A potência do educar: coisa singular, diferença e democracia em Espinosa[1]

 

Daniel Santos da Silva[2]

 

“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.”

(Caetano e Gil)

 

Resumo: O conceito de coisa singular e suas pegadas ético-políticas, na filosofia de Espinosa, orientam o texto a seguir, que se propõe pensar conjuntamente educação e civilidade. Com o filósofo holandês, aprende-se que união e conflito não são termos contraditórios, nem ética nem politicamente; enquadrar, daí, um campo de ação educativo põe a questão da democracia como fundante de um combate cotidiano ao medo e à servidão. Assim, a lida com a destruição – que não está nos seres singulares, mas surge nos encontros – e a ideia espinosana de um exemplar da natureza humana – abrem espaço para caracterizar a intensidade política da virtude como esforço de agir livremente e que passa pela educação. O texto assinala, pois, tempos de educação, a partir da diversidade de temporalidades que agem no corpo social e político.

 

Palavras-chave: Singularidade. Educação. Política. Democracia.

 

Preâmbulo: sentidos políticos da ética de Espinosa

Os primeiros encontros com filosofias e conceitos que marcam nossas reflexões e intervenções guardam lugar de destaque na memória; muitas vezes, a ordem desses encontros ignora alguma lógica interna da obra conjunta, mas não deixa de produzir seus efeitos. Com Espinosa (1632-1677), iniciei, há tempos, pelo Tratado político (TP), livro que ele escrevia ao falecer, com 44 anos de idade, e publicado postumamente, junto a grande parte de seus textos. Notei que saltava teses fundamentais da teoria do conhecimento e da ontologia, e mesmo de sua ética; no correr da leitura, de qualquer maneira, não senti que encetava pelo “fim”. Até certo ponto – percebi, posteriormente, quando certo sentido de rigor se insinuou –, acabei tomando a política como limiar contínuo, intrometendo-a em todos os espaços dessa filosofia, assumindo que indivíduo e sociedade convivem em reciprocidade tão aguda que qualquer separação deixaria sem sentido o conjunto do pensamento espinosano. Isso é algo que, com efeito, ultrapassa a minha particular interpretação.

Se o Tratado político “termina” com a incipiente análise da democracia, a retrospecção nessa filosofia pode levar-nos à conclusão de que esse conceito pulsa mesmo em dimensões extrarregimentais,[3] possuindo vigor também ética e educativamente; como forma, regime de uma cidade (civitas), a democracia se assenta no direito de todo cidadão[4] de tomar parte na assembleia – o direito de produzir direitos. É um princípio no qual se assentam tópicos fundamentais na constituição do sujeito político, a multidão, e a partir de que se compreende o alcance de conceitos como vida, virtude (segurança) e paz, elementos que ordenam o desejo de liberdade.[5] Assim, o esforço de superar a sátira e a utopia é significativo (Espinosa, 2009, p. 5-6), não apenas para a scientia politica, mas como meio de confrontar esquemas imaginativos que se afirmam por exclusão (gerando representações dicotômicas, como bem e mal, virtude e vício, necessidade e liberdade, humanidade e natureza), não importando a real complexidade das relações humanas e ambientais.

            Recupero aqui alianças entre ética, política e educação – a última, faceta cada vez mais presente nas preocupações de intérpretes da filosofia de Espinosa. Trata-se de relevar esforços e entraves na experiência do conhecimento e dos afetos comuns, de sua organização e condições de transmissão, seguindo de perto relações travadas entre o complexo afetivo dos indivíduos e os costumes, opiniões, saberes e instituições que concorrem na sua formação, processo pelo qual há reconhecimento na e pela coletividade. Por isso, afirma-se que há combates necessários à constituição da vida humana, finita, porém, não definida por sua finitude, passional, mas ciente de si através disso, e assim capaz de retraçar determinações vitais de sua existência no tempo e no espaço, na história. Combate, enfim, contra os esquemas de transcendência das normas e dos poderes que se interpõem entre nós, já que a transcendência enreda uma desistência ética, a qual formula a educação pelo medo, pela imposição de desejos pelo que não se é, pelo desprezo exercido por quem domina.

            De certo modo, a ética e a política espinosanas, sem conterem propostas de pedagogia, implicam sentidos de educação, crítica e propositivamente; mais que o aprendizado afetivo,[6] pode-se pensar em educação – ou educações – de cunho político, com práticas democráticas de comunicação do saber e de enfrentamento contra a tristeza e a servidão. A crítica política democrática supõe o desejo como o que nos determina a agir ou padecer, e disso quero sublinhar relances educacionais condizentes com a segurança, a vida e a paz, em que o desejo de liberdade institui e é instituído (na formação civil),[7] constitui e é constituído. O medo sustenta a servidão, a liberdade é autodeterminação; é coletivamente que servidão e liberdade se fazem, nos cotidianos e entre gerações. Além disso, na Ética, determina-se quão incompatíveis são a liberdade e esquemas imaginativos e abstratos de perfeição, os quais travam a livre condução e exercício do que só pode ser singular, das diferenças, do que é irrepetível – ainda assim, comunicável e partilhável em práticas comuns.

 

1 Diferença, destruição e afetividade

O axioma da quarta parte da Ética (De servitude humana) situa as coisas singulares em relação à destruição inevitável: nada é tão potente que siga sua existência sem que uma potência maior e contrária o destrua, eventualmente.[8] Porém, a destruição não é essencial às coisas singulares – a mesma obra estabelece e demonstra, na terceira parte, que a essência da coisa singular nada contém que inclua seu fim; pelo contrário, a essência põe a existência, é sua afirmação, nunca a condena antecipadamente.[9] As duas afirmações – tudo que é singular será destruído e a destruição não habita o ser da coisa singular – geram uma tensão produtiva na ética e na política espinosanas e, no laço, permitem formular tratos educacionais relativos aos afetos aí envolvidos, a como nos conduzimos com eles e ao conhecimento que deles temos.

Nessas coordenadas, as coisas singulares se movimentam na natureza, agem e padecem, em relações complexas, as quais dão matéria à política: o direito natural dos indivíduos é sua potência, é a existência da coisa singular em meio a tudo; o direito civil, direito da cidade, é definido pela potência da multidão, rede complexa de relações ordenadas que têm como fundamento os afetos comuns, como vemos no TP, II, 17 (Espinosa, 2009, p. 20). Direito civil e soberania em nada transcendem os conflitos e as alianças no seio da multidão; são, antes, por eles determinados. Se a diferença traz a destruição, como vemos no axioma, ela também é imantada à vida das coisas singulares – que é esforço.

No mesmo passo, a vida e a destruição da ratio civil, formada pelos hábitos, leis e direitos dos corpos coletivos singulares na história, instituem campos que se determinam, politicamente, no processo mesmo de constituição do bem comum, processo que incide na comunicação de tal bem, mais ou menos intensa e aberta à irrupção necessária de novos desejos, potências diferenciadas, de múltiplas temporalidades de formação. Assim, firmemos que a ética lida com possibilidades de diferenciação as quais determinam vínculos afetivos; e que a política, por sua vez, lida com as possibilidades de incremento da potência multitudinária, a partir de vínculos estabelecidos na forma de direito civil e que, simultaneamente, o estabelecem sem cessar, como abertura à história.

