O que é uma filosofia da religião efetivamente criativa?
Fábio Antonio da Costa[1]
Resumo: Algumas estruturas conceituais e metodológicas são apresentadas neste artigo como as efetivas fontes que impedem a realização de uma filosofia da religião criativa. O artigo demonstra a invalidade da oposição entre historiografia da filosofia, como trabalho exegético ou reconstrutivo meramente reprodutivo, e filosofia criativa, como resolução ou dissolução de problemas. Uma suposta falta de criatividade não está calcada em um específico modelo metodológico ou pedagógico defasado, mas na ausência de investigação de uma série de pressupostos que constitui, simultaneamente, o que se pensa ser filosofia e o que se julga como história da filosofia. Esses pressupostos serão explicitados pelo esboço de uma teoria dos tropos fantasmas sobre religião. Ao fim, será destacado que as poucas discussões sobre teoria da história, história da historiografia filosófica e concretas investigações interdisciplinares são responsáveis por caricaturas tanto sobre fazer filosofia da religião quanto sobre fazer história da filosofia.
Palavras-chave: Filosofia da Religião. História da Filosofia. Metodologia. Historiografia. Teologia.
Introdução
Este artigo trata de algumas estruturas conceituais e metodológicas que impedem a realização de uma filosofia da religião efetivamente criativa. Por criatividade, nós devemos entender as capacidades tanto de constatar a insuficiência de alguns critérios vigentes no campo de pesquisa quanto de estabelecer as diretrizes para novos marcos teóricos. Essa dupla atividade será explicitada, neste texto, através daquilo que chamo de teoria dos tropos fantasmas sobre religião. Há parentescos do uso que faço do termo tropos com o seu sentido proveniente da retórica, na medida em que são empregados para a transformação do conteúdo ou valor semântico de um termo[2]. Mas os tropos também têm laços com o emprego feito pelos céticos antigos – em Enesidemo, por exemplo – enquanto caminho ou direção do raciocínio[3].
Minhas considerações não nascem a partir do nada. Aqueles que nutrem interesse por filosofia da religião e pela temática da filosofia autoral, no Brasil, muito provavelmente se depararam, no primeiro tomo da edição especial da revista Transformação, dedicada à filosofia autoral brasileira, com o debate entre, de um lado, Agnaldo Cuoco Portugal e Clarissa Pimentel Portugal (2023), e, do outro lado, Murilo Rocha Seabra (2023). Os dois primeiros realizam uma delimitação conceitual do campo filosofia da religião enquanto análise e constituição de argumentos racionais a propósito de problemas, objetos e experiências da esfera religiosa. O termo racional aparece como mecanismo para distinguir a filosofia da religião tanto das ciências empíricas que a têm por objeto, tais quais a sociologia ou a antropologia; quanto da teologia, que estaria ancorada em formas de revelação e, por conseguinte, na fé. Pela disponibilidade do artigo, poupo-me de realizar uma reconstrução dos seus argumentos, cabendo apenas recordar que seus pontos nodais são: uma argumentação por analogia entre a criatividade na música e a criatividade na filosofia; e o uso do conceito psicanalítico de transferência como via para a compreensão de possíveis interações entre professor e aluno que estimulem a formação de um pesquisador criativo.
No artigo de Murilo Seabra (2023), trata-se de uma resposta centrada em condições extrínsecas aos argumentos dos textos, contudo, supostamente fundamentais para a produção do tipo de argumento empregado pelos primeiros autores: a condição autoral brasileira seria qualquer coisa, menos brasileira, porque a proposta dos seus oponentes está determinada por uma linha de raciocínio balizada por seus financiadores, como seria o caso da Fundação Templeton. Tais condições de produção instaurariam um viés de temas e de formas de discussão na filosofia da religião, privilegiando problemas específicos de uma matriz religiosa, como a judaico-cristã, e deixando de lado, por exemplo, formas de religiosidade ameríndias, africanas e afrodiaspóricas.
Minha teoria dos tropos fantasmas sobre religião explicitará que o argumento para a determinação do campo filosofia da religião, a partir do termo abstrato racionalidade, por distinção à análise empírica, é o passo mais breve para a sua autodestruição e pseudocriatividade. Nossos primeiros autores empreendem a analogia entre música e filosofia, a partir de pares dicotômicos, dicotomia mais ou menos atenuada, quando o recurso comparativo insinua suas fraquezas: o trabalho criativo do compositor e o trabalho reprodutivo do executor apresentariam equivalência com o trabalho criativo do filósofo e o trabalho reprodutivo do historiador de filosofia. A teoria que apresentarei explicita por quais razões esses autores possuem uma compreensão equivocada de história da filosofia, sendo prova de tal equívoco a incompetência manifesta, no texto, em sua lida com elementos da história da filosofia e com o status quo da historiografia da filosofia.
Em certa medida, Murilo Seabra conquista razão através do conceito de transferência empregado por seus rivais: longe de haver uma relação de troca criativa, a estrutura conceitual implícita no argumento dos seus oponentes apenas reproduz mais do mesmo, sendo exatamente tal estrutura o elemento transferido para a formatação do aluno, e não sua formação. Por outro lado, as acusações institucionais proferidas por Seabra em nada auxiliam de modo propositivo à renovação da filosofia da religião. O simples justapor, uma ao lado da outra, da diversidade religiosa não impede a supressão das condições de sua compreensão adequada e da especificidade dos seus problemas. Os tropos fantasmas que exporemos são véus aplicáveis a qualquer temática religiosa, tanto capazes de destruir o entendimento das religiosidades ameríndias quanto já se mostraram aniquiladores para o estudo da vida religiosa grega, romana ou medieval.
