Símbolos, imagens, imaginação e memória: elementos para uma epistemologia jonasiana

 

Michelle Bobsin Duarte[1]

 

Resumo: Este trabalho tem como objetivo contribuir para a reflexão sobre os elementos epistemológicos presentes na filosofia de Hans Jonas. A chave interpretativa fornecida pelo autor, com a noção de Homo Pictor e a importância das imagens, dos símbolos, da imaginação e da memória, na evolução da liberdade humana, no âmbito da vida, que resultou no ser humano atual, proporciona um campo fecundo para a exploração dos atributos dos sujeitos epistêmicos apontados pelo filósofo. Nesse sentido, propõe-se uma leitura que considera os possíveis elementos de uma teoria do conhecimento de Jonas, a partir dos textos “Image Making and the Freedom of Man” (1966), com destaque ao apêndice do ensaio, intitulado “On the Origins of the Experience of Truth” e do texto “Tool, Image, and Grave” (1986).

 

Palavras-chave: Hans Jonas. Epistemologia. Homo Pictor.

 

Introdução

O início do ensaio “Image making and the freedom of Man” (1966) ilustra uma cena que remete a um tema muito relevante, na filosofia de Hans Jonas, a relação dos seres humanos com as imagens. É justamente na escolha da situação fictícia proposta pelo autor, para ilustrar a diferença antropológica, que percebemos a força do uso da imaginação como elemento necessário ao conhecimento. Jonas começa o texto, suscitando uma imagem mental na qual exploradores em outro planeta se deparam com uma pista necessariamente humana: imagens pintadas em uma parede.

Roberto Rubio, em o Vocabulário Hans Jonas, ressalta que, para o filósofo, as imagens se revelam como “[...] testemunhos básicos acerca do humano” (Rubio, 2019, p. 127), pois explicitam a intencionalidade do indivíduo que as produziu, além do controle eidético interno e externo, compreendidos como a imaginação e o controle motor específico necessários à produção de uma imagem.

Para Jonas, a imagem surge como a marca da diferença do humano em relação aos outros animais,[2] por revelar uma dimensão conceitual de entendimento da realidade, de maneira que “[...] na representação pictórica o objeto é apropriado em uma nova, não-prática maneira, e o próprio fato que o interesse pode mudar para o seu eidos significa uma nova relação com o objeto” (Jonas, 2001a, p. 159). Essa relação, todavia, não é imediata; antes, ela marca um novo grau de mediação entre sujeito e objeto, o qual foi registrado na aurora da humanidade por pinturas que expressam a adequação de certos objetos aos respectivos eidoi[3] contidos na memória de quem as trouxe à luz. É através da reprodução desses eidoi que essas memórias se tornam comunicáveis e remetem, de certa maneira, a um sentido de verdade.

Dessa forma, postulamos que o pensamento de Jonas sobre as imagens pode nos fornecer pistas importantes sobre o modo como conhecemos primariamente o mundo e sobre como o simbolizamos. A presente investigação não pretende apontar para questões de conhecimento científico, contudo, para a experiência primária dos humanos em seus encontros com o real, que também produz conhecimento. O sentido de uma epistemologia jonasiana, portanto, consiste justamente na investigação das camadas básicas que constituem a compreensão de mundo propriamente humana. E, para tanto, propomos uma leitura que considera as imagens e os seus correlatos, como os símbolos, a imaginação e a memória, como partes essenciais dos atributos dos sujeitos epistêmicos.

 

1 Símbolos, memória e imaginação

Entre os modos de expressão da capacidade simbólica, a faculdade pictórica, escolhida por Jonas como o ponto que marca a diferença antropológica, mostra-se como um dos pilares para se pensar a relevância fundamental dessa habilidade humana para expressar tanto a realidade do mundo como o universo interno dos afetos gerados pela experiência do real.

A imagem é, como ressalta Jonas, sempre “imagem de alguma coisa” (Jonas, 2001a, p. 166) e, portanto, essa coisa expressa pela imagem deve possuir um certo grau de objetividade para que possa ser expresso simbolicamente. Expressar simbolicamente algo pressupõe uma certa relação conceitual, a qual, para Jonas, já está dada na performance da visão humana.

O símbolo, por sua vez, pode ser mais ou menos representativo da coisa ou da ideia à qual se estabelece uma correspondência, pois a representação carrega certas preferências que se configuram de maneira mais familiar ou informativa para alguns do que para outros. Isso significa que a correspondência simbólica, devido à sua natureza relacional, se adequa em menor ou maior grau às ideias que representa, porque a experiência de apreensão e adequação dos símbolos acontece pela abstração de imagens previamente adquiridas.

Theresa Morris destaca que, para Hans Jonas, “[...] a imagem é um símbolo de um objeto real e a capacidade de pensar com símbolos é a marca da consciência humana” (Morris, 2013, p. 81). Temos, dessa maneira, uma correspondência entre o uso conceitual dos termos “imagem” e “símbolo”, que se torna mais clara, se levarmos em consideração que as imagens operam mental e fisicamente.

Dessa forma, é possível supor que, de modo geral, encontramos na cultura (lugar dos símbolos previamente abstraídos por outras mentes) representações que assumem um caráter simbólico forte, por se adequarem às ideias ou imagens mentais que se encontram latentes, muitas das quais expressam a experiência coletiva de um determinado tempo e a complexidade de afetos gerados por essa experiência. De todo modo, pensar a relação dos seres humanos com o mundo passa, também, por pensar os símbolos que medeiam, em determinado tempo. Nesse sentido, Jonas destaca que

[...] o fundamento natural é revestido de sistema sobre sistema de expressões e símbolos inventados, construídos e livremente manipulados, culminando em fala e imagens, que abrem dimensões inteiramente novas de compreensão e incompreensão, abertura e ocultação, verdade e falsidade (Jonas, 2010, p. 249).

