Epistemologia e autonomia no conceito de ideia musical de E. Hanslick
Ricardo Miranda Nachmanowicz[1]
Resumo: O presente trabalho aborda a filosofia estética de Eduard Hanslick, no intuito de demarcá-la enquanto abordagem epistemológica da música e um caso paradigmático para a autonomia musical. Foram analisadas as premissas epistemológicas que guiaram a obra Do belo musical, bem como as suas mais prováveis influências. Conclui-se, apresentando o conceito de ideia musical como formulação epistemológica fortemente influenciada pelo positivismo e princípio qualificador da percepção musical autônoma. Adiciona-se a essa conclusão uma desambiguação, com o conceito de ideia estética de Kant.
Palavras-chave: Autonomia musical. Epistemologia. Ideia musical. Eduard Hanslick. Immanuel Kant.
Introdução
Neste trabalho, abordaremos a perspectiva epistemológica sobre o tema da autonomia musical, na obra Do belo musical (1854), de Eduard Hanslick (1825-1904). A metodologia que sustentou a escolha dessa perspectiva abarcou o argumento, o sentido e a conjuntura da proposta da autonomia musical de Hanslick, através das reflexões historiográficas e musicológicas de Dahlhaus (1983) e das reflexões filosóficas e sociológicas de Bourdieu (1998), mais especificamente, sua teoria do campo.[2]
Segundo Lewin (1951, p. 240), “campo” denota uma “[...] totalidade de fatos que coexistem, os quais são concebidos como mutualmente dependentes”[3]. No caso da teoria do campo social de Bourdieu (1998, p. 858-860), as ações, os agentes e as instituições configuram campos de força que condicionam a produção, circulação, troca e apropriação de capital e/ou capital cultural, portanto, analisa as “[...] condições sociais de produção e consumo” da arte, através dos agentes e de suas posições em “relações objetivas (de dominação e subordinação [...])”.
Tomamos por referência a obra As regras da arte (1998), na qual Bourdieu investiga, ao mesmo tempo, o pertencimento e a teorização da obra de Flaubert, em meio à estrutura social que o cercava. Bourdieu (1998, p. 131) reconhece que o projeto de Flaubert, de uma literatura pura, foi alcançado, ao opor ao convencionalismo da junção entre arte e moralidade uma arte separada da moral, premissa que gera vetores de movimentação estranhos ao campo oficial da literatura. A condição social para a criação da literatura pura, segundo Bourdieu, foi possibilitada pela posição sui generis ocupada pelos atores dessa nova proposta. Algo entre a abastança capaz de propiciar o tempo livre e dedicado à arte, e a pobreza simbólica de sua posição social:
As grandes revoluções artísticas não são do feitio nem dos dominantes (temporalmente) que, aqui como alhures, não tem nada a criticar a uma ordem que os consagra, nem dos dominados tout court, freqüentemente condenados por suas condições de existência [...].
Em resumo, esses artistas literatos foram personagens de uma anomia social possível dentro do mundo burguês do final do século XIX, condição que deu lugar a uma proposta estética que se opôs à estética convencional, ou seja, uma estética que disputou o campo da arte literária.
O nosso interesse, no presente trabalho, não será o de investigar os agentes e as condicionantes sociais da música pura ou música autônoma (compositores e instrumentistas), cujos marcos históricos não coincidem com os da literatura e que, de fato, demandam um estudo à parte. Buscaremos assinalar o caso específico de Hanslick, o qual não foi um agente produtor da música, mas que se encontra em homologia frente aos literatos modernos, quando decide disputar o campo intelectual estabelecido; no caso de Hanslick, a estética musical.
O tratado estético Do belo musical (1854) opõe a premissa de que a arte musical estaria subordinada ao texto escrito e a princípios estéticos consubstanciados independentemente da decisão e artesanato do próprio músico. Ao inverter essa premissa, Hanslick propôs uma nova tarefa intelectual, a de compreender filosoficamente o campo musical e não o de o orientar ou o prescrever.
A teoria do campo de Bourdieu (1998, p. 938;135) permite-nos conceituar uma disputa que subjaz à obra de Hanslick, a saber, uma disputa pela evidenciação de “categorias de percepção” e de apreciação da música, e as suas respectivas “estruturas mentais”. As categorias e a estrutura mental própria à música autônoma, pensando nos termos de Bourdieu (1998, p. 851;37), não se faziam presentes no “universo de crenças” e “jogos de linguagem” do grupo dominante. Ou seja, Hanslick decidiu por abrir uma disputa em nível epistemológico.
Em nossa pesquisa, a aplicação da teoria do campo resultou no reconhecimento de dois grupos, dentro do universo da autonomia musical: (1) campo intelectual[4] e (2) campo musical[5]. Os grupos sintetizam, respectivamente, (1) o papel da cultura letrada (e filosófica) para a postulação dos problemas da estética, e (2) o papel da cultura técnico-musical (e da audibilidade musical) para a criação musical.
Sob a ótica do campo, a emergência da música autônoma ocorreu em uma circunstância única de interação entre os campos intelectual e musical, durante a ascensão da música clássica, no século XVIII. Contudo, o fato de o século XVIII ter sido o século da eclosão do discurso da autonomia musical não retira de perspectiva que o século XVIII também foi, ininterruptamente, o século das produções operísticas, da música programática[6] e do discurso contrário à autonomia musical. De acordo com Bourdieu (1986, p.179), “oposições e antagonismos” são constantes das relações de produção e troca cultural. No caso específico da autonomia musical, observam-se oposições e antagonismos, mesmo entre aqueles que se colocaram a favor da autonomia.
