Comentário a “Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el psychologismusstreit”
Evandro Oliveira de Brito[1]
Referência do artigo comentado: PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.
A originalidade da tese principal defendida por Mário Porta, no trabalho intitulado “Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit”, está pontualmente demarcada pela sua hipótese de superação, ou radicalização, das interpretações sustentadas previamente nos trabalhos de Gabriel (2013) e Heidelberger (2022). Trata-se, assim, de uma análise que rechaça as intepretações Standers, as quais não apenas reconhecem o papel fundamental de Herbart no início do antipsicologismo do século XIX, mas sobretudo identificam seu antipsicologismo ao de Frege, ignorando as diferenças fundamentais entre ambos.
A estratégia de Porta assume, como princípio geral para toda investigação sobre o processo denominado “polêmica em torno do psicologismo” (Psychologismusstreit), a necessidade de análise dos pressupostos teóricos a respeito da subjetividade, tal como assumidos pelo autor em questão. Trata-se, nas palavras de Porta, de “[...] uma análise acerca da teoria psicológica do autor ou, ao menos, caso não possua explicitamente uma tal, as suas manifestações acerca do sujeito psicológico”. No que se refere a Herbart, esse princípio investigativo adotado por Porta exerce um papel fundamental na elucidação da relação entre psicologia e lógica, bem como na caracterização do antipsicologismo herbartiano, ao tomar por base as teses fundamentais de Herbart para a caracterização da psicologia científica no século XIX.
Uma tese subsidiária, mas não menos original, é desenvolvida na análise realizada por Porta. Trata-se da recepção da psicologia cientificista de Herbart, na versão “intencionalista” do Psychologismusstreit, gestada nos debates da escola de Brentano. Bem observada, sua função no argumento é evidenciar, por contraposição, as características do antipsicologismo herbartiano apresentado na tese principal. No entanto, e dada sua relevância para os estudos a propósito das teorias da intencionalidade na escola de Brentano, cabe aqui destacá-la.
No que se segue, tematizo um ponto específico da análise de Porta, no qual está caracterizada a relação entre as concepções de psicologia em Herbart e Brentano, a partir das diferenças fundamentais entre as duas propostas. No entanto, proponho uma inversão de perspectiva, para sugerir que uma das diferenças fundamentais, a saber, “a inexistência (em Herbart) de um eu ativo ou uma autoconsciência original”, é o problema que a psicologia de Brentano herda da tradição herbartiana, para solucioná-lo com a reintrodução do conceito de “intencionalidade”. Desse modo, a análise deste comentário pretende indicar outro aspecto original do trabalho examinado, a saber, a teoria psicológica pressuposta no desenvolvimento do antipsicologismo de Herbart pode servir como um bom indicador do problema fundamental assumido pela teoria psicológica de Brentano, bem como dos desafios que ele e sua escola enfrentaram, no Psychologismusstreit.
A demonstração da minha hipótese argumentativa parte da seguinte reorganização das “teses fundamentais de Herbart acerca da psicologia” em três teses centrais, interligadas, e suas demais teses derivadas:
Tese 1 (T1): A psicologia é uma ciência natural; o seu objetivo primordial é, por analogia com a física, o estabelecimento de um sistema de leis que deem conta de um conjunto de fenômenos ((1824) 1850, I, p. 198ss., 203ss.).
Tese 2 (T2): A psicologia naturalista e mecanicista de Herbart é proposta como alternativa à psicologia das faculdades (Vermögenspsychologie) dominante no século XVIII, a qual consistia em afirmar a existência de "faculdades" (Vermögen) ou modos de ação inatos na psique ((1816) 1882, p. 8, 12).
Tese 3 (T3): (Assim como não existem "faculdades",) não existe um "eu" ativo ou uma autoconsciência original ((1824) 1850, I, p. 199, 233, 258, 267).
O ponto fundamental, o qual demarca o aspecto original do trabalho de Porta que destacamos, está no fato de que Brentano assumiu (T3) como problema, para solucioná-lo por meio da reintrodução do conceito de intencionalidade, na filosofia.