 

Compreender a construção simbólica da realidade, a partir do elemento de semelhança apreendido nas imagens, o qual traz consigo a liberdade que torna possível a sua concepção em diferentes modos, implica admitir que a nossa percepção opera por separação do eidos (forma) dos objetos atuais, para adequá-los a outros objetos que expressam uma relação de correspondência entre si, de sorte que “[...] a presença do eidos é feita independente da presença da coisa” (Jonas, 1996, p. 81), já que é um elemento ideal. O eidos, ou a semelhança, por ser o objeto real da apreensão das imagens, possibilita a adequação simbólica de determinadas ideias ou conceitos em diferentes imagens que possuem um grau de semelhança entre si, o que torna possível postular a concepção de várias imagens relacionadas com ideias e conceitos, pelo significado que carregam quase como uma superposição de ideias e experiências.

Conforme observa Fabio Fossa, na interpretação do papel das imagens na filosofia do autor, “[...] a disponibilidade do eidos, que possibilita a transformação simbólica do mundo, trabalha em prol da ‘apreensão humana, da imaginação e do discurso’” (Fossa, 2015, p. 12-13). Tendo em vista que, no pensamento de Jonas, “[...] a imagem sensivelmente simboliza a generalidade equilibrada entre a individualidade da imagem e aquela dos objetos imaginados” (Jonas, 2001a, p. 165), uma única imagem pode cumprir o papel de representar vários conceitos, como também o inverso, ou seja, um conceito pode ser representado por várias imagens. Isso significa que, através da faculdade da imagem, a capacidade simbólica do ser humano cria, reproduz e reconhece imagens que se correspondem, mutuamente, pela forma ou elemento ideal semelhante, imbuído em sua constituição.

Nessa perspectiva, é relevante supor, a partir do pensamento de Jonas, que essa lógica produziu uma série de imagens físicas e mentais (entendidas aqui como memória), as quais, por si, expressam ideias, uma vez que o eidos das imagens configura uma forma conceitual do real. Essas imagens carregam consigo a força do simbolismo, por vezes arquetípico, na medida em que perpassam a história ocidental para mediar a nossa relação com a realidade do mundo. Tal suposição é amparada pelo postulado jonasiano de que a interpretação da realidade de uma época é regida por cosmovisões que “moldam” os padrões de ideias e de comportamentos dos humanos. Como exemplo, temos a famosa mudança de perspectiva ontológica, na modernidade, apontada por Hans Jonas, como a substituição do paradigma do mundo em que tudo está vivo por uma realidade na qual o sem vida, a matéria morta, passa a ser o padrão explicativo do real.

Primeiramente, esse processo pode ser compreendido levando-se em conta que, segundo o autor, desde tempos remotos, a materialização das imagens proporciona o compartilhamento da “memória externalizada” (Jonas, 2001a, p. 171) de quem as produziu. Essa memória material se torna um modo de comunicação pelo reconhecimento do elemento de semelhança imbuído em sua constituição, já que ela não é a repetição do que foi memorado e, sim, uma representação disso e, por que não dizer, mesmo uma criação, com base nos fragmentos dessa memória. Portanto, a relação dos humanos com as imagens, por ser um processo mediado por um elemento ideal (ou conceito), estende-se além da atividade pictórica estrita e configura a relação com as representações. Fabio Fossa frisa que, no pensamento de Hans Jonas, “[...] o núcleo das imagens é a função representacional, a faculdade da imagem toma as imagens como os seus próprios objetos, e esta também poderia ser chamada de faculdade representacional” (Fossa, 2015, p. 5).

Em segundo lugar, além da sua função prioritária, ou seja, representar o que foi experienciado, a imagem como memória externalizada torna-se “[...] um modelo permanente para a renovação repetitiva” (Jonas, 2001a, p. 171) da representação referida.

Assim externalizada, a imagem desafia o tempo de forma mais eficaz do que na sua precária conservação interna. Lá, o que foi salvo do fluxo das coisas foi confiado ao fluxo do eu. Externalizada de novo, ela permanece em si mesma, sua presença independente do humor e dos estímulos que dominam o funcionamento da memória, e até mesmo supera a brevidade da vida de seu criador (Jonas, 2001a, p. 171).

 

Podemos compreender a função simbólica das imagens, no pensamento de Jonas, como uma espécie de padronização das ideias, geradas pela repetição das experiências através das gerações, as quais expressam os eidoi comuns partilhados por uma sociedade, por meio de suas práticas ou mesmo pela repetição das experiências.

Assim, é possível postular que tais experiências criam, reforçam e modificam as memórias (as quais podem ser compreendidas como imagens mentais) que as simbolizam, isto é, o elemento de semelhança ou eidos é reconhecido nas ideias geradas, a partir dessas experiências, para agregá-las em tipologias semelhantes ou distintas, tendo o seu correlato material na própria experiência do real.

A exteriorização da imagem, observa Jonas, serve de comunicação e beneficia o conhecimento, ao mesmo tempo que recria o que é visto. O autor considera a manifestação da atividade pictórica como a precursora da verdade teorética, visto que a imagem deve possuir alguma correspondência com o seu objeto. “A adaequatio imaginis ad rem, precedendo a adaequatio intellectus ad rem é a primeira forma de verdade teorética – a precursora da verdade verbalmente descritiva, a qual é a precursora da verdade científica” (Jonas, 2001a, p. 172).

