COMENTÁRIO A “ENTRE ERROS FÉRTEIS E VERDADES ANÓDINAS: SOBRE “FOUCAULT, A ARQUEOLOGIA E AS PALAVRAS E AS COISAS: CINQUENTA ANOS DEPOIS”, DE IVAN DOMINGUES”


Celso Kraemer1


Referência do artigo comentado: CANDIOTTO, Cesar. Entre erros férteis e verdades anódinas: sobre “Foucault, a arqueologia e as palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, de Ivan Domingues. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 109-126, 2023.


Avaliar o percurso e os efeitos de um livro como As palavras e as coisas, de Michel Foucault, implica reflexão e escolhas prévias. A depender das escolhas metodológicas se terão leituras distintas sobre tais efeitos. Uma maneira de analisar seus efeitos e sua receptividade é pelo levantamento do número de exemplares editados e vendidos, na França, no Brasil e nos demais países e línguas em que foi traduzido. Mas essas informações parecem insuficientes para avaliar os efeitos produzidos pelo livro.

Identificar o número de estudiosos que o comentam e interpretam talvez apenas explicite um efeito de mercado, a onda de uma moda ou de um impulso editorial. Mapeamentos bibliométricos, os quais analisam o fluxo de pesquisadores que utilizam As palavras e as coisas nas citações, em seus trabalhos, apesar de identificar a circulação do nome do livro e de alguns de seus conceitos, e ser um indicativo de um certo tipo de efeitos produzidos pelo livro, pode significar, do ponto de vista epistemológico, a aferição do mesmo tipo de “efeito onda”, “efeito mercado”, “efeito moda”, fruto de fatores exteriores às ideias do livro. Avaliar-se-iam, então, aspectos literários, retóricos, mercadológicos, mais do que alterações produzidas sobre os modos de compreender o surgimento e as transformações de objetos do saber.

Em A arqueologia do saber, livro que se segue e em que o próprio Foucault retoma e reflete sobre seu percurso metodológico, há indicativos epistemológicos sobre como, foucaultianamente, se proceder para analisar os efeitos de um trabalho, no nível dos saberes, ou seja, analisar quais deslocamentos ou rupturas ele introduz, no nível dos saberes, e de que modo tais deslocamentos ou rupturas se manifestam em novos saberes ou olhares sobre os objetos. Isso requer, portanto, trabalhar diacronicamente, analisando a temporalidade anterior ao livro e a temporalidade posterior a ele.

O percurso metodológico que Foucault refletiu, no livro da Arqueologia, havia culminado em As palavras e as coisas, mas envolve publicações anteriores, como mostrarei adiante. Ivan Domingues, conforme reconhecido e igualmente assumido por Candiotto, dá um lugar de destaque a esse livro: “O autor faz jus à obra, à sua magnitude, à sua repercussão, ao chamá-la de ‘Opus Magnum’.” (DOMINGUES, 2020, p. 27, apud CANDIOTTO, 2023, p. 7). Cabe, por conseguinte, identificar as razões pelas quais Domingues e Candiotto assinalaram As palavras e as coisas como Opus Magnum de Foucault, uma vez que ele está bem menos disseminado, nos grupos de pesquisa, congressos, simpósios, publicações, utilização nas análises em outros domínios, como Educação, Saúde, Direito etc., do que Vigiar e Punir ou História da sexualidade, por exemplo.

Para além dessa visibilidade bibliométrica, o que um olhar arqueológico considera enquanto efeito são variações produzidas sobre a forma de pensar certos objetos e saberes, em diferentes áreas do conhecimento. A questão que se coloca, então, é se As palavras e as coisas provocou alguma ruptura no pensamento ou na formação discursiva, sobretudo nas humanidades. Isso possibilita uma outra maneira de buscar indícios dos efeitos produzidos pela Opus Magnum de Foucault, ao longo de mais de 50 anos desde sua publicação, em 1966. Mas esta é uma escolha metodológica (epistemológica) prévia à pesquisa e ao trabalho analítico.

É exatamente nesse sentido que ressalto, no artigo in comento, de Cesar Candiotto (2023), uma especificidade, em termos metodológicos. Ao elogiar as escolhas, estratégias e o percurso metodológico de Ivan Domingues, no livro “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, Candiotto ressalta: “Outra escolha relevante do livro de Domingues é a seguinte: em vez de fazer a arqueologia da arqueologia do saber, o autor procura apontar as distâncias e as convergências entre epistemologia e arqueologia em As palavras e as coisas.” (2023, p. 7). Entendo que Candiotto, em sua leitura do livro de Domingues, evidenciou um aspecto determinante dos efeitos de As palavras e as coisas. Segundo Candiotto, ao possibilitar a “[...] articulação entre história diacrônica e sincronia estrutural” (CANDIOTTO, 2023, p. 8), esse livro de Foucault teria construído um caminho frente ao problema de conciliar epistemologia e história, ou seja, as formalizações das ciências em face do devir histórico, não mais em termos de evolução ou superação no interior da ciência, mas de descontinuidades provocadas por fatores alheios às próprias ciências.

Sabidamente, Foucault não é o primeiro, nem o único, a requerer a história para pensar os saberes. Todavia, conforme Candiotto (2023), ele conseguiu entrecruzar epistemologia, história e descontinuidade, de uma forma singular. Desde História da Loucura, as questões estruturais (formalização) já se entrecruzam com as questões históricas (ruptura, devir), no âmbito dos saberes. Igualmente, em O Nascimento da Clínica, a noção de a priori do olhar científico do médico (estrutura) é articulado por Foucault às tramas do devir histórico. Segundo ele, foi na modernidade que “[...] o a priori histórico e concreto do olhar médico moderno completou sua constituição.” (FOUCAULT, 1998, p. 222). Mas, é em As palavras e as coisas que, ao se propor uma arqueologia das ciências humanas, Foucault produz uma ruptura, no nível dos saberes, ao conciliar formalização (estrutura) com história (ruptura, devir). Com isso, ele abre um caminho novo para o pensamento.

Em certo sentido, esse caminho pode ser considerado um deslocamento ou ruptura no modo de se entender a epistemologia. A articulação entre estrutura e diacronia histórica livra a epistemologia da primazia dos postulados universalistas e formais, possibilitando pensá-la em termos históricos, plurais e em devir. Nesse sentido, se hoje nos referimos a diferentes epistemologias, como afro, decolonial, indígena, feminista etc., isso evidencia um efeito do deslocamento produzido por As palavras e as coisas, de Foucault, nas epistemologias que visavam à formalização e universalização nas ciências.

Desse ponto de vista, ela merece o adágio de Opus Magnun. De uma parte, ela tem esse significado na obra do próprio Foucault, pois o libera para as pesquisas histórico-filosóficas, sempre na articulação, formalização e diacronias históricas, nos meandros do saber-poder, como se vê nas produções das décadas de 1970 e 1980, mesmo reconhecendo tratar-se de um “um camaleão filosófico” (CANDIOTTO, 2023, p. 4). De outra parte, o adágio é merecido pelos efeitos, em termos de experiência de pensamento, que, assim, se torna aberta às pluralidades epistemológicas das complexas relações poder-saber que ligam a verdade às tramas da história.


REFERÊNCIAS

CANDIOTTO, C. Entre erros férteis e verdades anódinas: sobre “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, de Ivan Domingues. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 109-126, 2023.

FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

Recebido: 03/07/2023

Aceito: 10/07/2023

1 Docente em Epistemologia da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2406-9638. E-mail: kraemer250@gmail.com.