COMENTÁRIO A “O PRINCÍPIO DO COMUM COMO APÓFASE AO PRINCÍPIO DA PROPRIEDADE NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS”

 

Odair Camati[1]

 

Referência do artigo comentado: Decothé Jr., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.

 

Pensar acerca dos problemas contemporâneos das nossas organizações sociais e políticas tem sido um grande desafio, devido a dois fatores (especialmente): (i) a velocidade das mudanças e (ii) a crescente complexidade das nossas atuais formas de vida. Esses fatores não nos impedem de buscar uma compreensão, pelo menos mínima, da realidade social, política e econômica que nos cerca. É esse o objetivo de Joel, ao escrever sobre o princípio do comum como uma contraposição ao consolidado princípio da propriedade privada, ponto estruturante do modo como organizamos nossas vidas.

O texto de Joel está dividido em três partes, mas eu diria que podem ser resumidas em duas: uma primeira se refere a uma análise conceitual da construção do que seja o comum e, para isso, recupera importantes filósofos, desde Aristóteles até os modernos. Essa parte objetiva mostrar como o conceito foi tratado, de maneira pejorativa, dificultando sua atual compreensão e consequente verificação empírica. Uma segunda parte do texto se direciona para uma preocupação mais fenomenológica do comum ou, em outras palavras, como é possível compreender o comum enquanto uma contraposição à propriedade privada e as possíveis consequências derivadas de tal contraposição.

O meu comentário se direciona muito mais para a segunda parte (segundo a divisão que propus acima) do texto e para um questionamento específico apresentado no início do artigo, por Decothé Jr. (2023), o qual reproduzo na sequência:

Por fim, faço algumas considerações que problematizam a noção naturalizada de princípio da propriedade nas democracias atuais, tendo em vista o poder constituinte que o princípio do comum detém na perspectiva de realização do bem-estar dos agentes humanos na vida comunitária contemporânea. (DECOTHÉ JR., 2023, p. 193).

 

Essa passagem está no resumo do texto e aponta para uma verificação de como o princípio do comum pode oferecer uma nova força revigorante à democracia.

Esse ponto não parece deter uma centralidade, contudo, não é o que se verifica no decorrer do texto. A impressão que fica é que esse é exatamente o elemento de fundo que funciona como um motivador para o desenvolvimento dos argumentos de Joel. Essa é a razão que explica o rumo do presente comentário, centrado a partir de agora em dois pontos e que objetiva evidenciar que o problema não reside diretamente na propriedade, mas na maneira como entendemos o processo democrático. 1) Se for possível que todos tenham condições mínimas de vida e possibilidade de participação política, haverá a possibilidade de coparticipação para a construção de uma decisão política mais ampla e igualitária, o que não implica remover a propriedade. 2) Que forma de deliberação seria necessária, para alcançar o comum? A deliberação cessa em algum momento para a tomada de decisão; desse modo, podemos questionar: qual o princípio da decisão? Numa democracia, o princípio é numérico, o que significa afirmar que as decisões são legítimas, quando tomadas a partir de maioria simples, no mais das vezes.

O ponto 1 lança um olhar para a forma de compreender a democracia, pois, a depender do conceito assumido, diferentes serão os instrumentos de análise disponíveis. Pode-se partir de um modelo deliberativo (Habermas, Elster), econômico e minimalista (Downs), elitista-competitivo (Schumpeter), pluralista (Dahl) ou populista (Mouffe, Laclau), apenas para citar os principais modelos. Cada um desses modelos define alguns critérios de avaliação do processo de deliberação que leva a algum modo de decisão. Não vou entrar no mérito de cada um dos modelos; quero apenas ressaltar que cada um apresenta uma série de instrumentos de participação e de legitimação do processo, o que abre a possibilidade para que os indivíduos assumam protagonismo, no momento decisório.

Obviamente, seria possível pensar em limites para tais processos, o que não invalida a existência de um processo. Os argumentos de Dardot e Laval apresentados por Joel caminham na direção de realçar uma espécie de sobreposição dos fatores econômicos vinculados ao neoliberalismo sobre o processo democrático. Não quero me contrapor frontalmente a essa tese, contudo, apenas afirmar ser possível pensar o processo democrático por ele mesmo, embora os fatores econômicos possam influenciar os resultados do jogo democrático. Mas não necessariamente precisa ser assim e, para isso, não parece necessário modificar completamente a maneira de organizar nossas vidas.