Jonas vê a exteriorização da imagem como um indício da potência de criação humana, pois “[...] o recriador das coisas é potencialmente também o criador de coisas novas” (Jonas, 2001a, p. 172), já que a liberdade de ter as imagens livremente à disposição também traz consigo a liberdade de poder, a partir delas, criar o novo. “A primeira linha desenhada intencionalmente destrava essa dimensão de liberdade na qual a fidelidade ao original, ou a qualquer modelo, é apenas uma decisão” (Jonas, 2001a, p. 172).

A exteriorização da memória pela imagem só é possível pelo trabalho exercido pela imaginação, porque, através dela, se opera a separação “[...] do eidos recordado do evento do encontro individual com a coisa, libertando-a dos acidentes do espaço-tempo” (Jonas, 1996, p. 81). Isso quer dizer que os objetos da experiência, apreendidos pela faculdade da imagem, alcançam a completa abstração da matéria, na imaginação. No processo abstrativo, “[...] a imagem é entregue à imaginação, que pode lidar com isso em completo distanciamento da presença real do objeto original” (Jonas, 2001a, p. 147).

Conforme salienta Wendell Lopes, há uma diferenciação entre dois níveis de imaginação na obra de Jonas: “[...] a mera imaginação ou imaginação reprodutiva e a livre imaginação ou imaginação produtiva” (Lopes, 2014, p. 273).

A imaginação livre ou produtiva, segundo Jonas, é o meio pelo qual a memória transcende a mera rememoração das coisas, pois é através dela que a nossa memória difere da recordação dos demais animais. Por intermédio da imaginação livre, acessamos toda uma série de recordações e lembranças dos mais variados objetos, os quais podem ser associados, alterados, compostos, enfim, um arsenal de informações à disposição da atividade mental, que pode ser usado livremente. Ou seja, a imaginação produtiva corresponde ao fato de os humanos possuírem à disposição as imagens destacadas de suas sensações atuais, as quais podem ser evocadas a qualquer momento.

A imaginação reprodutiva ou mera imaginação pode ser compreendida como a capacidade dos animais, também não humanos, de reconhecer circunstâncias por meio da lembrança, guiada pelo apetite ou pela sensação. Essa capacidade é partilhada por outros animais, já que experiências recentes demonstraram que determinadas espécies possuem, em certo sentido, representações de seus predadores. Jonas mesmo admite que [...] alguma coisa da função da imagem – já (é) herdada na performance da visão, como o mais integrativo dos sentidos. Isso, em graus, deve ser creditado mesmo a alguns animais superiores” (Jonas, 2001a, p. 170). Dessa maneira, a imaginação produtiva ou livre configura a diferença antropológica propriamente dita, porque os demais animais não possuem o poder de evocar livremente as imagens, pelo fato de que, em suas “memórias”, a sensação atual sempre coincide com o objeto. Ou seja, não há a coexistência de duas interpretações para eles e, nesse sentido, não existe a possibilidade de uma interpretação equívoca por parte dos animais não humanos.

É imprescindível observar que, para o autor, a performance da imaginação possui um caráter abstrativo, que “[...] pode lidar com isto (as imagens) em completa separação da presença atual dos objetos” (Jonas, 2001a, p. 147), e que o exercício mais livre efetuado pela imaginação detém as referências dos objetos da realidade, ou seja, de reconhecimento “[...] que pode revelar propriedades ou possibilidades do mundo externo” (Jonas, 2001a, p. 147). Isso significa que a imaginação é uma atividade mental que participa da abstração e do reconhecimento dos objetos, na medida em que possui uma ligação profunda com a memória.

A saber, a imaginação funciona a partir da memória, que se torna evidente, conforme destacamos acima, na exteriorização das imagens. No caso da faculdade da imagem, isso acontece através da recriação e criação pictórica: “[...] a forma lembrada pode, então, ser traduzida da imaginação interior para uma imagem externa, que, por sua vez, é um objeto de percepção: uma percepção, não do objeto original, mas de sua representação” (Jonas, 1996, p. 81), a qual pode servir de referência para o alargamento das possíveis transformações da forma do objeto, porque se torna, mais uma vez, perceptível. Temos, então, a seguinte sequência de atuação da faculdade da imagem: os objetos “[...] na memória (são) retidos e recordados, na imaginação variados e livremente compostos” (Jonas, 2001a, p. 31).

As inferências de Jonas sobre o papel da memória na atuação da imaginação deixam claro que ela ultrapassa a recordação atribuída aos outros animais. Para os humanos, “[...] o passado deve permanecer disponível de um modo estranhamente não comprometido, o qual não é a memória como tal, mas somente o distanciamento da aparência da realidade, em conjunção com a memória, proporciona o que chamamos de memória humana” (Jonas, 2001b, p. 178). De acordo com o autor, isso explicaria o fato de podermos comparar as coisas apreendidas da realidade, sem nos deixarmos envolver pela presença dos objetos em nossa mente.

 

2 Extensão ideativa da percepção

O surgimento da faculdade da imaginação nos propiciou alcançar o patamar de liberdade que nos diferenciou dos demais seres naturais, devido à natureza ideal que medeia as relações que estabelecemos com a realidade. A mediação pelo eidos na percepção da realidade responde pela diferença antropológica e marca o aumento da distância entre organismo humano e ambiente. Esse passo tem como fundamento a mediaticidade da relação animal da percepção à distância e da motilidade. O novo patamar atingido pelo ser humano “[...] consiste na interposição do eidos abstraído e mentalmente manipulável entre o sentido e o objeto real” (Jonas, 2001b, p. 184).

