Comentário a “Multinaturalismo e teoria da expressão”: há limites na expressão ilimitada?
Benito Eduardo Araujo Maeso[1]
Referência do artigo comentado: PITTA, Maurício Fernando. Multinaturalismo e teoria da expressão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 1, e0240005, 2024.
Muitos seres se dizem de muitas formas. Contudo, é possível relacioná-las, quando se referem a seres outros entre si, mas que compartilhariam propriedades ou atributos? Tal multiplicidade ontológica, cosmológica e linguística pressuporia, no limite, o colapso da linguagem e a ruptura completa da relação palavra-objeto, não pela falta do que dizer, mas por sua profusão? A incomensurabilidade, por princípio, entre as formas de expressar tais seres e os seres em si seria passível de ampliação até chegar às relações entre seres totalmente distintos? Poder-se-ia retornar a certo nominalismo, no qual o ato de nomear dá o estatuto ontológico do nomeado – ou a existência do nome atesta a existência do objeto?
O artigo de Mauricio Pitta (2024) instiga tais questões, ao trazer uma interessante visão da “possibilidade de uma teoria da expressão para o multinaturalismo”, enfrentando a relação conflituosa entre o deleuzianismo e as cosmologias ameríndias. Seu cerne repousa numa insuficiência da leitura deleuziana sobre Espinosa (por demais contaminada pela ideia do Uno ou da univocidade), para abarcar a equivocidade da cosmologia yanomami, onde o sentido do ser (se é que tal categoria pode ser aplicada, a não ser por analogia, a terceira ontologia possível na situação) se altera, constitui-se num outro, de acordo com a direção percorrida (posição defendida pelo autor em outro trabalho, sobre o esquecimento). É bem argumentado e persuasivo, entretanto, pressupõe conhecimento profundo do tema: a neófitos, não seria fácil estabelecer analogias conceituais com terrenos conhecidos.
Pelo pouco espaço, escolho abordar pontos indicados pelo autor, em seu diálogo com o/a parecerista. Partamos da imanência (conceituável pela ideia de o existente, em si e por si, ser o princípio da realidade e do conhecimento verdadeiros): pensá-la é pensar algo sem dentro ou fora, um infinito sem centro fixo. Estabelecer relações entre múltiplos infinitos, cada um imanente em si, não recairia num retorno à transcendência (ou num fora do que é imanente em si e para si)? Quais os estatutos de existência desses infinitos ou universos? Coexistem? Pitta assim sugere, embora não pareça ou precise haver hierarquia entre infinitos.
Na sequência, Pitta (2024) acompanha criticamente a interpretação deleuziana sobre a estrutura da díade espinosana substância/modo, a partir do conceito de atributo. Conforme Pitta, Deleuze vê em Spinoza duas tríades de expressão: na primeira, a substância se expressaria em infinitos atributos que indicam qualidades específicas. Na segunda, a expressão de cada atributo ocorre em infinitos encadeamentos causais de infinitos modos, ou modificações específicas da essência da substância expressa por seu respectivo atributo.
Se é a mesma potência infinita da Natureza que se expressa de forma simultânea e na mesma ordem e conexão nos modos de todos os atributos, visto que “[...] a ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas” (Espinosa, 2015, E II, Prop. VII), a leitura de Deleuze estabeleceria uma correspondência entre os modos dos diferentes atributos da Substância, acarretando um paralelismo ontológico. Contudo, conforme Deleuze (2002, p. 75, itálicos nossos),
[...] esse paralelismo entre a ideia e seu objeto implica apenas a correspondência, a equivalência e a identidade entre um modo do pensamento e outro modo tomado num único atributo bem determinado (no nosso caso, a extensão como único outro atributo que conhecemos: assim o espírito [mente] é a ideia do corpo e de nada mais). Ora, a sequência da demonstração do paralelismo (II,7, esc.) eleva-se ao contrário a um paralelismo ontológico: entre modos de todos os atributos, modos que não diferem senão pelo atributo. Segundo o primeiro paralelismo, uma ideia no pensamento e seu objeto em tal outro atributo formam um mesmo “indivíduo” (II, 21, esc.); conforme o segundo, modos de todos os atributos formam uma mesma modificação.
