Comentário a “Existo, logo o mundo pensa: Whitehead, Latour e a estética científica”: medindo a verdade

 

Julio Bezerra[1]

 

Referência do artigo comentado: PINHO, Thiago. Existo, logo o mundo pensa: Whitehead, Latour e a estética científica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e0240032, 2024.

 

“A filosofia não pode excluir nada", disse, certa vez, Alfred North Whitehead (1966, p. 2), Não excluir nada é considerar a multiplicidade das dimensões, as quais compõem uma experiência aqui e agora, sem tirar nada por razões a priori, quaisquer que sejam as desqualificações que possam ser aplicadas a ela. Não excluir nada é resistir aos termos das alternativas que tão inexoravelmente parecem se impor à mente, levando-nos a falsas escolhas e oposições ilusórias. É rejeitar o direito de desqualificar e jamais negligenciar “a multifariedade do mundo”. Bruno Latour é, neste e em alguns outros sentidos, whitehediano. Tudo lhe interessava – de Ramsés II aos Cosmos, de Louis Pasteur à Costa do Marfim, da teologia à metafísica. Thiago Pinho (2024) tem toda a razão. Latour é um “fundador de discursividade”, uma espécie de vórtice ou prisma. E a filosofia, retomando Whitehead (1966, p. 30-31), “[...] nunca volta à sua velha posição, depois de ser sujeita ao choque de um grande filósofo”.

Latour talvez ainda seja mais conhecido como uma das figuras importantes dos estudos científicos: campo interdisciplinar que examina as práticas de cientistas e instituições e suas implicações culturais. Ele também costuma ser lembrado como criador da teoria ator-rede, a qual teve um impacto significativo nas ciências sociais e nos estudos culturais. De uns tempos pra cá, foi o Latour metafísico que começou a falar mais alto. É o que Graham Harman (2009) não nos deixava esquecer: a obra do francês, comparada pelo filósofo americano a Leibniz, Hume, Kant e Whitehead, se faz a partir de um arcabouço metafísico descentrado, associativo e com uma queda incorrigível pelo estético.

Pinho[2] não deixa de dialogar com esses Latours, mas é a faceta mais recente do francês que o move, nesse artigo. Latour, diante do cataclismo ambiental e o surgimento de novas direitas, deu outra volta no parafuso. Seria possível explicar a disseminação do negacionismo e de outros conspiracionismos que ameaçam nosso tecido social e até mesmo o nosso planeta, por ignorância ou burrice? Não, responde Latour. É de uma ampla desconfiança em relação à ciência e à verdade por ela produzida de que estamos falando. Logo a ciência, que, em sua modernidade, se afirmou por um método que distinguia a verdade da ficção – pelo menos em certas situações bem definidas. Esse método alimentou uma arrogância epistemológica que autorizou a ciência a explicar tudo, a declarar ilegítimas todas as outras formas de explicação. Esse imperialismo científico agora se volta contra a própria ciência: “O negacionismo faz a ciência provar de seu próprio veneno, sentir na pele o perigo de ter seu mundo destruído por aqueles que o acusam de falso” (Costa, 2021, p. 42).

“Como conciliar uma crítica à ciência, em tempos nos quais a criticidade não é mais a exceção, mas a regra?”, continua Pinho (2024, p. 03), fazendo dessa questão latouriana seu ponto de partida. Os estudiosos da ciência, salienta o francês, não a veem historicamente o suficiente – fazê-lo seria contradizer a ciência como reveladora da verdade profunda do universo. Ele nos desafia, então, a pensar a ciência em sua historicidade e na especificidade de suas práticas, a rejeitar suas reivindicações transcendentes, seu status fundacionista, seus gestos espistemicidiosos. A ciência não é meramente uma “construção social” arbitrária, mas sua reivindicação de autoridade não é ilimitada. Ou melhor, a ciência produz verdades, mas não a Verdade.

Não se trata de desmerecer o conhecimento científico e/ou colocar todas as formas de explicação e suas reivindicações "em pé de igualdade”, como Isabelle Stengers (1997 e 2003) não se cansa de dizer. É, antes, se recusar a jogar o jogo que criou o problema. Verdades são produzidas por meio de vários processos e práticas. Dizer que a própria ciência produz verdades é também dizer que não faz sentido perguntar até que ponto elas são “descobertas” ou “inventadas”. Latour encontra uma grande aliada em Stengers. Ambos se recusam a pensar segundo a disputa entre o realismo (“os fatos da ciência existem independentemente de nós”) e um certo construtivismo (as entidades científicas são “socialmente construídas”), e defendem uma filosofia não fundacionista. Fatos científicos nunca se sustentam sozinhos. Eles não existem isolados, ao contrário: fatos demandam "[...] um mundo compartilhado, de instituições e de uma vida pública” (Latour, 2020b, p. 33) e estão sempre saturados de interpretações, ideias e múltiplos vínculos.

