COMENTÁRIO A “O PRINCÍPIO DO COMUM COMO APÓFASE AO
PRINCÍPIO DA PROPRIEDADE NAS DEMOCRACIAS
CONTEMPORÂNEAS”
William Costa
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Referência do artigo comentado: DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao
princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de
Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.
Nos últimos anos, a discussão em torno do comum ganhou muitos contornos. Desde a
publicação de Governing the common (1990), de Elinor Ostrom, a questão se pôs
fundamentalmente como uma necessidade de repensar os desafios da vida humana, no contexto
socioambiental defrontado pelo capitalismo econômico-financeiro. A proposta de Ostrom teve
como peculiaridade a rejeição dos argumentos de Garrett Hardin, publicados em The tragedy
of the commons, na década de 1970. Nesse texto, Hardin defende a tese de que estamos fadados
à escassez, à individualidade, à competição e à extinção das espécies
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ou, então, ao trágico
destino “[...] para o qual todos os homens correm”, o qual inviabilizaria qualquer compartilha
do comum natural (HARDIN, 1968, p. 1244).
Ostrom, por sua vez, indica que as comunidades serviam como antinomias para esse
argumento, porque elas continham princípios de cooperação, participação e responsabilidade
em torno dos bens comuns. O gerenciamento coletivo dos comuns operava a partir de relações
sociais horizontais e envolvia, por isso, a deliberação e a ação de todos os membros. Esse
gerenciamento coletivo era alimentado pela ótica da governança comunitária como um ângulo
institucional de práticas democráticas e autônomas. Essas práticas serviam de exemplos fortes
para objetar a tese de Hardin.
Hardt e Negri reouveram os argumentos de Ostrom, com a finalidade de conceber
experiências sociais, essencialmente democráticas, em torno dos bens comuns como bens
sociais ou, então, as formas de riqueza social e natural que compartilhamos. O principal limite
da tese de Ostrom é que a competição individual, refutada por ela contra Hardin, poderia
qualificar a rivalidade entre as comunidades, pelo uso dos comuns naturais, que a ótica em
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Professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-2726-161X. E-mail: william.cstf@gmail.com.
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As teses conclusivas de Hardin são: (i) os homens são competidores natos que buscam maximizar seus lucros;
(ii) não comunicação entre usuários do mesmo recurso, o que constitui uma razão desigual no uso dos recursos;
(iii) os recursos comuns são abertos aos usos e abusos, por parte dos indivíduos.
questão tomava as comunidades como instituições sociais independentes. Para Hardt e Negri,
o governo dos comuns não pode se alocar apenas no interno de cada comunidade, ao ser que
ele seja concebido como uma esfera compartilhada aos membros, mas ainda assim privada
àquele público.
Disso resulta a concepção de que o comum opera como um princípio que “[...] designa
uma estrutura igualitária e aberta para o acesso à riqueza combinada com mecanismos
democráticos de tomadas de decisão.(HARDT; NEGRI, 2018, p. 132). O comum é um meio
fundamentalmente diferente de organizar o uso e a gestão de riqueza, porque ele, em si mesmo,
é uma “[...] estrutura social e uma tecnologia social para o compartilhamento (HARDT;
NEGRI, 2018, p. 132), algo que destoa da lógica da propriedade.
O comum, enquanto estrutura social, evoca um tipo específico de direito. Os direitos do
comum produzem relações sociais democráticas e participativas, geridas desde baixo e
originárias desde o interior dos grupos sociais. Eles, portanto, diferem dos direitos sociais,
fundamentalmente estáticos e normativos, porque não se submetem ao direito público a serviço
do Estado, conforme Hardt e Negri. Os direitos do comum deslocam do plano jurídico para o
social a capacidade de constituir práticas comunitárias de produção de riqueza e liberdade. Esse
parece ser o mote em torno do qual Hardt e Negri aproximam o comum da democracia.
Essencialmente, a democracia é um regime político mantido pelas práticas de agenciamento e
governança da multidão. A multidão constitui os direitos do comum, nas democracias
contemporâneas, a partir da imanência comunitária e das relações coletivas. Isso implica,
necessariamente, a combustão da propriedade na forma de sua abolição ou de sua radical
apófase, segundo sublinha Decothé Jr. (2023).
Esse fio condutor nos conduz ao cerne da questão: conceber o comum como um
princípio suficientemente forte para superar a propriedade. De fato, essa é uma tese robusta,
permeada de pontos abertos e passíveis de discussão. Gostaríamos de mapear alguns elementos
críticos não abordados diretamente por Decothé Jr. (2023), mas que enervam a discussão dos
dois pensadores principais, Hardt e Negri, escolhidos por ele para sua interlocução. Esses
apontamentos se fazem, sobretudo, a partir da IV parte de Assembly, onde Hardt e Negri lançam
mão de propostas operacionais para o comum. De antemão, a problematização gira em torno de
compreender se essas propostas são suficientemente fecundas para rebater o princípio da
propriedade.