Do ponto de vista intelectual, a autonomia musical tornou-se assunto, na França, com as obras Apologia da música francesa contra Rousseau (1754), de Laugier, e Da música em si e de suas relações com a palavra, as línguas, a poesia e o teatro (1785), de Chabanon.[7] Na Inglaterra, com o texto Sobre a afinidade entre música, dança e poesia (1777-1787), de Adam Smith.[8] Nas nações de língua alemã, o debate da autonomia musical foi mais tardio. O artigo A música instrumental de Beethoven (1813), de E. T. A. Hoffmann, é uma referência importante, sendo significativa para a produção que se seguiu em torno da concepção de música absoluta.[9] O livro Do belo musical (1854), de E. Hanslick, objeto de nossa análise, tornou-se influente sobretudo para as gerações subsequentes, a exemplo da segunda escola de Viena.[10] Na França do século XX, Pierre Schaeffer recolocou sob novos termos o problema da autonomia musical.[11]
Ao longo de todo o arco de propostas sobre a autonomia musical, destacamos um exemplo, a sintética e influente definição de E. T. A. Hoffmann (1917 [1813], p.127), presente em sua obra literária Kreisleriana:
Quando nós falamos sobre a música enquanto uma arte independente, nós deveríamos nos referir unicamente à música instrumental que, desprezando a assistência e associação de outra arte, nomeadamente a poesia, expressa aquela propriedade peculiar que pode ser encontrada apenas na música.
No excerto de Hoffmann, encontramos características perenes, que viriam a acompanhar concepções futuras da autonomia musical, mas também presentes em concepções anteriores. Entre essas características, o aspecto negativo da definição, o qual acentua as ausências de acompanhamento vocal, letra declamada, escopo poético, intenção programática e intervenção de demais artes. Mas também o aspecto positivo da definição, indicando haver uma “propriedade peculiar” exclusiva à música. Contudo, em Hoffmann, é mais proeminente o aspecto negativo da definição.
Neste trabalho, buscaremos escrutinar, na obra Do belo musical de Hanslick (1922, p. 25), o sentido positivo de sua definição de autonomia musical, com vistas a uma compreensão epistemológica do conceito de ideia musical [musikalischen Ideen]. Uma vez munido com essa compreensão, incluo alguns apontamentos sobre as possíveis influências que deram origem a esse conceito e, por fim, uma desambiguação conquanto ao conceito de ideia estética de Kant.
1 A autonomia musical observada entre filósofos e músicos
Eduard Hanslick foi um esteta, produtor de cultura, filósofo e crítico musical, imbuído de uma tarefa incomum: redigir uma teoria estética musical intrinsecamente autônoma. Contudo, diferentemente do que fora pressuposto, no século XIX, mesmo para a música autônoma, Hanslick ocupou-se, prioritariamente, durante o cumprimento de sua tarefa, com o campo musical, dando pouco destaque e mesmo sendo crítico às posições intelectuais oficiais.
Escrever sobre a autonomia musical, para Hanslick, incluiu responder a um problema nem tão visível em sua época, mas bem sintetizado pela pergunta retórica de Dahlhaus (1982, p. vii): “A estética musical está aberta a suspeitas: é ela meramente uma especulação, afastada de seu objeto, inspirada mais por ideias filosóficas do que pela experiência musical?”. A resposta de Dahlhaus (1982, p. vii), além de ser uma pedra de toque para o método que guiou esta pesquisa, esclarece bem o contexto cultural ao qual a obra de Hanslick teria de concorrer:
Pensar e falar sobre música foi assumido como ‘pertencente ao assunto’ tanto quanto praticar música; ouvir música de forma adequada pressupunha alguns pré-requisitos filosóficos e literários; essas máximas fizeram parte da base que subjaz à estética musical do século XIX — e a estética musical é essencialmente um fenômeno do século XIX.
Guardando distância tanto da filosofia idealista quanto da literatura romântica, o tratado estético-musical de Hanslick vinculou-se à trajetória de formação da escuta musical formatada em meados do século XVIII pelas obras de C. P. E. Bach, pela orquestra de Mannheim e pelas obras de Joseph Haydn, também refletidos na produção instrumental do século XIX.
A opção, por parte de Hanslick, por redigir uma teoria intrinsecamente autônoma, alterou o equilíbrio convencional entre os campos musical e intelectual para o século XIX, ao dar mais destaque ao campo musical e por rejeitar, no campo intelectual, a prerrogativa de que a estética musical deveria estar, de certa maneira, coligada com uma poética, literatura, teologia ou metafísica. A simples ocorrência da publicação do tratado Do belo musical, seguida dos ruídos críticos que ecoaram no período, revela ter havido uma dinâmica de oposições e disputa em curso, no meio da cultura musical.
As propostas de Laugier (1754) e dos supracitados Chabanon (1785) e Smith (1777-87)[12] exemplificam casos, no século XVIII, em que o campo intelectual foi radicalmente modificado a dar mais espaço para a novidade que surgia no campo musical. No partido contrário, como indicado por Fubini (2005, p. 233-4), “[...] os homens de letras e os teóricos [da música] se mostraram pouco propensos a reconhecer um valor autônomo àquela ‘nova língua’ [...]”.
No século XIX, o cenário é modificado, embora encontremos descrições da experiência auditiva autônoma, como atestado mais uma vez em E. T. A. Hoffmann (1989 [1813], p.129-130):
Um tema simples, porém, frutífero, cantábile, suscetível ao mais variado tratamento contrapontístico, encurtamentos, e assim por diante, forma a base de cada movimento; todos os restantes temas e figuras subsidiárias estão intimamente relacionados à ideia principal, de tal modo que os detalhes todos se entrelaçam, organizando-se entre os instrumentos sob a mais alta unidade.
O trecho faz parte da obra Kreisleriana, mais especificamente do ensaio “A música instrumental de Beethoven”. Nesse ensaio, Hoffmann descreveu premissas da audibilidade da autonomia musical, com bastante naturalidade, sendo igualmente elogioso à música instrumental e ao gênio pessoal de Beethoven, segundo o autor, um talento romântico.
Sobre o gênio de Beethoven e a propósito do gênio, em geral, a posição de Hoffmann guarda algum interesse para a perspectiva epistemológica que aqui nos mobiliza. Diferentemente das concepções exclusivamente irascíveis e patológicas sobre o gênio, em voga a partir do Sturm und Drang, Hoffmann compreendeu o trabalho do gênio também unido a uma perspicácia afim do entendimento humano, como descrito por Videira (2010, p. 100): “A teoria do gênio de Hoffmann considera a reflexão e o estudo aprofundado da técnica como elementos inseparáveis da genialidade”. Videira (2010, p. 100) também encontra afinidades entre a concepção de Hoffmann e a de Jean Paul, para quem “[...] é absurdo conceber um gênio desprovido de entendimento”.