1 Mecânica da transferência: heranças epistêmicas envenenadas
Inicio minha exposição da teoria dos tropos fantasmas a partir da alegação de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023) sobre a demarcação e a especificidade da filosofia, por contraste à teologia e às investigações empíricas. Denomino tal tropo como o fantasma da singularidade filosófica, exatamente porque as determinações do termo racionalidade são completamente vazias, cabendo apenas as proverbiais caraterizações pela condição geral argumentativa e por formas de inferência. Essa imagem da razão dessituada costumeiramente serve para defender a especificidade do filosófico, por oposição a formas enraizadas do discurso, isto é, aquelas que se nutrem de elementos contextuais, como o discurso teológico ou o discurso poético. Simultaneamente, o recurso serviria como defesa da autonomia do discurso filosófico, cujas regras estariam ancoradas para além de qualquer condicionamento. Por distribuição dessa propriedade do filosófico em si para a especialidade da filosofia da religião, tal campo supostamente assegura sua demarcação e legitimidade.
O que os autores parecem escamotear dos olhos do leitor, por um passe de prestidigitação, é a longa e controversa discussão sobre os pressupostos e a natureza 1) do discurso teológico; 2) da relação entre filosofia e teologia revelada; 3) da relação entre teologia natural e filosofia; 4) das ambiguidades entre teologia natural e teologia racional. Ao tentar caracterizar por exemplificações o que seria a tal racionalidade, os autores primeiramente se valem do caso de Xenófanes de Cólofon, a propósito do antropomorfismo da religião popular grega. Em primeiro lugar, está a suposição da existência de uma religião popular e formas de religiosidades não populares; ou a existência de relações religiosas cindidas daquelas fincadas nos costumes; ou que o filósofo constituiria uma classe produtora de discursos mais racionais, por oposição a outros gêneros discursivos. Se os autores decuparam exemplos para a argumentação, que entreguemos dois outros, completamente avessos aos seus pressupostos.
Jean Rudhardt, na obra Noções fundamentais do pensamento religioso e atos constitutivos do culto na Grécia clássica, explicita que as críticas de filósofos, como Xenófanes ou Platão, às imagens míticas produzidas por alguns poetas mais se deve à reprovação do conteúdo moral expresso do que à forma imagética de representação das divindades. Aliás, como bem mostra o autor, equivoca-se profundamente quem carrega três suposições: 1) que os gregos antigos, mesmo populares, supusessem na forma antropomórfica a cabal representação dos deuses, como se eles não tivessem suas epifanias em formas não humanas ou mesmo não visualizáveis; 2) que a mitologia tivesse o peso de um discurso doutrinário, por meio do qual a validade ou a verdade de uma crença fosse fixada; 3) que não haja grandes diferenças, e até mesmo desacordos, entre o discurso mítico e aquilo que se expressa como prática ritual. As seguintes palavras de Rudhardt (1992, p. 84) condensam esses três pontos:
Não somente a religião, como nós acabamos de ver, distancia-se do ensinamento mitológico, porquanto ela permanece nos limites do antropomorfismo, mas ela tende, a despeito das aparências, a ultrapassar esse antropomorfismo que condiciona o poder de emoção da lenda e sua inteligibilidade.
A respeito de mitos que verbalizam a condição irrepresentável dos deuses, continua Rudhardt (1992, p. 85):
Nós pressentimos assim, ao nos ater ao testemunho da fábula, e a despeito da necessidade funcional que constrange ao antropomorfismo, que o deus não é essencialmente ligado à forma humana, e que sua verdadeira natureza não se revela completamente em suas aparições. Essa descoberta, o exame da vida religiosa nos impõe de uma maneira muito mais contundente.
A falta de qualificação do termo racional para a caraterização da crítica feita por Xenófanes obscurece os possíveis problemas que eram objeto de polêmica. O leitor é capturado por uma ilusão retrospectiva, supondo que havia a demarcação categorial de algo como o discurso mítico; que o discurso mítico seja o sustentáculo das práticas religiosas; que esse discurso é objeto de adesão doutrinal; que essa doutrina expressaria um sistema de crenças sustentador das práticas religiosas. Essas suposições participam da constituição do tropos fantasma da singularidade filosófica, cujo cerne é moldado pela imagem costumeira do filósofo iluminista[4]. Nessa medida, a compreensão da história da filosofia passa a ser um jogo de prefiguração, no qual filósofos como Xenófanes assumem a posição de João Batista, proclamadores dos cordeiros iluministas, como Voltaire ou Kant. Sobre o que está em jogo em Xenófanes e o estatuto do discurso mítico, assim frisa Claude Calame (1991, p. 188-189):
A crítica dirigida por Xenófanes aos poemas homéricos e hesiódicos não se referem, então, a um gênero, menos ainda a um gênero que reuniria todos os relatos hodiernamente tachados de ficção; esses relatos, são eles logoi como são também logoi as composições do próprio Xenófanes. E se eles são objeto de uma rejeição, tal não é por razões de inverossimilitude teológica, mas, no devido caso, porque eles são julgados segundo um critério social de utilidade no contexto da cidade. Trata-se, então, ainda de um sim, mas de um sim condicional à tradição; ela será respeitada na medida em que as ações que ela põe em cena não sejam marcadas pelo selo da desmesura. Pois a tradição, para ser retida, deve servir os interesses dos cidadãos.