1. Como se sabe, Hardt e Negri propõem a constituição de um “novo Príncipecapaz de atacar
o eixo vertical do poder e de esvaziar sua força repressiva (HARDT; NEGRI, 2018, p. 339).
Para os pensadores, a multidão deve se constituir em um novo Príncipe, enquanto estrutura
democrática. O Príncipe deve governar, tomar decisões relativas à vida social. Embora
Hardt e Negri explicitem a função do novo Príncipe como constituidor do comum, parece-
nos uma escolha arriscada optar pelo uso da terminologia monárquica tão saboreada por
Maquiavel. Por essência, um principado nunca está arrancado do eixo vertical do poder e
de suas práticas de captura da vida humana, tanto quanto nunca se constitui sem a
propriedade. A propriedade garante ao Príncipe a força necessária para se proteger e para
lutar contra os inimigos. Ainda que o Príncipe seja uma multidão pobre de propriedades,
mesmo assim, há uma carga política que resta em sua condição monárquica.
2. A conceituação do comum como “[...] estrutura social e uma tecnologia social para o
compartilhamento(HARDT; NEGRI, 2018, p. 132) cria certa confusão, porque essa é, em
boa medida, atribuída à comunidade. A comunidade como uma organização coletiva da
multidão pode cuidar do comum, e esse é o seu verdadeiro desafio. Sob esse prisma, as
comunidades entendo-as não somente como um agrupamento de indivíduos, mas como
modelos éticos de vida protegem o comum contra a apropriação ou a privatização. Essa
leitura crítica se estende à proposição dos “direitos do comum(HARDT; NEGRI, 2018,
p. 132). Como sublinham os próprios autores, o direito é atravessado pela ótica da
propriedade, e isso justifica, por exemplo, a capilarização dos direitos sociais. Dois pontos
convergem aqui em torno da relação entre direito e comum. O primeiro foi dito antes, e o
segundo segue em decurso dele. Se o direito é um modo de proteção formal da propriedade,
qual tipo de relação estaria pressuposta entre ele e o comum? Ainda importante, quais são
os direitos do comum? A menos que o comum seja pensado aqui como um ente com
personalidade humana, seria praticamente impossível atribuir-lhe direitos.
3. Criar uma moeda comum é uma imagem sólida do comum, afirmam Hardt e Negri. O
dinheiro se torna um problema, por causa da relação social que o sustém. Uma nova relação
social, igualitária e livre no comum, pode alterar a concepção negativa do dinheiro.
Todavia, “[...] como conceber um dinheiro fundamentado no comum, em vez de constituído
por relações de propriedade?(HARDT; NEGRI, 2018, p. 370), questionam os pensadores.
Esse dinheiro não seria um título anonimizado, mas um tulo social provindo de dívidas
no comum. Em termos concretos, uma renda básica comum seria a pedra angular para o
desenvolvimento dessa moeda. Essa proposição muito se assemelha com as teses do
multilateralismo capitalista, as quais defendem a criação de uma moeda comum de
circulação global. Sem embargo, essa proposta não comunga do argumento da renda básica
comum, mas sim da liberdade de circulação comum capaz de promover riquezas ao social.
Essas duas perspectivas se tocam, porém. O ponto de partida é a economia como prisma
de desenvolvimento social, no primeiro caso, e de desenvolvimento econômico, no
segundo. De toda forma, a teoria da renda básica comum, enquanto emblema de uma
moeda comum capaz de fortalecer o próprio comum, poderia ser útil, contudo, limitada.
Certamente, uma renda básica comum diminui as desigualdades sociais, porém, não as
elimina. Isso pode ser um entrave ao próprio comum, que ele permaneceria no jargão
economicista das igualdades menos desiguais ou da desigualdade mais igualitária. O fato
é que pensar o comum nos trilhos econômicos fecha por si o domínio aberto sobre o
qual ele precisa permanecer.
4. O eixo transversal da teoria do comum de Hardt e Negri poderia ser resumido com a
seguinte frase: “[...] o comum é um meio, não propriedade, isto é, um fundamentalmente
diferente de organizar o uso e a gestão de riqueza. (HARDT; NEGRI, 2018, p. 132).
Permanece latente, na visão dos pensadores, a importância de gerenciar – na forma de um
empreendedorismo da multidão a riqueza comum. Mais uma vez, Hardt e Negri se
aproximam do jargão economicista no qual o comum, para ser comum, precisa ser um meio
de organização de riqueza. Se assim o é, o comum está a encargo de um fim maior, porque
é somente meio para isso. O comum não é em si comum, entretanto, um meio comum para
gerar e distribuir riquezas comuns. Aqui o comum se torna um instrumento para algo maior,
aparentemente mais preciso e mais incorporado àquilo que pode ser empreendido pelo
social.