Ainda assim, a autonomia musical endossada por Hoffmann não foi a mesma de Hanslick. Hoffmann não buscou detalhar o entendimento musical, nem possuía filiações filosóficas afins com Hanslick. Hoffmann incluía o incitar de efeitos sentimentais, como o de maravilhoso, e o incitar de ideais, como o de infinito, como parte da experiência musical. Como observado por Tadday (1999, p.121-122), a concepção musical de Hoffmann pautou-se sobretudo no poético [poetischen], um efeito indistintamente ao alcance da música instrumental e da ópera:
Mas, ao mesmo tempo, E. T. A. Hoffmann, sem se contradizer, foi capaz de definir “a ópera romântica como a única verdadeira” no diálogo Der Dichter und der Komponist de 1813 e depois na revisão sobre Den Opern Almanach des Hrn. von kotzebue no Allgemeinen musikalischen Zeitung em 2 de novembro de 1814.
Para Hoffmann (1989 [1813], p.132), embora não servisse como suporte à encenação de dramas ou à declamação de poemas, a música instrumental autônoma não era uma arte voltada exclusivamente à sua autorreferencialidade, nem contraposta à metafísica, era “música absoluta”.
Não podemos perder de vista que foram diversos os proponentes do conceito de música absoluta, e várias as semânticas implicadas com esse conceito. Dahlhaus (1991) coletou alguns desses proponentes e produziu um locus privilegiado para a observação do campo intelectual, durante o século XIX[13]:
A única coisa que a música tinha a agradecer à sua própria arbitrariedade era seu comportamento autônomo, pois aquelas obras de arte mecânicas e contrapontísticas eram totalmente incapazes de atender às necessidades da alma. (Wagner, 1850, p. 80).
É a mais romântica de todas as artes, pode-se dizer quase a única realmente romântica, pois seu único objeto é a expressão do infinito. (Hoffmann, 1917, p. 127).
Musica est exertitium metaphysices occultum, nescientis se philosophari animi. (Schopenhauer, 1969, p. 264).
O que quer que seja que a música instrumental não possa fazer, nunca poderá ser dito que a música possa fazer. Pois apenas a música instrumental é pura, música absoluta (Hanslick, 2018, p. 263).
Diferentemente da conclusão de Dahlhaus, compreendemos que o termo “música absoluta” acabou por não estabilizar um sentido livre de ambiguidades, incluindo nele tendências menos autônomas, professando componentes extramusicais e sediando fortes oposições teóricas. Concordando com Dahlhaus, é ainda assim possível aludirmos a uma esfera mais ampla do discurso da autonomia musical[14], na qual seja possível incluir os proponentes do conceito de música absoluta, como foi o caso de Schopenhauer, a defender ao menos os valores negativos da autonomia musical: sua independência frente ao texto ou à cena.
O trabalho de Dahlhaus (1984, p. 67), embora não distinga a formação do tema da autonomia musical entre os campos musical e intelectual, como propusemos na introdução, possui descrições onde entendemos que ambos os campos podem ser reconhecidos:
[...] independente de debates crítico-ideológicos, revela-se cientificamente útil distinguir música funcional e música autônoma, se isso não significar nada além do contraste simples e empiricamente tangível entre determinação por elementos extramusicais e emancipação das características sociais, coisa que um conservador entenderia como apoios e que um liberal chamaria de algemas.
Distintamente da precisão terminológica conseguida com o conceito de música autônoma, o conceito de música absoluta limita-se a um capítulo do campo intelectual relacionado ao fenômeno da autonomia musical, sendo menos claro em estabelecer o que se operava no campo musical. Tadday (1999, p.123-124) complementa a nossa interpretação, ao criticar em Dahlhaus uma identificação apressada entre arte romântica e estética idealista:
A visão "romântica" da música de Wackenroder e Tieck não postula uma autonomia "autopoiética", mas sim uma autonomia "poética" da música, cujo horizonte metafísico foi perdido de vista na obra Vom Musikalisch-Schönen de Eduard Hanslick (1854).
Seguindo Tadday (1999, p.116), e diferenciadas as teorias românticas e idealistas sobre a música, é necessário ainda diferenciá-las da teoria de Hanslick, cuja compreensão pouco se relacionou com as “categorias literário-filosóficas” empregadas tanto no romantismo quanto no idealismo do século XIX.
No século XX, a expressão “música absoluta” decai definitivamente, especialmente pela rejeição do caráter idealista, metafísico e intelectualizado do termo. Sobre isso, frisa Webern (2009 [1933], p. 27-28):
No caso de Nietzsche, sua relação com Wagner não foi de caráter musical, sua relação foi unicamente intelectual e filosófica. Com Parsifal, Wagner adentrou em um terreno espiritual com o qual Nietzsche não se comunicava. O catolicismo de Parsifal foi oficialmente a razão da ruptura entre ambos, ou seja, um aspecto extramusical. [...] Então, no momento em que falamos de música, o motivo da ruptura com Wagner não deveria ter sido de ordem extramusical. Vemos como é difícil, aparentemente, entender uma ideia na música. [...] Mas era precisamente a ideia o que eles não entenderam.
Webern, um notável representante do campo musical, junto à segunda escola de Viena, recuperou elementos da concepção estética de Hanslick, especificamente o conceito de ideia musical, justamente para se opor à verve “intelectual e filosófica” que predominava na estética musical. Hanslick foi sobretudo um esteta e filósofo. Assim, a aliança que parece firmada entre a estética de Hanslick, a autonomia musical e a música de Webern não pode ser outra, senão aquela nativa na obra de Hanslick, de tendência anti-idealista e focada quase que exclusivamente no campo musical, a qual buscaremos escrutinar no tópico seguinte.