É de se crer que o leitor tenha atentado para o fato de que, no caso analisado, o tropo da singularidade filosófica está atrelado ao tropos da cisão entre grupo intelectualizado e grupo popular, o qual chamamos o tropos fantasma da cisão entre erudito e popular. Um fator que nos aprisiona nesses dois tropos reside na falta de caracterização do que é um discurso teológico, sendo simplórias as qualificações de racional ou revelado, baseadas na fé ou no puro raciocínio, pois não se leva em conta o que seria propriamente fé para um grego ou para um romano, se há correspondência com termos como fides[5] ou eusebeia[6]; além de ser pouco nítido se há consonância, tanto procedimental quanto objetual, entre discursos teológicos no interior mesmo daquilo que chamamos a tradição de pensamento canônico. Em termos metodológicos, a falta de discernimentos para esses fatores nos lança para o terceiro tropos, o qual designo como o tropos fantasma da verdadeira doutrina. Como esse mecanismo opera?
O tropo da verdadeira doutrina assume o aspecto de uma verdadeira doutrina do discurso teológico do filósofo, motor esse que leva à busca da unidade sistemática da teologia de um filósofo, em seus escritos; o que pode acarretar aparentes contradições no interior do texto, as quais devem ser dissolvidas pela postulação de um complemento doutrinal externo, que, ao fim, perfaria as peças para a unidade faltante. Por outro lado, a verdadeira doutrina pode ser convertida na postulação da verdadeira intenção do autor, cujo velamento pode ser justificado por outros tropos, por exemplo, que ele não possa expressar suas verdadeiras intenções por razões políticas ou por incapacidade intelectual do público.
Ora, o discurso não é pensado em suas circunstâncias, determinado por problemas concretos, como momento de uma reflexão específica, como ensaio para a resolução de uma questão, como determinado pelo contexto de recepção. Do que a suposição de unidade sistemática dos discursos de um filósofo, mais grave e equivocada é a suposição da unidade e imutabilidade dos problemas ditos filosóficos. A verdadeira doutrina carrega como sombra a ilusão dos problemas perenes, o que nos leva a crer que a pergunta sobre a existência de Deus comporta a mesma estrutura e objeto, no livro lambda da Metafísica, de Aristóteles; na Suma Teológica, de Tomás de Aquino, ou nas Lições sobre a doutrina filosófica da religião, de Kant. Como veremos adiante, essa ilusão é um dos principais pilares que sustentam a ruptura entre fazer verdadeiramente filosofia e fazer história da filosofia.
Aquele que apreciar a história das relações entre os termos filosofia e teologia certamente se deleitará com a obra O desejo da verdade, de Olivier Boulnois (2022). Quando se trata de lidar com os três tropos fantasmas até aqui mencionados, o maior trabalho recai sobre os ombros daqueles que tentam destruí-los, porque tais estruturas epistemológicas, dada a sua difusão, acabaram por se converter no senso comum supostamente razoável, quer do público acadêmico, quer do ideário popular. Destruir tais fantasmas, os quais, quando exorcizados pela confrontação com as fontes, logo se revelam legião possessora de tantos outros corpos, muito mais exige de esforço intelectual do que mistificar sobre a perenidade do problema da existência de Deus.
Boulnois toma para si o encargo de demonstrar que os teologoi são apenas isto: discursos. Aliás, sequer estão comprometidos com uma especificidade filosófica, já que as poesias sobre os deuses também seriam discursos teológicos. Cabe ressaltar que tais discursos não estão calcados em uma unidade sistemática doutrinal e que não lhes falta o jogo de dar e oferecer razões, como entre polemistas, assim como não estão pautados por qualquer sombra de demarcação em relação à filosofia. Que os discursos teológicos sustentem provas sobre Deus, aqui já está posto o problema da equivocidade. Por exemplo, o famigerado livro lambda, da Metafísica, de Aristóteles, jamais se constituiu como prova da existência de Deus, mas sim da necessidade de postular a existência de essências separadas, e separadas de um tipo de matéria responsável pela geração e corrupção: o termo grego theos opera como um coletivo singular, dizendo respeito ao divino e a tudo que é divino, não à existência de um Deus. Obviamente, Aristóteles segue os princípios da sua própria ciência, partindo de pressupostos autoevidentes, como era evidente o movimento circular dos astros. Na obra Aristóteles e a teologia dos viventes imortais, aquilo que lança a evidência das premissas para que possamos especular sobre as essências separadas está enraizado na concepção grega de viventes ou vida, de que os deuses são seres vivos, os quais gozariam da vida excelente de modo imortal. Assim se expressa o autor dessa obra, Richard Bodéüs (2000, p. 4):
Estou falando e continuarei a falar de “o deus” (não de “Deus”) por precaução em evitar mal-entendidos e a fim de respeitar, tanto quanto for possível em inglês, o uso do grego antigo, o qual, no contexto de uma religião politeísta, não reconhecia o uso especializado da palavra theós como nome próprio. Theós no singular pode se referir a qualquer deus na classe do deuses ou ao deus implícito no contexto. Contudo, mais frequência, refere-se ao deus em geral, isto é, coletiva ou genericamente, o indivíduo que pode ser subsumido sob a ideia comum, tal como explicado na Metafísica: o deus, como o ser humano ou o cavalo, é uma espécie dos entes viventes.
