostaria de avançar algumas perguntas sobre a produção textual das filósofas como autoras, diante dos aparatos de avaliação duplo-cego de nossas revistas. Como fazer valer o critério do anonimato, em todos os seus detalhes e, ao mesmo tempo, contemplar a autoria de filósofas? Se, no caso da presente chamada, a motivação explícita é a seleção de autoras, podemos imaginar que uma pré-eleição de nomes dos textos submetidos está em curso para o futuro encaminhamento aos avaliadores no formato duplo-cego – e isso pareceria resolver o problema, pragmaticamente.
Todavia, duas outras questões permanecem, e a primeira delas exigiria um artigo exploratório à parte, que eu apenas mencionarei en passant: caso o sujeito autoral deixe transparecer o seu gênero, isso ainda conta como anonimato? E caso o gênero manifestado não seja masculino, qual é o peso atribuído de antemão à autoridade da autoria pelos avaliadores? Como os vieses de gênero incidem sobre as avaliações duplo-cego? O trabalho de Miranda Fricker (2023), por exemplo, nos ajuda a compreender as implicações da marcação social nos processos de juízo sobre autoridade epistêmica, credibilidade do testemunho, estereotipização e injustiça epistêmica, e não darei esse passo argumentativo aqui, perguntando-se apenas o quanto minha própria autoria transparentemente feminista e expressa em primeira pessoa com gênero gramatical feminino contará como critério desabonador de minha escrita, ao juízo dos avaliadores. No entanto, como a terceira parte da chamada para publicação reserva um ponto para questões de gênero ou feminismo, creio que eu possa estar justificada em minha autoria e na autoridade de minhas próprias reflexões sobre generificação do conhecimento, a partir das epistemologias feministas.
A outra questão diz respeito à enunciação quase biológica, presente no título dessa subseção e que não procede à diferença entre ‘sexo’ e ‘gênero’, agregando conceitualmente a autoria textual filosófica aos aparatos genitais dos corpos das filósofas e excluindo imediatamente os textos escritos por filósofas transgênero.
Dados os longos debates das teorias feministas e dos estudos de gênero, já não se usa mais “sexo feminino” e “sexo masculino” para caracterizar a situação social e os traços de socialização generificada, somados aos corpos que possuem aparatos genitais específicos. Não precisamos nem mesmo chegar às afirmações de ab-rogação do sexo biológico e das diferenciações biológicas e sexuais, ou ao apagamento dos processos de hierarquização dos “sistemas de sexo/gênero” (conforme expressão de Gayle Rubin), para compreender a confusão e a redução operada pela expressão “sexo feminino”, a fim de tratar da pessoalidade e da subjetividade da autoria textual, da autoridade filosófica e dos significados apensados à intelectualidade de filósofas.[7] É quase como se pudéssemos reelaborar o critério da chamada, no sentido de que “o primeiro autor seja uma fêmea”, e nos perguntar pelas implicações para a legitimação do pensamento filosófico dadas com a informação do aparato genital da autora.
A diferenciação biossexual de nossa animalidade humana manifesta as características anatomofisiológicas na trama de nossas funções reprodutoras da espécie, mas cultural e historicamente não passa como mera diferença funcional equitativa. Às diferenças sexuais são incorporadas diferenças comportamentais, psicológicas, emocionais e intelectivas, as quais se desdobram em diferenças de função social e se replicam “[...] no corpo social como um todo” (Mathieu, 2009, p. 223). O modo como essa diferença atravessa e incide sobre os traços não biológicos da vida humana é tão profundamente arraigado, em nossa cultura ocidental, que ela é pensada como “uma divisão ontológica irredutível” e uma “coincidência” integral e irrestrita entre sexo e gênero. Os supostos “desvios” de conduta e de ruptura da identidade sexo-gênero são explicados como patologias e corrigidos ou punidos social e politicamente. Essa gramática ideal e factual do gênero, salienta Nicole-Claude Mathieu, “[...] ultrapassa por vezes a ‘evidência’ biológica da bicategorização – aliás, ela própria problemática – conforme o demonstram a complexidade dos mecanismos de determinação do sexo e os estados intersexuais” (Mathieu, 2009, p. 223-224). A conflitante relação entre complexidade e multiplicidade corpórea e binarismo sexual é apenas um dos problemas da ontologização e essencialização do gênero sobre o sexo.