Portanto, as diferenças entre singularidades declinam-se, ética e politicamente, conforme vínculos operem no esforço de perseverança das potências envolvidas, e uma das primeiras interrogações, aqui, diz respeito à ratio entre potência individual e operação comum e o que segue em termos de vínculos de união ou de antagonismo. Os termos que delineiam o problema podem ser lidos no TP, II, 13 e 14:

Se dois se põem de acordo (conveniant) e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza (in natura) do que cada um deles sozinho; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos. Quanto mais os homens se debatem com a ira, a inveja ou algum afeto de ódio, mais se deixam arrastar de um lado para o outro e estão uns contra os outros, pelo que são tanto mais de temer quanto mais podem e quanto mais hábeis e astutos são que os restantes animais. E uma vez que os homens estão a maior parte do tempo sujeitos por natureza a tais afetos, os homens são por natureza inimigos. Com efeito, meu maior inimigo é aquele a quem mais devo temer e de quem mais me devo precaver (Espinosa, 2009, p. 18-19).

 

            Essa passagem prepara a cartografia institucional que, entre distintos regimes, organiza de diferentes maneiras embates e alianças entre as forças sociais, destacando o comum naquilo que, historicamente, é sempre singular, o corpo da cidade. A conveniência é proporção (ratio), assim como a contrariedade, logo não há, efetivamente, termos últimos de comparação (exemplares, modelares), mas há o horizonte dos movimentos-limite: de um lado, da vida livre, e, do outro, da destruição, e ambos atraem o olhar ético e o político para o que pode ser – pois a história se inscreve em nossas atividades e vice-versa –, para o que é e para o que “já foi”. Se há protagonismo da vida ou da destruição, se do desejo de liberdade ou do medo da morte, nada é definitivo, já que isso depende de todo processo de formação civil e, naquilo que é inseparável, de formação ética.[10] O que faz viver e o que faz morrer coexistem, por isso, há política. A scientia politica espinosana recusa a dicotomia entre paz e guerra: a primeira retém toda a virtude de que é capaz a cidade e otimiza a resistência à morte e à solidão; a segunda permanece como condição de efetividade do próprio direito civil (Espinosa, 2009, p. 40).

Certamente, há uma espreita maquiaveliana quando Espinosa avalia a potência humana diante da fortuna (a natureza considerada como exterioridade);[11] isso nos diz algo sobre a virtude civil, a segurança: ela é uma ratio – complexo de relações proporcionais – imanente às alianças e às contrariedades que determinam, na forma concreta do direito comum, os terrenos de operação coletiva da vida e do desejo de liberdade.[12] A história não se resolve em uma temporalidade linear (Morfino, 2002, p. 133-230), na qual o passado está dado, tampouco expressa uma razão eterna anterior à existência atual do mundo; é consequente pensar, pois, que o liame ético entre eternidade e história propicia uma educação política singular, que determina a ratio entre experiências e expectativas em torno de nossa finitude e a eterna, ou seja, necessária afirmação do ser nas coisas singulares.[13] E como vida e morte também escapam da dicotomia, há de se incitar as mentes e corpos a lidar com outras formas de destruição, que não a morte como vulgarmente imaginada.[14]

Não há conhecimento ou instituição fora do alcance das tensões entre conveniência e contrariedade, por isso, ao poder político não cabe doutrinar, mas possibilitar a isonomia e a isegoria nas diferentes maneiras de comunicar e educar (desde que não ataquem os fundamentos da sociedade). Toda referência de Espinosa à educação salienta algum aspecto de mudança a que se quer controlar ou que desconstrói o que é informado por poderes, superstições, apego a valores transcendentes e costumes.[15] Como a ciência dos conflitos no interior das multidões pode ajudar-nos a pensar em relações e potências educativas? Que isso nos dá um quiasma entre ética e política, já se percebe; é forçoso, pois, aí colher as conveniências e contrariedades entre as experiências comuns (vulgares) e as experiências do comum, entre o que pode produzir o conflito ou engendrar o consenso. E, no que a atividade filosófica se concatena com a prática educativa, cabe tocar na relação entre a filosofia e a cidade, em outras palavras, na relação entre o conhecimento da verdade e o que se encarna coletivamente, como memória e história, sem o que, a meu ver, o bem e a utilidade comuns restam entes de razão esvaziados.   

 

2 Natureza humana, educação e políticas do desejo

            Como coisas singulares, de existência certa e determinada, não concebemos a infinita diversidade do mundo, mesmo que possamos concebê-la como infinita; somos passionais, ou seja, afetados de paixões, e não poderia ser de outra maneira, como seres que vivem em relação e são relações – enquanto as organizamos, constituímos história. Na filosofia de Espinosa, é possível situar a complexidade da natureza humana no labor que mobiliza passado, presente e futuro: no esforço para recuperar ou superar o passado, para afirmar ou negar o presente e projetar o futuro, projeção que implica a prática e o temor da destruição. Nesse sentido, é medular o prefácio à quarta parte da Ética, na familiaridade entre as noções de exemplar da natureza humana (naturae humanae exemplar), de bem e mal (bonum e malum) e de utilidade (utilitas).[16] A perfeição da coisa singular não se mede pela duração (Espinosa, 2015a, p. 379), todavia, pela potência de afetar e ser afetada de múltiplas maneiras. A partir disso, vemos o estabelecimento de parâmetros éticos e políticos que respeitam a um educar para a virtude, ou seja, para a liberdade.

            O território do conhecimento verdadeiro não é estritamente cognitivo; há em tudo a que a natureza humana pode aspirar como perfeição – em que cumpre seu papel heurístico o exemplar da natureza humana[17] – uma profundidade afetiva que nos relaciona ao espaço/tempo em que operamos e em que somos afetados por objetos e pessoas. Há situações, ou melhor, movimentos-limite – como o “antimodelo” da solidão e da morte, ou como o modelo, o sábio e o exemplar da natureza humana –, assim, que servem estrategicamente para mensurar, o quanto possível, a eficiência e efetividade do conhecimento verdadeiro na trama da constituição histórica/humana. E a razão, por mais que compreenda que as coisas duram, não encontra na duração que se alarga a medida do que é a virtude e do que ela é de comunicação continuada e conduzida de saberes os quais podem fazer diferença na formação de uma sociedade e de um direito civil democráticos.