O primeiro motor é especulado de maneira analógica, a partir desse pressuposto ou imagem. Jaz nisso o erro de expor um Aristóteles filosófico, que guardaria esotericamente suas especulações propriamente racionais, em contraste com seus discursos sobre os deuses da cidade, presentes em obras como a Política, os quais ali desempenhariam a simples função de crendices convenientes para a manutenção da estabilidade social. Os esclarecidos filósofos contemporâneos transferem para si a supostamente mais medieval das querelas, aquela sobre a dupla verdade, a fim de ter naquilo que julgam como racional o espelho da história universal[7]. Só por razões de engenharia social que um intelectual como Aristóteles poderia aquiescer com religiosidades populares, do mesmo modo como somente podemos conceber em nível metafórico que um Sócrates mande sacrificar um galo a Asclépio.
Na exposição de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023), a figura de Xenófanes opera a função retórica de reafirmação do tropos da singularidade filosófica a partir da criticidade. Tal operação somente é possível, quando caricaturamos a diversidade de práticas e de discursos teológicos vigentes no contexto. Evidentemente, esse recurso serve para apoiar a suposta distinção entre teologia e filosofia, como se houvesse um claro critério de demarcação trans-histórico dos termos ou campos. Que nossos autores indiquem a existência de processos racionais na teologia e processos racionais da filosofia, resta como diferença entre ambos a suposição de que o campo teológico e as práticas religiosas são carentes de criticidade em relação às suas fontes derradeiras: a revelação ou a autoridade da tradição. Com isso, apagam-se as longas e múltiplas controvérsias sobre a determinação do lugar da filosofia, da teologia, da relação entre ambas, bem como da natureza da fé, enquanto elementos cognitivos.
Esse esquecimento permite aos nossos autores realizar uma distinção precária no interior da obra de Tomás de Aquino, alegando que as cinco vias para a prova da existência de Deus, presentes na Suma Teológica, seriam uma argumentação exclusivamente filosófica, sem requisição de elementos da revelação como pressupostos para a sua inteligibilidade. Tal alegação é falsa, não somente no interior do projeto de Tomás de Aquino, como também é incorreta, diante da análise estrita do argumento. Faço questão de mais uma vez invocar o trabalho de Olivier Boulnois (2022), O desejo de verdade, como exemplificação da criatividade, eliminação de pressupostos, abertura de possibilidades de reflexão, destruição de equívocos que uma história filosófica da filosofia é capaz de realizar. Por história filosófica da filosofia está em jogo aquela exposição que reconhece pressupostos em teoria da história, realiza suas devidas críticas e sugere outras possibilidades de reflexão. Se é cabível a analogia entre compositor e intérprete da música com o filósofo e o historiador da filosofia, pois, a história filosófica da filosofia está fadada a ser jazz, em que se compõe interpretando, e se interpreta no ato da composição.
Como salientamos anteriormente, a palavra Deus ou Divino pode operar como um significante flutuante, visto que o divino presente na Metafísica, de Aristóteles, não possui qualquer relação prefigurativa com o conceito de Deus cristão. Nas primeiras três vias, Tomás de Aquino (2001, p. 166-167) termina cada prova com um estribilho que pouco varia: “o que todos entendem por Deus”. Contudo, o que fazemos é já pressupor a referência ao Deus cristão, sem levar em conta que as cinco provas não respondem a qual é a natureza própria desse Deus: as cinco vias não esclarecem nem se, nem como, nem por quais razões desembocam em um termo único, o Deus. A decupagem manualesca do argumento das cinco vias leva a projetar sobre Tomás de Aquino a ilusão de uma prefiguração ou aquiescência do autor àquilo que Nicholas Bonet estabelecerá, em termos metafísicos, como teologia natural, segundo observa Olivier Boulnois (2022, p. 269):
Em realidade, a teologia natural não pode demonstrar a existência do seu objeto: ela não pode ir além, como Tomás na Suma Teológica, das cinco vias que permitem atingir um termo primeiro, à identificação deste com Deus (“isso que todos chamam Deus”). Ela não tem de demonstrar a existência de Deus, pois uma ciência não demonstra a existência de seu objeto, mas o admite como demonstrado em outro lugar. A teologia natural supõe o seu objeto, ela o recebe como demonstrado por ciências prévias. O objeto da teologia natural já está demonstrado, então, pela metafísica. “A consideração do ente é absolutamente anterior segundo a ordem, porque este, pela natureza das coisas, é anterior ao motor imóvel”. Mas isso demonstra unicamente a natureza e a existência de um “primeiro motor”.
Eis o porquê de a teologia natural não falar de Deus. Ela se limita a demonstrar as propriedades do seu objeto, o primeiro motor. Durante o seu ato de nascimento, a teologia natural não fala de Deus, porque ela constrói o conceito de forma metafísica, a priori.
Nada há que seja mais contrário ao projeto intelectual de Aquino do que a suposição de uma teologia natural capaz de acessar o Deus verdadeiro. Tal conhecimento somente é possível por meio da revelação, a qual não se esgota exclusivamente no texto bíblico. Aliás, os textos bíblicos teriam o papel de fontes de uma doutrina sagrada, o conhecimento verdadeiro desfrutado pelos eleitos em estado de beatitude. Seria muito fácil transferir nossas suposições sobre a distinção entre fé e saber, como se os dois termos se constituíssem como par antagônico a-histórico. A teologia, a qual investiga a doutrina sagrada, está fundada como ciência na ciência suprema, isto é, no saber imediato que Deus possui de si mesmo. As limitações do intelecto humano, visíveis em seu caráter discursivo, possuem na teologia não a esfera do irracional, mas do hiperracional, daquilo que ultrapassa o nosso intelecto, todavia, que é o sumamente inteligível, porque perfeito. Observemos uma última citação de Boulnois (2022, p.193):
De pronto, a superposição da razão e da revelação significa que elas não mantêm somente uma relação negativa: a revelação não serve somente para tapar as faltas do nosso conhecimento, ou para nos transmitir verdades que nós não poderíamos descobrir sem ela. Isso nos obriga a pensar que a revelação e a razão não dividem o pensável em duas partes, mas que as mesmas verdades são objeto de uma dupla apreensão, conforme uma abordagem distinta.
