Duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um Feminismo Decolonial e Antirracista

 

Roberta Bandeira de Souza[1]

 

Resumo: O artigo apresenta e discute duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um feminismo afro-latino-americano verdadeiramente comprometido com a ruptura dos mecanismos de opressões coloniais, bem como interessado na libertação de todos os seres humanos subalternizados pelo processo de colonização europeia. A primeira contribuição diz respeito à importância de se compreender a formação da sociedade brasileira em perspectiva decolonial, enquanto a segunda se refere à necessidade de os movimentos feministas incluírem as pautas raciais em suas agendas, a fim de se engajarem na luta antirracista.

 

Palavras-chave: Lélia Gonzalez. Feminismo. Racismo. Luta antirracista. Pensamento decolonial.

 

Introdução

Popularizando-se entre as décadas de 1960 e 1970, nos EUA, o Feminismo Negro atuava contra as violências peculiares que atingiam as mulheres de cor e as invisibilizavam no interior das associações femininas que clamavam por liberdade e igualdade. Nesse sentido, a categoria da interseccionalidade foi central nos estudos das norte-americanas Kimberlé Crenshaw, Angela Davis, Patricia Hill Collins e bell hooks, pois diz respeito à conexão das múltiplas opressões, comumente representadas na tríade raça-gênero-classe, sofridas pelas mulheres negras[2].

Dado o seu caráter contra-hegemônico, a interseccionalidade, relida a partir de contextos regionais, é recuperada no Feminismo Decolonial. Abrigando a multiplicidade das reivindicações das mulheres cruelmente subalternizadas pela empresa colonial, o Feminismo Decolonial ou os feminismos descoloniais ampliam-se, na segunda década do século XXI, como movimentos teórico-práticos contrários ao Feminismo Hegemônico, majoritariamente conduzido por mulheres brancas contempladas, ao menos em parte, na agenda racista, heteronormativa e neoliberal[3].

O texto Colonialidade e gênero (2008), da pensadora María Lugones, escrito em diálogo com a concepção de colonialidade do poder do sociólogo Aníbal Quijano[4], é aceito como importante marco teórico para a reinterpretação da interseccionalidade, em perspectiva decolonial. A autora apropria-se da intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade, a fim de denunciar a permanência das técnicas coloniais no processo de subalternização das mulheres de cor da América Latina.[5] A bipartição do gênero em feminino/masculino, a exemplo da definição de raça, é uma invenção da racionalidade instrumental europeia, para classificar as nativas como frágeis, incapazes e obedientes, facilitando, assim, a submissão delas ao patriarcado. Destarte, Lugones defende que a emancipação das mulheres do Sul global passa necessariamente pela descolonização dos seus corpos, territórios e saberes.

No Brasil, Lélia Gonzalez (1935-1994) já havia antecipado, entre os anos 1970 e 1980, o profícuo debate sobre interseccionalidade promovido pelo Feminismo negro estadunidense e pelo Feminismo Decolonial latino-americano. Filósofa e ativista, circulando entre os meios intelectuais e os movimentos negros de base, Gonzalez reconheceu o racismo como a estrutura colonial sobre a qual se ergueram as instituições brasileiras responsáveis por reproduzir as violências contra os povos indígenas e africanos. O esquema de submissão perpetrado pelo colonialismo condenou as mulheres não brancas à tripla opressão racial, sexual e socioeconômica. Porém, Gonzalez reconhece que as ameríndias e amefricanas criaram formas de resistência à superexploração de suas mentes e seus corpos, por isso, alguns de seus descendentes escaparam do genocídio, etnocídio e epistemicídio empreendido pelo homem europeu.

Diante dessas considerações, apresentaremos duas contribuições de Lélia Gonzalez para a consolidação de um feminismo afro-latino-americano comprometido em abalar o antigo e, ao mesmo tempo, sempre renovado sistema de opressões coloniais contra mulheres, assim como engajado na luta antirracista.