Por exemplo, Manin (1995), Downs (2013) e Dahl (2001) mostram como se comportam os atores políticos, no processo democrático. Esses autores não ignoram a influência dos fatores econômicos, mas sublinham o que os eleitores esperam de seus representantes e o que os representantes fazem, a fim de alcançar o apoio de seus eleitores, apontando fortemente para os elementos políticos desse processo. Em tese, isso demonstra como é possível pensar a democracia e suas instituições, sem ter que necessariamente defender a necessidade de uma mudança profunda na forma como organizamos nossa vida.

Parece que o ponto central da discussão se direciona para o seguinte questionamento: é preciso mudar nossa forma de organização econômica, para que seja possível revigorar a democracia? Novamente, a resposta varia de acordo com o modelo de democracia assumido e com os critérios para avaliar o que seja um processo democrático pujante. Não há espaço aqui para assumir e defender uma posição, mas o objetivo é apresentar o questionamento e, mesmo minimamente, indicar que é possível reafirmar a democracia, sem necessariamente defender transformações radicais, em nossa forma de vida. Em outras palavras, parece ser possível separar minimamente democracia e neoliberalismo.

O segundo ponto pergunta pelo comum. É através do processo democrático que seria possível classificar algo como comum, contudo, é de fato possível, diante de tamanha diversidade presente em nossas sociedades? Segundo Urbinati (2006), a democracia é diárquica, composta pelo momento da deliberação e pelo momento da decisão. A deliberação está aberta à participação de todos, com a possibilidade de que todos os argumentos sejam analisados. Mas é preciso tomar uma decisão, por isso, existem os representantes, os quais, em nome do eleitorado, propõem caminhos concretos de efetivação daquilo que foi deliberado.

Não vou entrar no mérito da análise se a representação acontece de maneira satisfatória, porque o importante para o argumento aqui é verificar que é preciso decidir com base em algum critério minimante objetivo. No caso da democracia, o critério é numérico, vencendo a ideia defendida pela maioria, o que não significa que não possa ser reconsiderada, devido a um futuro processo deliberativo. O que estou dizendo é que a decisão se torna legítima, se o processo for seguido adequadamente, gerando uma ação a ser desenvolvida. A pergunta que fica, em torno ao comum, é: como alcançá-lo? Seria também pelo processo decisório da maioria, ou a exigência seria muito mais ampla, colocando um peso ainda maior sobre o processo democrático?

Entendo que esses questionamentos permanecem em aberto e que é preciso avançar nesse debate. O mérito de Joel, embasado em Dardot e Laval, consiste em apresentar novos pontos para uma discussão que tem ganhado cada mais fôlego e relevância, nos últimos tempos. Parece claro que a democracia passa por momentos de instabilidade, para dizer o mínimo. O texto nos provoca a olharmos para além da democracia em si, percebendo a existência de problemas mais amplos, os quais dizem respeito ao modo como organizamos nossas vidas. Ao afirmar que é possível analisar a democracia por ela mesma, não estou dizendo que não existem problemas econômicos e muito menos que eles não devam ser analisados. Esse é o ponto do texto escrito por Joel e nos aponta para a necessidade de pensarmos com seriedade sobre as relações entre democracia e regime econômico.

 

Referências

DAHL, Robert. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2017.

Decothé Jr., Joel. O princípio do comum como apófase ao princípio da propriedade nas democracias contemporâneas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 193-214, 2023.

DOWNS, Anthony. Uma teoria econômica da democracia. Tradução de Sandra G. T. Vasconcelos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Tradução de Vera Pereira. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo. n. 29, p. 5-34, 1995.

URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, São Paulo, v. 67, p.191-228, 2006.

 

Recebido: 04/07/2023

Aceito: 12/07/2023



[1] Realiza estágio pós-doutoral como bolsista PDPG-Capes no Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8637-3072. Email: ocamati@ucs.br.