Certos intérpretes imediatamente supuseram a oposição filosofia/teologia a esses dois aspectos da revelação, “como se se tratasse de, antes de tudo, separá-los” para garantir a autonomia. Porém, está claro que, para Tomás, a revelação, porque ela contém o conjunto das verdades que nos conduzem ao nosso fim derradeiro, inclui conhecimentos naturais tanto quanto sobrenaturais. Ela os diferencia pela origem, não pelo conteúdo. Há, portanto, duas formas de manifestação de Deus, a revelação e a razão, uma de origem divina, a outra de origem humana, mas a revelação divina abarca, confirma e corrige a manifestação humana. Essa vasta unidade da teologia explica por que ocorre ao teólogo pensar e agir como filósofo. Ele nada mais faz que aprofundar uma revelação (racional mesmo que ultrapasse o nosso intelecto, natural mesmo que sobrenatural). A palavra de Deus recebida na fé abarca o discurso dos homens construído pela razão.
2 Produção criativa como reprodução institucional de erros
O leitor deve se perguntar que funções operam os tropos fantasmas até aqui tratados. Qual tipo de estratégia direciona a ação de decupar a questão 2 da Suma Teológica (Aquino, 2001), abandonando ao mutismo todos os problemas presentes na questão 1, exatamente aquela que tenta determinar a condição da doutrina sagrada como ciência? Se é nessa questão que o estatuto racional da revelação é posto em jogo, bem como a fundamentação da teologia como ciência, por quais razões dela escapamos, tomando como óbvia uma teologia fundada na autoridade, em instância última, avessa à crítica, e uma filosofia, de todo racional e crítica, livre de pressupostos?
Ainda que tomado por elementos de iracúndia, o artigo de Seabra (2023) possui boas doses de razão, ao questionar que tipo de projeto ou modelo institucional está por detrás dos argumentos de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023). Se foi por meio da exposição sobre as conquistas institucionais realizadas pelo campo da filosofia da religião, no Brasil; se foi por meio da crítica a um modo de elaboração de pesquisa filosófica no Brasil; se há ali uma proposta pedagógica de superação de uma forma de pesquisa pouco frutífera, por conseguinte, cabe à nossa dupla de autores também uma crítica filosófica institucional, responsável por demonstrar que sua compreensão do modo de realização da historiografia da filosofia é pífia, assim como que o seu modelo de criatividade é um engodo.
Em 2017, John Marenbon, convidado para a anual Aquinas Lecture, na Universidade de Maynooth, pronunciou a conferência provocativa intitulada Why we shouldn’t study Aquinas (Marenbon, 2017). Não é o caso de reconstruirmos todas as suas ideias, mas somente aquelas que dizem respeito ao nosso debate. Um dos argumentos utilizados para que se continuem os estudos de Tomás de Aquino, principalmente por parte dos seus colegas pertencentes à filosofia analítica, está na condição inspiradora dos seus argumentos. O filósofo é aqui pintado conforme o modelo do tropos fantasma da singularidade filosófica, uma vez que sua atividade fundamental seria resolver ou destruir problemas. Como historiador da filosofia medieval, Marenbon (2017) reconhece a grandeza de Aquino, contudo, salienta que o autor não resguarda uma absoluta singularidade criativa, nem maior perspicácia intelectual, nem compôs as obras filosoficamente mais argutas.
Para o singular filósofo solucionador de problemas, o contexto de produção e de recepção, as condições institucionais, a esfera cultural, o conjunto de pressupostos, o contexto de emissão e a reelaboração do discurso de Aquino, nada disso importa. A centralidade de Aquino poderia ser ilusória, pois o filósofo talvez encontrasse inspiração exatamente naquelas fontes negligenciadas ou supostamente pouco representativas. A ilusão de Aquino como o repositório próprio de inspirações acaba lançando um véu sobre outras referências, igualmente muito importantes. Concomitantemente, o descarte de elementos contextuais engendra o engano, como bem vimos, de que Aquino está em consonância com a nossa forma de colocar um problema. Além disso, esse suposto espelhamento nos transmite o pressuposto, de grande relevância metodológica, sobre a existência de problemas filosóficos perenes, ou seja, a-históricos.
Uma corrida de cavalos, um jogo de videogame, um romance policial ou um passeio na praia poderia ser tão inspirador, filosoficamente, quanto Tomás de Aquino. A singularidade filosófica resolvedora de problemas bem poderia concordar, mandando Aquino às favas. O leitor deve perguntar: e o que se perde com isso? A perda já está exposta na forma e nos argumentos do artigo de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023). Nele está ausente a compreensão dos elementos histórico-conceituais que determinam um campo como sendo ou não sendo filosófico, restando apenas o apelo a nomes vazios, como criticidade ou racionalidade, para fabricar demarcações. A mistificação medrada pelo tropos da singularidade filosófica faz crer que o indivíduo, erguido sobre a genialidade de sua própria cabeça, determina quais são os problemas e o lugar da filosofia.