            O circuito entre o que é o que pode ser, e/ou o que se deseja que venha a ser, em Espinosa, incita-nos à precaução, para que não esqueçamos que o desejo é causa eficiente natural, não como livre determinação do arbítrio que contempla algo exterior, como o bem ou outras finalidades quaisquer. Por isso, conduzir à virtude exige espaço para uma educação que nos leve a tomar parte – indivíduos e coletividades – na história, o que é tomar parte na natureza, no que isso pressupõe de alianças e conflitos que são o solo da história em nossas singularidades; portanto, continuamos o passado na imanência do presente, em realidades singulares irrepetíveis que se relacionam entre si, se unem e se contrariam, forjando, enquanto isso, um futuro. Como o educar se situa entre o comum e a diferença, nessa implicação recíproca a vida humana não é um dado, é algo a ser formado nos campos históricos nos quais não se separam a ontogênese e a constituição dos ambientes sociais.

            A formulação do exemplar demonstra, ao mesmo tempo, a força da imitação e seus limites no que é proposto pela ética e pela política espinosanas (obviamente, também pela teoria do conhecimento).[18] O exemplar não pode ser imitado (nem algum regime político singular), pois é uma noção de movimentos e relações que nos impulsionam ao limite, ao bem, e são concretos no esforço de agir a partir do conhecimento verdadeiro, o mais árduo a que podemos aderir, e que, mesmo assim, nunca resolve a distância entre o que se conhece e o que se deseja como mundo – porque conhecer e agir não se distinguem. A dificuldade da educação, assim pensada em suas bases, é proporcional à dificuldade de emendar a vida para o aperfeiçoamento afetivo, como evidencia o Tratado da emenda do intelecto – a proporcionalidade existe, porque uma perspectiva requer a outra: reconduzir o desejo no que ele opera, no que queremos, no que investimos, tudo isso está implicado na necessidade de que a vida humana teça sua história como reafirmação e reformulação contínuas da sociedade e do desejo de liberdade.[19]

            Pensar, pois, uma educação com e contra outras já é uma atividade que nasce em contexto político, no qual a inteligência das coisas não se transmite, simplesmente, mas opera como força, de irradiação maior ou menor, sempre no seio das multidões e em alianças e conflitos cujas configurações são imanentes a tempos e lugares sociais, de modo que a história e as memórias, as fruições atuais de direitos e projetos de futuro se envolvem como potências de comunicação, em que os efeitos dependem da liberdade de fala, de silêncio e de ensino, como expõe o vigésimo capítulo do Tratado teológico-político.[20] O medo é obstáculo à educação democrática, orientada não pela censura ao vício, mas pelo incremento da virtude.[21] E como o direito civil é definido pela potência da multidão, a “guarda da liberdade” – ecoando Maquiavel – não cabe nas mãos da summa potestas, tanto mais quanto esta afasta dos súditos a cidadania, a qual, por ser política, é também epistêmica. A segurança, verdadeiro bem civil, coaduna com o descolamento entre poder e produção de doutrinas, porque o direito civil já resguarda o exercício da liberdade, e o direito de guerra, a reverência à cidade.[22] Se a filosofia não fornece normas pedagógicas, ela proporciona uma educação de cunho político capaz de resistir aos “[...] mecanismos de opressão que subordinam todas as coisas à alucinação coletiva que é própria das instituições, seus jogos de poder e de linguagem”.[23]

 

3 Os tempos políticos das ações educativas

            Referido à necessidade eterna, o conhecimento racional existe, obviamente, na duração, intensificando afetos ligados a nossas perspectivas de passado, presente e futuro. Como o corpo social é uma trama de temporalidades (Morfino, 2008), a democracia expressa disputas de representação do passado que presentificam o próprio sentido de formação civil como esperança de vida, segurança e liberdade, caso no qual, por “representação”, se entendem concepções de ideias e imagens que, à proporção dos engajamentos, se tornam, a “seu tempo”, reivindicação de direitos, no presente, e projeção de maior difusão do desejo de liberdade, para o futuro. Definido como potência absoluta da multidão, o direito civil democrático é uma trama de múltiplas temporalidades que possibilita a isonomia e a isegoria de diversos sujeitos. Uma educação de cunho político, nesse sentido, comunica critérios de vida que asseguram os direitos nas diferenças, sem buscar controlá-las.

            O trabalho dessa educação política, como qualquer outro, depende da memória, e sua potência se mede, não menos, pela atenção ao necessário;[24] atentar, por exemplo, à realidade conflitiva da vida em sociedade requer uma história sincera e o manejo de noções comuns sobre como a liberdade convive com as diferenças – e, mesmo, depende delas. Há multidões na multitudo cuja potência define o direito civil democraticamente aberto à história. Não há sintonia fina, o consenso pressupõe embates constitutivos da história dos corpos políticos, histórias singulares que, do ponto de vista “didático”, não promovem a imitação de figuras exemplares nem a abstração de modelos sociais fechados. Na articulação entre imagético e necessário, nenhuma contradição e extrema utilidade;[25] o verdadeiramente útil implica um apego, por parte dos indivíduos, à história de que se toma parte, pelo que é essencial “[...] aperfeiçoar o intelecto ou razão o quanto pudermos” (Espinosa, 2015a, p. 495), nessas produções comuns. Um tomar parte que não dicotomiza história e natureza; Espinosa escreve, na Ética, IV, cap. 6 (2015a, p. 497):

Não pode acontecer que o homem não seja uma parte da natureza e não siga a sua ordem comum; mas se ele se encontrar entre indivíduos tais que convêm com a natureza do próprio homem, por isso a potência de agir do homem será favorecida e fomentada. Se, ao contrário, estiver entre indivíduos tais que convêm minimamente com sua natureza, dificilmente poderá se adaptar a eles sem sofrer uma grande mudança.

 

            A solidão é um movimento-limite que tende a zero, um quasi destruere. Se não é preciso transfigurar-se em cadáver para morrer, tampouco a mera existência social configura o exercício de direitos; democraticamente, quem educa e quem é educado, nos múltiplos processos que correm a vida, fá-lo em vistas do direito de exigir e produzir direitos por meios forjados para o conflito e para evitar o confronto, na produção concreta dos consensos possíveis: “[...] os ânimos não são vencidos pelas armas e sim pelo Amor e pela Generosidade” (Espinosa, 2015a, p. 499). Trata-se, contiguamente, de minimizar ilusões acerca da liberdade, porque só assim o comum pode ser concebido e nele se ancorarem potências coletivas de atuação.[26] No espectro democrático, educam-se singularidades, na medida em que se as assume como constitutivas – é aí que a liberdade de filosofar se reveste de sentido político, assim como a adesão a complexos de costumes: se se concebe a liberdade como autodeterminação, é em diversos níveis que seu desejo pode ser comunicado, é em diversas esferas que a união pode ser potência política, mas em nenhuma delas o medo, a ameaça, a lamentação e a censura são fontes de educação.[27] O nexo entre liberdade e segurança é constituído na própria potência do corpo político e, na luta com e contra o tempo, podem surgir, inclusive, contradições entre o que faz civil o indivíduo e o que o educa em/para a liberdade.

