Ontologia e antropologia: possíveis diálogos entre as hermenêuticas de Heidegger e Ricoeur

 

Carlos Roberto Drawin[1]

Frederico Soares de Almeida[2]

 

Resumo: Este artigo objetiva matizar a taxativa contraposição entre a “via curta” da ontologia heideggeriana e a “via longa” adotada por Ricoeur, como representação das muitas mediações necessárias na constituição de sua antropologia filosófica. Heidegger irrompe no pensamento contemporâneo com a publicação de seu tratado Ser e tempo (1927), como uma espécie de instalação direta no terreno da ontologia. Em contraste, Ricoeur é visto – e ele mesmo se vê – como um pensador das mediações conceituais, em seu longo itinerário, desde a adesão à fenomenologia husserliana e posterior inflexão hermenêutica, passando por confrontações com a psicanálise freudiana, o estruturalismo e a filosofia analítica, até a formação do livro O si-mesmo como outro (1990). Contudo, os dois filósofos construíram suas obras no horizonte comum da hermenêutica; assim, há entre eles possíveis pontos de convergência? E como se poderia interpretar a relevância dessa possível interlocução? Esses questionamentos não podem ser respondidos sem uma minuciosa leitura comparativa. Este texto não pretende respondê-los, mas apenas sugerir elementos para posteriores investigações.

 

Palavras-chave: Ontologia. Antropologia. Hermenêutica.

 

Introdução

O pensamento de Paul Ricoeur (1913-2005) tem como um de seus traços fundamentais a busca incessante de interlocução entre as diversas, e até mesmo antagônicas, correntes da filosofia contemporânea, de modo a estabelecer mediações e descerrar outras alternativas teóricas. Esse propósito é bem visível em sua vida e em sua obra, o que lhe rendeu muitas incompreensões – sobretudo, quando da quase hegemonia do estruturalismo e seus afins, nos meios intelectuais franceses –, mas também lhe granjeou posterior e merecido reconhecimento internacional. Ao lermos as introduções e apresentações mais abrangentes do filósofo francês, nós nos deparamos frequentemente com palavras como “percurso”, “sentido”, “itinerário” e “caminho”, não somente visando a enfatizar a sua ampla erudição, sem confundi-la com o mero acúmulo enciclopédico de conhecimentos, mas, antes, como instigante acolhimento das diferentes vozes filosóficas e sua apropriação crítica num rigoroso travamento argumentativo.

Por isso, parece justo considerá-lo, conforme o faz Domenico Jervolino, uma “testemunha privilegiada de nosso tempo”, ao percorrer exaustivamente e enfrentar “[...] todos os obstáculos e todas as asperezas do itinerário para dele aproveitar todas as ocasiões de encontro e confrontação” (Jervolino, 2002, p. 5). Os adversários do filósofo o acusam, por outro lado, de ceder ao cômodo ecletismo da concordância, sem afirmar de maneira inequívoca a sua própria posição, postergando-a indefinidamente e sem jamais traduzi-la sistematicamente[3]. Tal acusação é, a nosso ver, francamente injusta. Ao contrário, a inegável riqueza de seu trabalho consistiu no empenho com que mergulhou no “conflito das interpretações”, em sua travessia das grandes regiões conceptuais do pensamento contemporâneo, aprofundamento esse que ele realizou não por gosto eclético ou arbítrio da curiosidade, mas como afirmação inerente ao seu modo hermenêutico de pensar.

Numa nota de sua última grande obra, A memória, a história, o esquecimento (2000), Ricoeur retoma a sua teoria da tríplice mimesis, apresentada no primeiro volume de Tempo e narrativa (1983), para elucidar o sentido da arquitetura: a prefiguração correspondendo ao projeto arquitetônico, comparando a configuração da narrativa à construção do edifício e a sua posterior refiguração, como sendo o ato essencial da habitação no espaço construído. Através dessa analogia, ele faz o “elogio da itinerância”, não como escolha idiossincrática, mas decorrência do rigor hermenêutico (Ricoeur, 2000, p. 186; Greisch, 2001, p. 25). Essa postura nada tem de laxismo intelectual e da fácil busca de concordância, todavia, ao contrário, é como um “[...] convite ao leitor para um singular espírito de método”, de paciente seguimento do rigor de sua exposição sem pretender impor adesão pelos artifícios da sedução (Dosse, 2001, p. 20-21).

 

1 Ontologia e antropologia em Heidegger e Ricoeur

Como foi sinalizado no resumo, nosso texto não tem o propósito de forçar a concordância entre os dois filósofos supracitados. Ricoeur, aliás, não dissimula as suas discordâncias, cuja imagem clara foi a sua contraposição à “via curta” da ontologia heideggeriana. Não custa recordar, porém, a inscrição orientadora da edição integral dos textos do célebre pensador alemão: “caminhos – não obras”. Seja como for, pretendemos aportar alguns subsídios que contribuam para evidenciar possíveis entrecruzamentos dos dois itinerários.

Os representantes contemporâneos da tradição hermenêutica reconhecem, em suas obras, a crucial influência de Heidegger. O filósofo alemão será, de fato, “[...] o primeiro a fazer da hermenêutica o título de uma filosofia quando apresentar seu pensamento, no título de um de seus cursos (que ele citará em ‘Ser e tempo’ e também em 1959) como uma hermenêutica da facticidade” (Grondin, 2006, p. 29). Heidegger, leitor de Dilthey desde sua juventude, imprimiu à fenomenologia husserliana uma orientação hermenêutica, ao mostrar que, se “as coisas mesmas” intencionadas pela consciência não resultam da autorreflexão do sujeito, elas também não se apresentam com a clareza de uma doação imediata, uma vez que elas somente se manifestam no espaço da linguagem. O pensador alemão se distancia do seu mestre, porque ele não teria sido capaz de questionar a filosofia cartesiana do cogito e por ainda se apegar à certeza do sujeito, ao invés de nela introduzir a questão do ser do sujeito. Em outras palavras, o instalar-se na certeza ainda respondia a uma intenção epistemológica, encobrindo a existência do sujeito como ser originariamente situado no mundo (Ricoeur, 1969b, p. 222-232).