Jonas se refere a esse novo grau de mediação como “extensão ideativa da percepção” (Jonas, 2001b, p. 184). E acrescenta que o humano, com a mediação pelo eidos das imagens e pela linguagem, “[...] deixa de ver as coisas diretamente: ele as vê através da tela de representações” (Jonas, 2001b, p. 185). Isso significa que nós, os humanos, a partir da base existencial orgânica comum a todos os seres vivos, desenvolvemos evolutivamente um tipo muito peculiar de percepção da realidade, no qual a apreensão das formas dos objetos e a sua replicação inauguraram um modo próprio de se relacionar com o mundo. Além da distância experienciada entre apetite e satisfação, a qual precisa ser preenchida com o desejo, passamos a preencher simbolicamente a distância entre nós e as coisas da realidade. Começamos a perceber o mundo através do véu das ideias, as quais se materializaram em símbolos criados por nós mesmos, em função da nossa experiência com os objetos.

Essa nova mediação entre humano e realidade é considerada por Jonas como o lugar onde se localiza o fenômeno da verdade e o seu correlato, a falsidade. Para Wendell Lopes, a imaginação produtiva e a capacidade simbólica ocupam o mesmo lugar, que é o lugar do jogo lúdico, o qual permite criar ficções, como também relacionar o verdadeiro e o falso. Desse modo, “[...] o homo pictor e o animal symbolicum são um e o mesmo” (Lopes, 2014, p. 276), na medida em que ambos evidenciam a mediação por eidos na percepção do real.

A “tela das representações”, como se refere Jonas à extensão ideativa da percepção, é imanente a cada experiência com o real, “[...] impregnando-o com a sua carga simbólica” (Jonas, 2001b, p. 185). Todavia:

O seu maior papel, no entanto, situa-se entre experiências, quando o objeto real não está presente para a percepção direta: então as imagens abstratas que estão no comando do assunto fornecem em si o material para uma ‘experiência’ de remoção - a experiência simbólica, na qual o mundo é tomado sem impor sua presença (Jonas, 2001b, p. 185).

 

O poder de evocar a experiência simbólica na ausência dos objetos explicita a potência contida na extensão ideativa da percepção, a qual, de acordo com Jonas, “modela” a nossa percepção, influenciando a perspectiva ontológica que temos sobre as coisas. Com esse postulado em mente, o autor aponta alguns exemplos de como as ideias vigentes em um determinado período da civilização humana influenciaram, ou até mesmo literalmente modelaram, a concepção sobre o que é a realidade e sobre a natureza do mundo. A interposição do elemento ideal ou eidos, em nossa relação com o mundo, se mostra, assim, como um elemento de liberdade que objetifica a realidade, “[...] que confronta o eu com a soma total potencial do ‘outro’, do ‘mundo’, como um reino indefinido de possível compreensão e ação” (Jonas, 2001b, p. 185) e que também propicia um passo adiante na liberdade humana, que é a reflexão sobre si mesmo e sobre a atuação do sujeito no mundo.

A forma aqui envolvida é diferente em espécie daquelas de todo o reino da exterioridade, pois diz respeito à relação do eu com toda a exterioridade. A nova dimensão da reflexão se desdobra, onde o sujeito de toda objetificação aparece como tal para si mesmo e torna-se objetivado para um novo tipo de relação cada vez mais auto mediadora (Jonas, 2001b, p. 185).

 

Dessa maneira, até mesmo a nossa capacidade reflexiva tem fundamento no exercício da faculdade da imagem e da interposição do eidos entre o sujeito e a realidade. Conforme proposto pelo autor, o processo de reflexão consistiria em uma espécie de auto-objetificação de si para apreciação da forma como nos relacionarmos com o que existe.

 

3 Origens da experiência da verdade

Como o refazedor das coisas ‘à semelhança’, o humano pictórico se submete ao padrão da verdade. Uma imagem pode ser mais ou menos fiel ao objeto. A intenção de retratar as coisas reconhece-as como são e aceita o veredito de que elas estão sobre a adequação da referência pictórica. A adaequatio imaginis ad rem, precedendo a adaequatio intellectus ad rem, é a primeira forma de verdade teórica (Jonas, 2001a, p. 172).

 

De fato, Jonas considera a representação pictórica como “[...] posta na grande classe dos esforços humanos para a verdade” (Jonas, 2001b, p. 175). No entanto, admite o autor, em “On the Origins of the Experience of Truth”, que “[...] este não é o locus original da experiência da verdade” (Jonas, 2001b, p. 175). A experiência básica da verdade repousaria, segundo ele, nas situações nas quais somos confrontados com a possibilidade da negação, de sorte que a “[...] capacidade para a verdade pressupõe a capacidade de negar, e assim apenas o ser que pode cogitar a negatividade, que pode dizer ‘não’, pode cogitar a verdade” (Jonas, 2001b, p. 175), no sentido de a experiência da verdade ser uma forma de afirmação que se constitui juntamente com a sua antítese, ou seja, a existência da possibilidade de sua negação.

Essa formulação de Jonas se relaciona diretamente com a liberdade humana, já que poder negar alguma coisa pressupõe, primordialmente, a escolha entre dois possíveis concorrentes, associados às noções de verdade e falsidade. E, dessa forma, a experiência da verdade “[...] é a evidência e o exercício de certo tipo de liberdade” (Jonas, 2001b, p. 175) da existência humana.