2 O paradigma estético da autonomia musical
A obra Do belo musical (1854), de autoria de E. Hanslick, hoje um aclamado tratado estético-musical, não foi bem recebida em sua época, tendo sido tachada como uma obra “antiquada” (Landerer; Rothfarb, 2018, p. 82). O tratado declarava abertamente opor-se às teorias estéticas em voga, em sua época, principalmente pela falta de uma orientação científica dessas últimas.[15]
A orientação científica foi uma exigência basilar do pensamento de Hanslick. A construção de uma teoria intrinsecamente autônoma para a música confunde-se, por isso, com a metodologia e as premissas de orientação científica adotadas em Do belo musical, sintetizadas aqui em ações-premissas que guiaram a teoria de Hanslick e visaram a uma correspondência, ponto a ponto, entre estética, teoria, prática e vivência musical:
(1) Desfazer o giro subjetivo na análise da beleza artística[16]; (2) adotar a orientação objetiva e antimetafísica para a estética[17]; (3) investigar somente a experiência autônoma e a beleza autônoma musical[18]; (4) parametrizar o que na obra de arte é predicado enquanto belo[19]; (5) identificar a racionalidade e a fantasia humana na estrutura das obras musicais[20]; (6) analisar o “princípio estético” em suas leis naturais (fisiologia e psicologia)[21]; (7) reconhecer a especificidade do “ouvir atento”[22].
As ações-premissas, suas aplicações e as análises estimuladas por elas encerram o quadro mais geral da epistemologia musical de Hanslick. Contudo, como notado pela fortuna crítica, encontramos. em Do belo musical, referências a autores e teorias não alinhados às ações-premissas aqui listadas.
A estética de Vischer e o conceito de fantasia retirado da filosofia de Hegel são os exemplos mais conhecidos. Embora sejam passagens que indiquem contribuições e mesmo o interesse de Hanslick, entendemos que a participação delas na discussão estética de Hanslick seja sobretudo marginal, sem consequência para a coerência interna do projeto, uma vez que, na avaliação de Hanslick (2018, p. 8 [nota de rodapé n. 6]), o idealismo e, em especial, o hegelianismo não estão alinhados ao seu projeto:
Nesta especificação conceptual os mais antigos filósofos concordam com os modernos fisiólogos, e devemos preferi-la incondicionalmente às denominações da escola hegeliana que, como se sabe, faz uma distinção entre sensações internas e externas.
Outra ordem de problemas, dizendo respeito à coerência interna da obra de Hanslick, encontramos em comentadores que se ocuparam em recolher referências não explícitas em Do belo musical, sendo o caso mais conhecido o da suposta influência que a Crítica da faculdade de Julgar (1790), de Kant, teria exercido na elaboração desse tratado. A hipótese, por si só, não é problemática, contudo, acatá-la implicaria ajustes e mesmo contradição entre as ações-premissas acima listadas. Ainda assim, Peter Kivy defende esse ponto de vista, e faz os ajustes esperados.
Segundo Kivy (2009), Kant teria sido um formalista estético, enquanto Hanslick, um formalista em decorrência de ter sido sobretudo kantiano.[23] Kivy defende que Hanslick adotou um viés prescritivo, em sua estética, em favor de uma arte musical formalista, ao passo que Kant teria sido um formalista não prescritivo ou, ainda, um formalista que atipicamente haveria prescrito o modelo da bela arte, aquela de caráter aderente e conteudista.
Como bem observou Wilfing, a posição de Kivy (2009) pode ser remetida ao passado, aos comentadores da estética de Kant da virada do século XX, como Paul Moos (1910), Franz Marschner (1901) e Werner Hilbert (1911)[24]. O mesmo pode ser verificado em Hartmann (1886, p.14). Toda essa geração defendeu o que Wilfing nomeou como o argumento de “duas pontas” (Wilfing, 2018, p. 9). O argumento de duas pontas identifica Kant como o fundador da estética formalista, ao mesmo tempo que promoveu uma defesa da arte conteudista. De acordo com essa escola de interpretação, Hanslick levou adiante uma “[...] elaboração unidimensional da Crítica da faculdade do juízo” em prol de uma “[...] estética formalista estrita” (Wilfing, 2018, p. 9).
Diferente do argumento de duas pontas, alinho-me a uma outra escola de interpretação, a qual não credita haver uma influência kantiana presente em Do belo musical[25], visto que a tese de duas pontas, ao fim, assume dificuldades iniciais difíceis de serem transpostas. Uma delas é a patente divergência entre o aspecto subjetivo da estética kantiana e o aspecto objetivo da estética de Hanslick. Outra dificuldade, a imputação da obra de Hanslick (1922, p. 80) como prescritiva, embora seja uma obra declaradamente descritiva: “[...] não um dever ser, mas um é assim”. Um terceiro problema reside no uso indistinto do conceito de formalismo, por parte de Kivy, sem diferir o seu sentido para Kant e Hanslick. As dificuldades iniciais que a tese de duas pontas enfrenta são tão amplas e, mesmo assim, defendidas, que Wilfing (2018, p. 18) aventou a possibilidade da formação de um simples senso comum em torno da questão:
[…] são invocados geralmente como um truísmo genérico dentro da complexa história da estética musical, claramente merecendo pesquisas adicionais. Como já estabeleci anteriormente, não está totalmente claro sequer se Hanslick alguma vez leu Kant.
A busca pelo esclarecimento das referências indiretas e ocultas na obra de Hanslick é certamente um tópico de curiosidade. Um trabalho minucioso a esse respeito foi realizado por Wilfing (2018, p. 26) e nos apoiamos em seus estudos:
Hanslick não pertence a nenhum movimento filosófico específico. O argumento de Hanslick oscila entre diferentes discursos filosóficos, ocasionais e heterogêneos, prudentemente entrelaçados em Do belo musical, para dar apoio ao seu raciocínio estético.
Como destacado na citação, não é também o caso das premissas da filosofia de Hanslick estarem dissociadas de posições filosóficas pré-existentes. Há, de fato, referências e influências diretas que podem ser traçadas, em Do belo musical.
Partindo de Robert Zimmermann (1824-1898), um influente intelectual do universo austro-húngaro, amigo pessoal de Hanslick e colaborador próximo à escrita da obra Do belo musical, Wilfing (2018) identificou no positivismo austríaco as filosofias diretamente influentes no pensamento de Hanslick. Incluem-se nessa lista o próprio Zimmermann e os professores mais influentes em sua formação, Johann Friedrich Herbart (1776-1841) e Bernard Bolzano (1781-1848).
