Comentário a “Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el psychologismusstreit

 

Carlos Diógenes Côrtes Tourinho[1]

 

Referência do artigo comentado: PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.

 

No cenário nacional, acostumou-se a tratar o debate em torno da fundamentação da Lógica e do problema do psicologismo, a partir de dois grandes grupos de autores: de um lado, aqueles que insistem em fundar os princípios gerais da Lógica na Psicologia, concebendo-os em termos de leis meramente psicológicas, transformando, assim, a Lógica tão somente em uma disciplina da Psicologia (no primeiro grupo, são mencionados, quase que indistintamente: Lipps, Mill, Wundt, Sigwart, dentre outros); de outro lado, encontramos autores – tais como Herbart, Hamilton, Drobisch etc. – para os quais haveria uma distinção fundamental entre Psicologia e Lógica, entre leis psicológicas e leis ideais inerentes ao pensamento lógico[2]. Se, no primeiro grupo, encontraremos autores para os quais a Lógica se tornaria algo como uma “física do pensar” (conforme propõe Theodor Lipps)[3], no segundo grupo, encontram-se autores de acordo com os quais toda tentativa de fundar a Lógica na Psicologia conduziria a problemas de fundamentos, uma vez que misturaria domínios heterogêneos do real e do ideal, confundindo, enfim, o juízo como ato psicológico de pensar com o juízo como unidade ideal da Lógica[4].

Mas é preciso ressaltar que o modo acima – um tanto quanto simplificado – de apresentação dos dois grupos termina por ocultar diferenças significativas entre as posições dos autores envolvidos, sejam eles psicologistas, sejam antipsicologistas (o psicologismo de Lipps não se confunde com o de Sigwart, o antipsicologismo de Herbart não se confunde com o de Frege, e assim por diante). Daí a necessidade de especificar, cada vez mais, tais posições. O artigo de Porta (2024) – aliás, um dos pesquisadores que, já há alguns anos, chama atenção para a importância de se elucidar devidamente a posição daqueles envolvidos na Psychologismusstreit – tem, antes de tudo, o mérito de trazer, para o público brasileiro, a especificidade da posição assumida por Johann Friedrich Herbart, um dos pioneiros do antipsicologismo, no século XIX[5].

Porta (2024) parte da hipótese segundo a qual a posição de Herbart, no debate sobre os fundamentos da Lógica, supõe uma teoria da subjetividade, de modo que somente podemos entender a especificidade de tal posição na medida em que elucidamos não apenas as bases da distinção fundamental entre Psicologia e Lógica, mas também da relação entre tais ciências. A necessidade de avançar nessas duas frentes – da distinção e da relação entre aquilo que é “lógico” e o que é propriamente “psicológico” – apenas sinaliza o que parece ser uma dupla exigência das posições contrárias ao psicologismo: não somente apontar os fundamentos da distinção entre a Psicologia e a Lógica, mas também e, sobretudo, da relação entre os domínios do “real” e do “ideal” (algo que exige, por si só, um lugar reservado à experiência psicológica e, portanto, uma teoria da subjetividade no debate em questão). Mas, qual seria, exatamente, a posição assumida por Herbart, nesse debate, especificamente no que concerne às exigências acima?

Antes de tudo, é preciso ressaltar que Herbart propõe, como nos mostra o artigo em questão, uma psicologia naturalista (nos moldes da Física), sem defender, contudo, uma naturalização da Lógica[6]. Eis uma primeira observação importante, pois aponta, de um lugar privilegiado, que toda a problemática epistêmica em torno da possibilidade de a Psicologia alcançar um estatuto de cientificidade nos moldes das ciências experimentais da natureza não se confunde com a problemática do psicologismo. Em outros termos, é possível defender uma psicologia naturalista sem aspirar, contudo, a uma fundamentação da Lógica na Psicologia.

Destaca-se ainda que Herbart considera, como boa parte dos adversários do psicologismo, as leis lógicas como “leis normativas” do pensar. Pode-se dizer, grosso modo, que tal concepção supõe a distinção fundamental entre quid iuris e quid facti, notadamente de antecedentes kantianos. Todavia, por outro lado, tal concepção herbartiana se afasta de Kant, por dois motivos, ao menos: 1) Herbart não pensa o conceito como um tipo de representação fornecida pelo entendimento, porém, como um conteúdo das representações que, por sua vez, assume dois sentidos: um “psicológico” e outro “lógico”; 2) ao afirmar uma psicologia naturalista, Herbart se contrapõe, como enfatiza o artigo, a uma psicologia das faculdades e, nesse sentido, nega a concepção kantiana segundo a qual haveria representações sensíveis e conceituais, cuja síntese implicaria, em última instância, a unidade de uma autoconsciência originária[7].

Entretanto, e quanto ao debate em torno da fundamentação da Lógica? O que Herbart nos diz? Ele afirma que a Lógica se ocupa de representações. Mas, para evitar uma eventual recaída no psicologismo, logo distingue entre representar e representado. Grosso modo, Herbart admite, como boa parte dos autores antipsicologistas, a distinção entre ato e conteúdo, porém, a base da sua argumentação parece residir na distinção entre os sentidos psicológico e lógico de um conceito. Se, no primeiro caso, abordamos o conceito como conteúdo das representações, entendidas como “unidades psíquicas elementares” e, portanto, como algo que nos permitiria pensar em uma multiplicidade numérica (de eventos psicológicos, determinados temporalmente), no segundo caso, trata-se, em sentido lógico, do conceito como uma unidade “qualitativa”. É certo que toda multiplicidade supõe elementos, os quais, como unidades individuais, acarretam um sentido do que significa distinguir o mesmo do outro. Do contrário, tais unidades seriam uma só e não poderíamos falar em multiplicidade. Se, em sentido quantitativo, tal multiplicidade com suas unidades psicológicas pressupõe, ao menos, para essa psicologia naturalista, um sentido numérico de diferença, o que dizer dessa unidade conceitual qualitativa?