Esse “estar situado”, interrogando e deixando-se interrogar por seu tempo, parece provir de seu interesse e intensa reflexão sobre a divergência entre a teologia especulativa da escolástica e a experiência cristã, em seu caráter existencial. De fato, em texto tardio (1953/54), escrito na ocasião da visita do professor Tezuka, da Universidade de Tóquio, ele assinalou a origem teológica de seu interesse pela hermenêutica, ao responder ao seu interlocutor:

Naquele tempo, sentia-me particularmente atraído pela questão das relações entre a palavra da Sagrada Escritura e a especulação teológica. Era a mesma questão entre linguagem e ser, só que para mim ainda inacessível e encoberta (Heidegger, 2003b, p. 78).

 

Na época por ele referida, aquela de seus estudos teológicos, já despontava a sua orientação ontológica sob o influxo do livro de Franz Brentano, acerca dos múltiplos sentidos do ser em Aristóteles. Esse direcionamento ontológico da hermenêutica já pode ser discernido nos primeiros cursos por ele lecionados, na Universidade de Freiburg. Assim, no curso do semestre de inverno de 1920/1921, ao examinar a experiência originária do Cristianismo, tomando como referência as epístolas paulinas, ele estabelece como princípio metódico a concepção da “experiência fática da vida”. Para o jovem filósofo, o “fáctico” não significava o simples voltar-se para os fatos empíricos, contudo, rejeitar a especulação filosófica como ponto de partida para a compreensão da experiência cristã, recusando a sua rápida transposição para uma esfera lógica e intemporal, de modo a interrogá-la em sua historicidade (Capelle, 2006, p. 295-328; Greisch, 2004, p. 499-734).

Destarte, a experiência cristã originária provém do modo como a comunidade de fé se posiciona frente a um evento histórico interpelativo (kairós) que exige uma decisão. Não se trata de um fato qualquer, a ocorrência corriqueira da mera fatualidade, mas o que surge como um questionamento a exigir uma resposta e, por conseguinte, traz consigo a dimensão da palavra e a necessidade da interpretação. O fáctico já contém em si mesmo a possibilidade da interpretação, porque não é o fato bruto, esclarece Heidegger, e, portanto, não sendo algo da ordem do conhecimento objetivo de alguma realidade natural, a objetividade de alguma “coisa qualquer”, implica o “confrontar-se com” aquilo que se coloca na experiência (das Sich-Auseinander-Setzen mit) e o tomar posição e o afirmar-se com relação às formas do experimentado (das Sich-Behaupten der Gestalten des Erfahrenen) (Heidegger, 1995, p. 9).

Essa experiência somente pode ser assumida no plano da linguagem, por isso, num curso um pouco posterior, Heidegger, adotando o termo “facticidade” (Faktizität), em seu alcance ontológico, irá intitulá-lo como “hermenêutica da facticidade”, porque o racional no homem é justamente o de ser essencialmente falante, aquele que escuta e responde à interpelação que provém de cada momento histórico e que se revela de modo sempre diferente. A facticidade é originariamente hermenêutica, porque o próprio ao nosso existir – e por isso Heidegger evita a expressão “ser do homem” – é o originariamente histórico, finito e imerso na linguagem. Assim, frisa ele, “[...] a hermenêutica tem por objeto temático o existir próprio em cada ocasião enquanto interroga acerca de seu caráter de ser e sua estrutura fenomênica [...]” (Heidegger, 1982, p. 25; Escudero, 2009, p. 87-90). De forma objetiva, a hermenêutica da facticidade mostra que a filosofia tem como visada a existência humana, compreendida de forma radical como ens hermeneuticum, como um ser hermenêutico.

Esse questionamento do existir humano engendra uma investigação ontológica peculiar, cujo método foi formulado no § 7 de Ser e tempo, pois implica interrogar ou, antes, destruir a história da ontologia, para então orientar metodologicamente a fenomenologia cujo significado “[...] não caracteriza o quê (Was) de conteúdo-de-coisa dos objetos da pesquisa filosófica, mas o seu como (Wie)” (Heidegger, 2012, p. 101). Portanto, esse direcionar fenomenológico “às coisas mesmas” não é uma apreensão direta do que é, de um “quê” desde sempre dado, mas o desencobrimento dos modos de obscurecimento da pergunta pelo sentido do ser. Por isso, se o aparecer está intrinsecamente conectado com o interpretar, “[...] a fenomenologia do Dasein é uma hermenêutica na significação originária da palavra, que designa a tarefa da interpretação”, e essa hermenêutica fenomenológica, esclarece Heidegger (2012, p. 127-129),

[...] na medida em que o Dasein tem precedência ontológica em relação a todo ente – enquanto ente na possibilidade da existência, a hermenêutica, como interpretação do ser do Dasein, recebe um terceiro sentido específico – o qual, filosoficamente entendido é o sentido primário de uma analítica da existenciariedade da existência (Existenzialität der Existenz). Nessa hermenêutica, pois, na medida em que elabora ontologicamente a historicidade do Dasein como a condição ôntica da possibilidade do conhecimento-histórico (Historie), ela tem suas raízes no que se pode denominar “hermenêutica” em sentido derivado, isto é: a metodologia das ciências de conhecimento-histórico do espírito.