Latour, Stengers e Pinho não veem como opostos o “real” e o “construído”. Mais do que isso. Talvez, quanto mais algo for “construído”, quanto mais afetar e for afetado, maior será sua fricção, sua negociação mais ampla, sua veridicidade mais real. Se disputa pela verdade não deve se fazer somente no registro da razão, o valor de uma asserção, conceito ou teoria poderia então ser medido (Cassin, 2018) de acordo com as mobilizações e engajamentos que ela é capaz de produzir. É aceitar o desafio proposto por William James, em Pragmatism and Humanism, sobre as ideias, teorias e modos de intervenção tomados como acréscimos ao universo em formação: “[...] com nossos acréscimos, ele cresce ou diminui em valor? Os acréscimos são dignos ou indignos?” (James, 1975, p. 122-123).

É seguindo por esse caminho, retomando as noções de “importância”, em Whitehead, e matters of concern, em Latour, que Pinho (2024) esboça respostas a outra de suas perguntas: “[...] qual o papel da ciência, no mundo atual?” Ora, é não conceder à realidade “[...] a existência a-histórica, isolada, inumana, fria e objetiva que lhe foi atribuída" (Latour, 2001, p. 28). É abraçar a emaranhada “socialidade” deste mundo e enveredar por uma aventura sem árbitro final. É pensar a ciência como criação – em vez de fundamento. Suas criações introduzem novidades no mundo. Elas fazem a diferença.

É nesse momento que Whitehead se faz mais uma vez presente. Embora ele não tenha publicado nenhum livro ou artigo estritamente sobre estética, toda a sua obra pode ser entendida sob essa ótica, pois a noção de sentimento é da maior importância para Whitehead. Segundo ele, as entidades interagem “sentindo” umas às outras, mesmo na ausência de consciência e manipulação. Tudo o que acontece no universo é, portanto, em certo sentido, um episódio de sentimento. A experiência estética como um fato do universo material como tal. A experiência estética como imanente ao mundo, não acima dele, refletindo sobre ele. As coisas se encontram esteticamente e não apenas cognitivamente ou praticamente. Esses encontros não podem ser inteiramente conhecidos; eles nunca são claros e distintos, mas sempre nos deixam “[...] presos a vagos sentimentos de influência” (Whitehead, 1978, p. 176). Sentir algo significa ser afetado por esse algo. E a maneira como a entidade é afetada, ou alterada, é o próprio conteúdo do que ela sente. Os encontros na natureza devem seu significado à intensa experiência de sentimento que desestabiliza o pensamento e reorienta a percepção e a compreensão conceitual. Estética, estética, estética.

Para Latour e Pinho (2024), essa compreensão implica compromissos variados, por parte dos cientistas, no sentido de honrar a experiência inventiva, arriscada, hesitante e dramática que o pensamento constitui. O pensamento deve ter como objetivo intensificar essa relação com os outros na experiência e, por meio dela, participar ativamente do processo criativo do mundo real. Pensar é, então, tomar parte em um “evento-pensamento”. É ter ideias e ser tomado por elas. As ideias são o que pensamos e o que nos faz pensar. Uma maneira de escrever não é apenas um adorno para as ideias subjacentes. As próprias ideias só podem surgir, quando lhes é dada a forma apropriada de expressão. Pô-las em movimento é também e necessariamente nos sujeitarmos a elas, implicar-nos em um jogo no qual somos forçados a hesitar e ponderar, no qual decidimos, de forma arriscada e dramática, o que pode ser pensando, enunciado, tornado importante – e o que, por sua vez, neste mesmo movimento, permanece nas sombras. 

É como Stengers enfatiza: a aventura de Whitehead não visa a nos despertar e a nos fazer sair da caverna. É um sonho, uma narrativa: aprender “dentro” da caverna platônica, junto com aqueles que vivem e discutem dentro dela. Não na esperança de que as falsas aparências gradualmente revelem seus segredos, entretanto, na esperança de que essas “[...] aparências, se apreciadas por sua importância afirmativa, possam ser articuladas em contrastes fabulosos" (Stengers, 2014, p. 518). Stengers está certa. Devemos lutar para transformar contradições em contrastes e ter a possibilidade de que talvez exista outra saída, que possamos descobrir como coexistir sem contradizer ou denunciar um ao outro. Devemos ser capazes de sentir a importância de possibilidades não realizadas. O que precisamos ativar é um pensamento comprometido com um possível.