Creio que o leitor já tenha notado elementos mais capciosos na analogia entre a composição musical e a atividade filosófica: há uma história dos problemas, como uma corrente que é transmitida e solucionada; o indivíduo filosófico é como o criativo musical, o qual lança o seu singular tijolo no edifício da criação. Como um misto de gênio e empreendedor, o indivíduo filosofante deve ser otimizado pedagogicamente pela dissolução dos entraves à sua espontaneidade. Daí se segue todo o arrazoado sobre transferência entre professor e aluno, sem que sejam recordadas transferências neuróticas, tais como os fraseados metodológicos dos tropos já assinalados.
Embora a conferência de John Marenbon (2017) esteja centrada em uma crítica ao que chama de aquinocentrismo no estudo da história da filosofia medieval, parte de suas observações possui consonâncias com as objeções apresentadas por Seabra (2023). Marenbon (2017) descreve os prejuízos de um uso meramente instrumental de autores medievais, por parte de acadêmicos, com a finalidade de sustentar suas convicções religiosas ou compartilhadas por instituições às quais estejam filiados. Se, de uma parte da filosofia analítica, a história da filosofia se converte em disciplina ancilar responsável por fornecer problemas que serão resolvidos pelos verdadeiros filósofos, de outra parte, a filosofia analítica se converte em mecanismo para compatibilizar filósofos medievais com problemas que são específicos da nossa época (Marenbon, 2017, p.12):
O resultado é ruim como filosofia. Pode muito bem haver alguma continuidade nos problemas filosóficos ao longo das eras, mas a forma e o contexto desses problemas mudam - especialmente, o contexto científico foi transformado desde a Idade Média. Um filósofo do passado, como Aquino, pode realmente fornecer inspiração e talvez o argumento apropriado ocasional (embora, como eu disse, acredito que isso raramente aconteça). Mas decidir falar pela voz de uma figura já falecida, supostamente interpretando seus pensamentos em um idioma contemporâneo, é uma maneira certa de permanecer à margem dos debates filosóficos atuais.
O resultado é ainda pior como história. Em seus esforços para dizer algo relevante ao debate contemporâneo, esses especialistas se afastam de interpretar de forma caridosa o que, por exemplo, Aquino escreveu, para explicar o que ele deveria ter escrito, mas não escreveu, sobre especulações que não têm absolutamente nada a ver com ele.
A partir de tais estudos, não podemos aprender nenhuma história. Além disso, essa abordagem trai a história da filosofia como uma disciplina autônoma. Isso sugere que o farto banquete da filosofia, conforme foi perseguido ao longo dos séculos, é valioso apenas pelas migalhas que os historiadores da filosofia podem recolher dele e trazer para a mesa dos praticantes da filosofia de hoje.
É de se supor que os leitores de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023) concordem com uma suposta hiperinflação da produção em historiografia da filosofia, no Brasil. Antes de tal aquiescência, o que o leitor deve questionar é qual tipo de história da filosofia nós produzimos. Para ser mais explícito, a historiografia da filosofia domina a série de debates e ferramentas conceituais provenientes do núcleo filosófico que constitui a história como ciência, ou seja, a epistemologia e a teoria da história? Aquilo que, em geral, nos é apresentado como exemplar do modelo historiográfico é a análise e a reconstrução da estrutura imanente do texto, tendo como o seu mítico patrono a figura de Martial Guéroult. Digo mítico, mas não prático, porque parece ser o destino dos epígonos a produção de maneirismos, mas não de obras de arte. Isso porque Guéroult, como é possível verificar nos dois volumes de sua Dianoemática (Guéroult, 1979), possui plena consciência da história da filosofia como sendo em si mesma um grave problema filosófico.
Observemos que a própria posição de ter na história da filosofia simples reservatórios de problemas possíveis fomenta a condição problemática da história da filosofia. Se a filosofia pretende alcançar algo como a verdade, o que fazer das miríades de propostas, entre si inconciliáveis, sobre critérios do verdadeiro e do falso, do bem e do mal? A filosofia cumpriria o mesmo destino das ciências empíricas, para as quais os problemas pregressos e a sua história em nada participariam das investigações vigentes, não sendo necessário, por exemplo, conhecer a história da mecânica quântica para solucionar um problema específico desse campo de pesquisa?
Isso nos permite supor, então, uma perenidade dos problemas, se, como já bem vimos, entre o divino de Aristóteles e o Deus de Aquino há um abismo de equivocidade? O que pergunta aquele que requisita uma prova da existência de Deus? Observemos que Guéroult não deseja reproduzir uma solução para a história da filosofia segundo o modelo classificatório de Renouvier[8], como se um mínimo de categorias perenes se repetisse ou recombinasse, ao longo da história da miríade de filosofias. Não há, para Gueroult, uma lógica transcendental da história da filosofia, o que significa retirar uma possível primazia de uma filosofia da história. Para o autor da Dianoemática, cada filosofia é em si um sistema, conforme os parâmetros desse conceito estabelecidos por Kant, na Crítica da Razão Pura. Cada sistema filosófico não é uma visão de mundo, todavia, um mundo de conceitos, uma totalidade fechada em que a estrutura conceitual perfaz uma arquitetônica. Logo, é possível dizer que cada sistema filosófico é em si mesmo uma Ideia: incomensurável em relação a outros projetos filosóficos, mas, por isso mesmo, eterno, uma vez que cada sistema filosófico funda o real.