 

Conclusão

            Contradições entre certos padrões de civilização (entenda-se, formação da civilidade) e o exercício do imperim absolutum pela multidão não denotam, sempre, fracassos formais ou práticos da democracia; o correr das coisas não pode ser fixado, nem a educação de cunho político pode ser cerceada em instituições específicas – da família[28] ao direito civil, passando por espaços de educação formal e pelas praças; ora, a potência democrática do corpo social, por ser aberta à história, contém sempre um “correr atrás” de sanar sequelas de confrontos e contradições entre desejos de glória, ambição, inveja e ódio e o que se (re)constitui como potência multitudinária comum. Até o momento, apenas pude atar configurações éticas e políticas, da filosofia de Espinosa, as quais ajudam na concepção de educações afirmativas da vida, da segurança e da liberdade. A educação democrática não extingue o ódio e a inveja, não transforma a natureza humana, mas “ensina” a olhar virtudes.[29]

Do ponto de vista da virtude civil, a segurança, a dinâmica da assembleia que reúne democraticamente as multidões frustra continuamente o assalto ao bem comum e impede a sedimentação política do que ataca a vida, em suas diferenças intrínsecas[30] (um vetor que existe também nas análises sobre a monarquia e a aristocracia, no Tratado político). A democracia, então, é um espaço/tempo de operações que afirmam nossa coerência com a natureza (Spinoza, 2014, p. 165-169), com a eternidade, e que fazem fulgurar maneiras de vida que se conectam diversamente ao eterno, ao verdadeiramente útil, ao sumo bem; quando lemos, na quinta parte da Ética, que “[...] a mente humana não pode ser absolutamente destruída com o corpo, mas dela permanece (remanet) algo que é eterno” (Espinosa, 2015a, p. 553), já estamos colados a essa rede de conceitos que nos leva a compreender a “permanência” não como o oposto da destruição ou da aniquilação, porém, como um termo que, dentre outros, modificado do idealismo, opera um deslocamento entre o temporal e o eterno, enquanto repõe no plano da liberdade conexões que são absolutamente necessárias.

Assim, promover a conexão entre desejos de liberdade é ofício educativo (o que podemos buscar já no Tratado da emenda do intelecto); o cuidado e a atenção com a formação de alianças faz da amizade um afeto político.[31] Onde se sufoca a diferença, trava-se o movimento “naturalmente” expansivo do direito civil (o viver democrático é o que mais se aproxima de nossa liberdade natural), de sorte que a contradição pode devir morte. A educação conecta e engaja cada indivíduo, nas suas capacidades, em redes nas quais toma parte – até o amar-se, nesse sentido, deixa de significar desejo de proeminência e passa a ser consciência de singularidade e de união.[32] A atenção a si, no campo promovido por essa educação, é uma atenção trabalhada no comum e na multiplicidade viva de que somos capazes de produzir e na qual vivemos; na medida em que se trata de um aprendizado da necessidade, de aprender a não se distrair com bens fugazes (Espinosa, 2015b, p. 29) e, sim, a atentar ao que podemos, a partir de nossas potências, qualquer expressão dessa educação política mina as bases dos fatalismos que procuram estagnar a dinâmica democrática de fortalecimento conjunto – sem esquecer o quanto a filosofia de Espinosa foi acusada, exatamente, de fatalista.

 

The power of educating. Singular thing, difference and democracy in Spinoza

Abstract: The concept of the singular thing and its ethical-political footprints, in Spinoza's philosophy, guide the following text, which proposes to think together education and civility. With the Dutch philosopher, we learn that union and conflict are not contradictory terms, neither ethically nor politically; framing, therefore, an educational field of action poses the question of democracy as the foundation of a daily fight against fear and servitude. Thus, dealing with destruction – which is not in singular beings but arises in encounters – and Spinoza's idea of an exemplar of human nature open up space for us to characterize the political intensity of virtue as an effort to act freely and which passes through education. The text therefore points out times of education from the diversity of temporalities that act in the social and political body.

Keywords: Singularity. Education. Policy. Democracy.

 

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Recebido: 02/10/2023 - Aceito: 20/11/2023 - Publicado: 06/02/2024



[1] Para Alexandre de Moura Barbosa, um encontro que sempre me motivou na filosofia, na vida, e motiva este texto.

[2] Professor de Graduação e Pós em Filosofia da Unespar, União da Vitória,  PR – Brasil e membro do grupo Teorias da Democracia na Filosofia Moderna e Contemporânea (CNPQ); ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3841-2516. E-mail: danidani_ss@yahoo.com.br.

[3] Remeto às análises de Visentin (2001, p. 149-210) e, igualmente, a Tatián (2009) e Bove (1996, p. 241-264). Em um texto de Marilena Chauí (2018, p. 415-417), encontramos algumas marcas essenciais para o que segue: “Justamente porque opera com o conflito e com a criação de direitos, a democracia não se confina a um setor específico da sociedade no qual a política se realizaria – o Estado –, mas determina a forma das relações sociais e de todas as instituições, ou seja, é o único regime político que é a forma social da existência coletiva. [...] A democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo”.

[4] No TP, XI, 1 (Espinosa, 2009, p 137), lemos: “Passo, enfim, ao terceiro e totalmente absoluto estado (omninò absolutum imperium), a que chamamos democrático. Dissemos que a sua diferença em relação ao aristocrático consiste antes de mais em que, neste último, depende só da vontade e livre escolha do conselho supremo o ser nomeado este ou aquele para patrício, de tal maneira que ninguém tenha o direito hereditário nem de voto, nem de acesso aos cargos do estado, e ninguém possa por direito reclamar para si tal direito (nemoque id jus sibi poscere jure possit), como acontece neste estado de que falamos agora. Com efeito, todos aqueles cujos pais são cidadãos, ou que nasceram no solo pátrio, ou que são beneméritos da república, ou quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, todos esses, digo, reclamarão para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado, o qual não é lícito recusar-lhes a não ser devido a crime ou infâmia”. 

[5] Cf. No TP, V, 4-5 (Espinosa, 2009, p. 44-45, itálico meu), lemos: “Da cidade cujos súditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve antes dizer-se que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo [...]. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer uma solidão do que uma cidade. Quando, por conseguinte, dizemos que o melhor estado é aquele onde os homens passam a vida em concórdia, entendo a vida humana, a qual não se define só pela circulação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas se define acima de tudo pela razão, verdadeira virtude e vida da mente”. Cf. também a oitava definição da quarta parte da Ética (Espinosa, 2015a, p. 381), para a identificação entre virtude e potência; D. Tatián (2009, p. 49) escreve algo importante: “Según el TP, en efecto, una ‘multitud libre’ (libera multitudo) es el sujeto político capaz de alcanzar el propósito último de la experiencia política, que no es el de la mera conservación de la vida. El concepto spinozista de ‘perseverancia en el ser’ no puede ser reducido al puro ‘conservar’ hobbesiano, por cuanto Spinoza jamás sacrifica la vida – que para ser humana debe ser libre – a su pura conservación”. Na Ética, o desejo é o primeiro a surgir nas “Definições dos afetos” da terceira parte (Espinosa, 2015a, p. 339): “O Desejo é a própria essência do homem enquanto é concebida determinada a fazer (agir) algo por uma dada afecção sua qualquer”.