 

Dessa forma, para o filósofo, a hermenêutica refere-se primariamente à ontologia da historicidade (Geschichtlichkeit) do Dasein e apenas de modo derivado (abgeleiterweise) à metodologia histórica das ciências do espírito (die Methodologie der historischen Geisteswissenschaften). Heidegger, portanto, tem em alta conta os trabalhos investigativos de Dilthey, que o ajudaram a se desviar da orientação transcendental da fenomenologia husserliana. Entretanto, por outro lado, a fenomenologia, em sua crítica à inclinação epistemológica do pensamento moderno, ao objetivar o ser dado do aparecer, permite reconhecer o histórico não como um acontecer objetivo a ser cientificamente estudado, porém, como historicidade considerada enquanto manifestação do homem para si mesmo. Numa das conferências de Cassel, pronunciadas em 1925, antes da publicação de Ser e tempo, Heidegger (2003a, p. 171) observa:

[...] trata-se de elaborar o ser da historicidade, a historicidade e não o histórico, o ser e não o ente, a efetividade e não o efetivo. Não se trata de uma questão decorrente da pesquisa histórica empírica; mesmo por meio de uma história universal não relacionaríamos ainda com a historicidade. Dilthey abriu uma via para a realidade que é autenticamente em direção ao sentido do ser histórico, em direção ao Dasein humano. Dilthey chega a transformar essa realidade em um dado. Ele a determina como viva, livre e histórica. Mas ele não interroga a historicidade em si mesma, ele não coloca a questão relativa ao sentido do ser, ao ser do ente. Somente após o desenvolvimento da fenomenologia que nós atualmente somos capazes de colocar claramente essa questão.

 

A viragem ontológica da hermenêutica proposta por Heidegger marcou profundamente o pensamento contemporâneo. Todavia, esse redirecionamento do foco filosófico, apesar da radicalidade com que foi feito, não acarreta necessariamente o abandono da reflexão antropológica e ética, desde que não se pretenda colocar a Antropologia Filosófica como fundamentação da metafísica. Certamente, Heidegger foi um crítico acerbo da ênfase programática da antropologia filosófica alemã, representada por Max Scheler, e rejeitou, sobretudo, as posteriores interpretações existencialistas de sua ontologia fundamental. Para ele, a confusão entre os planos ôntico e o ontológico era inaceitável, conforme se pode ver em sua “Carta sobre o humanismo” (1946/1947), a qual contribuiu decisivamente para o declínio da fenomenologia existencial francesa, comprometida pela leitura enviesada de Ser e tempo e levando ao seu resultante enveredamento em direção da radicalização do antropocentrismo moderno (Janicaud, 2001, p. 55-135). Preservar a interrogação ontológica seria crucial para romper a clausura subjetivista da filosofia moderna, de sorte a instaurar alternativas para o esquecimento do ser e confrontar a sua destinação niilista.

Contudo, se a abertura proporcionada pela verdade do ser destitui a primazia da investigação epistemológica, isso não implica a mera reiteração de uma ontologia fechada às exigências do rigor teórico. Afinal, mesmo após a reviravolta dos anos 1930, Heidegger, embora transformando, não renega inteiramente certa estrutura transcendental de sua ontologia fundamental. O seu ímpeto de “destranscendentalização”, ao reconhecer a historicidade e a variabilidade do conhecimento e da experiência humanas, não o leva a mergulhar abruptamente no historicismo e no relativismo, no entanto, prefere rejeitar a distinção entre o empírico e o transcendental, para redescobrir o transcendental na própria abertura originária do Dasein para o Ser ou, melhor dizendo, para o Ser como acontecimento no tempo. Isto é, a viragem ontológica da hermenêutica não significa o abandono da atividade hermenêutica em nome de um instalar-se em um só golpe, no território ontológico. Ao contrário, responde à própria lógica interna da hermenêutica, pois o Ser somente se dá na interpretação do Ser que emerge no modo-de-ser do Dasein (Seinart des Daseins), em sua existencialidade (Existenzialität) (Heidegger, 2012, p. 589; Lafont, 2007, p. 268-269). Dessa maneira, o Ser se dá na interpretação:

Certamente, só enquanto o Dasein é, isto é, enquanto a possibilidade ôntica de entendimento-de-ser (Seinsverständnis) é, “dá-se” ser (gibt es Sein). Se o Dasein não existe, então a “independência” não é e o “em si” também não “é” [...] Em que conexão ôntico-ontológica está a “verdade” com o Dasein e com a sua determinidade ôntica por nós denominada entendimento-do-ser? (Heidegger, 2012, p. 589, 593).

 

A pergunta acima formulada indica um caminho a ser percorrido, na investigação acerca da compreensão do Ser em sua doação, todavia, essa exigência de seu pensar não interditaria toda reflexão antropológica para se instalar numa filosofia dogmática e pronta de uma vez por todas. Heidegger, ao contrário, embora não renuncie ao encaminhamento ontológico de seu pensar, tem consciência dos impasses decorrentes de seu projeto de instauração de uma nova problemática da perquirição do sentido, para além das fronteiras do humanismo antropocêntrico e de suas certezas triunfantes. 

Portanto, talvez possamos situar a proposição ricoeuriana da “via longa” em contraposição à instalação direta do pensamento na ontologia como um apontamento para o curto-circuito, presente na “viravolta” (Kehre) heideggeriana, entre a ideia de verdade, em sua equiparação apressada com o “desencobrimento” (Unverborgenheit). Embora não se possa entrar aqui nessa espinhosa discussão, a questão residiria na seguinte dificuldade: somente é possível pensar a verdade à luz do “desencobrimento”, da doação primordial do Ser, mas a verdade não se identifica inteiramente ao “desencobrimento” e, pois, a articulação entre o seu significado epistêmico e a sua pressuposição ontológica deve ser colocada como um ponto de partida, como uma tarefa a ser laboriosamente retomada e não como algo definitivamente estabelecido (Heidegger, 1969, p. 76-77; Lafont, 1997, p. 208-215).