Infelizmente, os epígonos de Guéroult são incapazes de observar o legado produtivo de suas ideias, disso sendo um caso exemplar o projeto do Tratado da Argumentação ou Nova Retórica, de Chaim Perelman (1996). No capítulo IV da obra citada, o qual trata da dissociação das noções, Perelman, inspirado por Guéroult[9], dedica algumas seções, a fim de demonstrar como as diferentes doutrinas filosóficas operam estabelecendo critérios e ressignificando o conteúdo semântico de pares antitéticos como realidade-aparência. Essa operação proposital no âmbito da argumentação filosófica, capaz de reformular a semântica da vida cotidiana, geralmente se confronta com pressupostos sobre a realidade, derivados de elementos conceituais prévios embutidos no arcabouço cultural.
Ora, só esse fator já torna filosoficamente relevante a própria história da filosofia, não como registro de conceitos, mas como investigação de processos: por exemplo, o processo de confrontação, recepção e transformação de conceitos, por parte de um público. No caso de Guéroult, não estamos diante de um simples modo de ler e reconstruir filosofias, contudo, perante uma posição sobre a natureza do que é a filosofia, assim como diante de uma teoria filosófica sobre a história da filosofia. Talvez seja irônico que Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023) estabeleçam os parâmetros do que deveria ser feito como filosofia, exatamente através da figura retórica da analogia. Que essa analogia da música com a filosofia, a partir da distinção entre trabalho criativo e trabalho reprodutivo, de todo seja um fracasso, este artigo tentou demonstrar pelo lado da filosofia. Cabe saber, da parte dos músicos, se eles se contentam com tal divisão.
3 Os tropos como operadores de sentido
Por fim, suponho que os leitores estejam se perguntando que fim tomou a teoria dos tropos fantasmas na filosofia da religião. Sua explicitação conceitual somente poderia se dar agora, quando ultrapassamos a analogia instaurada por Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023) e quando foi apresentada a indicação da operação retórica de instauração do real. Cabe confessar que a teoria dos tropos fantasmas não é propriamente uma teoria, mas uma estrutura metateórica que opera em diferentes teorias. Certamente, aqui foram enunciadas apenas três das suas figuras: o tropo da singularidade filosófica, o tropo da oposição entre erudito e popular e o tropo da verdadeira doutrina. Enquanto instrumentos operatórios metateóricos, sua condição fantasmática começa a ser explicitada. Eles perfazem um conjunto de pressupostos em diferentes teorias, utilizáveis para os mais diferentes objetos temáticos, e perfazem o lugar-comum, o real comum compartilhado por diversos meios acadêmicos e intelectuais. Esses tropos são, fundamentalmente, operadores de legitimação do presente, particularmente da modernidade. Eles realizam uma clivagem temporal, colocando ao lado do passado um valor negativo, e positivando o estatuto do presente. Em boa medida, intelectuais contemporâneos buscam no passado uma prefiguração do presente, como se sua própria condição fosse um destino cultural/institucional.
Xenófanes de Cólofon foi engolido pelo tropo da singularidade filosófica, como se nele residisse a praeparatio evangelica do deus puramente conceitual; como se suas palavras fossem uma crítica ao cerne das práticas religiosas gregas. O Xenófanes iluminista, com isso, também demonstra ser determinado a partir do tropo da oposição entre erudito e popular, uma vez que não compactuaria com crenças desarticuladas e pouco críticas, muito menos desfrutaria de suas práticas. Semelhantes mecanismos servem para decupar o argumento das cinco vias, de Aquino, porque supomos que ali resida o núcleo verdadeira e singularmente filosófico, independente de elementos teológicos, mais dados a crédulos. Ambos preparam a verdadeira doutrina: a religiosidade puramente pessoal, subjetiva, individualizada, a qual criticamente se distancia de práticas comunitárias ou concretas, porque ou bem a pura fé do coração, ou bem a pura razão é capaz de desvelar o divino. Converter as cinco vias de Aquino em sustentáculo da teologia natural, embora vá contra o projeto filosófico do autor, bem pode servir para o nosso próprio projeto filosófico, se nos contentarmos com a miséria que nos impinge a cegueira em relação aos nossos pressupostos. Parece que esses pressupostos criam um desnível valorativo que apenas afeta a temporalidade entre passado e presente. Além de ser diacrônico, ele também é sincrônico, porque formas de religiosidades que representam seus deuses, de modo antropomórfico, só podem aguardar por futuro destino mais filosófico ou crítico.
Conclusão
Não há, na minha última observação, qualquer laivo de defesa da diversidade por pendor populista ou anseio pela constituição de um museu da pluralidade. Se uma estratégia argumentativa de Cuoco Portugal e Pimentel Portugal (2023) foi de recapitular as conquistas realizadas pelo campo da filosofia da religião, por conseguinte, a posição discursiva que tomaram foi a de representantes do campo. Se o argumento desses representantes é por uma diminuição do trabalho reprodutivo da pesquisa historiográfica, em favor do trabalho criativo do filósofo, e que, para isso, poderíamos encontrar um caminho de “cura”, por meio da transferência, então chegamos às seguintes conclusões:
1) O campo da filosofia da religião parece ser incompetente em relação aos pressupostos teórico-metodológicos com que opera.
2) O campo da filosofia da religião crê que pressupostos teórico-metodológicos que violentam o objeto de pesquisa não são as verdadeiras fontes de entrave para a criatividade, mas que a natureza do obstáculo está em condições psicológica/pedagógica/individual.
3) Os tropos fantasmas, aqui assinalados, são barreiras cruciais para a compreensão de diversos modos de prática e reflexão a propósito da religiosidade.