Um outro aspecto problemático diz respeito à maneira como as próprias diferenças sexuais são construídas socialmente e informadas por representações estanques de sexo e sexualidade, em função de padrões heterossexuais hierarquizados que comportam encaixes performáticos, os quais transbordam da corporeidade para o epistêmico. Assim, a inferiorização das mulheres como seres incapazes de cognição, de arguta racionalidade, de argumentação sistemática e autonomia reflexiva deriva de uma longa cadeia de explicações supostamente baseada na factualidade de sua biologia faltante (pensemos em Aristóteles e na caracterização da fêmea como um macho incompleto) ou de sua experiência vital eminentemente mais “biológica” do que “racional”, influenciada pelos humores incontidos de sua natureza, dos quais, se reconhece, infelizmente a humanidade não pode prescindir, se desejar seguir como espécie. Isso tem a ver com a afirmação de que talvez “[...] o próprio construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto o gênero” (Butler, 2017, p. 27 – embora eu não tenha certeza sobre a conclusão subsequente de Butler, de que a distinção entre sexo e gênero se torne com isso “absolutamente nula”).
De certa forma, é isso também o que significa dizer que “[...] o gênero constrói o sexo” (Butler, 2017, p. 226), retrospectivamente, e pela clivagem normativa do conceito de ‘mulher’ como uma pessoa do “sexo feminino”, cuja particularidade é sempre definida pela generalidade do “sexo masculino”. É isso ainda o que quer dizer Simone de Beauvoir, com sua frase tantas vezes malcompreendida: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Evidentemente, a categorização sexual amalgamada aos traços de gênero cumpre, assim, uma função social no quadro dos sistemas políticos e econômicos de poder e dominação, e a distribuição desigual dos aspectos epistêmicos sexualmente qualificados é seguida de perto pela distribuição desigual de poder, amplamente exemplificada ainda pela divisão hierarquicamente valorizada do trabalho de reprodução e de produção social.
Nesse sentido, obviamente, a materialidade da sexualidade importa para a compreensão das opressões vivenciadas e levadas a cabo pelo sistema cis-heteronormativo, e uma parte fundamental do trabalho feminista é depreender da identidade sexo-gênero também a materialidade da exploração dos corpos com aparatos genitais “femininos” como corpos reprodutores, e da exploração de outros corpos femininizados como disponíveis ao abuso, à escravização ou à punição por aquilo que configura, nesse caso, uma transgressão. No entanto, uma outra parte importante do trabalho feminista é desprender a identidade sexo-gênero e perscrutar a história da socialização dos corpos, a ponto de seu engessamento. Às pessoas nascidas fêmeas humanas se atribui um tipo de feminilidade carregada por conceitos adjacentes típicos, o mesmo valendo para as pessoas nascidas machos humanos. É a gênero, neste ponto, que estamos nos referindo. E aqui a afirmação de Beauvoir reaparece, mas ela é ainda enunciada na “generalidade” da mulher branca europeia.
Se, contemporaneamente, Judith Butler levou a instabilidade da categoria “mulher” às últimas consequências, ela já havia sido interpelada por Sojourner Truth, no século XIX, ao escancarar o racismo das sufragistas estadunidenses brancas. A sua pergunta que ecoa hoje, com as feministas negras – “e eu não sou uma mulher?” – dá conta do valor superlativo atribuído às características do “feminino” e da feminilidade e dos ideais normativos aliados à classe, raça e gênero. E é também por isso que Butler recusa as “[...] ficções ‘fundacionistas’ que sustentam a noção de sujeito” (Butler, 2017, p. 20) ou a aposta (ainda que política) numa identidade comum, sob o termo ‘mulheres’. Creio que, para Butler, assim como para Harding e Haraway, num outro registro, trata-se de superar a ideia de que a categoria ‘mulheres’ está aí como sujeito do feminismo, porque esse não se interessa apenas por aquele corpo sexualmente diferenciado como “feminino” e nem mesmo apenas pela generificação sobressalente ao sexo, mas também pela caleidoscópica produção da subjetividade multiplamente interseccionada:
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendem a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas (Butler, 2017, p. 21).
