O sentido como ser-com e tato em Jean-Luc Nancy[1]
Deborah Spiga[2]
Resumo: Neste artigo, pergunta-se sobre como o nosso mundo faz ou é sentido ainda hoje, sempre e novamente. Essa é a pergunta a que Nancy tenta responder ininterruptamente, ao longo de toda a sua pesquisa. A partir da falta de um fora ou de um Outro, como criador ou princípio abstrato com o qual nos relacionamos, veremos como o mundo não tem mais sentido, mas, enquanto existimos, ele é sentido. Nenhum sentido a ser doado ou espalhado, mas temos que mudar a gramática desse sentido que não se exprime mais com o verbo “ter”, mas sim com o verbo “ser”. “Mudar o sentido do sentido”, com a passagem do verbo “ter” ao verbo “ser”, implica não apenas uma nova relação com o mundo, mas uma nova concepção da práxis, na qual é o agente da operação que muda e não a obra. É necessário um pensamento do mundo que, dessa forma, se torne inseparável da sua práxis, porque, desde sempre, exposto e ex-crito no mundo.
Palavras-chave: Sentido. Mundo. Ser. Com. Tato.
Introdução
Com o livro o Sentido do mundo, a intenção do autor é explorar o espaço comum a todos, espaço do nosso “sentir” juntos a exigência do sentido como imperativo. É no “deserto” de significações e de mensagens que a urgência de sentido se torna imperiosa e se manifesta como o único motor de insurreição e resistência. Como pensar uma ação política que possa ser transformadora e não somente um vigia desse sentido? Como essa ontologia, transformando-se em ética originária, pode se tornar práxis? Somente admitindo que esse sentido do ser consista apenas no “ter que fazer sentido”, como uma demanda ínsita na existência mesma e não como valor ideal ou âncora metafísica que fundamenta e, ao mesmo tempo, transcende a existência quotidiana. A filosofia, assim, não será mais mera especulação sobre os grandes princípios da metafísica, mas terá que se reiniciar desde as existências corpóreas, dos nossos corpos, daquilo que acontece entre nós. É esse o ônus do qual se encarrega Nancy: com a desconstrução da metafísica, abrir o que estava sigilado nas jaulas do pensamento e, com um novo gesto, inaugurar novas possibilidades de sentido.
Os temas da maravilha, do estupor, do progresso da técnica ou da ciência procuram um sentido fora do mundo, ignorando dessa forma a ordinariedade e a insignificância do cotidiano “impessoal” heideggeriano. Todavia, o fato é que, segundo Nancy, nós não podemos encontrar o sentido, senão a partir justamente dessa ordinariedade que é a existência em si, em cada toque de sentido, em cada reafirmação de cada existente. O sentido, por conseguinte, não é em nenhum outro lugar que deslocasse nossa existência, porém, nas pluralidades das origens e na coexistência delas, nos acontecimentos que não param de brotar em cada singularidade. É esta, segundo Esposito, a originalidade do pensador francês, que
[...] não está tanto na clara cognição de tal dinâmica [a crise da tradição filosófica ocidental] quanto na modalidade não trágica – mas nem débil ou resignada – com a qual ele a interpreta. O exaurimento do sentido não é por ele entendido como uma catástrofe nem, precisamente, como uma perda, – a partir do momento que não acontece a nenhuma plenitude originária – mas como evento, ou advento que temos diante de nós e que nos envolve como a nossa condição mesma: aquela de sermos abandonados, ao fim de cada sentido externo, a nós mesmos. De ser nós mesmos – nós todos e nós sozinhos – o sentido subtraído a cada origem, fim, orientação (Esposito, 2000, p. X, tradução nossa).
Com a expressão “sentido do mundo”, então, não se indica algo como uma etiqueta com a qual se rotularia o mundo pelo lado de fora. De fato, na esteira desse pensamento, teríamos que nos perguntar sobre um fora do mundo capaz de acionar e de intervir, doando-lhe sentido e, ao mesmo tempo, justificando sua existência. É em função do nosso “ser-aí” que temos que compreender essa nova localização, para nos orientarmos sem um norte de sentido.
1 O sentido do mundo como entre nós
Estamos a caminho, entre um começo longínquo e um fim imprevisível. Nossa dimensão é a medialidade do entre. Mundo que é o mundo romano, cristão, helênico, árabe, indígena, mas também o mundo da arte, da filosofia, da ciência e da religião. Há mundo, portanto, somente para quem mora, “demora” (demeure) nele, como naquilo em que “há lugar”. Não há um mundo à nossa frente, porque, nesse caso, ele não seria “nosso” mundo, mas há mundo somente na medida em que sentimos e partilhamos seus movimentos, suas trocas, seus ecos, seus reenvios internos e externos que constituem a fita trama das relações que se endereçam continuamente de um a outro “[...] sem que haja um sujeito pressuposto como substância ou como suporte desse reenvio a si” (Nancy, 2003, p. 21, tradução nossa). Ele gira em volta de si ou contra si, sem conhecer mais o motor rotativo. Mundo que não quer dizer nada, além desse nada que ninguém pode dizer, contudo, que cada dizer diz e, na medida em que partilha a existência, ele é “[...] o lugar comum de um conjunto de lugares: de presenças e de disposições para alguns possíveis ter-lugar” (Nancy, 2003, p. 21, tradução nossa).