Zimmermann foi um importante defensor do formalismo, na área da estética, tendo sido aluno de Bolzano, mas se tornou o principal herdeiro da obra de Herbart. As premissas mais fundamentais do projeto de Hanslick, como a antimetafísica, a cientificidade, objetividade e a autonomia do belo (Wilfing, 2018, p. 13), podem ser facilmente encontradas nas filosofias de Herbart e de Bolzano, configurando, portanto, uma herança mais imediata. Munido dessa herança, sem, contudo, obedecer a uma afiliação rigorosa, Hanslick postulou uma teoria intrinsecamente autônoma para a música, paradigmática, no sentido de ter aquilatado recursos epistemológicos rigorosamente centrados na audibilidade, como encontrados na formulação do conceito de ideia musical.
2.1. A ideia musical
“Ideia musical” é sobretudo uma formulação epistemológica que designa um conteúdo mental, fruto da ação do entendimento, em atos de síntese, juízo e causalidade. Por ser um conteúdo mental, a ideia musical não se confunde com o corpo sonoro que existe independentemente do sujeito e, por se tratar de um conteúdo sintetizado em nossa mente, não pode haver uma ideia musical desligada da existência objetiva do corpo sonoro e do trabalho objetivo do músico. Ademais, a ideia musical pressupõe, tanto no ouvinte quanto no músico, o engajamento em um tipo específico de audição, nomeada por Hanslick (2018, p.10) de “ouvir atento”, uma percepção ativa que é condição hic et nunc para o discernimento contínuo de uma ideia musical sob sons.
Percorrendo agora o caminho inverso, diremos que a atitude de escuta capaz de ouvir e discernir sons musicais e, neles, reconhecer certas relações intrínsecas, organizadas pelo músico, configura, na percepção do ouvinte, uma ideia musical.
A concepção não guarda muitas dificuldades para a sua compreensão, contudo, os termos “ouvir atento” e “ideia” podem gerar mal-entendidos.
A atitude atenta da audição, para Hanslick, não diz sobre o grau, nível ou intensidade de concentração aplicada em uma audição, mas sim àquilo pelo qual nos tornamos atentos, em uma audição. Aquilo pelo qual nos tornamos atentos em uma audição musical autônoma são os parâmetros em uso na música puramente instrumental. É sabido que, na época de Hanslick (1922, p. 16-19; 89-92), a atenção geral do público se voltava a elementos relativos à linguagem e ao sentimento, e não ao tipo de audição requerida pela música autônoma. A música instrumental autônoma, por sua vez, não reivindica a linguagem ou o sentimento enquanto elementos estruturantes de suas obras. A música autônoma concentra seu foco exclusivamente em parâmetros sonoros, e essa é a peculiaridade que qualifica o ouvir atento.
Na música autônoma, o foco perceptivo encontra-se na modalidade sensória auditiva e nos parâmetros que lhe são intrínsecos. Assim, no título Do belo musical, lê-se junto ao termo “belo” não um retorno antiquado à estética clássica, contudo, em verdade, uma nova abordagem para o conceito da beleza, um em que a beleza não é distinta dos componentes paramétrico-sensíveis.
O mesmo é válido para o termo “ideia”. Em Hanslick, ideia, apesar de ser um conteúdo mental, possui lastro na experiência sensível, de modo que ideia musical, embora composta por momentos abstratos, é empiricamente derivada da experiência.
Na argumentação de Hanslick, ideia mostra-se como uma contrapartida particular de um poder mais geral, esse último referido como “gama de ideias” [Kreis von Ideen] (Hanslick, 1922, p. 20). Segue-se que ideia musical é corretamente empregada somente nos casos particulares, em uma experiência de escuta particular. O uso adequado de gama de ideias, por sua vez, refere-se à generalidade e ao âmbito das condições de possíveis realizações particulares. A particularização de uma ideia musical será sempre hic et nunc, em uma audição atenta, que explora a modalidade sensória auditiva, ela mesma, rica de possibilidades inscritas enquanto gama de ideias.
Cada modalidade sensória possui uma gama de possibilidades inscritas física, fisiológica e mentalmente, em nosso corpo, dando possibilidades finitas para a percepção e criatividade humanas. A música autônoma, por sua vez, é senão a arte circunscrita pela modalidade sensória auditiva, a qual fornece uma gama de ideias possíveis, das quais o músico inventa e realiza uma ideia particular em cada obra.
A noção de autonomia, em Hanslick, está, pois, intrinsecamente ligada à noção de modalidade sensória, ou seja, autonomia identifica a finalidade de uma arte com a atenção perceptiva unimodal (de uma única modalidade). Segundo Hanslick, é essa a base epistemológica que legitimou a confecção de obras musicais autônomas, condição para a independência cultural do músico instrumental, e não o contrário. Assim, a música autônoma é aquela que possui um fim em si mesma, isto é, se realiza em seus próprios meios, e não naquilo que pode vir a significar.
O mesmo raciocínio será aplicado ao conceito de beleza: “[...] uma ideia musical que foi levada à plena expressão já é bela por si só, um fim em si mesma” (Hanslick, 1922, p. 59). A obra musical singular, que particularizou uma ideia, dentro dos limites da modalidade sensória auditiva, expressa uma beleza artística.
O músico pode explorar o campo de possibilidades inscritas na modalidade sensória auditiva, pode descobrir, identificar e/ou inventar estruturas sonoras que realizam uma ideia e, assim, expressar uma beleza musical que se apresenta sensivelmente [in sinnlicher Erscheinung] (Hanslick 1922, p. 20). Ideia e beleza são, por conseguinte, conceitos empíricos diretamente atrelados à modalidade sensória auditiva.
Chama atenção, na concepção de Hanslick, o fato de a beleza aparecer diretamente ligada à percepção sensível e a liames fáticos. Trata-se do resultado natural da aplicação de sua epistemologia, sendo a beleza um conceito que visa a descrever parte da compreensibilidade da arte musical, em exclusão ao par forma/conteúdo.