1 Contribuição 1: rever a história do Brasil em perspectiva decolonial

Gonzalez orienta revisitarmos criticamente a história da escravização, da resistência e da suposta integração socioeconômica do(a)s africano(a)s no Brasil. Justamente por isso, a filósofa destaca a necessidade de estudar as fontes de teórico(a)s que escapam às “[...] astúcias da razão ocidental” (2020, p. 31), ou seja, das narrativas dos colonizadores, e desvelam o país do ponto de vista dos povos colonizados.

Em linhas gerais, seguindo o mesmo modelo implementado nos outros territórios americanos, o(a)s indígenas que habitavam a Pindorama, que passou a ser chamada de Brasil pelos invasores, tiveram seus corpos, territórios e culturas submetidos ao aparato jurídico-administrativo da Coroa portuguesa. Destinadas aos serviços domésticos ou para a lavoura, as indígenas foram as primeiras mulheres a serem violentadas pelo homem branco e, portanto, obrigadas a iniciarem a “miscigenação da raça”[6]. A servidão forçada do(a)s nativo(a)s teve diferentes fases e serviu a propósitos político-econômicos diversos, não sendo substituída sumariamente pela exploração da mão de obra africana. No entanto, ao passo que, entre os séculos XVI e XVII, coexistiam intensamente a escravidão das populações originárias e afrodiaspóricas, do século XVIII a meados do XIX, o lucrativo tráfico transatlântico despejou cada vez mais corpos negros no Brasil, para serem exaustivamente explorados. Assassinato, doenças trazidas com os invasores, fuga ao adestramento europeu e fome foram alguns dos motivos que levaram à diminuição drástica da população nativa e ao aumento da escravização do(a)s africano(a)s[7]

Gonzalez não nos deixa acreditar no mito da submissão passiva do(a)s indígenas e africano(a)s aos portugueses. A verdade é que os dois povos resistiram muito ao trabalho forçado e à destruição de suas culturas; a prova disso foram as intensas batalhas travadas entre colonizadores e colonizados. No caso específico da mulher negra, ela sempre participou dos processos de luta contra a escravidão:

[...] enquanto escrava do eito, ela estimulou os companheiros para a revolta, a fuga e a formação de quilombos. Enquanto habitante destes últimos, ela participou, como em Palmares, das lutas contra as expedições militares destinadas à sua destruição, nunca deixando de educar seus filhos dentro do espírito antiescravista, anticolonialista e antirracista (Gonzalez, 2020, p. 198).

A mulher negra e os seus companheiros “sacam”, como diria Gonzalez, muito cedo, que o seu povo é o sustentáculo econômico do regime colonial, assim, articulam formas de escapar da superexploração da elite branca. A fuga não é apenas uma estratégia de sobrevivência, mas é encarada como a possibilidade de formar sistemas alternativos comprometidos com a autonomia e a dignidade da população negra[8]. Beatriz Nascimento (2021, p. 129), grande estudiosa dos quilombos, ensina-nos “[...] que a fuga, longe de ser espontaneísmo ou movida por incapacidade para lutar é, antes de mais nada, a decorrência de todo um processo de reorganização e contestação da ordem estabelecida”. Para além do medo das chibatadas, o(a)s escravizado(a)s africano(a)s sempre almejaram constituir outro modo de vida muito diferente daquele determinado pelo racismo dos invasores europeus.

Na compreensão de Gonzalez, a mulher negra atuava, principalmente, em duas frentes: nos quilombos e nas senzalas, educando seus(as) descendentes a não aceitarem o lugar de humilhação imposto pelo racismo; na Casa-Grande, exercendo o papel de guardiã das manifestações culturais africanas. A respeito dessa segunda atuação, ao ser utilizada para os trabalhos domésticos, como mucama e/ou ama de leite (mãe preta), a mulher negra tinha contato direto com seus dominadores. Embora tal relação de subordinação implicasse “[...] desde a violência sexual e os castigos até a reprodução da ideologia senhorial” (Gonzalez, 2020, p. 199), possibilitava também a transmissão de valores e crenças africanas à família branca que ficava sob seus cuidados. Segundo Gonzalez (2020, p. 199), a mulher negra

[...] passou para o brasileiro branco as categorias da cultura negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em “pretuguês”) e, consequentemente, a cultura brasileira. E no caso nordestino, foi contando história pro “sinhorzinho” que ela transou o Zumbi enquanto figura ameaçadora de crianças malcriadas [...].