Moradia de uma posição, e compartimento das diferentes posições que se explicitam em nosso habitar, o mundo é tal somente enquanto um “ser aí”, um “ser-ao-mundo” que se expõe no habitus e no contínuo reenviar das múltiplas ressonâncias umas às outras. Sem nenhum pressuposto, sem nenhum vínculo vicário do seu sentido, o mundo gira somente em volta de si, conhecendo apenas sua “revolução” (Nancy, 2003, p. 22) através de “princípios e fins anárquicos e atélicos” (Nancy, 2003, p. 79, tradução nossa). Um mundo “[...] inoperoso que então não tem fins últimos em si, nem em outro de si, mas que contém em seu interior todas as possibilidades e as impossibilidades do seu desfecho” (Calabrò, 2012, p. 9, tradução nossa). O meu mundo e o vosso é
[...] uma articulação diferencial de singularidades que fazem sentido articulando-se, exatamente na articulação deles (onde articulação se deve entender seja no sentido mecânico de junção, seja no sentido do proferir falante, como também naquele da distribuição dos “artigos” distintos) (Nancy, 1997, p. 99, tradução nossa).
Mundo que, sem nenhum além que o determine ou contenha, nenhum mundo possível ou necessário, mas somente um mundo assim determinado:
“Eu” não estou “em” o mundo, mas antes eu sou o mundo e o mundo é eu, como é tu e nós e o lobo e o cordeiro e o azoto e o ferro e a fibra óptica e o buraco negro, o líquen e a fantasia das imagens, o pensamento e impulso das mesmas “coisas”. Estas coisas que são e que fazem o mundo nada mais são que relações entre si de todos os existentes (Nancy, 2014, p. 126).
Não há o Sentido do sentido, não há nada a que se possa remeter fora do mundo: o que existe é somente nosso ser uns-com-os-outros intricados em um envolvimento mútuo. Nós fazemos o sentido, na medida em que nos relacionamos, exteriorizando e expondo o valor de cada coisa. “O” mundo somente como “nosso” mundo. Co-pertencimento de tudo aquilo que reenvia a tudo. O que acontece cai entre nós. Em nossos respiros, nossos gestos, nossos movimentos, vozes e danças. Torna-se necessária, assim, segundo Nancy, uma “suspensão” e “isenção” do sentido da metafísica, a qual reenvia a uma origem ou a uma finalidade, da mesma forma como também é preciso ver nesse “endereçamento a” a constituição do mesmo ser.
O sentido não é mais um princípio transcendente que se propaga de maneira vertical, distribuindo-se, todavia, equivale ao movimento das singularidades que expressam o fortuito da existência. De fato, depois da crise de todos os valores tradicionais, o que nos resta é a evidência de nosso ser uns com os outros, que faz da expressão “existência comum” um mero pleonasmo (Nancy, 2003, p. 110). Temos de nos livrar desse “imperativo” que vê o sentido como telos, meta e destinação para entender, ao contrário, a sua dimensão propriamente mundana e o que nos sobra: nossa ex-istência. Tudo o que existe é uma forma diferente de dirigir-se aos outros, através de cada endereço singular, na pluralidade das relações e na sua tensão sem resolução. É preciso, assim, fundar uma nova ontologia, uma “ontologia desconstruída do nós” que seja capaz de demonstrar como o sentido não é nada mais que a nossa relação finita de um com o outro. É este o resultado mais precípuo da desconstrução nanciniana da metafísica:
Nós não somos nem o “cumprimento”, nem o “ultrapassamento” da metafísica, não somos nem o processo, nem o erro. Mas acontece que nós existimos e “compreendemos” que isso (nós mesmos) não é o insensato de uma significação reabsorvida, anulada. Na indigência e na necessidade, compreendemos que nós, aqui, agora, somos ainda e de novo responsáveis por um sentido singular (Nancy, 1992, p. 33, tradução nossa).
Não existe “ser” que não seja já “comum” e não há sentido que não seja aquilo que nós fazemos e compartilhamos em nosso viver quotidiano: “[...] não ‘temos’ sentido, porque nós somos o sentido de nós mesmos, inteiramente, sem reservas, infinitamente, sem qualquer outro sentido fora de ‘nós’” (Nancy, 2001, p. 5, tradução nossa). O sentido ao qual nos referimos aqui é, então, não o que se faz e o que se produz, mas o que somos: “Nós podemos dizer nós [...] (dizê-lo de nós mesmos e dizê-lo uns com os outros), a partir do momento em que nem um chefe nem um Deus diz mais isso por nós” (Nancy, 2001, p. 59, tradução nossa). Estamos sem um fora que signifique nosso por dentro, em um hic et nunc que especializa e localiza nosso ser, sem “para” do sentido, sem um “envio direcional”. Ora, se esse “para” da relação não reenvia mais a algo transcendente, temos de pensar esse “ser-para” no seu valor ontológico e mundano. Seguindo uma bela imagem, é como quando “[...] nos preparamos para atravessar uma galeria de um museu, onde as imagens – pinturas, esculturas, fotografias – se subseguem e se abrem ao nosso passo. Abrir ou abrir-se, em todas as vezes, singularmente, é realizar um sentido proximal” (Calabrò, 2009, p. III, tradução nossa). “Sentido proximal” que se se faz, que se espaça conforme “cada um de nós” anda, caminha, na medida do seu passo, do seu olhar, da sua presença que avança como visitante singular e, ao mesmo tempo, plural: “Mundo quer dizer ser-para, quer dizer relação, endereço, envio, doação, apresentação a – dos existentes uns aos outros” (Nancy, 1997, p 17, tradução nossa). Sentido e mundo exprimem, assim, uma relação biunívoca em que a frase “O sentido do mundo” se revela nada mais que uma mera tautologia.