As terminologias “ideia musical” e “gama de ideias” também implicam uma questão epistemológica. De acordo com Hanslick (1922, p. 25), o que difere um conceito, uma ideia e uma ideia absoluta seria somente o grau de abstração.
Por exemplo, a ideia da suavidade, enquanto ideia musical, deve antes de tudo ser ouvida, ou seja, apresentar-se enquanto estrutura dos parâmetros sonoros de uma obra musical. Uma dentre tantas formas de consegui-la seria compor uma música de modo que sua melodia e harmonia seguissem sem nenhuma tensão. A escuta dessa obra estaria, através da abstração, construindo ou requisitando a ideia de suavidade, por meio da noção de harmonioso em geral, e essa noção é percebida enquanto parte constituinte do fenômeno total de escuta.
Hanslick (1922, p. 26-27) também admitiu, de maneira coerente, a possibilidade de experiências crossmodais. Uma experiência crossmodal é aquela em que participam duas ou mais modalidades sensórias na produção de um único conteúdo mental.[26] Portanto, uma escuta tipicamente autônoma poderia recolher a mesma ideia presente em diferentes modalidades sensórias, geralmente, ideias ligadas a “propriedades dinâmicas”, como a ideia de suavidade ou de desaceleração.
Em Hanslick, as experiências autônomas e crossmodais mais significativas envolvem a visão. Um exemplo de interação crossmodal concebível em Hanslick seria o padrão rítmico de uma composição sonora se igualar à noção visual que temos de um objeto rolando escada abaixo. A experiência total não é apenas da audição, mas inclui a conceituação visual de algo rolando escada abaixo, sem, contudo, estarmos vendo esse acontecimento. De acordo com a caracterização de Macpherson (2011, p. 436), diríamos que a “[...] característica fenomênica de ambos, visão e audição” perfaz uma unidade, enquanto que o “[...] critério de estímulo proximal sugeriria que essa é uma experiência” auditiva unimodal. Temos, portanto, uma interação de tipo crossmodal.
Em todo caso, a legalidade paramétrica de cada modalidade é quem determina o limite entre uma ideia autônoma típica (unimodal), uma ideia crossmodal autônoma e uma ideia extrínseca não autônoma. Hanslick englobou dentro da legalidade autônoma as ideias unimodais e as crossmodais. Estão excluídas da legalidade autônoma os sentimentos, os conteúdos da fantasia, os conteúdos de nossa vida psíquica e as ideias que não se abstraem parametricamente de uma estrutura sonora.
Temos agora os elementos necessários para entender por que o advento do conceito de ideia musical, na ótica da epistemologia de Hanslick, tornou obsoleto o par forma/conteúdo, para a análise da música. Hanslick considerou que os conceitos de forma e conteúdo não são respaldados pelos parâmetros da modalidade auditiva, tampouco por formações crossmodais. A estratégia de Hanslick (1922, p. 32-34) sobre essa questão consistiu em uma prova por reductio ad absurdum, na qual o conceito de conteúdo é demonstrado ser implausível.
O que se entendia por conteúdo, em arte, era a representação presente em uma obra, por exemplo, o gladiador na pintura, na escultura ou no poema. O conteúdo é, por isso, parte essencial de uma arte mimética, que tem por finalidade imitar uma temática, personagem ou história. Dada a reconhecida impossibilidade da música em imitar temáticas, personagem ou história, a tradição mimética cunhou uma modalidade imitativa específica para a música, a imitação do sentimento humano.
O paradigma mimético atrelado à música, apesar de sua longa duração, sofreu adaptações constantes. O modelo confrontava, frequentemente, com detalhes de argumentação que ameaçavam a sua coerência em relação à prática musical. O núcleo desse problema, segundo Hanslick (1922, p. 20), residia no fato do som ter sido considerado a forma da arte musical, enquanto o sentimento seria seu conteúdo. Era patente a diferença categorial entre os conceitos de som e sentimento, sendo bastante difícil derivar a necessidade de depreender um do outro.
O paradigma mimético notara que, diferentemente do rosto que, de fato, a tinta faz surgir, ou do estado de coisa que, de fato, a linguagem torna expresso, a música suscitava explicações adicionais, sejam psicofísicas, sejam linguísticas ou metafísicas, a justificar sua capacidade de dar forma a um conteúdo: “[...] esses sentimentos, em sua rica diversidade, são considerados a ideia vestida no corpo mundano do som para caminhar na terra como uma obra de arte musical” (Hanslick, 2018, p. 299).
Hanslick (1922, p. 31) julgou a explicação mimética como sendo insuficiente. Em primeiro lugar, porque, se a música corporifica um sentimento, logo, aceitamos tacitamente o paradoxo da existência de uma representação físico-acústica de uma natureza puramente subjetiva, essa última sem contorno e sem substância física. Em segundo lugar, porque, se aceitamos que sentimentos podem ser suscitados através de associações e estímulos psicofísicos — como a surpresa abrupta gera o susto, ou como a contorção de um rosto em dor suscita em nós empatia ou a informação de dor — então, incorremos em um problema empírico, visto que os sentimentos anunciados nas obras musicais não resistiam a um teste cego (Hanslick, 1922, p. 34) e não eram replicáveis em diferentes contextos sonoros (Hanslick, 1922, p. 24), sobretudo, sob diferentes libretos (Hanslick, 1922, p.30). Em terceiro lugar, porque, se consideramos a relação entre a música e o sentimento, através de um remetimento por signo, então, a relação entre som e sentimento será substituída por uma relação entre signo e sentimento, portanto, aplicável não mais à música (Hanslick, 1922, p.24), uma vez que essa fora reconhecida como não conceitual.[27]
As tentativas de ajuste mimético do conceito de conteúdo musical, conforme Hanslick (1922, p. 107), teriam acumulado problemas, ao invés de integrar a música àquele modelo: “O compositor não pode representar Orestes nem deste nem daquele modo, simplesmente não o pode representar”.
De acordo com Hanslick (1922, p. 24), além de ideias musicais, exemplificadas pela “[...] força, movimento, proporção [...] intensidade, [e] atenuação [...]”, a música nada mais pode representar. A música, por seus meios próprios, limita-se a si mesma e, no máximo, a eventos cuja estrutura crossmodal permita gerar conteúdos mentais mistos – mas nunca representar Orestes, sem que esse seja anunciado.
