COMENTÁRIO A “OS MONSTROS HUMANOS EM FOUCAULT E EXISTÊNCIAS TRANSGÊNEROS”: (NÃO!) PRECISAMOS DE UM VERDADEIRO SEXO: LIMIARES ENTRE À MONSTRUOSIDADE E À ANORMALIDADE


Rodrigo Diaz de Vivar y Soler1


Referência do artigo comentado: COLLARES, R. L; TEMPLE, G. C. Os monstros humanos em Foucault e existências transgêneros. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 229-256, 2023.


Fazer ver aquilo que vemos. Eis uma, das tantas potencialidades presentes nas análises e projetos pensados por Foucault, ao longo da sua trajetória intelectual e militante. Dito de outro modo, a perspectiva que envolve todo o conjunto de ferramentas que perfilam os horizontes, tanto das estratégias de saber quanto das práticas de poder e, até mesmo, dos processos de subjetivação, não nos leva à revelação de uma verdade a ser descoberta, porém, a um contingenciamento dos jogos de verdade pelos quais nos constituímos.

É em torno de tal procedimento que circula toda a porosidade textual produzida por Collares e Temple, acerca da problematização dos monstros humanos e das existências transgêneros. Tomando como ponto de partida as reflexões produzidas pelo intelectual francês, sobretudo em Os Anormais (2010), Collares e Temple discorrem sobre o processo correlativo entre as tecnologias de saber e as estratégias de poder, as quais, por um lado possibilitaram a existência da monstruosidade como condição jurídica e, por outro lado, em que medida tal fundamento foi estruturado dentro do projeto de uma scientia sexualis (FOUCAULT, 2015).

Tal procedimento desdobra-se no ensaio “Os Monstros Humanos em Foucault e Existências Transgêneros”. O artigo procura contextualizar o cenário de uma metamorfose do monstro, a partir do giro hermenêutico de um dispositivo da sexualidade, ao mesmo tempo que situa sua análise em torno das fantasias do verdadeiro sexo. Assim, lembram as autoras:

Nesse sentido, indo além de uma perspectiva meramente histórica, Foucault buscaria então nos apresentar como os monstros humanos vieram a ser incorporados em uma nova economia de poder, uma articulação de poder que não se deteria apenas em matá-los ou puni-los, mas em classificá-los e tratá-los, passando a se infiltrar na vida cotidiana de todos eles. No panorama do curso sobre os anormais, ao que seus assuntos gerais nos indicam, abordar os monstros humanos significou não apenas tematizar como cada época foi construindo uma imagem assustadora acerca deles, mas, sobretudo, de que modo e como eles foram diluídos e esfumaçados no campo da normalidade, restando-nos seu vulto inconveniente e inassimilável. (COLLARES; TEMPLE, 2023, p. 235-236).


Ocorre que tão significativo quanto a constituição do dispositivo da sexualidade seria a formação de uma zona de indiscernibilidade, pela qual certos saberes, como a psicologia, o direito, a pedagogia e, evidentemente, a medicina, travaram toda uma luta nos campos dos saberes e dos poderes para realizarem a positivação da monstruosidade, de modo intrínseco ao contexto da própria anormalidade.

Não por acaso, a literatura psiquiátrica e jurídica do século XIX desenvolveu um conjunto de tratados morais acerca do que, grosso modo, chamamos de parafilias, isto é, comportamentos desviantes a tudo o que é oferecido dentro do conjunto de prescrições morais e/ou sexuais.

A figura insidiosa do monstro, que, em outros momentos históricos, deveria ser esquartejada, queimada e, depois, ter suas cinzas lançadas ao vento, como ocorre com o suplício de Damiens, descrito nas primeiras páginas de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2014), é, paulatinamente, tensionada pelos ordenamentos da forma jurídica e do saber/poder medicalizante, o qual procurará criminalizar as condutas sexuais desviantes ou, de modo mais sutil, terapeutizá-las nas clínicas psiquiátricas e psicanalíticas.

Aos olhos da perspectiva foucaultiana, portanto, esse quadro de estruturação compõe um estranho enunciado pelo qual a identidade do indivíduo é intimamente relacionada ao seu comportamento sexual. Ora, mais do que nunca, foi preciso criar as condições de possibilidade para que o sujeito fosse interpelado enquanto indivíduo diante de um perito, um examinador responsável por instituir a fórmula: diga-me à verdade sobre o que sexo, que eu te direi quem tu és. Tal enunciado poderia se fazer presente na porta de qualquer consultório psiquiátrico e/ou psicanalista ou, ainda, de qualquer profissional que se vale da cura para configurar uma terapêutica sobre o processo de anormalidade. Cada prazer e cada confidência da carne devem emergir para encontrar uma suposta verdade a respeito do sexo verdadeiro e, consequentemente, da verdade de si mesmo, por meio da sexualidade.

Na companhia de Foucault, Collares e Temple afirmam que existe, desde a emergência da nossa modernidade, uma espécie de vínculo entre discurso, poder, verdade e subjetivação, a partir da solidariedade entre os procedimentos confessionais e os dispositivos de assujeitamentos pelos quais os anormais instituem a performatividade de uma vontade de saber sobre o sexo.

Nesse sentido, um possível efeito da correlação entre a monstruosidade e a anormalidade não deve ser visto somente a partir do âmbito da interdição das práticas sexuais desviantes, mas pelo aprofundamento do olhar em torno das experiências presentes nas estratégias de saber e das práticas de poder, as quais colocam a sexualidade no centro do debate da sociedade moderna. Trata-se também – e eis o grande mérito do trabalho promovido por Collares e Temple –, de procurar explorar como esses efeitos de verdade se desdobram perante os ínfimos caminhos da individualidade como espécie de espelho de uma vontade de saber sobre o anormal.

No campo de tais experiências, a própria filosofia política emerge como saber necessário para uma problematização desses jogos em que a individualidade se forma, ou melhor, é produzida, no interstício do monstro e do anormal. Valendo-se do pensamento transgressor e revolucionário de Paul Preciado, Collares e Temple questionam os binarismos das lutas identitárias, dos processos confessionais e dos jogos de verdade, problematizando acerca das condições de possibilidades para uma política da subjetivação e do corpo transgênero, frente aos campos da biopolítica e da governamentalidade. Em tempos de constituição de uma tecnopornografia farmacológica, resta-nos percorrer esses caminhos, não procurando mais a associação em face dos discursos e poderes do verdadeiro sexo, todavia, a transversalidade dos elementos performáticos pelos quais as existências transgêneros suscitam “[...] uma especial força de reinvenção de si de outres, auxiliando-nos a implodir o rochedo do preconceito.” (COLLARES; TEMPLE, 2023, p. 252).


Referências

COLLARES, R. L; TEMPLE, G. C. Os monstros humanos em Foucault e existências transgêneros. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 229-256, 2023.

FOUCAULT, M. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2014.

FOUCAULT, M. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2015.


Recebido: 10/07/2023

Aprovado: 15/07/2023

1 Professor Permanente do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Naturais e Matemáticas, colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Psicologia da FURB. Centro de Ciências da Saúde (FURB), Blumenau, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7286-3129. Email: rsoler@furb.br.