Comentário a “Maio de 68 na perspectiva de Claude Lefort: a reinvenção do agir político no declínio do horizonte revolucionário”

 

Helton Adverse[1]

 

Referência do artigo comentado: COSTA, Martha Gabrielly Coletto. Maio de 68 na perspectiva de Claude Lefort: a reinvenção do agir político no declínio do horizonte revolucionário. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e0240017, 2024.

 

Em 2018, Martha Gabrielly Coletto Costa, juntamente com Anderson Lima da Silva, havia enfrentado o desafio de traduzir um texto de Claude Lefort. Tratava-se, no caso, de suas reflexões sobre os acontecimentos de maio de 68, na França, que foram publicadas juntamente com as de Edgar Morin e Cornelius Castoriadis. Esses textos foram escritos praticamente à queima-roupa, no calor da hora, o que não era algo raro a nenhum dos três autores, já habituados ao jornalismo filosófico. Eles estão inseridos em uma polêmica que, como lembra Costa (2024), está longe de ter-se encerrado. Os detratores de maio de 68 minimizam seu impacto ou lamentam suas consequências (Ferry; Renault, 1985), quando não partem simplesmente para a mais dura derrisão, como havia feito o diretor de tese de Lefort, Raymond Aron (1968).

De sua parte, Lefort apostava na força transformadora dos acontecimentos iniciados pelos estudantes franceses. Sua disseminação por diversos setores da sociedade era a prova irrefutável de que haviam aberto um espaço para a contestação política. Como diria, vinte anos mais tarde, o próprio Lefort, os estudantes “[...] não podem fazer uma revolução; no máximo, podem suscitá-la” (Lefort, 2018b, p. 248). Se a criação desse novo espaço de enfrentamento do poder era menos do que uma revolução, ele era mais do que uma mera revolta. Para Lefort, esta era a “brecha” pela qual poderiam passar novamente, no interior de uma sociedade que havia perdido o élan revolucionário, as energias das “desordens” criadoras.

A visão positiva de Lefort acerca dos acontecimentos de maio de 68 dá o mote para Martha Costa escrever seu artigo. Com muita acuidade no trato com os textos, ela demonstra que negligenciar os artigos de Lefort incluídos em A brecha tem por consequência a perda de um momento importante no percurso intelectual do filósofo. Alguns dos pontos centrais da teoria lefortiana a respeito da natureza da sociedade democrática, os quais serão desenvolvidos e aprofundados somente na década de 1970, já estão presentes no livro de 1968, em especial, a ideia de que a democracia, mais do que um regime de governo, é uma forma social, caracterizada pela incessante colocação em xeque dos fundamentos do poder, da lei e do saber.

A prática da contestação, tendo sido iniciada na universidade e, na continuidade do movimento, disseminada pelo corpo social, constitui o núcleo daquilo que Lefort denomina “eficácia simbólica” (Lefort, 2018a, p. 64) das sublevações, sem dúvida, seu maior legado para a democracia moderna. Martha Costa deixa claro, então, que não interessa a Lefort (diferentemente de Castoriadis) os resultados efetivos das agitações estudantis, isto é, se, de fato, elas deram origem a transformações sociais e políticas relevantes. O que importa é que elas revelaram a estrutura contestatória da sociedade democrática moderna, trouxeram à plena luz o fato de que “[...] o Poder, em qualquer lugar que pretenda reinar, encontrará opositores que, entretanto, não estão dispostos a instalar um poder melhor” (Lefort, 2018a, p. 85). Isso significa que a resistência ao poder não tem por objetivo primeiro a instituição de um novo poder, mas a inquirição dos princípios que ordenam a vida em comum e sua possível transformação. Esses opositores, frisa ainda Lefort, “[...] estarão dispostos a perturbar os planos de uma sociedade que procura se fechar em uma ilusão e encerrar os homens em hierarquias” (Lefort, 2018a, p. 85). Daí o título que Lefort deu a seu artigo, “Uma Nova Desordem”.

Assim, não escapa a Martha Coletto Costa que é a desordem, isto é, o questionamento da ordem estabelecida que tanto interessa a Lefort, quando interpreta maio de 68. Através da bruma da utopia, o filósofo francês vê algo muito diferente que, na verdade, chega a contrariar o discurso utópico muito rapidamente identificado como a maior mensagem do movimento revolucionário: nele, Lefort detecta o abandono da ideia da boa sociedade, aquela plenamente conforme a si mesma, plenamente harmônica. O que está acontecendo é outra coisa: os opositores do estado atual das coisas “[...] se servirão de todas as ocasiões para estimular as iniciativas coletivas, derrubar as compartimentações, fazer circular as cosias, as ideias e os homens, intimar cada um a afrontar os conflitos em vez de mascará-los” (Lefort, 2018a, p. 85). Por fim, isso significa que “[...] essa linguagem não se alimenta da ilusão de uma boa sociedade, livre de contradições” (Lefort, 2018a, p. 85). Essa linguagem é o verdadeiro legado de maio de 68; se ela for capaz de inspirar as ações futuras, acredita Lefort, então, a “revolução amadureceu”, isto é, ela foi capaz de simultaneamente alargar o “campo do possível” e conservar-se “realista”, o que denota sua sensibilidade às exigências do tempo presente (Lefort, 2018a, p. 85).