Se assim for, a investigação dos modos de acesso à verdade não deve ser vista como um mero recuo para uma posição epistemológica anterior e indiferente ao desafio ontológico posto por Heidegger, porém, como árduo esforço na construção das mediações necessárias para a elucidação das conexões entre os planos ôntico e ontológico e como caminho a ser necessariamente percorrido para a exploração das possibilidades do entendimento-do-ser (Seinsverständnis).

No primeiro Heidegger, a concepção da diferença ontológica se dá a partir da transcendência do Dasein, enquanto, no Heidegger tardio, a ênfase se desloca para o acontecimento da verdade como desencobrimento do Ser na linguagem. Todavia, não custa reiterar, não há uma ruptura entre os dois modos de pensar, pois esse deslocamento se dá no domínio do círculo hermenêutico, isto é, na reciprocidade do Ser e do Homem que é possibilitada pela linguagem. Esta não é entendida como um instrumento de conhecimento ou uma propriedade do ser humano, mas, de fato, em seu sentido originário na medida em que “[...] o homem vive na linguagem. Linguagem não é apenas uma de muitas habilidades à sua disposição. Ele habita na linguagem. Tudo que ele é e faz acontece no reino da linguagem” (Ott, 1972, p. 170). Ou, como sublinha Kockelmans (1972, p. 219),

[...] a diferença ontológica é a condição de possibilidade necessária da hermenêutica enquanto estrutura do pensamento [...] a hermenêutica enquanto estrutura do pensamento significa antes de tudo o fato de que o pensamento possibilita que algo apareça como algo.

 

Por conseguinte, “[...] há no pensamento uma equivalência primordial do pensamento do Ser e do pensamento do homem” (Kockelmans, 1972, p. 218). Contudo, como antes foi indicado, nos escritos heideggerianos imediatamente posteriores à publicação de Ser e tempo e que exploram alguns caminhos abertos por seu caráter inconclusivo, adverte-se que o projeto de uma antropologia filosófica deveria ser enfrentado à luz do que já tinha sido avançado de modo preliminar, na analítica existencial, e, sobretudo, seria necessário evitar a tentação de fechamento no plano ôntico, o que acarretaria a perda do alcance ontológico do Dasein. Isso não significa, no entanto, como bem observa Françoise Dastur (2003, p. 33), “[...] que o projeto de uma antropologia filosófica não possa encontrar na análise existencial alguns de seus elementos essenciais”. Pode-se mesmo dizer que Heidegger, no contexto da controvérsia com Ernst Cassirer, em Davos (1929), censura os neokantianos por terem interpretado a Crítica da razão pura como uma teoria da ciência natural, sem dar devida atenção ao modo como o “problema do aparecer” (das Problem des Scheins) impõe a investigação de como “[...] o aparecer pertence necessariamente à natureza do ser humano” (Heidegger apud Gordon, 2010, p. 142).

Por isso mesmo, não se pode deixar na indeterminação ou numa referência meramente negativa o ser desse ente para o qual as coisas aparecem e são interrogadas em seu ser. As críticas de Heidegger à antropologia filosófica dizem respeito ao seu caráter vago, indeterminado, heteróclito e, portanto, incapaz de esclarecer o seu sentido propriamente filosófico e eminentemente metafísico. Além disso, ela se limita a ser uma ontologia regional, ao lado de outras ontologias regionais, sem elucidar o ser do Dasein em sua transcendência, em sua relação com o Ser enquanto tal. Ora, a transcendência do Dasein reside em sua temporalidade originária (Zeitlichkeit) e em sua diferença em relação aos outros entes, em ser não-ente. Nesse ser não-ente do Dasein reside a sua diferença em relação a todos os outros entes e torna o homem o “guardião do nada” (Platzhalter des Nichts); ou, nas palavras do filósofo: “[...] o estar retido do ser-aí no nada fundado na angústia velada é a ultrapassagem do ente na totalidade: a transcendência” (Heidegger, 2008, p. 129).

Como a antropologia, em sua indeterminação filosófica, é excessivamente dependente das ciências positivas e tende a cair aprisionada pela concepção cartesiana do homem como sujeito, ela não pode servir como fundamentação para a metafísica, porque esta exige a descoberta da transcendência do Dasein como nada de ente. Um ponto essencial, no entanto, é que Heidegger, em sua leitura bastante peculiar de Kant, relaciona a fundamentação da metafísica ao reconhecimento da finitude essencial do homem, pois a questão do Ser, salienta ele,

[...] deve mostrar em que medida o problema da finitude no homem e as investigações por ele exigidas devam contribuir necessariamente em nos proporcionar o domínio da questão do Ser. Dito de modo fundamental: há que trazer à luz a imbricação essencial entre o Ser enquanto tal e a finitude do homem (Heidegger, 1953, p. 278).

 

Entretanto, como pontua Dastur, como pensar essa correlação essencial entre o Ser enquanto tal e a finitude do Dasein? Isso não poderia levar à interpretação equivocada de que se trataria de uma nova forma de subjetivismo e de antropocentrismo, que é justamente o oposto à intenção do filósofo alemão? (Dastur, 2003, p. 46). A possibilidade dessa leitura equivocada talvez tenha sido uma das razões para Heidegger ter enveredado por outras possibilidades do pensamento do Ser. Seja como for, a dificuldade, conforme adverte Johannes Lotz, filósofo neotomista alemão, consiste em como conceber a correlação entre o Ser enquanto tal com a finitude do Dasein. Ou seja, a sua não coincidência com sua forma histórica finita, a sua “potência da diferença” (kraft der Differenz), sem para tanto recorrermos a uma metafísica do espírito segundo a qual o homem deva ser pensado como o infinito presente no finito? (Lotz, 1972, p. 122).