Nós somos o sentido em nosso ser-uns-com-os-outros como produção e circulação de significados e não como sujeitos que preencheriam, qualificariam ou finalizariam seu conteúdo. Assim, o significado da coisa mais anódina tanto quanto o da mais alta e relevante fazem sentido, ou seja, são o que são precisamente na medida em que são comunicados, mesmo de mim para mim, e entram em circulação enquanto postos, dis-postos e ex-postos. Sentido que, dessa forma, pode ser somente “em comum”, “contagioso” como “comunismo cosmológico” que “[...] nos ensina: nada existe sozinho” (Coelho, 2020, p. 109).
O sentido é a percepção do “em si” como relação, como “outro de si” que se volta “para si” e que não se deixa enjaular pelo ipse. Todavia, Nancy enfatiza como este “para si” é uma alteridade em que este “outro” não é o correlato nem o termo de uma relação, mas sim uma diérese ou dissecação do “si mesmo”, a qual mostra como não há uma origem a partir da qual se originariam o “si mesmo” e o “outro”, porém, como “o outro” é já “para si mesmo”, “já o mesmo” (Nancy, 1992, p. 16). O sentido do ser não é algo que viria para completar o ser ou que se acrescentaria ao dado bruto e simples do ser, mas é o próprio ser que nos é dado como sentido, uma vez que nos entendemos, em que ele é circulação de si mesmo, “remete a” e é endereçado. O que se vislumbra aqui é uma “ontologia religiosa” “[...] segundo a qual as formas singulares do ser se mantêm juntas em uma cena plural [...] somente em um sentido horizontal, interno à existência” (Piromalli, 2012, p. 215, tradução nossa).
Nós, no começo e no fim, sem restos e reservas, nós fazemos sentido não conferindo um valor, mas somente exibindo o valor que o mundo é em si e por si. Nós, através da linguagem, “[...] levamos o sentir do mundo, expressamo-nos, ou seja, permitimos que ele se sinta, se prove na renovação infinita e proliferante de seu impulso inicial” (Nancy, 2013, p. 102, tradução nossa). Temos esta tarefa, expor esse espaçamento, essa ruptura e disjunção, esse acontecer que faz da passagem da presença o sentido do mundo na sua unicidade e, ao mesmo tempo, multiplicidade. Nós somos o sentido, porque “nós” falamos, porque somos essa com-unicação, porque a expomos, dizendo a cada vez “nós”. É entrando em contato com o outro que se começa a “fazer sentido” um para o outro. Esse con-tato é a relação entre duas singularidades que afirmam a própria heterogeneidade e separação enquanto duas “origens” diferentes e dois diferentes toques de sentido. Nós não podemos ter acesso à origem ou nos identificarmos nela, mas somente com ela, quando nos tornamos uma humanidade “[...] cujo sentido está nu e à flor da pele” (Nancy, 2003, p. 51, tradução nossa). O sentido do ser “se fala” e “se escuta” quando este “se” é “nós”: “cada um de nós”. O sentido do ser, como vimos, então, não pode ser entendido senão a partir do seu expor-se, do seu “ser-com”, de um para o outro e de outro a outro: “O ser é colocado em jogo como com” (Nancy, 2001, p. 40, tradução nossa). Esta é, segundo Nancy, a afirmação a partir da qual a ontologia deve recomeçar e se fundamentar[3].
Essa circulação demonstra que não há sentido que não seja compartilhado, e isso não porque o sentido seria algo em comum a ser dividido entre as partes, mas porque ele não é nada antes dessa partição, ele é propriamente a partição do ser[4]. A circulação nada mais é, pois, segundo Nancy, que a ideia nietzschiana do eterno retorno. É a afirmação do sentido com a repetição de cada instante, o qual, uma vez liberado, afirma a presença e seu movimento singular-plural. Nenhuma finalidade, nenhuma linearidade ou progressão, somente o golpe que cria as ocorrências singulares plurais, pluralidade originária das origens que cria cada singularidade. Esta é a lei das existências em geral: “A pluralidade e a relação, sem as quais não poderíamos nem entender o que significa existir” (Nancy, 2013, p. 70, tradução nossa).
O sentido começa onde a presença se diferencia de si para se apresentar, para se tornar o que é “enquanto tal”. Esse “enquanto tal” nada mais é que o espaço necessário para que a presença possa se tornar compartilhada, o espaçamento aberto da presença para a presença. Através de uma distorção gramatical, deveríamos pensar, sugere Nancy, em uma transitividade do verbo “ser”, segundo a qual, poderíamos dizer que ser o ser não é ser o ser como produto de uma operação ou como qualidade de uma substância, entretanto, que “ser é ser” enquanto “ex-istente”. Este último é enquanto tal sem, com isso, conferir-lhe nenhuma propriedade ou algo como um dom a ser recebido, mas como o excesso que se apresenta nesse golpe “fortuito” que o leva a sê-lo. “O ser é ou atravessa o existente” (Nancy, 1997, p. 39, tradução nossa). Essa transitividade do ser não se transfere como algo de possuído que seria doado do agente para o objeto, algo que colocaria em potência o ato, porém, é a constatação de que há, há algo, algo “acontece”. O sentido do ser não é obra completa nem o que se cumpriria no próprio fim, mas é “[...] distância, direção, intenção, atribuição, impulso, passagem, dom, transporte, trance e toque: sentido em todos os sentidos, sentido (do) ek-sistente” (Nancy, 1997, p. 40, tradução nossa). Apenas em seu ser entre, na “implosão da presença pura” em um ser que pode ser tal somente sendo “com”, ou seja, sendo apenas uma coexistência singularmente plural, excedência do finito constantemente ex-propriado na imanência da sua existência.
