COMENTÁRIO A “FRANCIS BACON E A IMAGEM DO LIVRO DA NATUREZA”: INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO”


Luís César Guimarães Oliva1


Referência do artigo comentado: HIRATA, C. Francis Bacon e a imagem do livro da natureza. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 75- 98, 2023.


O artigo de Celi Hirata (2023) traz uma notável apresentação das relações entre fé e ciência em Francis Bacon, focada particularmente na noção de “livro da natureza”, em contraste com o “livro revelado”. Esse trabalho, meticuloso e erudito, demarca, a partir da rica analogia dos livros, o papel, o objeto e o método próprios da filosofia da natureza baconiana. No entanto, o leitor fica um pouco desnorteado em relação ao plano completo da obra de Bacon, a chamada Instauratio Magna, na qual se inseririam esses trabalhos. Mais modesto do que um comentário, este pequeno suplemento visa apenas a dar esse quadro mais amplo, situando melhor a preciosa contribuição do artigo de Celi Hirata.

Segundo o opúsculo Distribuição da obra, o grande projeto filosófico de Bacon se comporia de seis partes. A primeira delas consistiria em um sumário das aquisições da ciência da época. Tal quadro geral se realizou parcialmente na obra The Advancement of Learning e, de maneira mais completa, na versão latina, De Augmentis Scientiarum. O leitor, todavia, não encontrará nesses textos apenas um relato descritivo, mas também uma divisão geral das ciências, que não concorda obrigatoriamente com as classificações tradicionais. Isso ocorre, diz Bacon, “[...] pois adições, variando o todo, variam também suas partes e suas divisões. Ora, as divisões recebidas só convêm à totalidade das ciências recebidas, ao seu estado atual.” (BACON, 1910, p. 40).

Ao tratar de adições, Bacon não está se antecipando às outras partes da Instauratio, e sim apontando as omissões que se fazem sentir, devido ao próprio exame da ciência de seu tempo. Os conteúdos já conhecidos apontavam para outros ignorados, mas igualmente necessários para a compreensão geral da realidade, e foram essas omissões que impuseram as mudanças na divisão geral. É assim que tal avaliação geral do conhecimento adquirido pode apontar, entre outros pontos desconhecidos, para o que Bacon chamará de Metafísica:

[...] o uso desta parte da metafísica que eu considero deficiente é de resto o mais excelente por duas razões: primeiro, porque é dever e virtude de todo conhecimento abreviar a infinidade das experiências individuais, tanto quanto permita a concepção da verdade, e remediar a queixa da vita brevis, ars longa, que é realizada pela união das noções e concepções das ciências. Pois os conhecimentos são como pirâmides, cuja base é a história. Assim, na filosofia natural, a base é a história natural; o trecho próximo à base é a física, e o trecho próximo do vértice é a metafísica. Quanto ao vértice...não sabemos se a investigação humana pode alcançá-lo. (BACON, 1952, II, 7, 6, p. 44).


A segunda parte da Instauratio, esboçada no Novum Organum, é assim caracterizada:

[...] trataremos, na segunda parte, desta doutrina que ensina a fazer um uso mais metódico e perfeito de sua razão, método cujo efeito será (tanto quanto o comporta a fraqueza e a mortalidade humanas) elevar o entendimento, estender suas faculdades, torná-lo capaz de vencer as obscuridades da natureza e galgar suas trilhas mais escarpadas. Ora, esta arte que nos propomos e à qual damos ordinariamente o nome de interpretação da natureza, é um tipo de lógica, ainda que haja uma diferença infinita entre esta e a ciência à qual ordinariamente damos este nome. (BACON, 1910, p. 43).


É verdade que a nova lógica baconiana terá em comum com a antiga o intuito de fornecer ao entendimento os socorros necessários, mas as semelhanças param por aí. Centrada no silogismo, a velha lógica afasta-se da natureza, já que, como sublinha Bacon,

[...] o silogismo consta de proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das noções. Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende pode pretender solidez. Aqui está por que a única esperança radica na verdadeira indução. (BACON, 1999, I, 14, p. 35).