Talvez aqui pudéssemos discernir, na antropologia hermenêutica de Ricoeur, um elemento diferenciador em relação à posição filosófica heideggeriana, sem que isso implique sua total rejeição, porque, afinal de contas, a “via longa” por ele proposta, em sua travessia do vasto terreno da linguagem e da reflexão, não pode jamais perder de vista a “terra prometida” da ontologia (Ricoeur, 1969a, p. 28). Se, por um lado, a hermenêutica crítica por ele desenvolvida retoma e transforma a tradição da interpretação dos textos, o que resulta no enfrentamento de árduas discussões epistemológicas e metodológicas, por outro lado, no seguimento de Dilthey e Heidegger, ela também rejeita a transformação cartesiana da dúvida em certeza do ser do sujeito, para nela assentar a fundamentação última da ciência. Nesse ponto, a crítica de Ricoeur ao cogito nos parece vir a propósito, pois a reviravolta operada pela dúvida hiperbólica abrigaria um salto ontológico cuja viabilidade argumentativa, que já na época de sua proposição suscitou muitas objeções, precisaria ser hermeneuticamente explicitada. Afinal, a passagem da transparência do pensamento desse “Eu” desancorado (“Jedésancré), que tudo dissolve em sua vontade de verdade, para a afirmação do seu ser e de sua substancialidade fundante (res cogitans) não é viável, se não for desobstruída pelas perguntas acerca de “quem” duvida, pensa e existe. Essas interrogações se interpõem à rápida resposta ao “o que eu sou?” na proposição “[...] nada mais sou senão uma coisa que pensa” (Ricoeur, 1990, p. 17).

É interessante observar como Ricoeur, em sua crítica à autoposição do cogito cartesiano, situado na origem da filosofia transcendental moderna – tanto no criticismo kantiano quanto na fenomenologia husserliana –, permite estabelecer pontos de contato com a insistência heideggeriana em pensar o ser do sujeito, ao invés de simplesmente colocá-lo como pura negatividade, enquanto um correlato necessário para embasar o conhecimento das coisas (Rivelaygue, 1992, p. 331-341; Dastur, 2003, p. 31-46).

A pergunta “quem?”, em contraposição à pergunta “o quê?”, deslocamento também reiterado por Heidegger, marca não somente a diferença entre o homem e os entes, em geral, mas exige a elucidação daquela “vida na linguagem” cujo escopo se encontra na ontologia fundamental de Ser e tempo e, embora de modo diferente, também é o propósito presente nos dez estudos que compõem o Si-mesmo como Outro. Essas observações não têm o objetivo de afirmar a convergência e muito menos a continuidade entre os dois filósofos, porém, apenas assinalar como as suas divergências – claramente explicitadas por Ricoeur, em diversas passagens de sua obra – não impedem o estabelecimento de certos pontos de contato, em sua crítica comum da separação moderna entre o histórico e o transcendental.

Heidegger escolheu o caminho designado por Ricoeur como “via curta”, apesar da intensa confrontação com a tradição metafísica, na década anterior à publicação de Ser e tempo, não por alguma decisão intempestiva, mas em decorrência de sua intenção de mostrar os pressupostos ontológicos da fundação da hermenêutica na fenomenologia.

Não obstante, a radicalidade da intenção existencial de Heidegger, cujo direcionamento por ele imprimido não pode ser sem mais descartado, poderia levar, com sua crítica da concepção teórica e proposicional da verdade, à dissolução dos modos de conhecer nos modos de ser. Seja como for, a posição de Ricoeur precisa ser matizada, como ele mesmo o faz, no texto inaugural de sua primeira coletânea de ensaios hermenêuticos, cujo objetivo é assinalar os desafios provenientes do “enxerto do problema hermenêutico sobre o método fenomenológico”. A fenomenologia, por um lado, abriu a perspectiva da universalização da hermenêutica, retirando-a de seu nicho exegético para transformá-la numa “teoria do signo e da significação”, todavia, por outro lado, a hermenêutica obrigou o confronto da universalidade da fenomenologia com os “paradoxos da historicidade”:

[...] como um ser histórico pode compreender historicamente a história? [...] como a vida, ao se exprimir, pode objetivar-se? Como, ao objetivar-se, elucida significações suscetíveis de serem retomadas e compreendidas por outro ser histórico, que supera sua própria situação histórica? (Ricoeur, 1969a, p. 7-9)[4].

 

Para o filósofo francês, a compreensão de si é adquirida de forma mediada, por meio de uma análise do ser no mundo, porque esta precisaria passar pelo crivo da interpretação das obras nas quais o ser humano se manifesta. Se ele designa o caminho de pensamento de Heidegger como “via curta”, no empreendimento de fundação da hermenêutica na fenomenologia, é porque a ontologia da compreensão não teria atendido suficientemente às discussões acerca dos métodos e modos de conhecimento, aplicando-se imediatamente no plano de uma ontologia do ser finito. Ter-se-ia dado, então, uma súbita inversão da problemática, conforme admoesta Ricoeur (1969a, p.10):

A questão: em que condição um sujeito que conhece pode compreender um texto, ou a história? é substituída pela questão: o que é um ser cujo ser consiste em compreender? O problema hermenêutico torna-se assim uma província da Analítica desse ser, o Dasein, que existe ao compreender.

 

Ricoeur questiona a possibilidade de se fazer uma ontologia direta, imediatamente subtraída a toda a exigência metodológica e subtraída, por consequência, ao círculo da interpretação de que ela própria seria o fundamento. Aqui, já se pode perceber como Ricoeur vai na contramão da hermenêutica heideggeriana, ao trilhar o caminho da via longa. A resposta heideggeriana a tais desafios seria justamente “a ‘via curta’ da ontologia da compreensão”, na qual ingressamos “por uma súbita inversão da problemática”, ou seja, por meio de uma inversão ontológica da interrogação epistemológica, porque a questão “[...] a que condição um sujeito cognoscente pode compreender um texto ou a história? Pode ser substituída pela questão, o que é um ser cujo ser consiste em compreender?” (Ricoeur, 1969a, p. 10).