A negação, em um primeiro sentido, refere-se a um modo de manifestação da não concordância decorrente da decepção diante de uma situação que se apresenta como enganadora. E, como tal, produz a ideia de falsidade, a qual, em sua forma simples, segundo Jonas, “[...] é encontrada em dois tipos de ocasião: em erros de percepção e na mentira dos humanos. Em ambos os casos nós somos enganados – em um pela aparência das coisas, no outro pelas palavras sobre as coisas” (Jonas, 2001b, p. 176). Devido ao elemento da decepção, em um primeiro estágio da relação humana com a realidade, fomos conduzidos a encarar o engano como produzido por algo exterior ao sujeito e, nesse sentido, argumenta o autor, “[...] a primeira negação operativa na experiência da verdade é defensiva em vez de ofensiva” (Jonas, 2001b, p. 176). No alvorecer da humanidade, argumenta Jonas, possivelmente isso pode ter gerado a sensação de nos sentirmos vítimas da situação como reação primeira, nas circunstâncias de equívoco pela tomada de alguma coisa por algo que realmente não era. “O fato de que o mundo pode nos enganar, isto é, aos nossos sentidos e aos padrões adquiridos de nossa experiência perceptiva, é a base pré-lógica, pré-linguística, pré-simbólica para o fenômeno da verdade” (Jonas, 2001b, p. 180).

Isso pode significar que a habilidade de perceber a semelhança como semelhança, desenvolvida pelo homo pictor, pode ter o seu fundamento natural na experiência básica da percepção das diferenças entre formas semelhantes, como meio de evitar a desilusão causada pelo erro de avaliação e como forma de defesa da possibilidade do equívoco, causado pelo engano, ao se tomar as formas existentes de modo unívoco.

Aristóteles já havia notado que os humanos são os únicos seres que podem perceber a existência de diferentes interpretações da realidade e, assim, diferenciam-se dos demais animais que percebem a realidade de forma unívoca. Ou seja, para os animais não humanos, não há a possibilidade de perceber a semelhança entre objetos ou mesmo a coexistência de interpretações sobre o real.

A mesma constatação serve ao pensamento de Jonas e, nesse sentido, podemos afirmar que a percepção das semelhanças trouxe também um aumento da liberdade perceptiva humana, pois possibilitou a compreensão das diferentes nuances que uma mesma forma pode apresentar, na realidade, contribuindo, assim, para evitar a desilusão do engano.

O evento da verdade tem, a princípio, o caráter de não enganar (a si mesmo), e só muito mais tarde também o de “dissimular” ou “desvelar” (as coisas veladas: a última é a fórmula de Heidegger para o significado inicial da verdade). Simulação, não a opacidade, é o obstáculo inicial; ilusão, não a ignorância, o primeiro objeto do “Não” na descoberta (Jonas, 2001b, p. 176).

 

Dessa maneira, se, nos primórdios da humanidade, a aparência semelhante das formas configurou o lugar primário do engano na realidade das coisas, essa mesma condição propiciou o desenvolvimento da capacidade de discernimento entre as formas, contribuindo para o desenvolvimento da percepção humana. “A decepção de uma antecipação errada é de longe a experiência mais contundente e epistemologicamente relevante” (Jonas, 2001b p. 179).

Jonas afirma que somente mais tarde, após assegurar um certo domínio de discernimento das formas, através da experiência, os humanos puderam ir além das aparências na experiência da verdade:

“Verdadeiro” não menos que “falso”, é descoberto em um plano superior de admiração e curiosidade, onde a aparência, já assegurada em seu próprio plano segundo a distinção entre espúrio e genuíno, não requer mais retificação enquanto aparência, mas penetração por trás da aparência, a uma verdade de tipo diferente. (JONAS, 2001b, p. 176).

 

O alargamento da percepção propiciado pela distinção das formas inaugurou uma nova dimensão da verdade, a qual instaurou sobre si mesma o parâmetro da falsidade e da verdade sobre as coisas, uma vez que a aparência pode ser tomada qua apparentia. Jonas destaca que isso tornou a experiência da verdade mais livre da contingência de assentimento ou negação do que se apresenta, passando a “[...] fornecer o seu próprio objeto em semelhança verdadeira produzida propositadamente, no qual o conteúdo de percepção escolhido é consagrado para o reconhecimento afirmativo contínuo” (Jonas, 2001b, p. 177). A representação pictórica ilustra bem essa dinâmica, já que ela surge como o esforço positivo para a representação ativa da verdade, “[...] em sua proximidade com o solo perceptual que precede o pensamento em ‘teoria’” (Jonas, 2001b, p. 177).

A habilidade advinda da capacidade representativa configura a positividade da experiência da verdade, como um passo a mais na complementação da experiência básica da negação, à qual subjaz o fenômeno da verdade. De acordo com Jonas, esse par composto pela “[...] faculdade da imagem e faculdade de negação pode ser orientado para a vontade ou o desejo, com o resultado de suplantar a evidência da percepção” (Jonas, 2001b, p. 177). Ou seja, na experiência da verdade, não nos limitamos à apreensão dos dados da sensibilidade, o que torna possível acrescentarmos à evidência da percepção “[...] o que se quer que seja (pensamento desejoso)”, ou uma oposição “[...] a isso pelo que a pessoa faria (pensamento projetivo)” (Jonas, 2001b, p. 177). Essa característica da experiência da verdade demonstra o elemento livre envolvido na apreensão da realidade e que “[...] a liberdade negativa-positiva que estamos considerando no contexto da experiência de verdade são de suprema importância nos assuntos dos humanos” (Jonas, 2001b, p. 177-178), na medida em que podem ser tanto o lugar da criação da ilusão utópica como também indicam “[...] os horizontes maiores por trás do nosso tema mais limitado” (Jonas, 2001b, p. 178).