A partir da constatação da não existência de um “fora-mundo”, de um além que constituiria o sentido do mundo, de forma evanescente ou suplementar, o sentido mostra-se e se encontra no interior do mundo, dentro dele; o sentido “[...] pertence à sua estrutura, acentua o que é necessário denominar, não como ‘transcendência’ da sua ‘imanência’, mas, antes, como sua transimanência, ou mais simplesmente e com mais força, sua existência e sua exposição” (Nancy, 1997, p. 72, tradução nossa). Ele existe e se expõe ao homem, através de e no mundo, contudo, não como simples objetos a serem manipulados por um sujeito; ao contrário, de acordo com Nancy, as coisas são a exterioridade do mundo através da qual todo o existente se dispõe e é sentido. Isso se explica quando entendemos que
[...] o acontecer, o existir, acontece aqui, neste mundo-aqui – ou melhor, porque este mundo não é um recipiente para um conteúdo, a totalidade das existências, enquanto totalidade de significância, constitui o “ser-aqui” do “ser-aí” (Nancy, 1997, p. 73, tradução nossa).
Esse, segundo Nancy, é o desafio da filosofia: compreender a transimanência do sentido enquanto mundo-aqui e único lugar do ex-istir[5]. Temos de superar a contraposição entre imanência e transcendência, porque somente assim poderemos entender um novo pensamento da liberdade:
É tempo de sair da clássica contraposição entre transcendência e imanência e pensar a transcendência da imanência: uma transimanência, entendida como a diferença interna à imanência mesma, como a resistência da imanência ao próprio fechamento. Nem o puro dentro nem o puro fora – do sentido – podem abrir o espaço de um novo pensamento da liberdade. E nem de uma liberdade do pensamento. O ponto em que ela pode ser interrogada, senão imediatamente agarrada, está, ao contrário, no cruzamento delas – em um fora que faz uma única coisa com o dentro, que é ao mesmo tempo seu coração e sua pele (Esposito, 2000, p. XXXIII, tradução nossa).
Nem puro dentro nem puro fora, mas um dentro/fora, coração e pele ao mesmo tempo. É preciso pensar em um sentido assim que se faça a “própria carne do mundo”, onde cada concreto nos resiste e, com sua existência, é um ser-para. A uma aniquilação, a uma pulverização dos significados não se segue uma sobressignificação ou a procura de um arquissignificado, porque o que está em questão aqui é o mundo como concretude daquilo que nos toca e pelo qual somos tocados como existentes. Em outras palavras, isso quer dizer que as coisas que existem como “fragmentos de mundo” não são somente a condição de possibilidade factual da existência do Dasein, mas, como totalidade de fragmentos, são o seu sentido “material”. Nesse ponto, podemos ver como Heidegger, conforme Nancy, mais uma vez, havia mapeado uma das intuições mais fecundas da filosofia grega: o atomismo. No entanto, longe de uma tese materialista em contraposição a uma idealista ou de fundamentação do sentido, em termos materiais, o atomismo, representa, segundo Nancy, a “arquitese” do sentido do mundo da filosofia.
A matéria como espaçamento e diferença permite que cada coisa seja possível, no entanto, não como a espessura de uma coisa fechada na minha frente ou como algo que se dividiria, garantindo a identidade das substâncias separadas. O Dasein, como “alguém”, não pode ser pensado senão a partir da realidade das res, ou seja, da diferença material de todas as coisas que existem. Essa co-relação nada mais é que “espaço em comum”, outra palavra para mundo. Este que não preexiste às suas partes, mas que é aquilo que se constitui somente com base nos seus reenvios e trocas, do seu espaçamento e de sua vizinhança. As coisas se afastam, se atraem, se batem, se golpeiam e, assim, se dispõem. Podemos entender isso, na visão de nosso autor, como uma verdadeira “tópica existencial”: “Existe uma topologia da proximidade segundo a qual tudo o que existe se encontra do lado e, nesse ser do lado, empenha já o que se define sentido [...]” (Nancy, 2013, p. 23, tradução nossa).
É dessa forma, segundo Nancy, que temos de interpretar a teoria atomista[6], a matéria caída no vazio dos átomos e o clinâmen[7] como tensão, separação e contato, tangência e resto como sentido do mundo, o qual não “[...] se soma a um existente, mas esculpe o espaçamento atópico que se manifesta graças a um existente (Neyrat, 2018, p. 33, tradução nossa). Assim, como cada singularidade é material enquanto ato único do seu ex-istir, reciprocamente, cada materialidade é singular e leva o signo de sua singularização em seu expandir-se e “esticar-se a”, onde “[...] o que ‘vale’ é o mais, o clinâmen que não é adicionado aos átomos, mas designa o ‘mais’ de sua exposição, tal é o mais de um” (Neyrat, 2013, p. 35, tradução nossa). Cada coisa para ser “signata” deve ser inserida em um “mundo-aqui” como fragmento material de todas as coisas que existem: corpo. Res extensa de tudo o que existe como desvio e diferença de cada matéria prima que existe e, portanto, co-existe: “O ser pode ser somente sentido uns-com-os-outros, circulando no com e como com dessa coexistência singularmente plural” (Nancy, 2001, p. 7, tradução nossa).
Contrariamente a Heidegger, para quem a pedra é sem mundo, ou seja, sem acesso ao sentido enquanto não passa de um objeto a ser manipulado e apropriado pelo homem, segundo Nancy, a pedra também produz sentido enquanto ela toca, se endereça a como superfície, peso e corpo concreto de uma existência local que se diferencia ex-istencialmente de todos os outros existentes[8]. Isso quer dizer que “[...] não há, para Nancy, um privilégio de ex-istência para os homens em relação aos outros entes. Há apenas uma mais intensa exposição: cada ente, enquanto ente, de alguma forma, é Dasein, no momento em que é tocado e morre alterado como origem espaçada” (Meazza, 2010, p. 28, tradução nossa).