Discursos e performances sociais regem o que conta como adequação e inadequação do gênero sobre o corpo sexual, dentro do sistema cis-heteronormativo, e Butler chega a pensar no próprio comportamento dos corpos sexuados como performativo – dado o seu longo aprendizado e assimilação de estilos, pelas pessoas partícipes de nossa cultura. É essa incorporação performativa de signos e discursos realizada em alguma medida por todas nós que permite a reprodução contínua daquelas pseudoconclusões que se desembrulhariam dos corpos aos caráteres epistêmicos e que informam as expressões estanques da filosofia acadêmica como expressões persistentemente dualistas – como aquela da primeira seção e como esta sobre a autoria sexuada do texto filosófico.
Entretanto, é também a brecha da dissidência e a conscientização ou mesmo a exacerbação da performance – cuja exibição exemplar, para Butler, é aquela das drag queens – que nos permitem ultrapassar os binarismos e as apressadas conclusões (sempre ainda binárias) sobre a especificidade do pensamento enunciada por corpos específicos à parte da masculinidade e sobre a identidade sexo-gênero ou a identidade sexo-episteme. Possibilitam-nos, logo, desestabilizar a categorização, a normalização “[...] da contingência radical da relação entre sexo e gênero” (Butler, 2017, p. 238) e de sua consequente hegemonia epistemológica. À desestabilização se segue “[...] um futuro aberto de possibilidades culturais” (Butler, 2017, p. 164), que não faria sentido re-estabilizar ou reestruturar em qualquer alternativa definitiva ao binarismo e novamente totalizante, e é por isso que podemos pensar em “[...] possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória” (Butler, 2017, p. 244).
É verdade que a trama eminentemente discursiva e a atitude parodística de Butler parecem esvaziar por completo o corpo de sua materialidade, e não estamos todas de acordo sobre o que fazer com a instabilidade e a transitoriedade características desses mecanismos de fabricação e de subversão. Mas eu gostaria muito rapidamente de sugerir, tendo as questões mencionadas acima acerca do conhecimento situado como pano de fundo, que podemos aludir a ‘materialidade’, a partir da localização corpórea singular e experiencialmente diferenciada da subjetividade – que é também aquela que, em sendo atravessada pelo gênero e por outros traços de situação, está, porém, continuamente aberta à transfiguração e à metamorfose. Essa instabilidade não precisa ser incômoda para nossas reflexões epistemológicas, já que a vida cognitiva vivida com o ‘corpo’ como ponto epistêmico fulcral não é a vida vivida pelo sujeito monádico da epistemologia canônica, mas aquela que é vivida de modo interdependente com outros corpos como ‘corpos que sabem’. É quase como se pudéssemos garantir, em termos de performance, que o ensaio epistêmico é coletivo e mutuamente coordenado.
Das expressões presentes nesta seção, restaria saber o que é ou o que conta como conteúdo filosófico, quando produzido por “autora”, mas essa pergunta pode ser adequadamente contemplada pela terceira parte deste artigo.
3 “Possuir temática de conteúdo feminino, por exemplo, retratando alguma pensadora como tema principal ou cujo tema seja voltado, por exemplo, a questões de gênero ou feminismo”.
Há várias perguntas possíveis à expressão desse item da chamada, todavia, todas elas giram em torno de saber o que exatamente se quer dizer com “conteúdo feminino”. No que se segue, são minhas perguntas que oferecerão uma argumentação de objeção à especificidade desejada como critério de aceitação para publicação no dossiê temático.
O que é um “conteúdo feminino”?