 

Falar de Zumbi, um dos grandes líderes do Quilombo de Palmares, não tinha o mero objetivo de amedrontar o(a)s insolentes filho(a)s das senhoras, mas de incutir na mente dele(a)s a figura do herói que ameaçava a estrutura do regime escravista, tendo no horizonte a libertação do povo negro. Em análise arrojada, Gonzalez (2020, p. 51) conclui:

Palmares foi a primeira tentativa brasileira no sentido da criação de uma sociedade democrática e igualitária que, em termos políticos e socioeconômicos, realizou grande avanço. [...]. Assim, a mulher negra, conscientemente ou inconscientemente, foi responsável por um duplo feito: introduziu o símbolo de Zumbi enquanto herói genial e fincou as raízes da cultura afro-brasileira na morada dos seus algozes.

 

A mulher negra, indica-nos Gonzalez, desempenhou com maestria suas tarefas antiescravistas, falando pretuguês, linguagem que por si só já representa a resistência da cultura africana, no Brasil.  Em entrevista publicada no livro Patrulhas Ideológicas, quando questionada sobre a reivindicação de minorias culturais no Brasil, Gonzalez (2020, p. 291) foi enfática: “Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria cultural a gente não é não, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português [...] é ‘pretuguês’”.  Conforme a filósofa, a mãe preta, ao mesmo tempo que amamentava as crianças brancas, introduzia no cotidiano delas a comunicação por meio de palavras pronunciadas de acordo com as línguas africanas quimbundo e ambundo. Em face desse fato, o léxico do colonizador foi subvertido e o(a)s brasileiro(a)s passaram a falar pretuguês, língua que expressa o “[...] modo de ser, de sentir e de pensar” do povo negro (Gonzalez, 2020, p. 291).

Ao revisitarmos os escritos de Gonzalez, não restam dúvidas sobre o papel preponderante da mulher negra, no enfrentamento do regime colonial. Contudo, a sua luta diária para manter-se viva, em um país fundado no racismo, no sexismo e no elitismo, não foi amenizada com os eventos do grito da independência de D. Pedro (1822) e da abolição da escravatura (1888). Ao contrário, ela continuou sendo impiedosamente explorada, em prol do progresso das famílias brancas do Brasil. Em concordância com Lélia Gonzalez, a filósofa Sueli Carneiro (2020, p. 156) denuncia o espectro da colonização que acompanhou (e ainda acompanha) a vida das negras brasileiras:

Após a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, a população negra não foi integrada à sociedade; ela permaneceu discriminada, à margem das mudanças estruturais que ocorreram na economia. [...]. As ofertas de emprego no mercado de trabalho continuaram restringindo a participação da mulher negra, e esta via-se obrigada a trabalhar como mucama, ama-de-leite, dama de companhia, ou então prostituindo-se, aproveitando-se da sua disseminada fama de “boa de cama”.

         

Embasando a tese de que a mulher negra continuou sendo usada como força de trabalho em empregos precarizados, no século XX, no ensaio Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher, Gonzalez aponta os resultados do Censo Demográfico do IBGE de 1950, com o intuito de enfatizar a ligação entre educação e serviços mal remunerados. A expectativa da mulher negra de ascender socioeconomicamente era quase nula, uma vez que possuía baixa escolaridade, no máximo chegava ao segundo ano do Ensino Fundamental; e as profissões habitualmente reservadas às moças, como prestação de serviço em escritórios e bancos, exigiam maior qualificação[9]. Todavia, passar menos tempo nos bancos das escolas, na maioria dos casos, não era uma escolha da mulher negra, todavia, empreitada do projeto colonial/racista para manter a opressão sobre a população afro-brasileira.