[6] Juliana Merçon, 2009, p. 28, enfatiza: “[...] afirmamos haver entre as noções de educação e aprendizado ético-afetivo uma tensão indissolúvel. Enquanto estudos anteriores (como os de Ravven e Lloyd) sugerem que a educação seja pensada como um percurso ético ou vice-versa, separamos, em nossa pesquisa, o processo ético, o qual identificamos com a noção de aprendizado afetivo, da educação formal, definida por seus poderes públicos morais. Buscamos, assim, inserir a política nessas discussões, ao mesmo tempo que nos distanciamos de uma descrição idealizada dos mecanismos educativos e de prescrições que desconsiderem nossa natureza passional”; embora compreenda o recorte conceitual da autora, ela confunde, às vezes, como na passagem acima, educação e educação formal, o que não diminui o alcance de sua pesquisa, contudo, não corresponde aos usos que Espinosa faz do conceito de educação; por outro lado, Abreu, 2013, p. 10-11, alude a “[...] princípios pedagógicos na filosofia de Spinoza”, noção viável para sua interpretação, mas que arrisca imobilizar os movimentos-limite nos quais a educação requer um sentido político, como na união de potências, por exemplo.

[7] Remeto, especialmente, a dois momentos do TP: III, 1 (Espinosa, 2009, p. 25): “Diz-se civil a situação de qualquer estado (imperii cujuscunque status dicitur Civilis); mas ao corpo inteiro do estado chama-se cidade (imperii autem integrum corpus Civitas appelatur), e aos assuntos comuns do estado, que dependem da direção de quem o detém, chama-se república (Respublica). Depois, chamamos cidadãos aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e súditos na medida em que têm de submeter-se às instituições ou leis da cidade”; e V, 2 (Espinosa, 2009, p. 44, itálico meu): “É certo [...] que as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das leis não são de imputar tanto à malícia dos súditos quanto à má situação do estado (quam pravo imperii statui). Porque os homens não nascem civis, fazem-se. Além disso, os afetos naturais humanos são em toda a parte os mesmos”. Em seu livro sobre Hobbes, Yara Frateschi sintetiza algo fundamental (Frateschi, 2008, p. 25): “Dizer que o homem é por natureza um animal político é identificar a capacidade para a vida política com uma potência não racional, que é inata, independe da escolha e não requer exercício, instrução nem qualquer atividade prévia”.

[8] Eis o axioma (Espinosa, 2015a, p. 381): “Na natureza das coisas, não é dada nenhuma coisa singular tal que não se dê outra mais potente e mais forte do que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada uma outra mais potente pela qual aquela pode ser destruída (potentior, à quâ illa data potest destruí)”. A definição de coisa singular é a sétima da segunda parte (Espinosa, 2015a, p. 127): “Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada (per res singulares intelligo res, quae finitae sunt, & determinatam habent existentiam). Se vários indivíduos concorrem para uma única ação de maneira que sejam todos simultaneamente (simul) causa de um único efeito, nesta medida considero-os todos como uma única coisa singular”.

[9] Cf. as proposições VII e VIII da terceira parte da Ética (Espinosa, 2015a, p. 251-253); as essências, para Espinosa, são sempre singulares, conforme a definição II da segunda parte (Espinosa, 2015a, p. 125). Sobre agir e padecer: “Digo que agimos quando ocorre em nós ou fora de nós algo de que somos a causa adequada, isto é, quando de nossa natureza segue em nós ou fora de nós algo que pode ser entendido clara e distintamente só por ela mesma. Digo, ao contrário, que padecemos quando em nós ocorre algo, ou de nossa natureza segue algo, de que não somos causa senão parcial” (Espinosa, 2015a, p. 237). De nossa natureza segue somente o que nos é necessário – isso faz com que Deleuze (1968, p. 217- 218, itálico do autor) escreva sobre a morte: “[...] si nous considérons un corps ayant tel rapport précis, il rencontre nécessairement des corps dont le rapport ne se compose pas avec le sien, et finira toujours par en rencontrer un dont le rapport detruira le sien. Ainsi il n’y a pas de mort qui ne soit brutale, violente et fortuite; mais précisement parce qu’elle est entièrement nécessaire dans cet ordre des rencontres”. Vale, também, conferir Baugh (2002), que vai a Deleuze e aprofunda o problema da morte e da eternidade humanas.

[10] As paixões são elementos diferenciais determinantes; em relação à dupla conceitual medo/esperança, lemos no TP, V, 6 (Espinosa, 2009, p. 45, itálico meu): “Deve [...] notar-se que o estado (imperium) que eu disse ser instituído para este fim (a concórdia) é, no meu entender, aquele que a multidão livre institui, não aquele que se adquire sobre a multidão por direito de guerra. Porque a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que a multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte; aquela, sublinho, procura viver para si, esta é obrigada a ser do vencedor, e daí dizermos que esta é serva e aquela é livre”. 

[11] Cf. o prefácio do Tratado teológico-político (TTP) (Espinosa, 2003, p. 5): “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja no que for”; no prefácio à quarta parte da Ética (Espinosa, 2015a, p. 371), encontramos: “Chamo Servidão à impotência humana para moderar e coibir os afetos; com efeito, o homem submetido aos afetos não é senhor de si mas a senhora dele é a fortuna, em cujo poder ele está de tal maneira que frequentemente é coagido, embora veja o melhor para si, a seguir porém o pior.”

[12] Cf. o TP, I, 6 (Espinosa, 2009, p. 9): “Um estado cuja salvação depende da lealdade de alguém e cujos assuntos só podem ser corretamente geridos se aqueles que deles tratam quiserem agir lealmente, não terá a mínima estabilidade. Ao invés, para que ele possa durar, as suas coisas públicas devem estar ordenadas de tal maneira que aqueles que as administram, quer se conduzam pela razão, quer pelo afeto, não possam ser induzidos a estar de má-fé ou a agir desonestamente. Nem importa, para a segurança do estado, com que ânimo os homens são induzidos a administrar corretamente as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente administradas. A liberdade de ânimo, ou fortaleza, é com efeito uma virtude privada, ao passo que a segurança é a virtude do estado”; sobre a perspectiva maquiaveliana colhida por Espinosa, cf. Espinosa, 2009, p. 45-46 (em que o florentino é diretamente mencionado). Como bem mostra Bove, 1996, p. 263, as normas do imperium democrático expressam a potência constitutiva e autodeterminada da multidão em seu exercício de “autorregulação”, no que a educação é força de interpenetração coletiva do “espírito democrático”: “Comme I’idée vraie enveloppe en elle le savoir de sa propre norme, la société démocratique sai’ qu'elle est index sui, autonome. La société démocratique sait, par elle-même’ qu'elle ne doit et ne peut compter que sur ses propres forces, que ses seules garanties sont, premièrement dans sa propre capacité de s'auto-réguler, de trouver par elle-même les institutions qui garantiront au mieux une conduite modérée du corps social en prévenant les passions excessives (seule la passion de la liberté au principe même de la démocratie ne saurait être, par nature, excessive); deuxièmemenem dans sa capacité de modeler les âmes des sujets, de faire pénétrer I'esprit démocratique dans les coeurs, c'est-à-dire les coutumes mêmes d'un peuple: c'est la fonction décisive de l'éducation”.