Ou seja, não há uma única forma de ser no mundo. A relação da pedra com o sol, de fato, não implica uma relação de apropriação, de identificação entre os dois termos, de posse de um sobre o outro, contudo, ela também toca, é “transitividade passiva” (Nancy, 1997, p. 79, tradução nossa). Ela tem a plasticidade da matéria, e isso quer dizer que ela pode ser tocada, “afetada por” como existência local. A pedra não é sustentada pelo mundo, ela não se apoia nele. Ela é mundo e faz mundo como origem singular plural e existente no mundo junto aos outros entes, lado a lado, como seres abandonados ao “aí” numa rede existencial na qual não somente cada corpo se relaciona com o outro, mas também em que cada transcendência se concretiza no interior do mundo. Sem esses intervalos, sem essas tangentes, sem esses contatos, não teríamos o mundo, não teríamos o “para” do “ser para”, mas a implosão do “ser em”. A pedra é mundo, na sua concretude e no seu espaçamento, no seu ser agregado de átomos em um lugar e não é em outro, no seu ser “discreta”, no sentido da matemática quântica: reunião e retração de matéria. Nenhum animismo ou pampsiquismo está aqui em jogo, porém, ao contrário, trata-se de pensar como o “para si” está inscrito em cada “em si”: “Corpus: todos os corpos, uns fora dos outros, constituem o corpo inorgânico do sentido” (Nancy, 1997, p. 81, tradução nossa).
O homem, portanto, para além de uma visão antropocêntrica, não é no mundo, entendido como seu vigia ou fiel representante, entretanto, é para o mundo enquanto ele é a sua própria exterioridade. O homem expõe junto com os outros seres o mundo que somos. O sentido é, por conseguinte, em cada um, naquilo que diferencia, por exemplo, eu que estou escrevendo este artigo aqui e você que o está lendo. Esse é o sentido distributivo que transita através da unicidade das singularidades, o que nos acomuna a partir da nossa diferença, “comunhão incomunicável” (Nancy, 1997, p. 89, tradução nossa). Da mesma maneira, porém, há um sentido coletivo que faz de “[...] cada ente um absoluto singular do ser” (Nancy, 1997, p. 89, tradução nossa). Condição material que exprime o “a cada vez” único de acesso ao sentido finito de um hic et nunc como repetição e diferença. “Vez” que, como relembra Nancy, em latim, significa tanto “turno” e “giro” quanto “por sua vez”: mudança e repetição. Cada alteridade expõe um outro acesso ao mundo, o qual pode ser dado somente em função dos outros entes, uma origem sempre outra e por isso inimitável e inapropriável. Com isso, todavia, não se reivindica uma “[...] ontologia plana horizontal” (Neyrat, 2013, p. 15, tradução nossa), em que cada coisa se equivale sem distinções, mas um “existencialismo radicalizado” em que cada ser é marcado, inciso por um excesso que rompe a sua imanência e lhe mostra seu lado de fora, abrindo a uma co-existência.
Não há uma verdade mais autêntica para além, algo de mais originário atrás do tocar empírico com as suas superfícies, justamente porque o sentido está nas superfícies que se encontram no contato. O tocar e o sentido revelam-se, assim, sinônimos. Não há um tocar hierárquico, porque o sentido se dá no contato de contiguidades reticuladas, na interrupção recíproca que abre a abstração do “em si” para a concretude do espaçamento através de uma “íntima extremidade” (Nancy, 2020, p. 19). “Corpo sintomático”, sempre direcionado a, e, ao contrário, de qualquer resolução solista e sentido unívoco “[...] abre-se infinitamente ao outro de si, ao outro que o atravessa, disfarçado de uma doença ou de um coração doado, o qual, como o lendário Cavalo de Troia, leva consigo um enganável começo” (Calabrò, 2012, p. 20, tradução nossa). Um “aí” que, como respiração e abertura, se localiza e se endereça como ser-no-mundo, através da sua corporalidade extravagante interna e externa ao mesmo tempo no “[...] com/mover-se da existência no autocontato do ser” (Meazza, 2010, p. 29, tradução nossa). O da de Dasein que localiza e permite a co-aparição e recíproca codeterminação entre as singularidades, na saliência que as comprime e faz uma esbarrar com a parede da outra na “excentricidade da existência” (Neyrat, 2013, p. 23, tradução nossa).
2 O tato como sentido das superfícies que nós somos
Visão de mundo, intuição, inteleção, definição, ponto de vista, essas são as palavras-chave do pensamento teorético. O propósito da metafísica é “ver o invisível”, ver a essência através do olho da mente. Desde Platão e Aristóteles, há uma preeminência das metáforas oculares em que a visão clara e evidente se torna metáfora da verdade filosófica, como iluminação que proporciona o conhecimento[9]. Os olhos portadores de luz, no Timeu de Platão, mas também o olho como símbolo do sol e do pai de Bataille[10]. Isso quer dizer que a capacidade racional humana é sustentada pela primazia do visual como órgão do saber. É a efemeridade da luz, com sua leveza, de fato, em detrimento ao tato e à sensualidade da terra com seu peso a ser privilegiada. Código visual que não apenas torna a metafísica da presença centrada nos olhos totalitária e narcisística, mas que também condena o tato, como em Descartes, ao lugar mais baixo na escala dos sentidos[11]. Há como uma “patologia dos sentidos”, na qual “[o] predomínio dos olhos e a supressão dos outros sentidos tendem a nos forçar à alienação, ao isolamento e à exterioridade” (Pallasmaa, 2011, p. 18-19).