Além disso, os axiomas da velha lógica estão contaminados de uma incerteza que não é mais aceitável, porque os homens tendem a fazer as chamadas “antecipações da natureza”, elementos característicos da ciência então vigente, os quais, como explicou Hirata, consistiam em saltar dos dados imediatos da sensação para os axiomas gerais. A isso Bacon opunha uma nova via: “A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado.” (BACON, 1999, I, 19, p. 36). Trata-se da via indutiva, que, portanto, é condição para a lógica, mesmo na sua versão silogística, por garantir suas definições e axiomas. Mais ainda, a indução é a verdadeira lógica baconiana.

Tal mudança de perspectiva deve-se à mudança de objetivo da nova ciência. Enquanto a lógica do silogismo visava basicamente a derrotar o adversário, a nova lógica quer vencer a natureza (ainda que respeitando suas próprias regras), e é pelas obras que se pode fazê-lo. Trata-se, talvez, da maior inovação que Bacon trouxe para a modernidade, a formulação mais perfeita de uma concepção ativa, e não mais meramente contemplativa, de ciência. Afirma Bacon: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, senão quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.” (BACON, 1999, I, 3, p. 33). O homem agora conhece para dominar e domina para conhecer. Não se tem, porém, uma submissão utilitarista do domínio contemplativo ao prático, mas da consciência da interpenetração necessária dos dois domínios. Donde a experimentação, frequentemente voltada para os usos práticos do objeto, servir de confirmação para as descobertas da ciência, e não apenas como fruto da ciência.

Essa nova ciência, tributária de uma nova lógica, impunha também uma nova concepção de experiência, agora despida de seu caráter cotidiano e desvinculada do senso-comum. Não se trata mais apenas de observação, mas de experimentação. Em outras palavras, a observação dos fenômenos espontâneos é de pouca valia para o cientista. O importante é simular situações artificiais que permitam sanar dúvidas, confirmar ou refutar hipóteses a respeito do objeto em questão. Nas palavras de Bacon, perturbar a natureza, de modo que ela nos revele o seu funcionamento invisível.

A terceira parte da Instauratio liga-se diretamente a essa nova concepção de experiência. Se a segunda parte fora comparada por Bacon ao polimento de um espelho, o entendimento, a terceira parte, por sua vez, garante o provimento de imagens a esse espelho. Bacon, de fato, não pretende que a ciência se limite a exercícios intelectuais ou à criação de mundos imaginários. Por isso, caberá à história experimental o fornecimento das coleções de fatos sobre os quais o cientista montará as tábuas comparativas da indução.

É aqui, portanto, que a renovação do método experimental se fará mais presente:

Quanto à maneira de compor, a história que projetamos não é somente a da natureza livre, desvinculada de toda ligação, e tal como é quando flui por si mesma e executa sua obra sem obstáculo, como a história dos corpos celestes, dos meteoros, da terra e do mar, dos minerais, das plantas, dos animais; mas aquela da natureza vinculada e atormentada, isto é, da natureza tal como se encontra quando, por meio da arte e pelo ministério do homem, é expulsa de seu estado, pressionada e como que forjada. Eis por que fazemos entrar em nossa história todas as experiências das artes mecânicas. (BACON, 1910, p. 52).


Tal história, contudo, não se limitará aos corpos, visando também às qualidades simples deles, que são, nas palavras de Bacon, as forças primordiais da natureza, e, por isso, serão o ponto culminante da História Natural. Isso anuncia, já nesse estágio preliminar da ciência baconiana, o intuito metafísico do autor, cujo sentido explicaremos logo mais.

A quarta parte da Instauratio é, na verdade, uma aplicação particular da segunda, não pelas realizações em si da ciência, mas pela função modelar de alguns exemplos de descoberta e demonstração. Antes de empreender um plano exaustivo de conhecimento científico, é preciso ter exemplos-guias a respeito de matérias notáveis em cada área do saber: “[...] queremos dizer tipos, modelos propriamente ditos, que mostram todo o procedimento, a marcha contínua, a ordem que o espírito deve seguir ao inventar, em certos assuntos notáveis e variados que a colocam diante dos olhos.” (BACON, 1910, p. 56).