Ainda que a mulher negra obtivesse grau de instrução melhor e estivesse apta a trabalhar com a prestação de serviços não domésticos e/ou sexuais, ela sofreria mais uma interdição devido à sua aparência: “Que se leiam nos anúncios dos jornais na seção de emprego; as expressões ‘boa aparência’, ‘ótima aparência’ etc. constituem um código cujo sentido indica que não há lugar para a mulher negra” (Gonzalez, 2020, p. 42). Logo, ao naturalizar a pobreza e o desamparo da mulher negra, “[...] o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa” (Gonzalez, 2020, p. 42).

A noção de racismo cultural, trazida na citação anterior, ancora-se na combinação de ideias do intelectual-ativista Abdias Nascimento e do filósofo marxista L. Althusser. Gonzalez assinala que as práticas de discriminação contra as mulheres negras e o seu povo são propagandeadas e incentivadas pelos aparelhos ideológicos de Estado[10]. Por isso, o sistema educacional, em todos os seus níveis, reproduz o eurocentrismo e a crença na superioridade dos norte-americanos, de modo que as escolas atuam no sentido de ocultar a enorme influência da África na formação do Brasil. O que decorre daí é a alienação da identidade negra do(a)s estudantes e a reiterada tentativa de negar o racismo:

[...] livros didáticos, atitudes dos professores em sala de aula e nos momentos de recreação apontam para um processo de lavagem cerebral de tal ordem que a criança que continua seus estudos e que por acaso chega ao ensino superior já não se reconhece mais como negra. E são exatamente essas “exceções” que, devidamente cooptadas, acabam por afirmar a inexistência do racismo e de suas práticas. Quando se dá o oposto, isto é, a não aceitação da cooptação e a denúncia do processo de superexploração a que o negro é submetido, surge imediatamente a acusação de “racismo às avessas” (Gonzalez, 2020, p. 39).

Estudar pouco, trabalhar excessivamente, receber remunerações irrisórias e sofrer a tripla opressão raça-gênero-classe são as condições de grande parte das mulheres negras. Pondo a lupa sobre o processo de subalternização e superexploração, Gonzalez instiga a reflexão: por que os movimentos feministas silenciam sobre a discriminação racial sofrida pelas mulheres negras? Tais problemáticas atingirão frontalmente as lideranças brancas que erguem a bandeira da igualdade de gênero.

 

2 Contribuição 2: reconhecer o racismo e a luta antirracista como pautas irrecusáveis do feminismo 

No escrito Racismo e sexismo na cultura brasileira, Gonzalez investiga, à luz da psicanálise de Freud, Lacan e M. D. Magno, os efeitos do mito da democracia racial na vida das mulheres negras. Ao buscar desmistificar o predomínio da tolerância racial, no Brasil, por exemplo, aquela suposta suavidade presente no vínculo entre senhores e escravos no período colonial[11] ou o hipotético trato carinhoso dado às empregadas domésticas negras pelas patroas brancas, nos séculos XX, a filósofa parte da tese de que “[...] o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira” (Gonzalez, 2020, p. 76).

Sem pretendermos nos aprofundar nas discussões da tradição psicanalítica, porém, a fim de entender o significado da neurose mencionada por Gonzalez, no excerto acima, nós nos limitaremos a reproduzir duas explicações simplificadas de Freud sobre o tema: “[...] a neurose seria o resultado de um conflito entre o Eu e seu Id” (Freud, 2011, p. 159); “[...] a neurose se contenta em evitar a porção da realidade em questão e proteger-se do encontro com ela” (Freud, 2011, p. 198).  A tensão entre o Eu (ego), parte mais consciente da psique, e o Id, região da mente dominada pelos desejos inconscientes, dá-se porque o Eu busca limitar ou censurar os impulsos desenfreados do Id, contudo, quando a repressão das pulsões fracassa, surge a neurose. Logo, esse estado psíquico resulta dos desejos recalcados que deveriam ficar represados no inconsciente, mas escapam à consciência, por meio de pensamentos, atos e gestos, ou seja, dos sintomas neuróticos.