Contrariamente à primazia da visão, na tradição metafísica,[12] com seu pensamento intuitivo, intelectivo e teorético, cujo fulcro está na presença viva, na obra de Nancy, há como que uma cegueira fenomenológica que leva em direção a outro sentido: o tato. Ao plenamente visível do ideal filosófico opõe-se o sentido da extensão e das superfícies. A questão aqui é pensar outra forma de tocar que é “[...] sentido da diferença, tocar é tocar fora, tocar no limite e tocar ‘com’ os outros, é exatamente tocar a diferença sem remetê-la a nenhum outro princípio que não esteja ali, entre os corpos com os quais nós tocamos” (Bulo, 2019, p. 32, tradução nossa). Ninguém menos que próprio Derrida, na monumental obra Le Toucher, dedicada ao aluno-amigo, reconhece em Nancy o maior filósofo do tato depois de Aristóteles. Nos seguintes termos:
Sem nunca abandonar a insistência sobre o tato, ao qual ele nunca renuncia, Nancy associa-o sempre, contrariamente à tradição continuísta do imediato, ao valor de resto, de deslocamento, de partição (partition) e de partilha (partage) (Derrida, 2007, p. 165, tradução nossa).
Um tocar que não é instrumental e hierofânico, mas que, como a priori, contém o “ser-entre” das coisas e sua dis-posição. Um tocar não hapticocêntrico, contudo, “limítrofe”, em que não há o domínio da continuidade, da proximidade, da homogeneidade e da indivisibilidade, mas do espaçamento, da distância, do intervalo e da síncope. Tocar que também não é manusear, tatear ou tastear, porque essas formas reenviam sempre a uma dimensão cognitiva, através da qual se avaliam e determinam as propriedades, as consistências e as texturas das coisas à nossa frente. “Tocar com a mão”, que, não por acaso, significa atestar a veracidade, a realidade de algo. Mas “ter tato”, como capacidade de abordar o outro com certa discrição e delicadeza. Ou ainda “tocar”, como no italiano “tocca a me”, “tocca a noi”, expressão que se utiliza em jogos, falas, filas, para se dizer que é a “minha vez”. Minha vez entre outras. Eu com os outros. Na impossibilidade de proferir esse sintagma sozinho/a, eu estou assegurando a existência de outros como co-existência.
Isso me tocou, me afetou, mexeu comigo. Algo não nos deixou indiferentes, nos emocionou, nos com-moveu. Tocar que, todavia, para permitir o tátil, nunca preenche os seus limites, sob pena de não se efetivar. Ele não penetra o corpo, desvelando seu mistério, porque ele já está aí, ex-posto como existência compartilhada. Ora, isso não quer dizer que seríamos sujeitos passivos dessa afeição, mas que nós já estamos abertos, já lançados para fora, sempre prontos para receber o outro, por meio de uma constitutiva compenetração entre senciente e sentido que abala qualquer presumida entropia.
Usamos o verbo “tocar” assim como algo que nos agita, que cria repulsa ou atração. Não há assimilação, contudo, uma resistência recíproca entre os corpos. Algo se movimentou e nos deslocou, provocando, ao mesmo tempo, o movimento do outro que nos acolheu e que acolhemos. Ambiguidade e promiscuidade do tocar: eu sinto o outro me sentir e, ao mesmo tempo, não posso não me sentir. Se touche que se toca de forma reflexiva e que pode ser tocado. Dois em um: sujeito e objeto da mesma ação. Desde o útero materno: tocante e tocado.
Essas afirmações apontam para uma fenomenologia cotidiana do tátil que atesta nossa ex-istência. Nós tocamos somente porque somos corpos separados e somos mais de um, do lado de fora, transcendentes, outro toque. Tocar, portanto, que não é apenas a pele que eu sinto e que me sente, mas o tocar-se dos olhares, das palavras, dos contos que fazem do “eu” uma coalescência, um epítome de todos os en-con-tros distintos através de “[...] uma autêntica ontologia háptica, signo de um pensamento de relacionalidade, de interdependência, de vulnerabilidade existencial, que conota os corpos em contato que todos e todas somos” (Recchia Lucciani, 2020, p. 277, tradução nossa).
É através do atrito que experimentamos o contato. Sentimos o desejo de tocar e ser tocados, para sentir o fora que nós somos. Através de nossos orifícios, de nossos buracos, vivenciamos nosso ser dentro-fora constantemente. Em um alimento que ingerimos e que expelimos, em um cheiro que inebria nossas narinas e que nos faz espirrar, nos olhos que se fecham diante de uma luz que nos cega, no co-ito como movimento erótico de entrada e saída entre os corpos. Ora, se nos outros órgãos há sempre uma separação entre senciente e sentido, na pele há uma identidade que não é da ordem da representação, mas da e-moção como movimento. Há uma identidade, na medida em que eu toco a pele de alguém, no meu movimento em direção a, no meu ser recebido por essa pele, ela se torna meu gesto[13]. Contrariamente aos outros órgãos que ocupam uma área específica, o tato se estende por todo o corpo. Cada ser que toca outro ser afirma, ao mesmo tempo, a heterogeneidade das superfícies que se tocam. Essa é a lei do con-tato, segundo a qual “entrar em contato” significa fazer sentido uns para os outros, como limite do impossível[14]. Tocar que, na sua transitividade, é sempre e, ao mesmo tempo, reflexivo.