A quinta parte, essencialmente provisória, consiste em construir um corpo teórico com o que já temos, a cada estágio, congregando os conhecimentos antigos revisados na primeira parte com as novas descobertas derivadas das sucessivas aplicações do método. A quinta parte é necessária, seja por garantir as descobertas parciais derivadas das sucessivas aplicações práticas de conhecimentos incompletos, mas ainda assim relativamente confiáveis, seja por afastar o ceticismo. Afinal, não seria difícil criticar as limitações de um projeto de ciência que depende de uma história natural em progresso indefinido, logo, nunca completa. Dentro de uma visão contemplativa de ciência, o caminho cético seria provavelmente o de Bacon, porém, como tem uma visão contemplativa e ativa da ciência, tal alternativa é inviável e a existência dessa quinta parte é uma consequência necessária.

A sexta parte, por fim, é a realização completa da ciência baconiana e subordina todas as outras partes tão fortemente quanto mais estamos distantes de sua perfeita consolidação. Bacon não tem ilusões quanto a concluir essa tarefa. Se ela for possível, será feita pela comunidade científica vindoura, o que não o impede, como foi destacado sobre a quinta parte, de extrair benefícios para a vida humana já a partir dos conhecimentos parciais. O que seria, afinal, a completude dessa sexta parte? A aquisição perfeita da Metafísica, ou seja, o conhecimento das Formas,2 conhecimento anunciado como deficiente e necessário, na primeira parte, apontado como objetivo final da indução, na segunda, e como horizonte regulador da história natural, na terceira.

Pelo visto, a preocupação com o conhecimento das Formas é uma constante, em todo o projeto baconiano de ciência.3 Todavia, dado que o autor é um duro crítico de Platão e Aristóteles, os quais consagraram a noção de forma, é preciso considerar não apenas o que são mas qual exigência fez necessárias as formas. Dizer que ciência e poder coincidem significa almejar um pleno conhecimento das coisas e um pleno domínio sobre elas. Em outras palavras, a ciência perfeita deverá permitir transformar qualquer corpo em qualquer outro. É isso que o conhecimento das formas obterá. Se será possível chegar tão longe, nem Bacon sabia, mas o escopo da ciência não muda, por causa dos obstáculos que se lhe impõem.


REFERÊNCIAS

BACON, F. Distribution de l’ouvrage. In: François Bacon. Paris: La Renaissance du Livre, 1910.

BACON, F. Advancement of Learning. Londres: Encyclopaedia Britannica, 1952.

BACON, F. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução de José Aluysio Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 1-231. (Os Pensadores).

HIRATA, C. Francis Bacon e a imagem do livro da natureza. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 75- 98, 2023.

OLIVA, L. C. Algumas considerações sobre o conceito de Forma em Bacon. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, série 3, v. 13, n. 1, p. 33-44, jan./jun. 2003.



Recebido: 09/07/2023

Aceito: 14/07/2023



1 Professor de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Apoio: Fapesp (proc.2018/19880-4). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7283-0423 E-mail: lcoliva@uol.com.br.

2 O relevo dado às formas não deve, vale ressaltar mais uma vez, dar margem a uma leitura platônica em que as formas tivessem existência separada. As formas só têm sentido na matéria, e a Metafísica, que as estuda, é parte da filosofia natural. Mas é manifesto que Platão, como alguém de elevadíssimo engenho, em sua opinião sobre as idéias disse que as formas eram o verdadeiro objeto do conhecimento; mas perdeu o real fruto desta opinião ao considerar as formas como absolutamente abstraídas da matéria, e assim voltar sua opinião para a teologia, que contamina toda sua filosofia natural.” (BACON, 1952, II, 7, 5, p. 44). Ao dar às formas a existência independente, Platão caiu na teologia, embora tivesse razão em dizer que eram o verdadeiro objeto do conhecimento. Até aí, Bacon não vai além de Aristóteles. No entanto, as diferenças se acirram, quando examinamos quais são as formas que Bacon procura. O inglês não queria as formas do homem, do leão ou do cavalo. Isso lhe imporia um trabalho interminável e inútil. Afinal, qual é a vantagem de conhecer todas as palavras de uma língua, quando se pode conhecer as vinte e poucas letras do alfabeto que as compõem? O que interessava a Bacon era o conhecimento das qualidades simples que constituem todos os corpos. O que é o ouro, além do amarelo, de um certo peso, da ductibilidade etc.? Produzir essas qualidades é produzir o ouro, assim como associá-las a outras pode gerar outro corpo.

3 Para uma análise mais detalhada do conceito de forma em Bacon, ver OLIVA, 2003.