Importante destacar que, para Freud, as culturas, assim como os indivíduos, também desenvolvem neuroses, pois o processo civilizatório ocorre mediante a repressão das pulsões mais primitivas dos sujeitos, com o objetivo de garantir segurança e bem-estar social: “Se toda cultura exige renúncia pulsional e se tal renúncia se aglutina nas exigências superegoicas, disso se segue que toda cultura é neurótica [...]” (Silveira, 2022, p. 4). Acompanhando o mesmo raciocínio, Gonzalez entenderá o racismo como a manifestação, portanto, sintoma, da neurose cultural brasileira.

Diante do exposto, o mito da democracia racial é inventado para ocultar a imposição dos valores europeus como padrão de existência em detrimento dos costumes dos povos africanos e originários e, segundo já mencionamos, o mito atinge seu propósito, sustentando a falsa ideia de que brancos, indígenas e negros convivem harmoniosamente. Tal mentira nada mais é do que a representação da neurose cultural brasileira, pois prega a igualdade entre as raças, todavia, na verdade, o(a)s brasileiro(a)s são induzido(a)s a desprezar os modos de vida não brancos. Assim, como em toda neurose, a tensão entre o desejo colonial de branquear a nação, a partir do apagamento das culturas negras e indígenas, e a negação desse desejo, por meio do mito da democracia racial, verifica-se no sintoma, o qual, nesse caso, é expresso nas falas e ações racistas. Salienta Gonzalez (2020, p. 84): “Ora, sabemos que o neurótico constrói formas de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento [...]”

Ampliando a análise de como o mito da democracia racial atravessa a existência das mulheres negras, Gonzalez destaca (2020, p. 80):

E é justamente no momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica. É nesse instante que a mulher negra se transforma única e exclusivamente na rainha, na ‘mulata deusa do meu samba’ [...]. Ali ela perde seu anonimato e se transfigura em Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la [...].

 

A encenação do mito da democracia racial ocorre de modo ainda mais explícito, no Carnaval, pois o Brasil é retratado para o mundo como um país sem hierarquia de raças, onde todos os povos compartilham das mesmas oportunidades. Nessa festa, são exaltadas as manifestações culturais negras, as quais são rigidamente reprimidas, em outros momentos. Passado o período carnavalesco, cada um retoma a sua posição social que, especialmente para a população negra, nada tem de glamourosa, tampouco igualitária. Referindo-se principalmente aos desfiles das escolas de samba cariocas, Gonzalez assinala: a mesma mulher negra que encarna a mulata e é endeusada por causa do seu rebolado sensual, após o Carnaval, volta ao anonimato, exercendo a dura função de empregada doméstica. Se, na festa carnavalesca, o desejo do homem branco pela mulher negra pode ser liberado sem reservas, no dia a dia, ele deve ser reprimido ou reduzido a atos sexuais “secretos”, para não abalar o modelo europeu de família. Como expressa a antiga crença racista: “Preta para cozinhar, mulata pra fornicar e branca para casar” (Gonzalez, 2020, p. 59).

Tendo em vista essa perspectiva, parece que não saímos do estágio violento da escravização da população negra, no qual a mucama prestava serviços domésticos e sexuais aos seus senhores. Por mais que o mito da democracia racial tente mascarar a tripla opressão racial-sexual-socioeconômica sofrida pelas mulheres negras, com o intuito de aliviar a “culpabilidade branca”[12], a função não permitida da mucama, a de ser objeto sexual, escapa da memória e emerge à consciência[13].  Destarte, no Brasil, a exploração sexual das mulatas “[...] deve ser ocultada, recalcada, tirada de cena. Mas isso não significa que não esteja aí, com sua malemolência perturbadora” (Gonzalez, 2020, p. 82).

No artigo A categoria político-cultural de amefricanidade, Gonzalez reforça a teoria de que a neurose cultural brasileira tem como sintoma direto os discursos e práticas racistas, diferenciando, assim, o racismo aberto do racismo disfarçado ou por denegação. O racismo aberto, comum aos países anglo-saxônicos, germânicos ou holandeses, define como não branca qualquer pessoa com “sangue negro nas veias” (Gonzalez, 2020, p. 130), logo, defende a segregação racial explícita entre negros e brancos como forma de organização social. Nesse contexto, permite-se destilar sem pudor o ódio contra os grupos considerados inferiores.

