Comentário a “Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el psychologismusstreit”
Deborah Moreira Guimarães[1]
Referência do artigo comentado: PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.
Uma ideia amplamente difundida no cenário filosófico, que considero equivocada em vários aspectos, é a separação entre autores maiores e autores menores, o que legitimaria um suposto cânone filosófico repleto de filósofos ditos “essenciais”, os quais demarcariam o modo como cada tema/problema é pensado e discutido, ao longo da História da Filosofia. Desse modo, um dos problemas de maior impacto na filosofia contemporânea é a querela em torno do psicologismo (Psychologismusstreit), problema que, por vezes, é tratado apenas no âmbito da reprodução dos assim chamados “grandes debates”. Autores como Franz Brentano e Edmund Husserl, por exemplo, figuram dentre os nomes mais trabalhados em tal temática. No entanto, o entendimento pleno das teses que permeiam os grandes debates requer a reconstrução dos diálogos implícitos nas obras dos autores considerados integrantes do suposto cânone filosófico ocidental.
Nesse sentido, a reconstrução dos diálogos implica uma exigência metodológica sem a qual se inviabilizaria a exegese do texto e, consequentemente, a lida adequada com o problema filosófico em questão. Tal exigência se completa, à medida que se faz a revisão do debate histórico, isto é, o filosofar tem por exigência metodológica a reconstrução, a cada vez, de sua própria história. Como exemplo, citamos a seguinte passagem de Husserl: “Na doutrina de Brentano atua, como motivo impulsionador, uma ideia que procede de Herbart, foi acolhida por Lotze e, em todo o período seguinte, desempenhou um grande papel [...]” (Husserl, 2017, p. 63). Naturalmente, não se trata aqui de reproduzir a ideia a que Husserl se refere, mas apenas de sinalizar que, nesse caso, a compreensão da análise da consciência do tempo em Husserl, tema do excerto, requer o retorno à doutrina de Brentano, a qual, por sua vez, nasce do diálogo estreito com Herbart e com Lotze, que pressupõe movimentos de continuidades e de rupturas, de interpretações e de apropriações que complementam e atualizam o próprio filosofar. Dito de outro modo, há um movimento dialógico no filosofar que é intrínseco ao objetivo fundamental da hermenêutica filosófica, mencionado por Dilthey (1900, p. 202), de compreender o autor melhor do que ele mesmo se compreendeu.[2]
Portanto, o objetivo deste texto – redigido como notas explicativas – é comentar o artigo “Sobre o lugar que corresponde a Herbart no Psychologismusstreit”, de Mario Ariel González Porta, tendo em vista a relevância de Herbart para o problema do psicologismo, em três eixos centrais: 1) as suas teses sobre a psicologia; 2) a sua posição em meio ao debate vigente; e 3) a sua repercussão nas discussões posteriores.
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O Psychologismusstreit é um movimento complexo, conforme o Professor Mario Porta explicita na introdução de seu artigo. Dada a sua complexidade, não se reduz à mera oposição entre psicologistas e antipsicologistas, tampouco à ideia de que psicologismo implicaria a simples identificação entre lógica e psicologia.[3] Porta apresenta uma síntese das teses fundamentais do pensamento de Herbart sobre a psicologia, o que demarca a sua posição no século XIX, no âmbito dos proponentes de uma psicologia científica.
Para Herbart, a psicologia – enquanto ciência natural – deve estabelecer leis que suportem um conjunto de fenômenos, fazendo com que a vida psíquica seja explicada por um arranjo mecânico de representações, as quais formam a unidade psíquica elementar. Desse modo, a psicologia de Herbart emerge como uma concepção naturalista e mecanicista, a qual caracteriza uma alternativa em relação à psicologia das faculdades (Vermögenspsychologie) predominante no século XVIII, como bem explica Porta (2024). Nota-se que há um movimento de ruptura em curso que se consolida ainda mais desde Herbart, uma vez que este abre caminho aos pensadores que, no início do século XX, se propuseram pensar a psicologia a partir de uma perspectiva experimental, descritiva e/ou empírica. Herbart critica a existência de faculdades inatas no psiquismo, contrariando a até então dominante concepção de autoconsciência originária capaz de fundar no aparato psíquico ações inatas, ou seja, a crítica dirige-se a uma suposta subjetividade ativa. Nesse sentido, do mesmo modo que a fenomenologia husserliana demarca um passo decisivo na virada para o século XX, Herbart contribui – junto com outros autores – na pavimentação da estrada que viabilizou tal passo.