Não obstante, Ricoeur não desconsidera o caminho de pensamento aberto por Heidegger como equivocado, pois, em suas palavras, “[...] pretende antes de tudo render plena justiça a essa ontologia da compreensão” (Ricoeur, 1969a, p. 10). Esse reconhecimento não é um simples gesto de cortesia, todavia, constitui a expressão do desejo comumente partilhado de entrar no domínio da ontologia, embora, na perspectiva do filósofo francês, esse empreendimento não possa atingir diretamente o seu objetivo, porque deve percorrer exaustivamente a espiral traçada pelo círculo da interpretação. Porque se, de um lado, o ato de compreender traduz o ser daquele que compreende, admitindo-se, então, a “inversão da relação entre compreender e ser”, de outro, o modo de ser do ente que compreende não pode ser confundido com um ente dado, uma coisa entre outras coisas, e não permite, por isso mesmo, que se faça a economia dos diversos modos de interpretação do mundo (Ricoeur, 1969a, p. 11-12). O problema pode ser formulado nos seguintes termos: o esquema transcendental clássico da relação sujeito e objeto tende a considerar o sujeito apenas como uma condição de possibilidade para a apreensão do objeto, ou seja, o Eu pensante, o Eu da apercepção transcendental é uma mera forma ou, nas palavras de Kant (1985, p. 330) e Eisler (1994, p. 993-999), uma:

[...] representação simples e, por si só, totalmente vazia de conteúdo, da qual nem sequer se pode dizer que seja um conceito e que é apenas uma mera consciência que acompanha todos os conceitos.

 

Ora, a hermenêutica rompe com essa concepção reflexiva do sujeito como consciência vazia, formal e transparente, lançando-o no mar revolto da vida e da história, no qual o sujeito ganha em conteúdo, mas paga o preço de perder a sua univocidade. Heidegger, leitor assíduo de Aristóteles, na época em que elaborava a sua ontologia fundamental, bem o sabia, ao buscar na filosofia prática do estagirita elementos para contestar a unilateralidade de uma ontologia excessivamente centrada no conhecimento contemplativo daquilo que se dá e desconsiderando o caráter fático e mundano do ser humano, movido por sua situação existencial, condição na qual estão em contínua interpenetração os afetos, as ações, as crenças e as interpretações. O influxo de Aristóteles sobre ele, especialmente a leitura da Ética a Nicômaco, se deu, sobretudo, no plano ontológico enquanto contraposição ao que julgava certas limitações da fenomenologia de Husserl. Observa Volpi (2013, p. 62):

Na verdade, no pensamento deste último, Heidegger tinha chegado a ver, cumprida e levada às suas últimas consequências, a fundação de uma filosofia do sujeito orientada prevalentemente para o conhecimento científico e as categorias lógico-teoréticas. Por outro lado, voltando-se para Aristóteles, Heidegger crê poder discernir um repertório completo das determinações ontológicas fundamentais da vida humana, para mais, livre dos pressupostos das modernas filosofias do sujeito.            

 

Em seu texto sobre as interpretações fenomenológicas de Aristóteles, escrito em 1922, ele observa como “a relação cuidadosa” (der Sorgende Umgang) com o mundo, fundada na “tendência originária própria à mobilidade da vida fáctica”, pode inibir essa “relação de pré-ocupação” (besorgende Umgang), transformando-a numa simples “visão panorâmica”, caracterizada como uma “simples visada sobre”, mera curiosidade que se oferece ao olhar e assumida de modo a realizar-se como uma “visada determinada” ordenada enquanto ciência (Heidegger, 1922, p. 21-22).

O “Dasein fáctico”, em sua inserção mundana, é pré-ocupação quotidiana, um ser prévio a toda ação reflexiva e intencional e, por isso, Heidegger, voltado para o seu interesse ontológico primordial, não explora os seus possíveis desdobramentos éticos. O mesmo ocorre com a sua muito particular leitura de Kant, porque, com ela, enfatiza Volpi (2013, p. 62), ele “[...] vai se esforçar por ver uma superação do esquecimento tradicional da conexão entre ser e tempo”. Por conseguinte, a filosofia prática de Kant e sua concepção acerca da liberdade é redirecionada em diversas etapas, as quais passam da liberdade enquanto autonomia à liberdade transcendental enquanto espontaneidade absoluta para, então, desaguar na pergunta acerca do “ser-causa” (Ursachesein), da mobilidade e do ente enquanto tal (das Seiende als solches), para direcioná-la à questão diretriz da metafísica, ou seja, “o que é o ente?” (Heidegger, 1987, p. 40-41).

Nesse período crucial do pensamento heideggeriano, pouco posterior à publicação de Ser e tempo, podemos acompanhar o impacto de seus diálogos críticos com Husserl, Aristóteles e Kant (Jaran, 2010). Não custa novamente assinalar a igual presença desses mesmos filósofos e, em especial, dos dois últimos, como interlocutores essenciais no travamento conceptual da “pequena ética” apresentada por Ricoeur, em O si-mesmo como outro. Aqui, porém, essa convergência de interesses aponta para a divergência dos seus caminhos filosóficos.

Em primeiro lugar, porque, para o filósofo francês, “[...] a antropologia filosófica se tornou uma tarefa urgente do pensamento contemporâneo”, seja pela dispersividade crescente das ciências humanas, seja porque a renovação da ontologia não pode prescindir da elucidação da questão do ser para o qual o ser é posto em questão (Ricoeur, 2013, p. 21). Uma tarefa que impõe a passagem e a ultrapassagem das Ciências Humanas, as quais[...] se dispersam em disciplinas discrepantes e não sabem, literalmente, do que falam” (Ricoeur, 2013, p. 21) – e isso supõe a articulação das “Ciências do Homem” à questão ontológica no horizonte de seu pensamento, uma vez que a filosofia não pode abrir mão da indagação radical sobre o ser do homem. Tal interrogação, presente desde o pensamento de Platão, revela que a antropologia apresenta uma história filosófica bem mais antiga, se comparada às disciplinas que contemporaneamente disputam seu nome, embora os filósofos antigos não a incluíssem explicitamente no corpus das disciplinas filosóficas. Em seu projeto contemporâneo, porém, ela não pode prescindir dos recursos proporcionados pelas Ciências Humanas, ainda que essas não possam ocupar o lugar da fundamentação. Essa polarização entre ciência e ontologia tornará a antropologia filosófica, para Ricoeur, não só uma tarefa inconclusa, como também necessária na justificação de sua estrutural inconclusão ao pensar o ser humano, na interpenetração de sua falibilidade e de sua capacidade.