[13] É muito importante a colocação de Moreau, 1994, p. 535-543: “Il faut [...] rejeter l’identification de l’éternité avec l’immortalité de l’âme. Même en ce qui concerne l’éternité, il n’y a pas de différence radicale parmi les choses naturelles. [...] Comment les hommes – ou certains hommes – peuvent-ils aller plus loin que cette éternité commune? Enfin ce que certains moments de la vie d’un homme ont de plus que les précédents. [...] Comment l’âme sent-elle les démonstrations? La réponse nous semble tenir au fait que même la connaissance de la nécessité n’abolit pas dans l’âme les perceptions et sentiments antérieures, qui forment comme un paysage tel qu’elle ressente la différence entre ce qu’elle démontre et le reste de ce qu’elle vit. [...] A côté de la connaissance du nécessaire, il y a donc une perception différentielle qui constitue l’expérience de la nécessité. [...] Ainsi, c’est l’existence de la finitude qui permet que la nécessité soit objet non seulement de connaissance adéquate, mais aussi de sentiment”; são muito relevantes, a propósito, as reflexões de Tosel, 1994, p. 37-78 (todo o subcapítulo “Histoire et éternité”).

[14] Afirma o escólio da prop. 39 da quarta parte da Ética: “Não ouso, de fato, negar que o corpo humano, mantendo embora a circulação sanguínea e outras coisas em virtude das quais se considera que o corpo vive, possa, não obstante, transformar-se numa outra natureza totalmente diferente da sua [in aliam naturam a sua prorsus diversam mutari]. Nenhuma razão, com efeito, me obriga a sustentar que o corpo não morre a não ser que se converta em cadáver [...]” (Espinosa, 2015a, p. 441, itálico meu).

[15] Espinosa escreve, no TTP, V (2003, p. 86-87): “[...] visto que a obediência consiste em executar ordens exclusivamente emanadas da autoridade de quem manda, segue-se que ela não tem nenhum lugar numa sociedade em que o poder está nas mãos de todos e onde as leis são sancionadas por consentimento comum: aí, quer aumente, quer diminua o número das leis, o povo continua igualmente livre, pois não atua por submissão à autoridade de outrem, mas por seu consentimento. Já quando é um só a deter o poder absoluto, acontece o contrário; aqui, todos executam as ordens do poder submetendo-se à autoridade de um só e, por isso, se não tiverem sido, desde o princípio, educados (ab initio educati fuerint) de maneira que estejam sempre dependentes da palavra daquele que manda, será muito difícil a este, em caso de necessidade, instituir leis novas e tirar ao povo a liberdade depois de lha ter concedido”; cf. o TP, VI, 7 (Espinosa, 2009, p. 50),  20 (Espinosa, 2009, p. 55), e VI, 24 (Espinosa, 2009, p. 57),  para o contexto monárquico e a educação dos filhos do rei; é relevante acerca das mulheres, XI, 4 (Espinosa, 2009, p. 139): “Se as mulheres fossem por natureza iguais aos homens e sobressaíssem igualmente pela fortaleza de ânimo e pelo engenho, que são aquilo em que acima de tudo consiste a potência humana e, por conseguinte, o direito, sem dúvida que, entre tantas e tão diversas nações, se encontrariam algumas onde os dois sexos governassem em paridade e outras onde os homens fossem governados pelas mulheres e educados (educarentur), de modo a terem, pelo engenho, menos poder”; muitas são as questões que daí se originam, o que merecerá, em outro texto, uma atenção à parte – pelo momento, indicarei apenas a leitura de Matheron, no seminal texto “Femmes et serviteurs dans la démocratie spinoziste” (1986, p. 189-208), assim como dos livros de Claudia Aguilar, Mujeres: resignificación, resistencia y alianzas (Aguilar, 2019), e de Cecilia Abdo Ferez, Contra las mujeres, (in)justicia en Spinoza (Ferez, 2019). Para a desconstrução, o Tratado da emenda do intelecto (Espinosa, 2015b, p. 33); cf. também 2003, p. 137 (TTP, VII): “A simplicidade e a autenticidade não se infundem, de fato, nos homens por imperativo legal ou por meio da autoridade pública, visto ninguém poder ser coagido, pela força ou pelas leis, a atingir a beatitude. Para isso, requere-se a advertência fraterna e piedosa, a educação bem conduzida (bona educatio) e, acima de tudo, a livre decisão do próprio.”

[16] Espinosa, 2015a, p. 377: “Quanto ao bem e ao mal, [...] não indicam nada de positivo nas coisas consideradas em si mesmas, e não são nada outro além de modos de pensar ou noções que formamos por compararmos as coisas entre si. [...] Contudo, por mais que seja assim, cumpre conservarmos esses vocábulos (vocabula). Pois, porque desejamos formar uma ideia de homem que observemos como modelo da natureza humana (naturae humanae exemplar), nos será útil reter estes mesmos vocábulos no sentido em que disse. E assim, por bem entenderei, na sequência, o que sabemos certamente ser meio para nos aproximarmos mais e mais do modelo de natureza humana que nos propomos. Por mal, porém, aquilo que certamente sabemos que nos impede de reproduzir o mesmo modelo”; cf. as duas primeiras definições da mesma parte (Espinosa, 2015a, p. 379). São esclarecedoras as palavras de Marilena Chaui: “O naturae humanae exemplar de que fala o Prefácio não é [...] uma imagem. Não é uma ideia universal de uma essência universal (pois não existem essências universais). Não é um transcendental (pois não é uma afecção geral e abstrata dos seres). Não é um gênero nem uma espécie (pois não é uma imagem nascida da comparação imaginativa das coisas particulares numerosas que a imaginação confunde e generaliza numa abstração). É uma notio communis, ideia adequada das propriedades comuns que existem igualmente no todo e em suas partes, daquilo que, sendo comum, convém às partes entre si e entre elas e o todo. A noção comum não é a ideia de uma essência singular, mas um sistema de relações necessárias entre as partes com o todo, delas entre si e dele com elas. O exemplar da natureza humana a ser proposto origina-se na dedução ou construção geométrica das relações de conveniência e contrariedade entre certas partes da Natureza, no caso, entre as partes humanas da Natureza” (Chaui, 2011, p. 231); também acolho Hardt, 1996, p. 157, quando ressalta que “[...] devemos ter em mente que o elemento essencial para a constituição ontológica ainda é o foco de Espinosa na causalidade, na ‘produtividade’ e ‘produtibilidade’ do ser. A noção comum é o conjunto de duas relações componíveis para criar uma relação nova e mais potente, um corpo novo e mais potente - esse conjunto, entretanto, não é meramente uma composição ao acaso mas uma constituição ontológica, porque o processo envolve a causa dentro do seu próprio novo corpo. [...] A característica essencial da constituição ontológica de Espinosa é a adequação, quer dizer, a expressão da cadeia causal do ser. A estratégia prática de formação das noções comuns, de agenciamentos ontológicos, tornou a investigação ontológica um projeto ético: tornar-se ativo, tornar-se adequado, tornar-se o ser”; Barchi, 2020, usa as noções comuns espinosanas para desenvolver o debate de uma educação ambiental na contemporaneidade, o que é interessante, mas ainda não será diretamente determinado neste texto.