Já o racismo disfarçado ou por denegação, que é característico do Brasil e demais países da América Latina, investe nas “[...] teorias da miscigenação, da assimilação e da democracia racial”, para manter a rígida estratificação racial e social (Gonzalez, 2020, p. 130). Desse modo, embora aparentemente todas as etnias sejam respeitadas, negros e indígenas são subalternizados em prol da superioridade branca:

O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. [...] Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura (Gonzalez, 2020, p. 131-132).

 

Denegação é outra noção freudiana reatualizada por Gonzalez, para referir-se à operação na qual, simultaneamente, o(a)s latino-americano(a)s ou, como prefere a filósofa, por influência dos psicanalistas Betty Milan e M. D. Magno[14], ladino-amefricano(a)s, demonstram racismo, porém, tentam negar a existência da discriminação contra o(a)s negro(a)s. Não sem razão, Gonzalez tipifica o “racismo à brasileira” como denegação da amefricanidade, porque “[...] se volta justamente contra aqueles que são testemunho vivo da mesma (negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer (‘democracia racial’ brasileira)” (2020, p. 127).

A amefricanidade é proposta por Gonzalez como a identidade política-cultural capaz de conectar as vivências do(a)s ameríndio(a)s e do(a)s africano(a)s trazido(a)s à força às Américas. Esses povos compartilham o trauma de terem sido escravizados pelo sistema colonial, no qual o racismo é o critério utilizado para subjugar as comunidades consideradas inferiores e ameaçadoras ao progresso europeu. Nesse sentido, o(a)s amefricano(o)s devem unir-se, com o intuito de demolir as estruturas coloniais que perpassam os séculos e o(a)s de ser reconhecido(a) como sujeitos livres. Porém, o racismo não é a única experiência formadora da amefricanidade, já que, para além da dor e da humilhação sofridas, o(a)s amefricano(a)s também herdaram dos seus ancestrais as táticas de resistência ao genocídio, ao etnocídio e ao epistemicídio, bem como criaram modos de vida contra-hegemônicos.

Tratando particularmente da história da diáspora negra, defender a identidade político-cultural da amefricanidade não significa fixar uma essência universal, isto é, estabelecer padrão único de pensar e agir para todo(a)s o(a)s africano(a)s das Américas[15]. Ao contrário, diz respeito à potência de as pessoas negras de diferentes origens reavivarem as forças vitais dos seus antepassados, objetivando alcançar condições dignas de existência em qualquer país onde estejam inseridas. Para as mulheres negras, que foram as mais oprimidas, invisibilizadas e silenciadas, no processo de colonização e pós-colonização, reivindicar a identidade amefricana é a possibilidade de elas somarem forças na luta anticolonial e antirracista. Conforme Thula Pires (2020, p.70), a amefricanidade “[...] produz-se a partir da resistência e criatividade que a luta negra em diáspora, protagonizada por mulheres, conduziu a partir da experiência colonial que por aqui se forjou”. Logo, denegar a amefricanidade é tentar apagar a herança cultural e as potências criativas trazidas da África à América-Latina, ao mesmo passo no qual se nega o racismo.

No escrito Por um feminismo afro-latino-americano, Gonzalez retoma o argumento de outros textos: as ameríndias e, sobretudo, as amefricanas, além da opressão sexual, sentida por todos os grupos de mulheres, também experimentam o racismo. Contudo, por muito tempo, o feminismo branco latino-americano, inspirado nos movimentos europeus, esqueceu de debater a discriminação racial, porque se movia na esteira do racismo por omissão que é enraizado em “[...] uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista” (Gonzalez, 2020, p. 141).