Visto que a música autônoma requer “[...] nada além de si mesma” (Hanslick, 2018, p. 306), e que sua percepção capta sensações e configurações que plasmam uma ideia musical, não há, fora de todo o som e da percepção do som, nada que conte como seu conteúdo: “[...] o que deve ser expresso com o material sonoro, a resposta é: ideias musicais” (Hanslick, 1922, p. 59).
Hanslick (1922, p. 59), em resposta aos problemas verificados, reformulou o problema forma/conteúdo: “[...] o conteúdo da música são formas sonoras em movimento”; ou, como consta nas duas primeiras edições: “[...] formas sonoras unicamente e sozinhas são o conteúdo e objeto da música” (Hanslick, 2018, p. 440). Em resumo, conteúdos são formas, e formas são o conteúdo; o par forma/conteúdo jaz assim dissolvido em virtude da ideia musical ser um fim em si mesma, derivada unicamente dos parâmetros sonoro-musicais.
Embora aparente ser uma definição tautológica, a solução de Hanslick foi a de demonstrar epistemologicamente que o par forma/conteúdo é inapreciável à estética musical[28], não sendo a música, a princípio, nem forma nem conteúdo. Segundo Hanslick, a beleza musical não expressa um conteúdo artístico em acordo com o paradigma mimético, e também não apresenta nada como uma forma ou continente vazio, de acordo com esse mesmo paradigma.[29] Portanto, se formos conceitualmente rigorosos, devemos admitir que a classificação da obra de Hanslick como formalista é senão um empréstimo ou uma atribuição retrospectiva.
Considerações finais sobre Hanslick e Kant
O inquérito filosófico sobre a percepção, a representação e o conhecimento configuram questões de primeira ordem da disciplina epistemológica. Hanslick, em sua obra Do belo musical, encaminhou o inquérito epistemológico para a arte musical, inquirindo sobre a percepção, a formação de ideias e a cognição musicais, sempre partindo de constatações empíricas em busca de leis gerais.[30]
A percepção musical, conforme Hanslick (1922, p. 65), pode ser classificada como uma atividade intelectual [Arbeiten des Geisten], por isso, o ouvir atento é antes de tudo um ato psíquico que coliga a física dos sons e a fisiologia do ouvido médio e interno[31], sintetizando atividades mais complexas, em nosso aparato de conhecimento.[32]
Por outro lado, enfatiza Kant (2018, p.120 [KU 224]):
Uma simples cor, como, por exemplo, a cor verde de uma relva, ou um mero som (à diferença de ecos e ruídos), como, digamos, aquele de um violino, são declarados belos em si mesmos pela maioria, muito embora pareçam ter por fundamento tão somente a matéria das representações, ou seja, a mera sensação, e, por isso, mereçam apenas ser denominadas agradáveis.
Na passagem acima, há uma condição restritiva imposta por Kant: o “[...] ter por fundamento tão somente a matéria das representações”. Para Kant, a beleza é um fenômeno essencialmente transcendental, puro e subjetivo, não fundamentado na objetividade e sensibilidade. Portanto, uma possível beleza musical, em termos kantianos, é dependente da atividade finalista (sem que um fim seja cumprido) das faculdades a priori do juízo, da imaginação e do entendimento (Kant, 2018, p.215 [KU 317]): “[...] somente seria puro se aquele que julga ou não tivesse um conceito desse fim, ou dele abstraísse em seu juízo” (Kant, 2018, p.127 [KU 231]).
Como se vê, a beleza pura não está acessível à maior parte de nossas experiências cotidianas, nem mesmo para a maior parte de nossa experiência com a arte. Pensando nessa situação, Kant elaborou uma definição especial para a beleza na arte, cuja pureza do juízo de gosto é acompanhada pela aderência a certos conceitos, por vezes nomeados ideias estéticas[33].
A filosofia da música de Kant (2018, p. 125-126 [KU 229-30]) julgou ser a música uma beleza livre, não natural e pura. Vieira (2019, p. 33), em seu entendimento da questão, considera que Kant definiu a música como arte mista:
Por isso o filósofo conclui esse trecho de sua obra recolocando o problema nos termos em que ele aparece no título desse trabalho: “apenas de acordo com a primeira espécie de explicação”, sugere ele, “a música seria totalmente representada como bela; de acordo com a segunda, entretanto, como arte agradável (ao menos em parte)” (KU, AA 05: 325.19-21) – isso é, como arte mista, que envolve um elemento agradável (o som) e outro belo (o arranjo de sons).
Em nenhuma das hipóteses, seja a de a música ser considerada uma arte puramente bela, puramente agradável, seja uma arte mista, a objetividade material criada pelo músico se torna o cerne da vivência, nem da fundamentação filosófica da beleza em Kant. Em todos os casos, o elemento subjetivo é quem toma o lugar da substancialidade da experiência estética, se alguma substancialidade houver. Essa caracterização da beleza, por si só, torna a comparação entre a ideia estética e a ideia musical algo intangível.
A distinção epistemológica entre o subjetivo e o objetivo, presente na filosofia de Kant, contrasta sistematicamente com a orientação objetivo-científica adotada por Hanslick, orientação essa tachada por Kant como sendo o fruto do trabalho do artista mecânico, cujo produto nunca é uma arte estética (Kant, 2018, p. 202-204 [KU 305-7]). Para Kant, o gênio é o plasmador exclusivo da arte estética e, por conseguinte, da ideia estética. Em Hanslick, não há distinção entre os parâmetros da feitura de uma obra e aquilo que será nela percebida, julgada e sentida enquanto bela. Por essa razão, em Hanslick, a beleza não é uma possibilidade inscrita na subjetividade do gênio, porém, um domínio objetivo inscrito na modalidade sensória e no próprio mundo.