[17] Vale ir ao Tratado da emenda do intelecto (Espinosa, 2015b, p. 35): “[...] há que se dedicar trabalho à Filosofia Moral, bem como à Doutrina da Educação das crianças (Doctrinae de puerorum Educatione); [...] Antes de tudo, porém, há que se excogitar um modo de remediar o intelecto e expurgá-lo, o quanto permite o início, para que intelijam as coisas com felicidade, sem erro e da melhor maneira (ut feliciter res absque errore, & quàm optimè intelligat). Donde qualquer um já poderá ver que quero dirigir todas as ciências a um único fim e escopo, a saber, que se chegue à suma perfeição humana...”.

[18] O tema da imitação afetiva é essencial à compreensão da gênese política, em Espinosa, e, em outro lugar, procurei desenvolver o tema com profundidade (Silva, 2020, p. 170-175); na Ética, ir à terceira parte, proposição 27 (Espinosa, 2015a, p. 279): “Por imaginarmos afetada por algum afeto uma coisa semelhante a nós, e pela qual jamais nutrimos nenhum afeto, somos então afetados por um afeto semelhante”.

[19] Cf. a proposição 73 da quarta parte da Ética e sua demonstração (Espinosa, 2015a, p. 489-491): “O homem que é conduzido pela razão é mais livre na cidade, onde vive pelo decreto comum, do que na solidão, onde obedece apenas a si mesmo. Dem.: O homem que é conduzido pela razão não é conduzido a obedecer pelo Medo; mas, enquanto se esforça para conservar seu ser pelo ditame da razão, isto é, enquanto se esforça para viver livremente, deseja observar a regra da vida e da utilidade comuns, e consequentemente viver pelo decreto comum da cidade. Logo, para viver mais livremente, o homem que é conduzido pela razão deseja observar os direitos comuns da cidade”; congruentemente, “[...] não há nenhuma coisa em que o homem livre pense menos do que na morte, e sua sabedoria não é uma meditação sobre a morte, mas sobre a vida” (Espinosa, 2015a, p. 483). Ressalto: o “desejar a observância dos direitos comuns da cidade” não aponta como destino do saber a acomodação passiva – o que seria contraditório – ao que é “dado”, mas expressa movimentos de conformação simultâneos ao combate “educativo” de modificar a realidade pela comunicação de experiências formativas e de noções comuns, sempre ligadas à utilidade humana, a qual pressupõe o comum, e não o abstrato isolamento do indivíduo que conhece.

[20] Espinosa, 2003, p. 305-306, destaca: “[...] deve ser permitida a liberdade de pensamento, que é sem dúvida uma virtude e não pode coarctar-se. Além de quê esta não provoca nenhum inconveniente que não possa [...] ser evitado pela autoridade dos magistrados. Isso, para já não falar de quanto ela é absolutamente necessária para o avanço das ciências e das artes, as quais só podem ser cultivadas com êxito por aqueles cujo pensamento for livre e inteiramente descomprometido. Mas suponhamos que essa liberdade pode ser reprimida e os homens dominados a ponto de não se atreverem a murmurar uma palavra que contrarie o prescrito pelos poderes soberanos; mesmo assim, nunca estes hão de conseguir que não se pense senão o que eles querem [...]. Longe, porém, de uma coisa dessas poder acontecer, ou seja, de todos se limitarem a dizer o que está prescrito, quanto mais se procura retirar aos homens a liberdade de expressão mais obstinadamente eles resistem. Não, como é óbvio, os avaros, os bajuladores e outros de ânimo impotente, [...] mas aqueles a quem uma boa educação (bona educatio), a integridade de costumes e a virtude tornaram ainda mais livres”; sobre o silêncio como expressão de experiência política – não somente de silenciar violentamente, mas de resistência à imposição da fala – cf. Silva, 2019.

[21] Cf. Santiago; Oliveira, 2020, p. 44-45; vale citar Espinosa, 2015a, p. 477 (Ética, IV, prop. 63 e escólio): “Quem é conduzido pelo Medo, e faz o bem para evitar o mal, não é conduzido pela razão. [...] Esc.: Os supersticiosos, que entendem mais de censurar os vícios do que de ensinar as virtudes, e se empenham não em conduzir os homens pela razão, mas em contê-los pelo Medo, para que fujam do mal mais do que amem as virtudes, nada outro intentam senão tornar os demais tão miseráveis quanto eles próprios; e assim não é de admirar se no mais das vezes são molestos e odiosos aos homens”.

[22] Isso se passa, ou deve se passar, muito diferentemente, se nos lembramos da filosofia hobbesiana; como escreve Renato Janine Ribeiro: “[...] sob a autoridade do Leviatã, a ciência será tornada doutrina: (…) deverá sua força e legitimidade à sanção do soberano. […] A verdade é serva da autoridade” (Ribeiro, 2003, p. 51).

[23] Frase de M. Rocha, no prefácio que escreveu para o livro de Juliana Merçon (Merçon, 2009, p. 14).

[24] Lemos na Ética, V, prop. 7 (Espinosa, 2015a, p. 533): “[...] os afetos que se originam da razão ou são excitados por ela são mais potentes, se se tem em conta o tempo, do que aqueles referidos às coisas singulares que contemplamos como ausentes”; o “desejar atento” (Merçon, p. 90) é item extremamente relevante para pensarmos educações políticas nas vias espinosanas, e terei de retornar a isso em outros textos; o problema da “ocupação” mental e física e do “tornar-se atento” é objeto de análise de Sévérac, 2005, p. 216-242; o tema se estende à contemporaneidade de outras áreas, como na antropologia da educação, como vemos em Ingold, 2020, p. 38-58, o qual é influenciado por J. Dewey.

[25] Na Ética,V, prop. 14 (Espinosa, 2015a, p. 543), o filósofo salienta: “A Mente pode fazer com que todas as afecções do Corpo ou imagens das coisas sejam referidas à ideia de Deus. Dem.: Não há nenhuma afecção do Corpo de que a Mente não possa formar um conceito claro e distinto; por isso pode fazer com que todas sejam referidas à ideia da Deus”; Chaui, 2011, p. 232, lembra-nos que “[...] é o saber certo dessas relações que é útil”, o que se pode complementar com a seguinte observação: “[...] aos homens é primordialmente útil estabelecer relações e estreitar aqueles vínculos pelos quais, de maneira mais apta, fazem-se todos eles um só e, absolutamente, [é útil] fazer tudo aquilo que serve para firmar as amizades” (Espinosa, 2015a, p. 499).