Trata-se de um conteúdo ligado ao “sexo feminino”, tal como mencionado no item anterior da chamada? Isso significaria então dizer que é um conteúdo ligado àquele tipo de corpo equipado com aparato genital “feminino”? Isso incluiria questões de saúde sexual, de vivência da sexualidade experienciada com esse aparato, questões afins à reprodução humana e outras questões anatomofisiológicas, como desejo sexual, variações hormonais e gravidez? Mas como essas questões seriam validadas como questões filosóficas, a partir dos padrões tradicionais típicos de legitimação da filosofia acadêmica? Note-se que essa última pergunta não significa uma recusa, de minha parte, de que as questões mencionadas não possam ser tratadas com base em uma perspectiva filosófica, que é, na verdade, algo que a filosofia feminista faz – embora não porque considere isso uma temática “feminina”, senão porque nossa vida ética, política, social e epistêmica é atravessada por experiências situacionais influenciadas por esse tipo de corporeidade, cuja localização não é excepcional, conforme explicado na primeira seção deste texto. A última pergunta tem a ver, na verdade, com os padrões epistêmicos e metodológicos ancorados sobre aquelas características de neutralidade e universalização igualmente questionadas precedentemente e que não consideram temas anatomofisiológicos desse tipo como propriamente filosóficos. Quando muito, poderiam ser temas tratados como interdisciplinares, mas, mesmo assim, apenas por aqueles avaliadores mais generosos e abertos à escuta feminista. Entretanto, se é disso que trata o “conteúdo feminino”, caberia ainda perguntar se ele diria respeito aos corpos equipados com aparato genital “feminino”, sem distinções adicionais de raça, classe ou outras distinções cosmoperceptivas.
Ou se trata de um conteúdo afeito ao gênero “feminino”, tal como socializado na cultura? Ao modo como fêmeas humanas são socializadas como “mulheres”? Significaria isso afirmar que é um conteúdo ligado às mulheres? Mas se é disso que se trata, esse conteúdo diria respeito às mulheres sem distinções adicionais de raça, classe ou outras distinções cosmoperceptivas? Estariam as mulheres transgênero inclusas no vocábulo sob consideração? Significaria isso dizer que se trata dos modos como a socialização generificada atribui às mulheres, guardadas as complexificações sobre os tipos de “mulheres” a que estamos nos referindo, não apenas as características psicológicas, emocionais e epistêmicas da sensibilidade, parcialidade, receptividade, cuidado, afetuosidade, dedicação, mas também as funções sociais adequadas a essas características e que destinam as mulheres e outros corpos femininizados a tarefas mais afins à reprodução da vida? A socialização e a construção institucional da feminilidade é um “conteúdo feminino”? Esse tipo de conteúdo poderia ser universalizado como conteúdo filosófico? Ou bem, esse tipo de “conteúdo feminino” poderia ser universalizado como o é o “conteúdo masculino”?
No entanto, o que viria a ser um “conteúdo masculino”? Teria ele a ver também com o aparato genital específico daquelas pessoas que nomeamos como pertencentes ao gênero masculino? Aquelas pessoas que são machos humanos que socializamos como “homens”? Isso incluiria homens transgênero? Como se valida epistêmica e metodologicamente um “conteúdo masculino” como “conteúdo filosófico”? Qual seria a especificidade desse “conteúdo masculino”, a ponto de requerer a rotulação ou a qualificação do gênero?
Se essas perguntas finais soam absurdas ou sem sentido, por que não soa estranha uma expressão como “conteúdo feminino”, numa chamada para publicação de textos filosóficos? Por que não vemos chamadas à publicação que especificam temáticas de “conteúdo masculino”? Ou de “conteúdo filosófico masculino”? O que seria, afinal, um “conteúdo filosófico feminino”? E uma questão adjacente ligada ao item da seção anterior poderia ser assim formulada: o “conteúdo filosófico feminino” pode ser produzido apenas por autoras? Ou apenas por fêmeas humanas? Uma pista para uma resposta positiva a essas duas últimas perguntas, por parte da chamada, e que dicotomiza a tarefa filosófica assim como as tarefas sociais e de trabalho são dicotomizadas culturalmente, pode ser vislumbrada na exemplificação do que parece estar pressuposto no enquadramento da temática de “conteúdo feminino”. A exemplificação aparece após conjunção coordenativa explicativa e dá conta de três possibilidades: retratar uma pensadora, tratar de questões de gênero ou tratar de questões feministas.