Ao que aponta Jonas, o elemento volitivo está presente desde o princípio, nessa experiência basal da humanidade. O desejo ou repulsa envolvidos na experiência da verdade se refere a um conjunto de “impressões antigas” que são rememoradas e comparadas. E isso também constitui as condições nas quais as coisas são percebidas:

Perceber é admitir o conteúdo dos sentidos em um total de experiência em que ele exibe tais qualidades cognitivas como conhecidas, familiares, vagamente familiares, intrigantes, surpreendentes. Mesmo a perda do que (se) percebe é possível apenas com referência ao acostumado quando (se) está perceptualmente em casa. Assim, a percepção como tal, como se constitui em cada instância no contexto da experiência passada, também aponta para uma futura validação ou invalidação (Jonas, 2001b, p. 179).

 

A validação ou invalidação do conteúdo percebido depende da próxima experiência perceptiva, a qual, segundo Jonas, “[...] pode confirmar, amplificar, corrigir ou cancelar isso” (Jonas, 2001b, p. 179), ou seja, a experiência perceptiva futura possui o potencial de ressignificar o que foi percebido. Todavia, necessitamos constantemente “integrar” os dados percebidos pela visualização e pela convocação da experiência pretérita na memória:

A natureza essencialmente fragmentária de qualquer ‘visão’ particular, a qual não pode permanecer em si mesma, clama por integração contínua no exercício da própria faculdade visual, e essa integração é feita à luz da experiência passada e através de meios integradores como a psicologia da Gestalt demonstrou operar na sensação em si. Chamar tudo isso pelo nome de 'julgamento' serve apenas para confundir a questão. Mas isso envolve as possibilidades de confirmação e desapontamento e, portanto, tem uma referência à questão da verdade e da falsidade (Jonas, 2001b, p. 179).

 

Temos então que, para Jonas, as percepções, mesmo as básicas que subjazem à experiência da verdade, operam amparadas em referenciais das experiências passadas, ao mesmo tempo que são “estruturadas” por formas que as tornam inteligíveis. Esses referenciais pretéritos aliados à livre disposição das formas para comparação tornam possível a experiência da verdade, visto que a condição de possibilidade dessa experiência tem como prerrogativa a disponibilidade de referência sobre o verdadeiro e o falso. Assim, o pensamento de Jonas, quanto ao funcionamento das percepções, conjuga a apreensão imanente da experiência com certas “estruturas” inerentes à corporeidade humana.

 

4 Sobre o a priori do corpo na percepção do real

A corporeidade humana se apresenta como uma peça-chave para se compreender a obra de Jonas, o a priori do corpo, conforme destaca Wendell Lopes, citando Dietrich Böhler, o qual rege a relação do humano “[...] com o mundo e consigo mesmo” (Lopes, 2014, p. 148) e configura “[...] a via de acesso mesma para o conhecimento da vida orgânica. O corpo orgânico é a condição de possibilidade do conhecimento da vida” (Lopes, 2014, p. 148). Essa afirmação reflete o lugar capital que o corpo ocupa na questão da causalidade no pensamento de Jonas e, por conseguinte, mostra-se como um importante aliado na compreensão do fenômeno da verdade, mas não apenas isso. Jelson Oliveira, em o Vocabulário Hans Jonas, aponta quatro motivos pelos quais a questão do corpo atravessa a produção filosófica de Jonas: “[1] ele está na base (da discussão sobre) o dualismo [...]; [2] da crítica à forma como a modernidade compreendeu a vida [...]; [3] do respeito à integridade e autenticidade da vida [...]; [4] (da discussão) no campo da bioética” (Oliveira, 2019, p. 69).

Para Jonas, o corpo é o lugar primário da experiência da causalidade, devido ao fato de ele ser o locus da experiência das forças, como, por exemplo, a da gravidade. A causalidade não se apresenta como uma condição para a experiência, porém, ela mesma é uma experiência, afirma Jonas. E, de fato, “[...] um exame sem preconceitos descobrirá que não a compreensão pura, mas apenas a vida corpórea concreta, na interação real de seus poderes de autopercepção com o mundo, pode ser a fonte da ideia de força e, portanto, de causa” (Jonas, 2001a, p. 22).

Essa asserção se justifica na prática pela experiência, pois sentimos os efeitos da causalidade, em nossos corpos, pela ação das forças. Sentimos a presença de outros corpos e, quando em contato com os nossos, o toque de outro corpo afirma a presença que a neutralidade da visão apenas comunica. Sentimos a presença das forças em ação nas modificações experienciada pelos nossos corpos, a ação da força de resistência, ao nos movermos, e a fadiga causada por esse esforço, porque “[...] a causalidade é primeiramente uma descoberta do eu prático, não do eu teorético, de sua atividade” (Jonas, 2001a, p. 23). Ou seja, é através dessas experiências básicas da atuação das forças físicas que aprendemos sobre os efeitos do mundo em nossos corpos:

O esforço muscular requerido significa que o movimento relativo é mais do que uma mudança de posição geométrica mútua: através da interação da força, o geométrico torna-se uma situação dinâmica que, por esse mesmo caráter, também revela o aspecto geométrico. A propriocepção da atividade motora torna-se um guia para o organismo na construção sucessiva da distância e direção espacial das fases do movimento que realmente realiza. Uma vez de posse do conhecimento legado por essas experiências de movimento, posso de fato ver o mundo do meu ponto de vista fixo e apreendê-lo em profundidade, em perspectiva e na ordem de suas diferentes direções de extensão. (Jonas, 2001a, p. 155).