Kant e Hanslick defenderam epistemologias musicais muito díspares entre si, o que implica cautela frente à homonímia de termos como “ideia” e “beleza”. O fato de ambos os autores pensarem a estética através da epistemologia não configura uma filiação, apesar de instigar uma reconstrução histórica da filosofia moderna que encontrasse a origem comum dessa aparente aliança. O que pode ser feito com rigor e consistência acerca da relação entre esses autores é senão indicar em quais pontos as suas estéticas concordam. Ressalto dois desses pontos: ambos os autores excluíram a emoção como componente essencial da beleza[34] e atestaram não haver uma expressão de conteúdo na música.
O positivismo de Hanslick é um perfeito antagonista da teoria estética transcendental de Kant, e há razões filiais que explicam essa discrepância. A teoria de Hanslick está remetida a Herbart, via Zimmermann. O arranjo integrativo entre o físico, o fisiológico, o psíquico e o mental, na consecução da beleza, característica da filosofia de Hanslick, é uma das possíveis aplicações da crítica de Herbart à arquitetônica das faculdades transcendentais:[35],[36]
Nós todos não vemos tudo da mesma maneira. O mesmo horizonte oferece muito ao olho de alguém e pouco a outra pessoa. A uma pessoa revela a beleza, para outra o útil, e ainda para outra, um mapa, que ele aprendeu de cor. Em uma e mesma paisagem, um menino procura os campanários, os castelos, as aldeias, as pessoas que conhece [...] enquanto que um pintor agrupa diferentes porções, e um geômetra compara as alturas das montanhas. [...] A causa imediata consiste, indubitavelmente, na diferença da percepção, nela mesma. Como e em que sentido é possível que a visão mude enquanto o objeto permanece idêntico? (Herbart, 1896, p. 132-134).
A “diferença da percepção”, um problema fundamental da filosofia de Herbart, guiou a pesquisa de Hanslick até a postulação do ouvir atento, justamente a diferença que abre a possibilidade da escuta musical instrumental autônoma. Hanslick (2018, p. 111) também classificou outras formas de audição: a “escuta natural”[37], a “escuta patológica”[38] e a “escuta da linguagem”:
A diferença essencial, em todo caso, é a de que na linguagem o som é apenas um signo, quer dizer, um meio para um fim, que é a expressão de algo completamente alheio a esse meio, enquanto que na música o som é uma entidade, ou seja, ocorre como um fim em si mesmo.
Diferente de um programa pedagógico ao modo de Herbart[39], Hanslick descreveu e teorizou detalhadamente o campo musical autônomo, uma cultura perceptivo-sensorial.
Epistemology and autonomy in Hanslick’s concept of musical ideas
Abstract: The present work addresses the aesthetic philosophy of Eduard Hanslick in order to demarcate it as an epistemological approach to music and a paradigmatic case for musical autonomy. The epistemological assumptions that guided the work On the Musically Beautiful and its most likely influences were analyzed. We conclude by presenting musical idea as an epistemological formulation strongly influenced by positivism and as a qualifying principle of autonomous musical perception. We add to this conclusion a disambiguation with Kant's concept of aesthetic idea.
Keywords: Musical Autonomy. Epistemology. Musical Idea. Eduard Hanslick. Immanuel Kant.
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Recebido: Aprovado: 09/01/2024 – Publicado: 30/04/2024
[1] Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0807-5037. E-mail: ricnach@gmail.com.
[2] “Dizer que a religião é 'o ópio do povo' não nos diz muito sobre a estrutura da mensagem religiosa e, antecipando a lógica da minha exposição, essa estrutura é o pré-requisito para o cumprimento de sua função, se é que tem uma. É contra essa forma de redução, que chamo de efeito de curto-circuito, que desenvolvi a teoria do campo.” (Bourdieu, 1986, p. 181).
[3] Cf. Gregg, 2015. A origem do termo campo advém da teoria de campo, na física, posteriormente apropriada pela psicologia e sociologia.
[4] e.g. críticos, literatos, jornalistas, filósofos, leitores.
[5] e.g. compositores, instrumentistas, regentes, teóricos, artesãos, luthiers, público.
[6] Cf. Parker, 1994.
[7] Cf. Tomás, 2011, p.136.
[8] Cf. Smith, 1982, p. 205.
[9] Cf. Dahlhaus, 1991.
[10] Cf. Videira, 2016, p. 71; Oliveira; Videira, 2015, p. 155.
[11] Cf. Donato, 2016, p. 1074-1075.
[12] Contrariando Fubini (2005, p. 229), não incluímos Diderot nessa lista, por entendermos que a sua concepção permaneceu marcada pelo paradigma mimético.
[13] Cf. Nachmanowicz, 2014, p. 18-20.
[14] Cf. Dahlhaus, 1984, p.66.
[15] Cf. Hanslick, 2018, p. v; Appendix, p.1.
[16] Cf. Hanslick, 2018, p. 2.
[17] Cf. Hanslick, 2018, p. 3.
[18] Cf. Hanslick, 2018, Appendix, p.2
[19] Cf. Hanslick, 2018, p. 3;77-8.
[20] Cf. Hanslick, 2018, p.81;9.
[21] Cf. Hanslick, 2018, p.80.
[22] Cf. Hanslick, 2018, p.10.
[23] Cf. Kivy, 2009, p.53.
[24] Cf. Wilfing, 2018, p. 9.
[25] Cf. Dahlhaus, 1983, p. 32; Hanslick, 1986, p. xvi; Wilfing, 2018, 2020.
[26] Para uma definição e categorização mais aprofundada da experiência crossmodal, ver Macpherson, 2011.
[27] Cf. Hanslick, 1922, p. 32.
[28] Cf. Hanslick,1922, p. 166-167.
[29] Cf. Hanslick,1922, p. 63.
[30] Cf. Hanslick, 1922, p. 68; 70.
[31] Cf. Hanslick, 1922, p. 111-112.
[32] Cf. Hanslick, 1922, p. 63.
[33] Cf. Vieira, 2019, p. 31.
[34] Cf. Kant, 2018, p. 122 [KU 226]; Hanslick, 2018, p. 17.
[35] Cf. Herbart, 1824, p. 61-62.
[36] Cf. Huemer; Landerer, 2010, p. 75.
[37] Cf. Hanslick, 2018, p. 173.
[38] Cf. Hanslick, 2018, p. 153-154.
[39] Cf. Herbart, 1896, p. 134.