Nessa perspectiva, o feminismo latino-americano é racista por omissão, quando percebe, ainda que de modo turvo, a violência perpetrada por meio da racialização dos seres humanos, mas esquece de tratar a repercussão desse problema na vida das mulheres não brancas. Ao afastar-se do debate sobre a violenta hierarquização racial das ladino-amefricanas e recusar-se a gestar práticas antirracistas, o feminismo deixa de abarcar “[...] a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam por um preço muito alto por não serem brancas” (Gonzalez, 2020, p. 142). Citando Jenny Bourne, Gonzalez (2020, p. 142) acrescenta: “Eu vejo o antirracismo [...] como algo intrínseco aos melhores princípios feministas”.

Valendo-se novamente da psicanálise, Gonzalez articula os conceitos lacanianos de infans e sujeito suposto saber, a fim de explicar o racismo por omissão como uma das faces do processo de alienação ocorrido dentro do feminismo latino-americano. Infans “[...] designa aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, na medida em que é falado pelos outros” (Gonzalez, 2020, p. 141). Portanto, quando feministas brancas elevam a voz para representar todas as mulheres da América Latina, sem interseccionar a tripla discriminação raça-gênero-classe, não apenas separam as amefricanas e ameríndias de suas identidades étnico-culturais, constantemente atacadas pelo racismo, como também ocultam suas trajetórias marcadas pela luta contra a tentativa do sistema patriarcal-racista de desumanizá-las.

Alienando-se de sua identidade e sendo levada a crer na pouca ou nenhuma relevância da história de seus ancestrais, para a organização dos países onde vivem, a mulher não branca passa a identificar-se com o discurso do feminismo latino-americano, que fica preso “[...] em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco” (Gonzalez, 2020, p. 142).  Tal identificação materializa o sujeito suposto saber lacaniano, concebido como figura dotada de saber absoluto sobre determinada pessoa ou coisa[16], pois se atribui ao arcabouço teórico-prático dos feminismos europeus a hipotética capacidade de projetar soluções para a complexa teia de opressões que subalterniza as ameríndias e amefricanas. Nesse sentido, Gonzalez, associando as ideias de Lacan ao pensamento de Frantz Fanon e Albert Memmi, defende que o feminismo latino-americano, apesar de ter ímpeto libertador, replica o mesmo esquema psíquico da colonização, no qual o colonizado é forçado a reconhecer a superioridade do colonizador e, portanto, se aliena da sua condição de sujeito livre e se torna objeto a ser explorado[17]

Em síntese, enquanto o movimento feminista latino-americano privilegiar “[...] a visão estreita do macho opressor versus a fêmea oprimida” (Bairros, 2000, p.17), pondo em segundo plano as problemáticas raciais que separam drasticamente as realidades das mulheres do continente, e continuar se omitindo diante da responsabilidade de desmantelar os mecanismos racistas de exclusão, não será possível a consolidação de um feminismo afro-latino-americano comprometido com a transformação radical das sociedades.

 

Considerações finais

O pensamento de Lélia Gonzalez continua atual, para refletirmos sobre os problemas da sociedade brasileira, uma vez que o cerne do seu projeto feminista é analisar profundamente a formação patriarcal-racista do Brasil, com a intenção de reconhecer e desafiar os mecanismos utilizados, por exemplo, do mito da democracia racial e do racismo por denegação, de sorte a perpetuar a condição de subalternidade das mulheres ameríndias e amefricanas. Além disso, a filósofa tece críticas contundentes à omissão do feminismo latino-americano em relação às questões raciais, propondo um feminismo afro-latino-americano comprometido com a autêntica luta antirracista.

Apesar de refletir de modo mais aprofundado sobre a precarização da existência das mulheres negras, o pensamento de Gonzalez abraça todos os seres humanos vitimados pelo colonialismo europeu e lança luz sobre a possibilidade de construirmos comunidades fundadas na igualdade racial, nos saberes ancestrais, na ressignificação dos papéis de gênero e na economia solidária.

 

Two Contributions by Lélia Gonzales to the Consolidation of a Decolonial and Antiracist Feminism

Abstract: This article presents and discusses two contributions by Lélia Gonzales to the consolidation of an Afro-Latin-American feminism truly commited to breaking colonial oppression mechanisms and interested in the liberation of all human beings subjugated by the European colonization process. The first contribution pertains to the importance of understanding the formation of Brazilian society from a decolonial perspective. The second one concerns the need for feminist movements to include racial issues on their agendas in order to engage in the antiracist struggle.