 

Para Jonas, o movimento dos animais superiores é um exemplo da experiência das forças atuantes em nossos corpos, complementada pelos dados visuais, no sentido de que o conhecimento sobre a espacialidade e os possíveis efeitos dos deslocamentos e das interações determinados espaços advém tanto da experiência corporal quanto da capacidade visual. Nesse caso específico, ambos são pares complementares na apreensão do real: de um lado, o corpo experiencia a causalidade da interação das forças e, de outro, a visão integra os dados dessa experiência.

Embora o corpo capaz de se movimentar seja a condição primeira da experiência da causalidade e “[...] a precondição da visão no mundo” (Jonas, 2001a, p. 156), é a visão, desprovida da capacidade de apreender a causalidade, que efetua a integração dos dados apreendidos, pois os demais sentidos apreendem os dados sempre de maneira parcial, não simultânea, devido às suas características específicas, como, por exemplo, a necessidade de sucessividade inerente aos processos auditivos e ao tato.

O a priori corporal se configura, assim, “[...] como condição de possibilidade do conhecimento do mundo e da causalidade existente nele” (Lopes, 2014, p. 148), porque é o corpo que recebe as impressões do mundo e as traduz em imagens que serão retidas na memória. Esse processo é descrito por Jonas da seguinte maneira:

A pequenez (em dimensão, tempo, taxa e energia) das unidades de ações e reações envolvidas na afetividade dos sentidos, isto é, sua escala diminuta em relação ao organismo, permite a sua integração em massa em um efeito contínuo e homogêneo (as impressões), nas quais não apenas os impulsos únicos são absorvidos, mas o caráter do impulso como tal é em grande parte cancelado e substituído pelo da imagem destacada (Jonas, 2001a, p. 29).

 

Isso significa que o grau de percepção dos organismos está em relação direta com a escala das quantidades e das qualidades possíveis de serem apreendidas por eles. Organismos microscópicos, por sua vez, têm “[...] um mundo não de presenças, mas de incidências, não de existências, mas de forças” (Jonas, 2001a, p. 29).

Se a ordem de grandeza de uma afecção ultrapassa um nível assimilável por um determinado organismo e seu aparato sensível, como nos casos em que o som pode ensurdecer e a luz cegar, então ao invés de se apresentar com clareza o mundo pode em seu dinamismo e causalidade “atropelar a percepção” (Lopes, 2014, p. 149).

 

Os organismos mais complexos, ou “organismos de larga escala”, acessam “[...] a experiência da força em interação em sua própria escala” (Jonas, 2001a, p. 29) e, por isso, são capazes de integrar as impressões para formar propriamente a percepção da realidade. Nesse caso, alega Jonas, os dados advindos das pequenas influências já são transcritos em impressões, que se apresentam aparentemente como neutralizadas pela “presença contínua e sem esforço” dos impulsos, os quais “[...] parecem oferecer aquele substrato neutro do ser, ao qual a experiência da força passa a ser adicionada em ocasiões específicas, e da qual, de fato, se destaca como um fenômeno particular” (Jonas, 2001a, p. 30).

A sensação de neutralidade diante das pequenas forças que estão constantemente em atuação em nossos corpos proporciona um efeito perceptivo que remete à atuação da faculdade da imagem, em nossa percepção, de sorte que “[...] a aparente prioridade da entidade duradoura sobre a atividade ocasional – o filho cognitivo da percepção – é uma inversão da ordem ontológica originária” (Jonas, 2001a, p. 30), pois, se a ordem ontológica originária é atividade de produção em movimento, em que até mesmo as leis de conservação são resultado do desenvolvimento da seleção, as quais, “[...] tendo surgido do que é transitório, elas mesmas são transitórias” (Jonas, 1996, p. 168), perceber prioritariamente o devir da existência como duração é uma realização que aponta para outras possibilidades de relação com o real, na medida em que “capturamos” o dinamismo inerente à realidade em formas “estáveis”.

De acordo com Jonas, o nosso modo de percepção da realidade prioritariamente visual e, por isso, mais “neutro” em sua relação com a dinâmica do mundo tem a sua razão de ser, devido ao desempenho da capacidade de apreender “[...] as propriedades dinâmicas da luz e da ordem relativa das magnitudes envolvidas” (Jonas, 2001a, p. 30) na percepção dos objetos pela visão.

Essa característica da apreensão visual torna desnecessária a passagem dos impulsos para impressões propriamente ditas, na medida em que a visão naturalmente já neutraliza os impulsos, ou seja, através da visão, a luz se mostra como o elemento que neutraliza a percepção dinâmica das forças atuantes no real e possibilita a formação direta de uma representação correspondente ao percebido. “Uma vez que haja luz, o objeto tem apenas que estar lá para ser visível” (Jonas, 2001a, p. 146).

Em certa medida, admite Jonas, a “[...] auto supressão da eficácia causal ocorre em toda a percepção sensorial” (Jonas, 2001a, p. 30), para que os impulsos e forças possam ser assimilados. “É assim, portanto, que as pegadas da constituição causal dos sentidos são na percepção apagadas e integradas no produto da imaginação” (Lopes, 2014, p. 149).

 

Considerações finais

Para Jonas, nós, humanos, desenvolvemos um modo muito peculiar de percepção da realidade, através da apreensão e replicação das formas (eidos) dos objetos. Nesse sentido, a atividade pictórica primordial sugere um indício da aurora da experiência humana com a questão da verdade. Isso quer dizer que a relação dos humanos com as imagens, desde os primórdios, já supõe um critério de adequação das imagens pintadas aos objetos originais ou lembranças que estão sendo representados pela pintura. Essa adequação torna explícito outro ponto fundamental da teoria jonasiana sobre o modo como simbolizamos a realidade: que as imagens podem representar conceitos e os conceitos podem representar imagens.