E é esse duplo do tato que permite sentir a continuidade e a separação entre os corpos, ele nos ensina a relação entre os corpos como a relação entre ipseidade e alteridade. Ele é
[...] uma experiência vital de aprendizagem e orientação para o nosso ser-no-mundo; além disso, possui algumas peculiaridades em relação aos demais sentidos, pois produz o que se define como percepção háptica, ou seja, um processo de apreensão e reconhecimento tátil de objetos que resulta da combinação entre a experiência epidérmica do tateamento das coisas que nos rodeiam e a propriocepção gerada pelo posicionamento do corpo em relação a cada objeto tangível (Recchia Luciani, 2022, p. 81, tradução nossa).
É graças ao tato, através do toque da pele do outro como borda e superfície dentro/fora, que o outro se comunica. Comunicação sem significação que simplesmente atesta um existir. Tocando a pele do outro, não fazemos a experiência de um substrato orgânico, mas do limite do que nos separa e da nossa finitude como abertura da relação. Por meio do toque do outro que me toca e que toco, não somente ex-isto, mas experiencio também a impossibilidade de uma presença em si como identidade e o dualismo clássico da metafísica dentro/fora. Exemplar, nesse sentido, é essa “afeição particular” que é a carícia “[...] que mostra que me dirijo ao ser do outro, à sua presença. A carícia nos ensina que o que conta no amor é a presença do outro, o toque do outro e, de certa maneira, nada do outro” (Nancy, 2012, p, 21). Carícia que compartilha com “caro” a mesma raiz etimológica. Tocar como acariciar, desejo de me aproximar e de me distanciar, para me sentir e sentir o outro, em um banho de corpos que flutuam no ritmo de uma onda. No con-tato, na pele do outro que eu sinto e toco como superfície, como vimos, uma singularidade se expõe a outra. Cada singularidade encontrando a outra sente e sofre o próprio limite que comunica na forma de um “contágio”:
Aquilo que se comunica, que é contagioso e que, dessa maneira, e somente dessa maneira, se “provoca”, é a paixão da singularidade enquanto tal. O ser singular, próprio como singular, é na paixão – a passividade, o sofrimento, o excesso – da partição da sua singularidade. (Nancy, 2003, p. 74, tradução nossa).
Não há o todo-pleno, todavia, uma distância, um vazio, um espaço não preenchível entre a mão que toca e o tocado, que “[...] abre o espaço da alteridade, do ‘quem’ suspenso na ambivalência do golpe e da carícia” (Antonioli, 2014, p. 32). Existe o corpo de um e existe o corpo de outro: nós nos tocamos e nos sentimos, sem nos assimilarmos ou lacerarmos reciprocamente. Um tocar que mostra o intervalo e a síncope dos nossos corpos misturados na promiscuidade de um corpo a corpo que é o único lugar da partilha como ser-com. Corpos frágeis e vulneráveis, cuja intimidade está no seu ser fora de si. Espaçamentos de corpos heterogêneos que se en-con-tram em tangentes plurais, que se ligam como “[...] grãos de areia que configuram a arquitetônica da vida, sem outro ponto ao qual agarrar-se a não ser o contato com os outros” (Bulo, 2020, p. 11).
Conclusão
Buscou-se demonstrar como no “com”, no nosso ser a-cotè, Nancy vê, numa época de não sentido, o sentido. É o com a condição ontológica da existência e é através do Mit Sein heideggeriano que se avia a necessidade de repensar a ontologia como fundada no ser singular plural. Sem Deus, Natureza e História, a filosofia se torna testemunha de um processo autodesconstrutivo que não tenta atribuir mais um novo princípio, valores absolutos e um sentido único. A época presente, privada das grandes narrações que lhe davam sentido, revela apenas um corpo nu entregue a sua própria finitude. Temos somente esse mundo e é para ele que temos de olhar. Um mundo de corpos que se abrem e se expõem, desde sempre despossuídos. Como vimos em Nancy, é apenas tocando o outro que existimos, apenas nos tocando que nos tornamos “nós”. Singularidades que, enquanto ex-istências, são sempre marcadas por uma ferida que lacera a presumida unidade do sujeito e o expõe ao outro, em rapport, através de uma “ontologia tátil”. Tato, como sentido dos sentidos, o qual faz das margens, dos interstícios, das bordas, das brechas uma experiência de en-con-tro entre os existentes como fragmentos. Superfície que, como a pele das imagens, está exposta na tela da pintura sem mais nenhuma profundidade ou interioridade ou véu que as encubra. Não existe dentro senão enquanto entre um fora e outra fora. A nossa condição de corpos, o nosso acontecer como corpos (aparição) que entram em con-tato, é nada mais do que a realização daquele sentido que muitos deram por acabado. Não tem nenhum solipsismo filosófico, porque é somente na exposição ao outro como co-existência e ser-em-comum que é possível pensar nossa existência.
Sense as being-with and touch in Jean-Luc Nancy
Abstract: In this article we ask ourselves about how does our world make sense today, over and over again? This is the question that Nancy continually tries to answer throughout her research. From the lack of an outside or an Other, as a creator or abstract principle with which we relate, the world no longer has sense, but, as long as we exist, it is sense. No sense to be donated or spread, we will see how we have to change the grammar of this sense which is no longer expressed with the verb “to have”, but rather with the verb “to be”. “Changing the sense of sense”, with the passage of the verb “to have” to the verb “to be”, implies not only a new relationship with the world, but a new conception of praxis, in which it is the agent of the operation that changes and not the work. It is necessary to think about the world that, in this way, becomes inseparable from its praxis because it has always been exposed and written in the world.
Keywords: Sense. World. Being. With. Touch.
Referências
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Recebido: 22/09/2023 – Aprovado: 14/01/2024 - Publicado: 15/05/2024
[1] Este artigo é fruto da minha pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIFESP. A pesquisa da qual ele resultou foi financiada pela CAPES.