A clássica passagem na obra Psicologia a partir de um ponto de vista empírico é o principal exemplo do modo como o “eu ativo” é reconstituído na psicologia brentaniana do ato:
Todo fenômeno psíquico está caracterizado por aquilo que os escolásticos da idade média chamaram de in-existência intencional (ou mental) de um objeto e que nós chamamos, se bem que com expressões não inteiramente inequívocas, a referência a um conteúdo, a direção a um objeto (pelo qual não se deve entender aqui uma realidade), ou a objetividade imanente. Todo fenômeno psíquico contém algo em si como seu objeto, ainda que nem todos do mesmo modo: na presentação há algo presentado; no juízo há algo admitido ou rechaçado; no amor, amado; no ódio, odiado; no apetite, apetecido, etc. (Brentano, 1973, p. 124 – 125)
É preciso considerar, como bem elucida Porta (2018, 2019, 2020), que a outra face dessa reintrodução do conceito de intencionalidade na filosofia foi a recepção brentaniana do método psicológico, nos termos de sua psicologia descritiva. Nesse sentido, Brentano valeu-se das possibilidades descritivas garantidas pelo método psicológico, bem como da estrutura da relação intencional que asseguraria a percepção imediata de todo e qualquer fenômeno psíquico, para formular as novas interpretações dos conceitos envolvidos no princípio de imanência (PI). Foi nesse sentido, então, que ele recepcionou o conceito herbartiano de Vorstellung (representar-representado), embora tenha recolocado os dilemas envolvidos no Psychologismusstreit, a partir da perspectiva de primeira pessoa.
Uma conclusão análoga aplica-se à (T2), uma vez aceita a hipótese da introdução do conceito de intencionalidade como solução para (T3), pois a psicologia descritiva também passaria a ser tomada como proposta alternativa à psicologia das faculdades (Vermögenspsychologie), tal qual a psicologia naturalista e mecanicista de Herbart.
Finalmente, o próprio lema defendido por Brentano, em sua famosa 4ª Tese de Habilitação, a saber, “[...] o verdadeiro método da filosofia não é outro senão aquele das ciências naturais” (Brentano, 2017, p. 161), também pode ser interpretado como a correção da psicologia descritiva brentaniana para (T1), uma vez aceita a hipótese da introdução do conceito de intencionalidade como solução para (T3). Nesse caso, no entanto – e é fundamental ressaltar –, o que a identidade metodológica estabelece é exclusivamente o critério da adequação ao objeto (Brito, 2022, p. 62).
Apesar da incomensurabilidade entre os discursos em primeira e terceira pessoa, a conclusão à qual se chega, dada a hipótese que levantamos quanto à (T3), sustenta que a teoria psicológica pressuposta no desenvolvimento do antipsicologismo de Herbart pode servir como um bom indicador acerca do problema fundamental assumido pela teoria psicológica de Brentano, bem como dos desafios que ele e sua escola enfrentaram, no Psychologismusstreit.
Referências
BRENTANO, F. Psychologie vom empirisch Standpunkt. Erster Band. Hamburg: Feliz Meiner, 1973.
BRENTANO, F. As teses de habilitação. Trad. Evandro O. Brito, Ernesto M. Giusti, Camila B. Moreira. Revista Guairacá de Filosofia, Guarapuava-PR, v. 33, n. 2, p. 160-168, 2017.
BRITO, E. O. Brentano acerca do psicologismo e o background da fenomenologia. Revista Lumen, v. 7, n. 14, 2022.
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PORTA, M. A. Método psicológico y metafisica. Pensando: Revista de Filosofia (UFPI), v. 11, p. 11-22, 2020.
PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.
Recebido: 21/08/2023 - Aprovado: 28/08/2023 - Publicado: 22/11/2023
[1] Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Irati, PR – Brasil. Pesquisador Fundação Araucária, Pr – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4121-1106. Email: evandro@unicentro.br.