Keywords: Lélia Gonzales. Feminism. Racism. Antiracist struggle. Decolonial thought.

 

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PIRES, T. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. In: Dossier El pensamiento de Lélia Gonzalez, un legado y un horizonte. Fórum. Latin American Studies Association, v. 50, n. 3, p. 69-74, 2019.

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SILVEIRA, L. A mãe preta e o Nome-do-pai: Questões com Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e79996, 2022.

 

Recebido: 19/10/2023 – Aprovado: 16/01/2024 – Publicado: 15/05/2024



[1] Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil. Professora de Filosofia do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) na Rede Federal de Ensino, Fortaleza, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-2869-398X. E-mail: betalogos@gmail.com.

[2] O termo interseccionalidade foi inaugurado pela jurista Kimberlé Crenshaw, em 1989: “Desde então, o temo demarca o paradigma teórico e metodológico da tradição feminista negra, promovendo intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre quais condições estruturais o racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras” (cf. Akotirene, 2020, p. 58-59).

[3] Tendo como referência a filósofa Yuderkys Espinosa Miñoso, Luciana Ballestrin (2020, p. 11) explica que o uso da expressão “feminismos descoloniais” marca a heterogeneidade das experiências das mulheres que buscam um movimento feminista antirracista, em Abya Yala.

[4] “A colonialidade do poder é um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano, em 1989, [...]. Ele exprime uma constatação simples, isto é, de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo(Ballestrin, 2013, p. 99).

[5] “Somente ao perceber gênero e raça como tramados ou fundidos indissoluvelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor(cf. Lugones, 2020, p. 58).

[6] Em vários de seus escritos, Lélia Gonzalez critica o historiador Gilberto Freyre, por romantizar o processo de miscigenação, no Brasil. “Segundo Freyre, os portugueses foram superiores aos demais europeus em suas relações com os povos colonizados porque não eram racistas. Daí o processo de miscigenação ocorrido no Brasil e a harmonia racial que o caracteriza. Todavia, o que Freyre não leva em conta é que a miscigenação se deu às custas da violentação da mulher negra” e, acrescentamos, da mulher indígena (2020, p. 50).

[7] Para compreender as especificidades da transição da escravidão indígena para a africana, nas áreas do Brasil-Colônia, é interessante consultar Schwartz (2018, p. 226-234).

[8] Em algumas circunstâncias, quando não conseguiam sucesso na fuga, as grávidas abortavam e as mães optavam pelo infanticídio (cf. Machado, 2018, p. 359).

 

[9] Cf. Gonzalez, 2020, p. 40.

[10] “Os aparelhos ideológicos de Estado funcionam maciça e predominantemente pela ideologia, mas também funcionam secundariamente pela repressão, ainda que, no limite, mas somente no limite, esta seja muito atenuada e escondida, até mesmo simbólica. [...] Assim, as escolas e igrejas dispõem de métodos adequados de punição, expulsão, seleção etc., para ‘disciplinar’ [...]. O mesmo se aplica à família e ao AIE cultural (censura, entre outras coisas) etc.” (Althusser, 1996, p. 116).

[11] “Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América” (Freyre, 2003, p. 225).

[12] Cf. Gonzalez, 2020, p. 85.

[13] Enfatiza Gonzalez (2020, p. 78): “Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela prá tudo nesse sentido. Só que isso tá aí... e fala”.

[14] Para melhor compreensão da questão da denegação da ladino-amefricanidade, Lélia Gonzalez recomenda a leitura do texto Améfrica Ladina: introdução a uma abertura, de M. D. Magno (cf. 2020, p. 127).

[15] Sobre a relação entre a amefricanidade e a diáspora negra, cf. Gonzalez, 2020, p. 135.

[16] A fim de entender detalhadamente a definição de sujeito suposto saber, cf. Lacan, 1985, p. 212-215, p. 218-221.

[17] Cf. Gonzalez, 2020, p. 142.