Fecho, pois, com Latour, Stengers, Whitehead e Pinho: sair do buraco em que nos metemos nos exigirá recusar insistentemente em confiar o nosso futuro aos mesmos mecanismos e forma de pensar que nos trouxeram até aqui. Esse caminho, no entanto, não se dá no curto prazo. Não basta desacreditar a “bifurcação da natureza” e jogar nossas heranças modernas “pra escanteio”. É preciso estar atento e forte ao Kant que mora em todos nós. Que tomemos cuidado para não falarmos de Latour, Whitehead ou Stengers de uma forma kantiana, ou seja, através de uma reflexão sobre os limites da razão. Não é nada fácil. Pinho (2024) parece por vezes escorregar nisso – bem como eu, aqui nessas mesmas páginas. É o dilema de Steven Shaviro (2015) que se tornou também meu: “Será possível abordar todas essas questões de forma imanente, sem trazer algum tipo de crítica kantiana de volta à cena”?

Especular é o que nos resta. E assim, “puxando a sardinha pro meu lado”, permitam-me mais uma breve digressão a esse já tortuoso comentário. Venho do cinema e a ele agora retorno, pois o cinema ainda há de ter seu lugar, na virada especulativa. O cinema nos oferece justamente um “it thinks!” jamesiano e transforma a própria noção de ideia. Ele consiste justamente em criar novas ideias sobre o que é uma ideia. O cinema ilumina a questão do sentido do mundo, sem que isso se refira a nada além deste mundo. É sempre meio-dia em um filme, quando o dia se divide em dois, quando a matéria é livre e sem obstáculos. O cinema “bagunça” noções como finito e infinito, substância e acidente, alma e corpo, sensível e inteligível. É uma relação íntima entre artifício e realidade. É a semelhança de um ícone e a impressão de um índice. É a luz física da fotografia e a luz mágica e espiritual do projetor. Uma invenção científica e uma atração circense. É a plasticidade do digital, a agência não humana da câmera e o sistema binário dos computadores. O cinema é a possibilidade da presença de pura duração, na construção temporal, de novas relações entre continuidade e descontinuidade. Marca uma nova relação entre aparência e realidade, entre uma coisa e sua dupla, entre o virtual e o real. "O cinema é um paradoxo", diz Alain Badiou (2013, p. 207).

 

Referências

BADIOU, Alain. Cinema. Cambridge: Polity Press, 2013.

CASSIN, Barbara. Quand dire, c'est vraiment faire. Paris: Fayard, 2018.

COSTA, Alyne de Castro. Da verdade inconveniente à suficiente: cosmopolíticas do Antropoceno. Cognitio-Estudos: revista eletrônica de filosofia, v. 18, n. 1, jan./jun. 2021, p.37-49.

HARMAN, Graham. Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics. Melbourne: re-press, 2009.

JAMES, William. Pragmatism and the Meaning of Truth. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1975.

JAMES, William. The Complete Works of William James. 19 v. Ed. by Frederick H. Burkhardt. Cambridge, Harvard University Press, 1988.

LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC, 2001.

LATOUR, Bruno. Por que a crítica perdeu a força? De questões de fato a questões de interesse. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 46, p. 173-204, jul. 2020a.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020b.

PINHO, Thiago. Rumo a uma Teoria Social Alternativa: As Implicações do Vitalismo nas Ciências Humanas e Sociais. 2021. 220 f. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

PINHO, Thiago. Existo, logo o mundo pensa: Whitehead, Latour e a estética científica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e0240032, 2024.

SHAVIRO, Steven. Cosmopolitics. The Pinocchio Theory, 28 de Abril de 2015. Disponível em: http://www.shaviro.com/Blog/?p=401. Acesso em: 20 ago. 2023.

STENGERS, Isabelle. Cosmopolitiques: la guerre des sciences. Paris: La Découverte, 1997.

STENGERS, Isabelle. Cosmopolitiques II. Paris: La Découverte, 2003.

STENGERS, Isabelle. Thinking with Whitehead: A Free and Wild Creation of Concepts. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2014.

WHITHEAD, Alfred North. Adventures of Ideas. New York: Free Press, 1967.

WHITHEAD, Alfred North. Modes of Thought. New York: The Free Press, 1968.

 

Recebido: 24/08/2023 - Aceito: 10/09/2023 - Publicado: 22/11/2023



[1] Professor do Curso de Audiovisual e do PPGCOM da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5163-0083. E-mail: juliocarlosbezerra@hotmail.com.

[2] Pinho (2021) vem perseguindo, faz já algum tempo, alianças e continuidades entre autores contemporâneos, como Latour Tim Ingold, Jane Bennet, Graham Harman, Donna Haraway, Brian Massumi, Manuel DeLanda, entre muitos outros, num esforço para delinear algo que o próprio Latour, inspirado na obra de Gabriel Tarde, chamou certa vez de “Teoria Social Alternativa”.