Nesse sentido, o significado do “conteúdo feminino”, para além das duas perspectivas aventadas acima, parece ter a ver com os trabalhos que as filósofas têm efetivamente levado a cabo, nos anos recentes, tentando fazer justiça àquelas pensadoras que o projeto canônico, por meio de seus investimentos patriarcais, silenciou, apagou ou relegou ao plano das coadjuvantes. Mas, se temos empreendido ações de regeneração e procedido a um impressionante inventário de filósofas do passado e do presente, para a construção de novas narrativas historiográficas e de uma história feminista da filosofia, também por razões de representatividade, mas sobretudo por razões de correção epistêmica, essa não é uma tarefa cujo encaixe temático seja “feminino” ou, alternativamente a essa feminização tópica, exclusivamente realizável por filósofas. Por que o estudo e o retrato de uma pensadora constituiria um “conteúdo filosófico feminino”? No ponto oposto dessa percepção dualista, poderíamos nos perguntar se o estudo e o retrato de um pensador constitui um “conteúdo filosófico masculino” pace os propósitos de universalização dos filósofos que compõem o cânone. Isso significa perceber, novamente, que o pensamento das filósofas é generificado e especificado por oposição ao pensamento dos filósofos, o qual é tomado como geral e a-gênero, daí a constatação da estrutura e institucionalização masculinizante da filosofia, tal como tenho observado desde o início deste texto.
Obviamente, se a consideração de pensadoras não é uma temática “feminina”, ela é, no entanto, uma empreitada feminista e levada a cabo por quem quer que compartilhe atitudes e posicionamentos concordes a uma filosofia mais plural, equânime, democrática e justa, que venha inclusive a fortalecer epistemicamente as reflexões e ações filosóficas abertas ao escrutínio coletivo. É igualmente por isso que as duas últimas possibilidades explicativas oferecidas no item em pauta não são de incumbência exclusiva das filósofas, se compreendermos que é também isso o que a adjetivação do gênero quer, no fundo, dar a entender. Todavia, por que questões de gênero e feminismo constituiriam “conteúdo feminino”? A ideia de que a filosofia feminista, em suas várias áreas de pesquisa, é prioritária às filósofas reproduz os mecanismos de divisão do trabalho do mundo social, e concede às filósofas, subentendendo-se aí o gênero “feminino”, ou às “mulheres”, um estreito espaço de autorização e de autoridade reflexiva que supostamente diria respeito apenas a nós mesmas, enquanto outorga aos filósofos a amplitude do universo público da palavra e da reflexão cujo valor epistêmico e filosófico é hierarquicamente superior ao engajamento “interessado” do feminismo. Essa ideia também desresponsabiliza os filósofos da pesquisa sobre filósofas e sobre feminismo, mas responsabiliza a si e pelas implicações daí advindas para a manutenção de uma filosofia patriarcal excludente.[8] Além disso, a ideia de que questões de gênero constituem “conteúdo feminino” ou, ainda, que sejam mais adequadas ao pensamento filosófico das filósofas reitera, sempre de novo, a suposição implícita de a-generidade daquela filosofia que não é realizada por filósofas ou da filosofia canônica como um todo.