Porta (2024) reconstrói alguns momentos relevantes do itinerário herbartiano, no que diz respeito ao seu propósito de pensar uma psicologia como ciência natural. Ao distinguir lógica de psicologia[4], Herbart nega um possível sentido psicológico de representações universais. Evidentemente, além da base empírica da negação das representações gerais, há também uma crítica à ideia de entendimento (Verstand), ou faculdade de abstração (Abstraktionsvermögen), o que constituiria a base da psicologia das faculdades. Além disso, Porta (2024) também resgata, de forma minuciosa e atenta, os inúmeros aspectos constituintes da posição de Herbart no debate antipsicologista vigente. Segundo a nossa interpretação, alguns desses pontos merecem atenção redobrada:
1) Ao fundamentarem a crítica ao paradigma do século XVIII, no qual uma suposta psicologia das faculdades sustentaria um “eu” ativo dotado de faculdades inatas ao seu próprio psiquismo, a distinção entre psicologia e lógica, e, consequentemente, a adequada delimitação de seus campos, a partir dos elementos propostos por Herbart, legitimaria uma reviravolta na concepção de subjetividade, que ganha força com o movimento fenomenológico do início do século XX, estando está muito mais vinculada, primeiramente, aos atos intencionais da consciência e, tardiamente (Cf. Meditações cartesianas), à noção mesma de sínteses passivas. Tal passo, o qual se radicaliza com Husserl, só acontece devido a um duplo movimento: o abandono da subjetividade naturalista de Herbart por Frege, em prol de uma subjetividade intencional e, consequentemente, antinaturalista. Frege dá o passo decisivo, segundo Porta (2024), no que concerne às duas lacunas fundamentais de Herbart: a passividade do sujeito que capta o que está além de suas representações, e a atividade do sujeito que emite juízos. Assim, Frege distinguirá a captação passiva da posição ativa do juízo.
2) A posição de Herbart evidencia um fato importante: o debate em torno do psicologismo não é homogêneo, o que faz com que as teses antipsicologistas sejam igualmente marcadas por certa heterogeneidade.[5] Se, como Porta conclui, a superação plena de todo psicologismo torna-se inviável, à medida que, com Herbart, a concepção de subjetividade condiciona o modo como se pensa o objeto da lógica, o ponto decisivo tanto para Herbart quanto para Frege ou Husserl consiste em construir uma concepção de subjetividade condizente com a maneira pela qual o objeto da lógica é concebido. Dito de outro modo, o problema da subjetividade circunscreve o âmbito de delimitação da lógica e da psicologia. Assim, nota-se que a discussão proposta por Porta – a qual reflete um aprofundamento refinado no debate em torno do psicologismo – visa acenar para o fato de que a questão da subjetividade é subjacente ao debate antipsicologista, isto é, delimitar qual seria o objeto da lógica (e, portanto, também da psicologia) requer averiguar a relação entre o sujeito psicológico e o objeto, o que, posteriormente, seria investigado, a meu ver, sob o viés da intencionalidade e de suas variações.
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Logo, Porta (2024) exemplifica o nosso ponto de partida. Herbart não apenas é um dos autores em função dos quais o Psychologismusstreit adquire corpo, como também se trata de um dos precursores dos debates contemporâneos acerca da relação entre psicologia e lógica. Se, por um lado, o aprofundamento da investigação nos permite alcançar uma distinção muito mais refinada entre ambas, psicologia e lógica, por outro, essa precisa delimitação não é, de forma alguma, suficiente para atestar o psicologismo ou o antipsicologismo de qualquer autor.
Referências
DILTHEY, Wilhelm. Die Entstehung der Hermeneutik. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1900.
GONZÁLEZ PORTA, Mario Ariel. Edmund Husserl: psicologismo, psicologia e fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2013.
GONZÁLEZ PORTA, Mario Ariel. Psicologia e filosofía: estudos sobre a querela em torno ao psicologismo. São Paulo: Loyola, 2020.
HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. Trad. de Pedro Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. de Pedro Alves. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.
PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.
Recebido: 21/08/2023 - Aceito: 02/09/2023 - Publicado: 22/11/2023
[1] Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Bolsista da FAPERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2459-9559. E-mail: deborahmoreiraguimaraes@gmail.com.
[2] Tradução livre de: “Das letzte Ziel des hermeneutischen Verfahrens ist, den Autor besser zu verstehen, als er sich selber verstanden hat” (Dilthey, 1900, p. 202).
[3] Em relação à posição específica de Edmund Husserl, Porta dedica uma de suas obras à investigação detida das origens da virada antipsicologista (2013, cap. 1), da crítica ao psicologismo após as Investigações lógicas (2013, cap 2) e dos tipos distintos de psicologismo, no pensamento do filósofo morávio (2013, cap. 3). Em outra ocasião (2020), o Psychologismusstreit fora apresentado de maneira sistemática. Porta percorre desde a introdução histórica do problema, passando por sua recepção em diversos países, até alcançar um acompanhamento profundo do modo como diversos autores (por exemplo: Frege, Windelband, Brentano, Stout, Bolzano, entre outros) trataram dessa questão. Dessa forma, o artigo que comentamos se insere em uma perspectiva mais ampla de pesquisa, cujo pressuposto metodológico é a reconstrução dos debates intrínsecos a essa querela.
[4] Segundo Porta, Herbart estabelece uma clara delimitação entre lógica e psicologia, com base em três elementos, a saber, a distinção entre normativo e descritivo, entre ato e conteúdo, e entre conceito em sentido lógico e psicológico.
[5] Como Porta afirma, o antipsicologismo de Frege difere do antipsicologismo de Herbart, sobretudo, no que concerne ao chamado Princípio de imanência. Aceitando o “PI”, tanto conceito quanto objeto se tornam representações (Vorstellungen). Consequentemente, observa-se que nem o psicologismo nem o antipsicologismo podem ser considerados movimentos homogêneos.