Herbart não parece contrapor quantitativo e qualitativo, no sentido de alinhá-los à contraposição entre o que é espacial e o que é, digamos, da ordem de uma temporalidade como vivência de duração (como encontramos, por exemplo, no espiritualismo de Henri Bergson)[8]. Poderíamos, então, conceber essa tal unidade qualitativa – tomando de empréstimo uma terminologia da Teoria dos Conjuntos – como um “F(x)” mediante o qual se pode identificar, reconhecer, classificar, do ponto de vista da terceira pessoa, unidades individuais como exemplares de uma mesma função, entendida como “propriedade extrínseca”?[9] Vejamos.

Herbart assevera que, em geral, não haveria representações universais, pois as mesmas somente poderiam “existir uma única vez”. Mas o autor deve explicar o que isso quer dizer, em ambos os sentidos, tanto psicológico quanto lógico. Se, no primeiro sentido, isso ocorre por conta de as representações psicológicas constituírem uma multiplicidade “fechada” para cada indivíduo, em sentido lógico, se não podem ser tomadas em termos de identidade numérica, é por conta de serem unidades qualitativas (e não quantitativas), mediante as quais se tornaria, inclusive, possível um saber intersubjetivo, o que, aliás, não aconteceria sem certa capacidade de “reprodução” dessa unidade (se, em sentido psicológico, o círculo de Archimedes não se confunde com o de Newton, em sentido lógico, se tratará do mesmo conceito).

Herbart não poderá se furtar, contudo, de pensar a relação entre tais sentidos. O autor é claro, ao argumentar que o conceito em sentido lógico é como que um “ideal” que orientaria, teleologicamente, os conceitos em sentido psicológico. Como um ideal, em sentido lógico, o conceito jamais poderia ser propriamente alcançado, em termos absolutos. Isso não significa dizer, no entanto, que alcance algum seja possível. Assim, poderíamos perguntar: dado que não se trata, no que concerne aos sentidos psicológico e lógico do conceito, de uma dualidade ontológica, de modo que não caberia falar, a respeito dos mesmos, em “diferença por natureza”, tendo em vista ainda que, em sentido lógico, o conceito seria um ideal em direção ao qual tenderiam os conceitos em sentido psicológico, até que ponto não poderíamos, no antipsicologismo de Herbart, considerar sínteses progressivas de realizações teleológicas desse ideal, admitindo, por conseguinte, uma “diferença de grau” entre tais realizações?

Em que pese a grande contribuição trazida pelo artigo em questão, ficamos com o sentimento de que eventuais trabalhos sobre a posição de Herbart, na Psychologismusstreit, poderiam desenvolver a hipótese sobre graus de realizações teleológicas desse ideal. Tal hipótese evitaria o colapso entre os sentidos psicológico e lógico do conceito, não deixando, contudo, de pensar a relação entre ambos. Assim, Herbart atenderia às exigências – incontornáveis, no referido debate – de fundamentar a distinção e, sobretudo, a relação entre a Psicologia e a Lógica.

 

Referências

BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. In: Oeuvres. Édition du Centenaire. Paris: Presses Universitaires de France, 1889/1959.

FERNANDES, S. L. de C. Qualidade e quantidade em pesquisa psicológica. In: CASTANHEIRA, M.; FERNANDES, S. L. de C. Psicologia e Mente Social. Construção de teoria e problemas metodológicos. Rio de Janeiro: Editora Central Universidade Gama Filho, 1996. p. 201-251.

HUSSERL, E. Logische Untersuchungen. Erster Band. Prolegomena zur reinen Logik. Halle a. d. S.: Max Niemeyer, 1900/1913.

HUSSERL, E. Investigações Lógicas. Primeiro Volume. Prolegômenos à Logica Pura. Lisboa: Phainomenon – Clássicos da Fenomenologia/ Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.

KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Leipzig: Felix Meiner, 1781-1787/1919.

LIPPS, T. Die Aufgabe der Erkenntnistheorie und die Wundt’sche Logik. Philosophische Monatshefte, v. 16, p. 529-539, 1880.

PORTA, M. A. G. Sobre el lugar que corresponde a Herbart en el Psychologismusstreit. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e0240031, 2024.

 

Recebido: 16/08/2023 - Aceito: 20/08/2023 - Publicado: 22/11/2023



[1] Professor Associado IV do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. Coordenador do Laboratório de Fenomenologia (LAFE/UFF: https://laboratoriodefenomenologia.uff.br/). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5963-599X. Email: cdctourinho@gmail.com.

[2] Pode-se dizer que tal apresentação do debate se deve à influência exercida, junto ao público brasileiro, pela leitura de “Prolegômenos à Lógica Pura” (1900), volume propedêutico às Investigações Lógicas de Husserl, cuja tradução de Diogo Ferrer para a língua portuguesa acontece em 2005. Cf. Husserl (2005).

[3] Lipps (1880, p. 530).

[4] Husserl (1900/1913, § 22, p. 66).

[5] Cf. Porta (2024).

[6] Cf. Porta (2024).

[7] Cf. Kant (1781-1787/1919, § 17, p. 139).

[8] Cf. Bergson (1959, p. 51-70).

[9] Cf. Fernandes (1996, p. 204-210).