Considerações finais
Depois do procedimento de análise crítica da linguagem e dos conceitos presentes nos requisitos listados para o aceite das publicações dessa chamada, eu gostaria de finalizar este artigo com a advertência de que o caráter imprescindível da filosofia feminista e dos estudos de gênero não diz respeito à mera inclusão de pautas e temáticas, de nomes e de autorias no panteão hagiográfico da filosofia, nem à concessão tokenista da representatividade, contudo, diz respeito à convocação à reflexão sobre os modos como nossa linguagem filosófica e os seus suportes epistemológicos de fundo seguem ainda as sendas dicotômicas valoradas desigualmente. Diz respeito à correção de vieses entranhados em palavras ontologizadas em percepções informadas por posições de mais ou menos poder e privilégio. Conscientização e escuta têm igualmente a ver com esse caráter imprescindível dos estudos feministas e de gênero que lidam também com o resguardo frente a expressões escorregadias.
The unique a-genderness of the masculinizing philosophy
Abstract: The aim of this paper is to review the terms of a call for thematic dossier and critically answer some questions raised by its language and by some of the concepts present in the requirements listed for the acceptance of publication. Thus, I begin by asking about the (linguistic-political) meaning of a gendered philosophical thought, taking as a critical reading key part of the vast production of feminist epistemologies to insist on the partiality and location of any and all philosophical manifestations against the unique specificity of the feminine gender concerning epistemic authority and textual authorship in philosophy; then, I deal with the distinction between “sex” and “gender” to correct a quasi-biological enunciation about what it means to write philosophically; and, finally, I raise some questions about supposedly gendered philosophical “contents” and about the interests of feminist philosophy and feminist history of philosophy in denouncing the ways in which our philosophical language and its underlying epistemological assumptions still reproduce dichotomous paths valued unequally.
Key-words: Women philosophers. Feminism. Gender. Feminist epistemologies.
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Recebido: 05/12/2023 – Aprovado: 02/05/2024 – Publicado: 12/08/2024
[1] Departamento e PPGFIL da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4342-4327. E-mail: janynesattler@yahoo.com.br.
[2] Quero expressar meu profundo agradecimento às pessoas participantes do Grupo Germina e do Projeto Uma Filósofa por Mês, que leram e discutiram este texto comigo anteriormente à sua publicação e fizeram importantes apontamentos e correções.
[3] Sobre os casos implícita ou explicitamente machistas eu não creio que valha a pena gastar a linguagem.
[4] Peço à leitora e ao leitor que atente para o fato de que o uso que faço dos adjetivos “masculino” e “feminino”, bem como daquelas derivações normativas e normatizantes (‘masculinizante’, ‘masculinista’, ‘femininizada’), é avesso a quaisquer tendências essencialistas, como espero deixar à mostra, na segunda seção deste texto. Daí também o meu insistente uso de aspas duplas. Nenhuma dessas qualificações deve ser tomada como natural ou biológica, mas como a manifestação de complexas camadas de historização, socialização e construção de significados generificados. A atribuição adjetiva de gênero não é intrínseca aos seus respectivos gêneros.
[5] Para perceber a insuficiências, conferir o retrato possibilitado por coleta de dados. Por exemplo: Araújo (2015, 2019).
[6] Realizo em outro lugar uma argumentação sobre o conceito de “corpo” como epistemologicamente axial, a partir de um arcabouço wittgensteiniano com conexões teóricas feministas tais como esta de Harding e que torna esvaziados supostos dilemas de primazia entre mente e corpo, em função de nossas respostas a “corpos vivos”. Não posso me deter sobre esse ponto aqui, mas ele indica uma tentativa de superação das dicotomias nas quais tantas vezes caímos, à revelia mesmo de nosso próprio vocabulário filosófico. Ver Sattler (2022).
[7] Obviamente, a primazia do conceito de ‘gênero’ de que trato aqui se refere à indicação autoral das autoras do presente (contemporâneas dos debates feministas atuais), as quais são o objeto de consideração da chamada. Isso não significa revogar o uso feito historicamente do conceito de ‘sexo’ por filósofas e filósofos localizados em seu próprio momento conceitual específico, sobretudo quando se trata de análise contextualizada de uma época anterior à vigência do termo ‘gênero’.
[8] O que vai de par com a incipiência dos estudos acadêmicos sobre masculinidades e os seus papéis que o entranhamento desse conceito na intelectualidade desempenham, na perpetuação dos mecanismos de exclusão epistêmica.