Se me detenho sobre as palavras finais do artigo de Lefort é porque estou convencido de que elas orientam a leitura de Martha Costa. Afinal de contas, ela coloca no centro de sua análise a crítica à ilusão da boa sociedade, a qual já ocupava Lefort, durante os anos de sua militância no grupo Socialismo ou Barbárie. Mas o argumento principal do texto de Martha Costa é que a crítica a essa ilusão não estará completa, se não for acompanhada do abandono de um dos pilares da teoria da revolução marxista, a saber, a de que o processo revolucionário deve ser levado a cabo por um agente específico, o proletariado, o único capaz de promover a libertação de todos os seres humanos, na medida em que liberta sua própria classe da dominação capitalista e burocrática.

Dizendo de outra maneira, a denúncia da utopia da boa sociedade não pode poupar o agente que supostamente poderia realizá-la. Mas, se o pensamento de Lefort se detivesse nessas críticas, ele deveria, com justiça, ser considerado conservador, se não reacionário. Para o filósofo, destituir o proletariado como único agente transformador autêntico da sociedade burguesa significa multiplicar os pontos de resistência ao poder, no interior do corpo social. Nada se perde, portanto, da energia capaz de alterar as formas da vida em comum; pelo contrário, ela é intensificada, quando distribuída entre todos seus membros ou, pelo menos, entre aqueles tomados pelo desejo de uma sociedade mais livre, aqueles que não aceitam o discurso que naturaliza o estado das coisas e que pretende manter as relações de poder ao abrigo da contestação.

Ora, para Martha Coletto Costa, o artigo de Lefort sobre maio de 68 testemunha a formação dessa consciência em Lefort. Porém, não apenas: ela diz que o pensamento do francês acerca do sujeito político sofre uma “transformação” sob “os efeitos da onda contestatória do final dos anos 1960”. Essa transformação deve ser entendida nos seguintes termos: “[...] a esfera da produção perde o status de lugar privilegiado onde a ação social efetivamente transformadora pode emergir” (Costa, 2024, p. 11). Ela tem o cuidado de lembrar que isso não significa desvincular política e economia, mas apenas retirar do proletariado o papel primordial que a teoria marxista lhe havia concedido. Em suas palavras, não se trata em absoluto de afirmar que “[...] a esfera produtiva deixa de ser importante nas dinâmicas de luta social no mundo contemporâneo, mas já não possui o protagonismo exclusivo, ou melhor, deixa de ser a instância que, em última instância, determinaria a realidade social” (Costa, 2024, p. 11).

De minha parte, nada tenho a objetar a essa leitura. Pelo contrário, estou convencido de que ela expressa perfeitamente o sentido do texto de Lefort. A única observação que gostaria de fazer concerne ao emprego do termo “transformação”, o qual deixa entender que a compreensão lefortiana da natureza da sociedade teria se modificado, a partir de maio de 68, passando a integrar uma nova concepção do sujeito político. Em outras passagens de seu artigo, Martha Costa reforça essa impressão: “Os eventos de Maio de 68 na França configuraram uma situação decisiva para a experiência de pensamento lefortiana” (Costa, 2024, p. 14). E ainda: “Maio de 68 é o acontecimento que, historicamente, impulsiona a reflexão de Lefort rumo à compreensão da sociedade democrática, em especial, de suas dinâmicas de criação/transformação” (Costa, 2024, p. 16, nota 19). É verdade que, nessas passagens, são empregados termos neutros, o que dá margem para dúvidas a respeito do ponto de vista de Martha, contudo, parece-me que sua convicção é a de que os acontecimentos de maio podem ser vistos, se não como um radical divisor de águas, ao menos como um momento crucial. Se for realmente isso que ela pensa, creio ser necessário fazer alguns apontamentos.

Em primeiro lugar, tenho a impressão de que o artigo de Martha não apresenta elementos suficientes para consolidar a crença de que maio de 68 esteve na origem de uma “transformação” do pensamento de Lefort. Em grande medida, parece-me que a via contrária é mais plausível, isto é, Lefort enquadra maio de 68 em sua reflexão política. Vale lembrar que o ponto nodal do argumento de Martha é a subjetividade política. Maio de 68 revelou novos sujeitos políticos, para além do proletariado. E ela sustenta essa hipótese, com a seguinte passagem de Lefort a respeito da diferença entre o papel do proletariado na sociedade burguesa conhecida por Marx, no século XIX, e aquele do contestador, no século XX:

[...] o proletariado era estrangeiro; e é porque ele era tal e ao mesmo tempo o portador das forças produtivas, ele mesmo a maior força produtiva, que se designava como a Classe revolucionária. No presente, a posição do estrangeiro não aparece como aquela do produtor; mas, antes, ela se conquista na recusa dos modelos e das normas da sociedade industrial. (Lefort apud Costa, 2024, p. 11)

 

Costa (2024) informa a seu leitor que esse trecho não é retirado de A brecha, mas da coletânea Élements d’une critique de la burocratie, publicada originalmente em 1971 e com nova edição, em 1979. O texto em questão se intitula “O Novo e a Atração pela Repetição” (Lefort, 1979). Embora não seja feita nenhuma referência “nominal” a maio de 68, é claro que Lefort tem em mente esses acontecimentos, ao denunciar o fenômeno da “expansão da burocracia” (Lefort, 1979, p. 366), o qual não deixa mais nenhuma classe na condição de “estrangeira” (e, portanto, detentora privilegiada da força revolucionária, como lemos na citação feita por Martha). Sua consequência política é a disseminação, pelo corpo social, dos focos de resistência e de oposição (Lefort, 1979, pp. 365-7). Mas cabe observar três coisas:

1) Lefort, nesse texto que data de 1970, não abandona totalmente a linguagem marxista, como aliás não havia feito em “A Nova Desordem”. Antes, ele a reformula, adaptando-a à nova realidade das relações de produção. A economia não desaparece do horizonte de análise lefortiano, mas ela não constitui a chave de leitura única e suficiente para entender a realidade política. Essa crítica interna ao marxismo foi desenhada, cabe lembrar, durante sua presença no grupo Socialismo ou Barbárie. Além disso, o contato com a obra de Maquiavel, intensificado desde o final dos anos 1950, assim como o aporte da etnologia, serão decisivos para uma nova compreensão da política que ganhará contorno preciso na tese de doutoramento de Lefort, publicada em 1972.

2) A crítica à burocracia, com a consequente explicitação das novas formas de dominação e o reconhecimento de novos focos de oposição, já encontrava grande impulso nas revoltas que antecederam maio de 68 em mais de dez anos, isto é, nas revoltas de Berlim Oriental, na Polônia e, sobretudo, na Hungria. Por esse motivo, não parece plausível atribuir a maio um papel decisivo.

3) Restaria ainda por examinar em que medida a denúncia do ideal da boa sociedade, ataque certeiro a certa filosofia da história marxista, traz como consequência inevitável a reformulação do papel político do proletariado. Por esse ângulo, não seria mais a questão da dominação burocrática que colocaria na pauta a reformulação de uma teoria da revolução (e dos agentes revolucionários), todavia, o reconhecimento de que a sociedade é originalmente cindida, o fato de que ela não tem centro e, portanto, não pode coincidir consigo mesma. Nesse caso, não faz sentido atribuir a uma “parte” em especial, mesmo “estrangeira”, o poder de transformação do todo. Lefort, especialmente a partir da leitura de Maquiavel, já compreendia a sociedade e a política nesses termos, antes de maio de 68.

Essas observações não pretendem (nem poderiam) diminuir, absolutamente, a importância do artigo de Martha Coletto Costa (2024). Elas apenas sugerem a calibragem de uma de suas hipóteses, a saber, a de que seria possível identificar uma inflexão no pensamento de Lefort, com base nos acontecimentos de maio. Os trabalhos de Martha (que tenho a sorte de conhecer, há algum tempo), seja por seu rigor, seja por sua fecundidade, se firma como uma leitura obrigatória para todos os interessados pela filosofia de Claude Lefort e pelo “enigma” da democracia moderna.

 

Referências

COSTA, Martha Gabrielly Coletto. Maio de 68 na perspectiva de Claude Lefort: a reinvenção do agir político no declínio do horizonte revolucionário. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, “Perspectivas femininas no pensamento filosófico”, e0240017, 2024.

LEFORT, Claude. Le Nouveau et l’Attrait de la Répétition. In: LEFORT, Claude. Élements d’une critique de la burocratie. 2. ed. Paris: Gallimard, 1979. p. 355-371.

LEFORT, Claude. A Desordem Nova. In: CASTORIADIS, Cornelius; LEFORT, Claude; MORIN, Edgar. Maio de 68. A brecha. Trad. de Martha G. C. Costa e Anderson L. da Silva. São Paulo: Autonomia Literária, 2018a. p. 57-85.

LEFORT, Claude. Releitura. In: CASTORIADIS, Cornelius; LEFORT, Claude; MORIN, Edgar. Maio de 68. A brecha. Trad. de Martha G. C. Costa e Anderson L. da Silva. São Paulo: Autonomia Literária, 2018b. p. 245-257.

 

Recebido: 20/08/2023 - Aprovado: 25/08/2023 - Publicado: 13/11/2023



[1] Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9455-2057 E-mail: heltonadverse@ufmg.br.