A dispersividade crescente das Ciências Humanas e a renovação da ontologia, na consciência da imprescindível elucidação da questão do ser para o qual o ser é posto em questão, serão abordadas por Heidegger, em Kant e o problema da metafísica (1929). Ricoeur a considerou, todavia, como uma abordagem insuficiente, porque as suas intrincadas mediações não foram explicitadas em suas múltiplas conexões, mas apenas renomeadas à luz das conquistas da ontologia fundamental (Ricoeur, 2013, p. 32).

Isso não bastaria, nem mesmo na perspectiva aberta pela analítica existencial, porque o ser mundano do homem, ao mostrar como a filosofia nasce de um solo prévio ao discurso filosófico, também revela necessariamente a riqueza simbólica lastreada nas contradições de suas experiências históricas. E foi isso que levou Ricoeur a transitar dos impasses da polaridade entre o voluntário e o involuntário, ainda sob a égide da fenomenologia husserliana, para a meditação hermenêutica da simbólica do mal. Nesse aparente recuo do pensamento reflexivo ao simbólico e ao mítico, o discurso filosófico é “[...] surpreendido em seu nascimento na não filosofia”, e o homem que filosofa também é surpreendido pela “patética da miséria”, e “[...] o páthos da miséria está na origem não filosófica, na matriz poética da antropologia filosófica” (Ricoeur, 2013, p. 24).  

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que as acima aludidas mediações complexas não têm apenas um caráter teórico e interno ao rigor conceitual do discurso filosófico, pois lançam as suas raízes na “profundeza da alma humana” na qual Kant situa a imaginação transcendental. Essa profundeza jamais pode ser inteiramente iluminada pela razão e nem deixada de lado e relegada à obscuridade do não pensado. Ao contrário, a imaginação, sendo a síntese do diverso da intuição, situa-se como um terceiro termo na intermediação entre a sensibilidade e o entendimento e é, portanto, condição de possibilidade do conhecimento dos objetos (Kant, 1985, p. 181-183). Ora, essa observação é relevante na confrontação entre Heidegger e Ricoeur, porque este último, mesmo reconhecendo a inegável relevância da leitura heideggeriana da Crítica da razão pura, ao destacar o papel da imaginação transcendental, dela se distancia, por não a conceber enquadrada numa analítica da finitude, mas, antes, atestando a “[...] tríade finitude-infinitude-intermediário” (Ricoeur, 2013, p. 23).

Esse jogo continuamente retomado entre o discurso filosófico e a experiência não filosófica, entre o conceitual e o simbólico, é o que direciona o empreendimento da “via longa” na sempre e necessariamente inconclusa antropologia filosófica e aponta para o seu movimento de aproximação e distanciamento da ontologia fundamental. Ao indicar a passagem da síntese transcendental para as esferas prática e afetiva, Ricoeur (2013, p. 47) conclui:

Assim, o páthos inicial, reduzido pela reflexão transcendental é recuperado pela teoria da práxis e do sentimento. Mas a pré-compreensão patética é inesgotável. Por isso, a antropologia filosófica nunca se conclui. E, sobretudo, ela nunca acaba de recuperar a irracionalidade de sua fonte não filosófica no rigor da reflexão. Sua angústia é não poder salvar igualmente a profundidade do páthos e a coerência do logos.

 

Para formularmos, de modo claro: a aproximação se refere ao enraizamento do conhecimento na anterioridade do “ser-no-mundo”, resultante da raiz hermenêutica comum dos dois filósofos, enquanto o distanciamento concerne à radicalização heideggeriana da ontologia, em seu empenho de ultrapassar o enquadre transcendental e a opção ricoeuriana de explorar os veios antropológicos dessa mundanidade do homem.

 

Conclusão

Procuramos aqui trazer apenas alguns subsídios para uma possível interlocução entre Ricoeur e Heidegger, já que muito ainda deveria ser feito no sentido de explorar os diversos níveis e subníveis nos quais se dá a tensão inesgotável presente na tríade do infinito, do finito e do transcendental e em seu necessário emaranhamento afetivo, assim como nas passagens do semântico ao ético, do prático ao narrativo (Ricoeur, 2013, p. 305-325). Na impossibilidade de avançar mais, gostaríamos de acrescentar duas observações ao espectro das muitas imbricações entre a ontologia e a antropologia.

A primeira delas diz respeito à ação. Esta se constitui num passo antropológico essencial justamente por estabelecer um vínculo instigante entre a sua representação discursiva – como se vê nas narrativas mais ou menos assumidas reflexivamente – e a imanência dos símbolos que a constituem, conforme a tese geral, segundo a qual toda ação humana é “[...] articulada, mediatizada, interpretada por símbolos” (Ricoeur, 2013, p. 277).

A segunda observação se relaciona à temporalidade. Se o tempo é pensado por Heidegger, não no sentido cronológico, abstrato e tomado como objeto de cálculo, mas como fonte de individuação e de contínua apropriação de mim por mim mesmo, então, a temporalidade do Dasein (Zeitlichkeit) não pode ser dissociada da ipseidade, dessa apropriação sempre retomada do si-mesmo (soi-même), na alteridade do tempo e no tempo da alteridade. O ser do Dasein, sendo interrogado como um “quem” e não como um “quê”, se põe como “sempre meu” (je meines) e não como “ser-sujeito” (Subjeksein), como algo simplesmente presente enquanto uma substância posta “diante de” um sujeito (Vorhandenheit). Essa diferenciação do “quem” humano e do “quê” dos outros entes implica a dinâmica de transcendência do Dasein (Dastur, 1990; Raffoul, 2004, p. 189-230).