Vimos que, além das imagens propriamente, os seus correlatos, que são os símbolos, a imaginação e a memória, também configuram partes essenciais na relação que estabelecemos com a verdade, na medida em que o sentido dessa experiência se constitui a partir da possibilidade de negação dos mesmos atributos que a afirmam. E isso se relaciona diretamente com a liberdade humana, já que poder negar alguma coisa já pressupõe uma escolha entre duas possibilidades.

Por fim, apontamos para a centralidade do corpo orgânico como condição de possibilidade do conhecimento da vida, porque é no corpo que se movimenta que percebemos as forças que nos proporcionam a experiência da causalidade, e disso resulta que o corpo é a precondição da existência do nosso tipo de visão, o qual não apreende a causalidade, mas é capaz de efetuar a integração dos dados apreendidos da realidade.

O aumento da relação mediada com o real se mostra, em um primeiro momento da humanidade, como o aumento da manifestação da liberdade dos agentes, no âmbito da percepção da realidade, compreendida como aumento da capacidade de objetificação expressada pela faculdade pictórica. Contudo, é no exercício autorreflexivo do humano contemporâneo que somos confrontados com a imagem que produzimos de nós mesmos, a fim de avaliarmos a nossa relação com as coisas que estão presentes e ausentes na realidade. Ao que tudo indica, quanto mais conseguirmos expandir a nossa noção de relação, maior será a nossa capacidade de reflexão. A capacidade reflexiva possui a potência de nos manter em um estado de alerta, quanto ao constante influxo de tendências e práticas que se formam no âmbito das relações sociais, as quais, muitas vezes, não são adequadas à preservação das condições de existência de uma humanidade futura.

 

Symbols, images, imagination and memory: elements for a Jonasian epistemology

Abstract: This work aims to contribute to reflection on the epistemological elements present in the philosophy of Hans Jonas. The interpretative key provided by the author with the notion of Homo Pictor and the importance of images, symbols, imagination and memory in the evolution of human freedom within the scope of life, which resulted in the current human being, provide a fruitful field for exploration of the attributes of the epistemic subjects pointed out by the philosopher. In this sense, we propose a reading that considers the possible elements of a theory of knowledge by Jonas based on the texts Image Making and the Freedom of Man (1966), with emphasis on the appendix of the essay, entitled On the Origins of the Experience of Truth and from the text Tool, Image, and Grave (1986).

 

Keywords: Hans Jonas. Epistemology. Homo Pictor.

 

Referências

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JONAS, H. The Imperative of Responsability. In a Search of an Ethics for the Tecnological Age. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.

JONAS, H. Tool, Image, and Grave: On what is beyond the animal in man. In: Mortality and Morality. A Search for the Good after Auschwitz. Editado por Lawrence Vogel. Evanston: Northwestern University Press, 1996.

JONAS, H. Image Making and the Freedom of Man. In: JONAS, H. The Phenomenon of Life: Towards a Philosophical Biology. Evanston: Northwestern University Press, 2001a.

JONAS, H. On the Origins of the Experience of Truth. In: JONAS, H. The Phenomenon of Life: Towards a Philosophical Biology. Evanston: Northwestern University Press, 2001b.

JONAS, H. Philosophical Essays: From Ancient Creed to Technological Man. New York: Atropos, 2010.

LOPES, W. E. S. Hans Jonas e a diferença antropológica: uma análise da biologia filosófica. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

MORRIS, T. Hans Jonas's Ethic of Responsibility: From Ontology to Ecology. New York: Sunny, 2013.

OLIVEIRA, J. Corpo. In: OLIVEIRA, J.; POMMIER, E. Vocabulário Hans Jonas. Caxias do Sul: EDUCS, 2019.

RUBIO, R. Homo Pictor. In: OLIVEIRA, J.; POMMIER, E. Vocabulário Hans Jonas. Caxias do Sul: EDUCS, 2019.

 

Recebido: 02/10/2023 - Aceito: 31/10/2023 - Publicado: 20/03/2024



[1] Professora colaboradora e bolsista de pós-doutorado CAPES no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0002-8210-7498. E-mail: michellebobsin@ufrrj.br.

[2] Contemporaneamente, é possível problematizar as respostas para a questão da diferença antropológica, a partir de diferentes perspectivas e campos de investigação. Pesquisas etológicas com primatas demonstram que algumas espécies, como chimpanzés e bonobos, são capazes de reconhecer a própria imagem no espelho, através do teste MSR (mirror self-recognition). O teste MSR foi desenvolvido por Gordon Gallup, em 1970, que chegou à seguinte conclusão: “[...] após exposição prolongada às suas imagens refletidas em espelhos, os chimpanzés marcados com tinta vermelha mostraram evidências de serem capazes de reconhecer os seus próprios reflexos”. Ver: https://www.science.org/doi/10.1126/science.167.3914.86. É interessante notar que o primatólogo Franz de Waal, em The Bonobo and the Atheist, aponta algumas evidências de comportamento ético entre os bonobos, o que o leva a concluir que a nossa tendência a agir moralmente pode ter raízes na evolução das espécies. Ver: de WAAL, Franz. The bonobo and the atheist: In search of humanism among the primates. New York: W.W. Norton & Company, 2013. Já o filósofo canadense Brian Massumi vai argumentar que a brincadeira entre filhotes de lobo pode nos revelar uma dimensão política presente na lacuna entre a brincadeira em si e a luta real. Ver: MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: N-1 Edições, 2017.

[3] Eidos, no pensamento de Jonas, é o elemento da semelhança que opera na mediação, através da faculdade da imagem, como uma ligação ideal entre a realidade e o objeto representado.