Esses quatro apontamentos críticos merecem atenção, porque reiteram a dificuldade de
fecharmos uma única reflexão sobre o comum. Porém, como sublinhamos, o comum como
princípio de apófase ao princípio da propriedade, nas democracias contemporâneas, é um
caminho possível, desde que se afaste do jargão economicista e do estruturalismo social. E isso
se através de uma ótica inversa ao argumento da administração do comum, como meio de
produzir riquezas sociais. Algumas considerações podem contribuir com a propositura de
Decothé Jr. (2023):
1. O que determina o comum a ser o comum não é sua suposta naturalidade, mas a decisão
instituinte nascida do agir coletivo. Por isso, o comum não é um bem não é um bem
comum, nem um patrimônio comum da humanidade –, antes disso, ele é uma ão
instituinte coletiva, sempre aberta às tensões existentes.
2. O comum não se reduz aos recursos naturais. A ngua, o conhecimento, o pensamento, o
sangue, os órgãos
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, a vida, são exemplos de comuns inapropriáveis distintos dos elementos
naturais. O Open Access Initiative e o Library Genesis são exemplos de como o comum
pode funcionar: no caso do primeiro, a publicação de pesquisas de maneira livre contribuiu
com o acesso de milhares de pessoas a documentos anteriormente comercializados; no caso
do segundo, a proposta de disponibilizar livros ao grande público permite acesso e uso de
materiais não disponibilizados gratuitamente.
3. Estabelecer “direitos do comum ou “direitos ao comum é criar um rol de garantias
jurídicas, mas não éticas nem políticas. Se o comum é instituído pela ação coletiva, pautá-
lo na esfera do direito pode endossar sua captura. A relação com o comum precisa se dar
como modo coletivo de vida e não como obrigação jurídica.
4. A desapropriação e a inapropriação não são categorias estanques. Elas permanecem como
tensões em torno do comum. O que determina a recusa delas não deve ser o direito, mas a
própria deliberação do povo. A guerra da água, na Bolívia, a qual evitou a apropriação pelo
setor privado, em Cochabamba e El Alto, é um exemplo de como isso se dá. A vitória
popular e as propostas de gestão por parte do povo encontraram resistência de autoridades,
burocracias sindicais e da tecnocracia de empresas públicas (AGUITON, 2019). A
continuidade do movimento se tornou insustentável, e o comum se tornou algo sem
concretude.
5. A responsabilidade ética do povo com o comum implica um dever consciente de cuidado
e não somente de administração das riquezas. O uso comedido e responsável do comum
pode ser uma das formas de relações sociais fora da propriedade. A tensão entre uso e abuso
permanece aberta, nesse caso. O limiar entre esses dois polos passa novamente pela
conduta ética, que institui comportamentos nos sujeitos sobre os limites de suas ações.
6. O comum desafia não apenas a propriedade, mas a própria democracia a se reinventar.
Mesmo se pensarmos na erradicação da propriedade, as democracias contemporâneas
correriam o grande risco de esgotar o comum, no aspecto governamental. Uma vez que as
democracias contemporâneas se mantêm cada vez mais pelo gerenciamento biológico das
populações, o risco é de que o comum também seja agenciado por essa ótica. Conceber o
comum como um princípio instituinte da própria democracia pode ser uma saída para isso.
Na medida em que o comum preconiza a deliberação instituinte do povo, a democracia se
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Cada vez mais, argumentos a favor do comércio de órgãos têm surgido. Isso exemplifica a força com a qual o
próprio sistema capitalista investe contrariamente aos comuns.
obrigada a mudar a racionalidade governamental de controlar a vida humana. A
restituição ao espaço do autogoverno institui a práxis à qual o comum está orientado.
Os seis pontos não encerram o debate sobre o comum, entretanto, nos auxiliam a modelar
vias de abolição da propriedade e de resistir ao avanço do sistema capitalista. O princípio do
comum como apófase radical passa por uma luta que confronta a própria democracia, em seu
estado atual. A linha tênue habitada pelo comum diz respeito à tensão inesgotável de
desapropriar e de ser inapropriável pelos interesses e práticas econômicas, políticas, sociais etc.
A razão governamental do capitalismo percebeu bem isso, de modo a revelar um certo gosto
pelos comuns: quando não for possível apropriá-los, deve-se administrá-los como uma
propriedade coletiva. Eis o risco que o comum corre.
Referências
AGUITON, Christophe. Comuns, a nova fronteira da luta anticapitalista. In: SOLÓN, Pablo.
(org.). Alternativas sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da
Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Elefante, 2019.
DECOTHÉ JR., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas
democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4,
p. 193-214, 2023.
HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, New Series, v. 162, n. 3859, p.
1243-1248, 1968.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly: a organização multitudinária do comum.
Tradução de Lucas Carpinelli e Jefferson Viel. São Paulo: Politeia, 2018.
OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective
action. New York: Cambridge University Press, 1990
Recebido: 11/07/2023
Aceito: 15/07/2023