Essa perspectiva pode ser discernida no décimo estudo de O si-mesmo como outro, quando o autor sinaliza o seu rumo à ontologia com a pergunta, feita a partir da multiplicidade dos sentidos do ser, acerca de que tipo de ser é o si mesmo. A investigação parte da noção de atestação definida como “[...] a segurança que cada um tem de existir como um mesmo no sentido da ipseidade” (Ricoeur, 1990, p. 346). Não obstante, essa segurança nada tem a ver com a certeza intuitiva ou a posse de um dado, entretanto, exige um “discurso ontológico de segundo grau”, isto é, não restrito à categorização de diferentes regiões ônticas e nem diretamente assentado na autofundação do cogito, mas derivado dialeticamente da hermenêutica do si, na medida em que a ipseidade não se constitui sem a passagem pelo Outro. O “compromisso ontológico da atestação” emerge dessa aventurosa travessia da linguagem que, sem se perder em seus usos contingentes, metafóricos e ficcionais, não se extravia nunca da referência ao Ser. Se o que é atestado é a ipseidade, logo, o seu alcance ontológico, a sua intenção de verdade, também passa pelos desvãos da suspeita e do equívoco (Ricoeur, 1990, p. 347-351). 

Seria razoável estabelecer certa convergência entre a ação, em sua intrínseca polissemia, como modo de ser da ipseidade, e o cuidado (Sorge), como modo de ser do Dasein? Encontraríamos em ambos existenciais (Existenzialien) valiosos elementos para uma fundamentação da antropologia filosófica? Para o esclarecimento dessas indagações, seria imprescindível não apenas uma leitura mais acurada das duas grandes obras, Ser e tempo e O si-mesmo como outro, mas uma minuciosa reconstrução daquele período entre a publicação do tratado heideggeriano e a “reviravolta” (Kehre) dos anos 1930, durante o qual o pensador alemão sondou a possibilidade de uma metafísica do Dasein. No entramado desses diálogos intermináveis, talvez possamos discernir novas possibilidades para a reflexão ontológica.

 

Ontology and anthropology: possible dialogues between the hermeneutics of Heidegger and Ricoeur

Abstract: This article aims to clarify the sharp contrast between the “short path” of Heideggerian ontology and the “long path” adopted by Ricoeur as a representation of the many necessary mediations in the constitution of his philosophical anthropology. Heidegger breaks into contemporary thought with the publication of his treatise “Being and Time” (1927) as a kind of direct settlement in the field of ontology. In contrast, Ricoeur is seen – and sees himself – as a thinker of conceptual mediations in his long itinerary, since adherence to Husserlian phenomenology and subsequent hermeneutic inflection, passing through confrontations with Freudian psychoanalysis, structuralism and analytical philosophy, to the creation of the book “Oneself as Another” (1990). However, the two philosophers built their works on the common horizon of hermeneutics; therefore, are there possible points of convergence between them? And how could we interpret the relevance of this possible interlocution? These questions cannot be answered without a thorough comparative reading. This text does not intend to answer them, but only to suggest elements for further investigations.

 

Keywords: Ontology. Anthropology. Hermeneutics.

 

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Recebido: 29/08/2023 - Aprovado: 10/10/2023 - Publicado: 20/03/2024



[1] Professor aposentado do Departamento de Filosofia da UFMG e professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/000-0002-3497-671X. E-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br.

[2] Doutor em Filosofia pela UFMG. Atualmente, realiza seu estágio de Pós-Doutorado na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0884-2627. E-mail: fredkrav@gmail.com.

[3] Paul Ricoeur era acusado por Sartre, em um tom debochado, de ser um pastor da fenomenologia. Ademais, Sartre contribuiu para manter Merleau-Ponty distante de Ricoeur, para a decepção pessoal. O filósofo francês também enfrentará problemas com Lacan e seus discípulos, no campo da psicanálise. Quando, nos anos sessenta, publica De l’interprétation, essai sur Freud, Lacan esperava reconhecimento de suas teses. Ricoeur, porém, retoma Freud, sem passar por Lacan, o qual, na época (1965), era o grande intérprete da psicanálise, no contexto francês. Ricoeur, com a publicação de sua obra sobre Freud, é ridicularizado publicamente por Lacan e, posteriormente, pelos seus discípulos. Lacan queria ser reconhecido na obra de Ricoeur, como comentado, e, agravando as coisas, seus discípulos passam a dizer que a leitura que Ricoeur desenvolveu sobre Freud era um plágio das teses de Lacan. Naquele contexto dos anos 1960, essas tentativas de desqualificação alcançarão bastante êxito. Impotente, num meio hostil a tudo o que sugerisse ou exalasse religião, Ricoeur será fortemente afetado por essa empreitada que o colocará, por muito tempo, à margem da vida intelectual francesa, sendo designado como representante de uma corrente espiritualista retrógada, a qual nada compreendeu da revolução estruturalista em curso. Em suma, a decepção de Lacan e a espera dele por um reconhecimento que o glorificasse resultaram na pormenorização e tentativa de exclusão de um dos filósofos mais importantes de nossa história recente.    

 

[4] Todos os textos de Ricoeur referidos neste artigo foram consultados no idioma original francês, mas, nas citações, recorremos muitas vezes à tradução brasileira, como foi o caso da excelente tradução, citada em nossa bibliografia, de O conflito das interpretações (1978), feita pelo Prof. Hilton Japiassu, assim como de O si-mesmo como outro (2014), traduzido por Ivone Benedetti, para a Editora Martins Fontes.