4) O campo da filosofia da religião desconhece as disputas conceituais nas áreas da teoria da história e da metodologia da historiografia da filosofia.
5) O campo da filosofia da religião, ao ficcionalizar critérios de demarcação entre áreas como filosofia, teologia, antropologia da religião, história da religião, está condenado ao isolamento por falta de criatividade. Os campos que, se confrontados, levariam ao exorcismo dos seus tropos fantasmas, são mantidos apartados, ou apenas com função ancilar, uma vez que o filósofo é um puro resolvedor de problemas abstratos.
6) O projeto enunciado pelos representantes do campo da filosofia da religião, a resolução ou a dissolução de problemas, apenas se configura como um modo tosco de compreender a criatividade. Como vimos neste artigo, pelos argumentos de John Marenbon (2017), esse projeto nada mais é do que a implementação de um modelo da filosofia analítica anglo-saxã, cuja operação não se reduz ao uso de meios argumentativos formais.
O que ofereço aos leitores é uma via negativa para a realização de uma filosofia da religião. Sua negatividade está na destruição de pressupostos, os quais, precisamente, a teoria da história e a historiografia da filosofia poderiam aniquilar. Se os leitores não se viram convencidos pelos nossos argumentos, ao menos lhes resta a vantagem de não terem sido enganados pelas pretensões de brasilidade e nem pelo charlatanismo de uma terapia para a falta de criatividade.
What is an effectively creative philosophy of religion?
Abstract: Some conceptual and methodological structures are presented in this article as the effective sources that prevent the realization of a creative philosophy of religion. The article demonstrates the invalidity of the opposition between the historiography of philosophy as merely exegesis or reproductive reconstruction and creative philosophy as the resolution or dissolution of problems. A supposed lack of creativity is not based on a specific outdated methodological or pedagogical model but on the absence of an investigation into a series of assumptions that simultaneously constitute what is thought to be philosophy and what is regarded as the history of philosophy. These assumptions will be elucidated through the outline of a theory of phantom tropes about religion. In the end, we will highlight that the few discussions about the theory of history, the history of philosophical historiography, and concrete interdisciplinary investigations are responsible for caricatures both of doing philosophy of religion and of doing the history of philosophy.
Keywords: Philosophy of Religion. History of Philosophy. Methodology. Historiography. Theology.
Referências
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Recebido: 22/10/2023 – Aprovado: 09/02/2024 – Publicado: 30/05/2024
[1] Docente no curso de Filosofia das Licenciaturas integradas em Humanidades do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8058-5859. E-mail: fabio.costa.1@cp2.edu.br.
[2] Sobre o conceito de tropos, na literatura, conferir o capítulo III de Robert Curtius (1996).
[3] A respeito do conceito de tropos e sua sistematização, no ceticismo grego, conferir o capítulo III do livro III de Victor Brochard (2009).
[4] Para uma crítica minuciosa das suposições sobre as formas de religiosidade da Grécia antiga, como a exclusividade do antropomorfismo, a narrativa mítica como expressão de sistema doutrinário de crenças, a cisão entre religião popular e religião erudita, a ruptura da filosofia com as práticas religiosas, conferir Bonnechere e Pirenne-Delforge (2019).
[5] Para uma análise histórico-semântica do termo fides no contexto da Roma Antiga, conferir Dumèzil (1969, capítulo II)
[6] Para uma análise histórico-semântica do termo eusebeia, particularmente no contexto intelectual da Grécia clássica, conferir Meijer (1981).
[7] Ao mencionar a querela sobre a dupla verdade – que pode ser designada como a disputa sobre a validade da ideia de que uma sentença seja verdadeira em filosofia, mas falsa para a fé cristã, e vice-versa –, tenho propósitos metodológicos graves. A dupla verdade se constitui como categoria historiográfica da filosofia que parece sofrer, ela mesma, com uma dupla verdade. Em termos de comprovação documental de sua defesa filosófica, ela jamais ocorre em nenhum filósofo medieval. A dupla verdade parece operar mais como uma categoria de acusação, particularmente empregada por filósofos modernos. Todavia, se a dupla verdade operou como categoria de acusação na famigerada condenação de Tempier, de 1277, por quais razões ela era crível, verossímil, ainda que sem defesa expressa em nenhum texto filosófico medieval até agora conhecido? Ou seja, a dupla verdade é falsa como posição defendida por filósofos medievais, todavia, é verdadeira como categoria de acusação ou como um lugar-comum filosófico verossímil. Para uma história da categoria “dupla verdade”, conferir Luca Bianchi (2008), porque seu trabalho historiográfico é um dos primorosos exemplos que demonstram as condições institucionais constituidoras da forma de estabelecimento de um problema filosófico.
[8] A explícita demarcação de posição diferente daquela sustentada por Renouvier pode ser exemplificada em um artigo de Guéroult (2007).
[9] Para a compreensão das influência de Guéroult sobre Perelman, bem como os contextos filosóficos, culturais e institucionais que servem como solo para o projeto filosófico de Guéroult, conferir Laerk (2020). Creio que ainda nos falte realizar uma história comparativa da recepção de Guéroult, na França e no Brasil. Tal história é importante para que não se constitua uma espécie de imaginário da herança francesa maldita. É possível que essa comparação acabe por apontar para percursos institucionais inusitados, como a falta de tradução da Dianoemática para o português, indicando certo desleixo dos epígonos brasileiros de Guéroult; ou que a suposta forte herança francesa seja apenas uma parte da história, restando um considerável quinhão para o fenômeno da americanização do modelo acadêmico brasileiro.