Ao fim e ao cabo, Deleuze busca elevar o estatuto dos modos sobre o da Substância, crendo assim extrair a multiplicidade do interior da univocidade. Porém, suas ferramentas estratégicas enfrentam severas críticas: Chantal Jaquet desloca-se em direção a uma ideia de igualdade dos atributos e não dos modos. Marilena Chaui, por outro ângulo, interpreta a questão como equiparação das potências dos atributos e não a aderência e identidade entre os modos sobre os atributos ou substância, pois a operação deleuziana acabaria por criar um tipo de hierarquia entre tais elementos[2]. Da mesma maneira, Ericka Itokazu critica o conceito de paralelismo associado a Espinosa por, entre outros, Guéroult e Deleuze, apontando que tal procedimento traria ou a redundância ao sistema espinosano ou, in extremis, um primado do pensamento sobre a extensão:
Entendendo por “coisas” os ideados, não somente dos modos de todos os atributos, mas também das próprias ideias conquanto estas podem ser objetos de outras ideias, tal como no caso das ideias reflexivas que têm como ideados outras ideias (são ideias de ideias), o paralelismo não se reduziria à correspondência pontual entre extensão e pensamento, muito mais: além de abranger a ordem e conexão dos modos de todos os outros atributos com o pensamento, corresponderia também à ordem e conexão das próprias ideias (agora como ideados) no interior deste atributo. (Itokazu, 2010, p. 41).
Ao fim, a própria ideia da Substância como instância superior unificadora, conforme Pitta extrai da leitura de Deleuze, ao contrapor tal preceito à multiplicidade não hierárquica encontrável nas cosmologias citadas e em Ludueña, já transformaria esse espinodeleuzismo num retorno disfarçado ao transcendente. Porém, seria possível supor uma unificação sem hierarquia, estabelecida no próprio processo relacional? Um agenciamento multiversal? A unificação não exige cadeias verticais: universos de entendimento fagocitam outros, sem a necessidade de um Ser acima/abaixo destes, como regente (externo/interno) do processo, o qual se dá em si, para si e por si, sendo a realidade a ação e a operação dos infinitos modos e atributos de uma Substância simultaneamente infinita e múltipla, em face da própria infinitude da Substância destruir a pressuposição de univocidade. Algo pode ser finito (uno) e infinito (múltiplo) ao mesmo tempo?
Este seria o sentido de imanência que escapa aos olhos deleuzianos e que gera tanta complicação, ao ser articulado com as noções de equivocidade do perspectivismo. Invocando um tipo de Xiwãripo diferente, há outro espectro assombrando a questão: materialidade, realidade e concretude são cruciais para a articulação de uma metafísica que não esteja de cabeça para baixo, que não tenha síntese e na qual termos e relações se entrecruzam, talvez sem hierarquias e de forma múltipla. Enfatiza Chaui (1999, p. 918):
A diversidade infinita atual dos atributos e sua eterna diferenciação infinita nas coisas singulares existentes na duração iluminam o sentido de Deus sive Natura: é a estrutura infinitamente complexa do real como ordem de co-presença de redes causais que são ordens diferenciadas de realidade cujo fundamento é a causa de si, cujos fios são os atributos e cujos nós são as particularizações dos modos infinitos em coisas singulares.
Se cada singularidade é modo, é expressão de uma potência eterna infinita numa “[...] potência determinada que é uma essência numa existência determinada. [...] fulguração duradoura de uma só e mesma luz, cujas ondas são sua própria potência irradiando-se e irradiada infinita infinitis modis” (Chaui, 1999, p. 918). Invertendo tal fluxo ou direção, o Singular, ser indiviso internamente diferenciado, seria composto pelos modos, muitos singulares coexistentes que podem ser ponto de partida e chegada de diversas multiplicidades ou equivocidades, visto ser(em) absolutamente infinito(s) em possibilidades.
Referências
CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: liberdade e imanência em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Ed. 34, 2017.
ESPINOSA, Baruch. Ética. São Paulo: EdUSP, 2015.
ITOKAZU, Ericka Marie. A última tentação do paralelismo na interpretação da filosofia de Espinosa. Revista Conatus - Filosofia De Spinoza, v. 4, n. 8, p. 37-46, dez. 2010.
JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. BH: Autêntica, 2011.
PITTA, Maurício Fernando. Epidemia da insônia: Kopenawa e a equivocidade do esquecimento. Griot: Revista de Filosofia, v. 21, n. 2, p. 199-220, 2021.
PITTA, Maurício Fernando. Multinaturalismo e teoria da expressão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 1, e0240005, 2024.
STERN, Ana Luza Saramago. A imaginação no poder: obediência política e servidão em Espinosa. Tese. Orientação Adriano Pilati e Marilena Chaui. 2018, 303 p. Disp. https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34478@1
Recebido: 17/10/2023 - Aceito: 23/10/2023 - Publicado: 22/11/2023
[1] Pesquisador pós-doc no Departamento de Filosofia da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Professor de Filosofia do Instituto Federal do Paraná (IFPR), Curitiba, PR – Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (PGFILOS/UFPR), Curitiba, PR -Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4850-0499. E-mail: benito.maeso@ifpr.edu.br.
[2] Conforme Stern (2018, p. 36)