[2] Doutora pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Guarulhos, SP – Brasil. ORCID: 0000-0001-5636-9040. E-mail: deborahspiga@hotmail.it.
[3] A necessidade de repensar esse “com” e de que maneira esse termo constitui o nosso problema central é, conforme nosso autor, testemunhada pelas inúmeras teorias contemporâneas que debatem sobre a diferença entre mensagem e médium. Elas, na verdade, nada mais fazem que desvelar nossa trama, a rede que somos nós, nosso “com”, “telecom”.
[4] Isso significa que o sentido é fundamentalmente circulação, comunicação, compartilhamento e não mais significado, porque “[...] a significação refere-se puramente ao fechamento de seu horizonte de apropriação. Torna-se literalmente sem sentido em sua univocidade. É uma pura exteriorização da minha totalidade, da minha Economia do Mesmo, como diria Lévinas” (Dervish, 2013, p. 111, tradução nossa).
[5] Transimanência de Nancy: “A instância anárquica e trans-imanente que caracteriza a visão filosófica de Nancy não tem nada a ver com referências transcendentais. A sua concepção do abandono e da liberdade (do abandono à liberdade) responde à exigência de desamarrar a existência da nostalgia do sentido e da cadeia de cada astro metafísico: é esta, para o filósofo, a verdadeira saída da caverna, o caminho não platônico que conduz à descoberta de que não há um sentido preexistente – que o sentido é, todas as vezes, imanente à existência” (Piromalli, 2009, p. 215, tradução nossa).
[6] A respeito de uma filosofia materialista em Nancy, leia-se: “Trata-se de um materialista num sentido quântico e fractal, isto é, um moderno atomista da singularidade concreta e discreta da natureza, porque para essa filosofia todos os corpos constituem o corpo inorgânico da sensação e do sentido” (Cangi, 2020, p. 90).
[7] Dessa forma, no livro A experiência da liberdade, o clinâmen é descrito: “Clinâmen, ou seja, declinação, inclinação do “há”, do “es gibt”, da oferta. Porque, seja como for, é preciso que o “há” se incline, que ele se incline – do nada em direção ao nada. Ou seja, ainda: piscamento, clin, clingnament, do aparecer, do sobrevir de cada coisa, esquivo como um clin d’oeil, como um piscar de olho (um instante)” (Nancy, 2000, p. 167, tradução nossa).
[8] A respeito da diferença entre as coisas e o homem: “Lá onde alguns corpos se tornam falantes, a palavra deles não é outra coisa que a retomada dessa comunicação sob outro registro: o registro sob o qual a relação de sens(o)ação se percebe como tal. No “sujeito falante”, o mundo se percebe na sua conexão íntima e universal – e então na sua destinação ‘sensata’ ou ‘insensata’” (Nancy, 2013, p. 100, tradução nossa).
[9] Já em Parmênides podemos encontrar os sinais do predomínio ocular da metafísica. Nesse sentido, no livro Immagini e corpi: da Deleuze a Sloterdijk, podemos ler: “O ser não é uma coisa qualquer, mas o que nos permite antes de tudo olhar. O ser de que fala Parmênides é esférico como um olho e estar no ser significa permanecer numa ótica. O proêmio do poema de Parmênides se refere, antes de tudo, a uma experiência visual, e os dois caminhos em si (o da verdade e o do erro), mais do que caminhos a seguir, são verdadeiras óticas dentro das quais se localizar. O ser, pensado por nossa tradição de pensamento, tem uma natureza basicamente ocular. Estar no mundo do homem ocidental é compreensível apenas como permanecer dentro de uma certa perspectiva ou prudência. A partir desses espaços ‘ópticos’ o homem lança ‘olhares” (Ariemma, 2010, p. 62, tradução nossa).
[10] Predomínio que Bataille tenta desconstruir, através da fundação de uma fisiologia fantástica, na qual um misterioso “olho pineal”, situado no alto do crânio, permitiria uma visão vertical, precluída aos “olhos castrados” da estrutura humana com sua visão horizontal.
[11] Dessa maneira, Nancy focaliza esse rebaixamento que se torna proibição: “Nenhum tabu é mais difundido do que o toque, desde as regras múltiplas e complexas de certos códigos rituais (tocar os mortos, tocar objetos sagrados, partes do corpo, vestuário, etc.) até as atuais regras do contato (por exemplo o simples contato acidental de mãos em uma multidão). Em um sentido amplo, pode-se dizer ainda que ‘tabu’ significa ‘proibido de tocar’” (Nancy, 2014, p. 7).
[12] Ao contrário, do que acontece, conforme o autor, no cristianismo. A respeito, ele se expressa desta forma: “O cristianismo inventou a religião do contato, do sensível, da presença imediata do corpo e do coração. A cena do noli me tangere seria uma exceção desse ponto de vista” (Nancy, 2015, p. 30, tradução nossa).
[13] Assim, “[o] tato é o claro-escuro ou limiar de todos os sentidos e do sentido. É o limiar da divisão senciente do sentido” (Cangi, 2020, p. 87).
[14] Um contato que se dá “[...] entre dois rostos ou entre dois enigmas (em linguagem levinasiana) ou, em linguagem derridiana, entre duas singularidades absolutas e, como tais, separadas ou secretas. Logo, intangíveis e/ou intocáveis! Um contacto entre dois idiomas, dir-se-á também ainda em linguagem derridiana. E lembrar-se-á que, marca da singularidade absoluta, um idioma é não só de todo intocável, como inapropriável e intraduzível” (Bernardo, 2008, p. 62-63).