[26] A ilusão de liberdade envolve uma gama de afetos; dentre tantos, o arrependimento (poenitentia) traz uma visibilidade marcante para o problema da educação (Espinosa, 2015a, p. 353): “O Arrependimento é a Tristeza conjuntamente à ideia de um feito que cremos ter realizado por um decreto livre da Mente. Explic.: [...] cumpre aqui notar que não é de admirar que em geral sejam seguidos de Tristeza todos os atos costumeiramente (consuetudine) chamados depravados, e de Alegria aqueles chamados retos. Pois [...] facilmente entendemos que isso depende antes de tudo da educação (educatione). De fato, censurando os primeiros e frequentemente repreendendo os filhos por causa deles e, ao contrário, louvando e exortando aos segundos, os Pais fizeram que as comoções de Tristeza se unissem aos primeiros e as de Alegria aos segundos. O que também é comprovado pela própria experiência. Pois o costume e a Religião não são os mesmos para todos, mas, ao contrário, o que é sagrado para uns é profano para outros. Assim, conforme cada um foi educado, arrepende-se de um feito ou glorifica-se pelo mesmo”; comparar com o cap. IX, ao fim da quarta parte da Ética (Espinosa, 2015a, p. 497-499): “Não há nada que possa convir mais com a natureza de alguma coisa do que os outros indivíduos da mesma espécie; e por isso nada é dado de mais útil ao homem, para que conserve seu ser e frua a vida racional, do que o homem conduzido pela razão. Além disso, já que não encontramos nada, entre as coisas singulares, de mais excelente que o homem conduzido pela razão, por conseguinte, em coisa alguma pode alguém mostrar mais sua destreza no engenho e na arte do que em educar (educandis) os homens para que vivam por fim sob o império próprio da razão (ex proprio rationis império vivant)”.

[27] A atividade filosófica, Espinosa bem o sabia, é constitutivamente educativa, ou seja, aponta um trabalho de união em fruir “[...] simultaneamente o sumo bem” (Espinosa, 2015a, p. 507); podemos pensar nas duas questões colocadas por Espinosa, diante da proposta de que ensinasse em Heidelberg; Fabritius escreve, em 16 de fevereiro de 1673 (Spinoza, 2014, p. 216): “Tereis a maior latitude de filosofar, liberdade da qual o Príncipe acredita que não abusareis para não perturbar a religião oficialmente estabelecida”; Espinosa responde, em 30 de março de 1673 (Spinoza, 2014, p. 217): “Como jamais fui tentado pelo ensino público, não pude me decidir, embora tenha longamente refletido [...]. Penso, em primeiro lugar, que deveria renunciar a seguir com meus trabalhos filosóficos se me entregasse ao ensino da juventude. De outro lado, ignoro dentro de que limites minha liberdade filosófica deveria estar contida para que eu não parecesse querer perturbar a religião oficialmente estabelecida”; o texto de Santiago e Oliveira, 2020, p. 19, liga o convite à “[...] fama de dedicado cientista e habilidoso educador”, de que era alvo Espinosa – fama que chega à Alemanha e a outros pontos da Europa; cf. igualmente Oliveira, 2008, p. 101-114.

[28] Cf. Espinosa, 2015a, p. 503-505: “No que concerne ao casamento, certamente convém com a razão se o desejo de conjugar os corpos é gerado não apenas pela formosura, mas também pelo Amor de gerar filhos e educá-los com sabedoria (sapienter educandi); e se, além disso, o Amor de ambos, a saber, do homem e da mulher, tem por causa não apenas a formosura mas sobretudo a liberdade do ânimo”; a distinção entre paternidade e domínio também é ilustrativa: “A experiência, no entanto, parece [...] ensinar que é do interesse da paz e da concórdia conferir todo poder a um só. Com efeito, nenhum estado resistiu sem qualquer alteração assinalável tanto tempo como o dos Turcos e, pelo contrário, não há nenhum menos durável do que foram os populares ou democráticos, nem onde se tenham desencadeado tantas revoltas. Mas, se a servidão, a barbárie e o isolamento se devem apelidar de paz, então não há nada mais miserável para os homens do que a paz. Entre pais e filhos costumam, sem dúvida, dar-se mais e mais acerbas discussões que entre senhores e escravos. Não é contudo do interesse da economia transformar o direito paternal em domínio e ter os filhos como escravos. É, portanto, do interesse da servidão, não da paz, transferir todo o poder para um só: porque a paz, como já dissemos, não consiste na ausência de guerra, mas na união ou concórdia dos ânimos” (Espinosa, 2009, p. 48-49)

[29] Cf. e escólio da prop. 55 da terceira parte da Ética (Espinosa, 2015a, p. 325): “[...] os homens são por natureza inclinados ao Ódio e à Inveja, ao que se ajunta a própria educação (ad quam accedit ipsa educatio). Pois os pais costumam incitar os filhos à virtude somente com o estímulo da Honra e da Inveja. Todavia restará talvez o escrúpulo de que não raro admiramos as virtudes dos homens e os veneramos”.

[30] “A isto acresce que, num Estado democrático, são menos de recear absurdos: primeiro, por ser quase impossível que a maior parte de um conjunto de homens reunidos, se for um conjunto suficientemente grande, concorde com um absurdo; segundo, pelo próprio fundamento e finalidade da democracia, o qual [...] não é senão o de evitar os absurdos do instinto e conter os homens, tanto quanto possível, dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz” (Espinosa, 2003, p. 241).

[31] Marilena Chaui, em seu texto “Amizade, a recusa do servir”, que antecede o livro de La Boétie (La Boétie, 1987, p. 179), assevera algo que vale aqui: não se trata da amizade como organização política de vanguarda, e sim recusa do servir; cf. La Boétie, 1987, p. 183: “O Discurso simplesmente contrapõe desejo de servir e amizade... a convicção de que não servir é sempre possível, sempre vitorioso quando tentado, pois ‘a bom querer fortuna nunca falha’”; La Boétie, antes de Espinosa, contrapõe-se ao modelo do espelho dos príncipes, gênero educativo que idealiza uma moral para o governante; de modo geral, é preciso contrapor-se ao  “[...] adestramento, contrafação da educação” (La Boétie, 1987, p. 189) e atentar que, “[...] sendo seu próprio bem, a liberdade não se distingue do desejo de liberdade” (La Boétie, 1987, p. 193).

[32] Um amar-se ativo não deseja ser melhor em nada, sabe-se singular em tudo. Diferentemente da moral, que se compraz em universais e valores irreais, a ética dirige-se ao real, e este não conta senão com seres singulares; dada uma singularidade, trata-se de perguntar como um ser pode viver sua própria natureza singular. Portanto, o lema básico dessa ética é, em vez de julgar e condenar, compreender: “[...] não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las” (Espinosa, 2009, p, 8); toda essa problemática é trabalhada magistralmente por Zourabichvili (2002, p. 95ss).