De Frankfurt a Konstanz: da estesia como ascese ao prazer comunicacional da catarse[1]

 

Benjamim Picado[2]

 

Resumo: Através de um exame sobre as ideias estéticas da Escola de Konstanz (em especial, nos textos de Wolfgang Iser e de Hans Robert Jauss), pretende-se fazer uma inflexão sobre os costumeiros enlaces entre comunicação e experiência estética, no modo como foram tradicionalmente cifrados, como aspectos de uma crítica aos processos de mediatização extremada, nas fases tardias do capitalismo – ilustradas pelo ideário filosófico da Escola de Frankfurt (especialmente nos escritos de Theodor W. Adorno e Walter Benjamin). Fixam-se como signos dessa inflexão a proposta de uma reabilitação de fenômenos como os do “efeito estético” (em Iser) e da “catarse” (em Jauss), como elementos que conjugam estados afetivos da receptividade estética de obras de arte com seu potencial de comunicabilidade, propondo, a partir daí, um outro tipo de enlace para a apreciação dos fenômenos, processos e produtos comunicacionais, em chave estética.

 

Palavras-Chave: Comunicação. Experiência Estética. Catarse. Escola de Frankfurt. Escola de Konstanz.

 

Introdução

Em vários segmentos das ciências sociais e das discursividades filosóficas do último século, houve uma ligação implícita entre o estudo dos meios de comunicação e a promoção de uma particular experiência estética: tal implicação consolidou-se como item principal da crítica da modernidade cultural, na medida de seu recobrimento pelos regimes preferenciais da mediatização em escala massiva e industrial, na cultura contemporânea. Os critérios estéticos promovidos por essas avaliações da cultura mediática foram conceitualmente implicados por tradições da crítica da arte clássica e moderna, fundamentando assim as vinculações entre “estética” e “comunicação” – e servindo, em última análise, para a avaliação cultural dos regimes modernos e tardios da sociabilidade. No que respeita às implicações estéticas dessas críticas, as abordagens que presidem essas plataformas das teorias da comunicação exigem de nós alguma retrospectiva histórica e epistemológica – para não mencionar uma forte contenção filosófica.[3]

É justo reconhecer esse ethos crítico de uma avaliação estética como força principal que guia as apreciações críticas que as ciências sociais fizeram – e ainda fazem – sobre a centralidade da mediatização en masse, como traço característico da contemporaneidade: se considerarmos tais diagnósticos críticos como resultantes da força prevalecente de uma racionalidade instrumental sobre a lógica da produção cultural, o caráter distintivo assumido pelos estudos da comunicação, no pensamento social contemporâneo, poderia ser facilmente resumido através da etiqueta do questionamento da tecnologia moderna.[4]

Assim, pensar a comunicação social na totalidade de seus universos empíricos de dispositivos, processos, instituições e produtos, nas sociedades modernas, representaria um pleno reconhecimento das renovadas (ou, no caso de algumas versões desse diagnóstico, “regressivas”) modalidades sensíveis e afetivas que são formatadas por essas infraestruturas da transmissão cultural: em tais termos, as teorias da comunicação partiram historicamente de uma caracterização da sociabilidade contemporânea, a qual é constituída através do papel central atribuído à racionalidade instrumental – e às formas como os modernos meios de comunicação foram concedidos com um lugar privilegiado, sob tais condições da experiência cultural.[5]

Neste artigo, pretendo avaliar o alcance contemporâneo desse repto às lógicas culturais do capitalismo tardio, nos aspectos em que podem auxiliar um melhor delineamento do estatuto da comunicação, em seus perfis atinentes a uma reflexão estética: tendo em vista a força ainda constringente de um discurso como o dos primeiros autores de Frankfurt, na consolidação de uma pedagogia que ainda orienta abordagens estéticas do exame de fenômenos, processos e produtos da cultura mediática, almejo problematizar tais considerações, naquilo que elas impedem vislumbrar aspectos de uma comunicação ocorrente entre obras e seus horizontes de compreensão e avaliação, especialmente em contextos tão historicamente demarcados – como aqueles da indústria cultural, de um lado, e das escolas da modernidade artística nos séculos XIX e XX, de outro.

Avaliando a centralidade do ethos modernista que informa o conceito de experiência estética, em autores como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin (mesmo com as patentes diferenças de ambos, quanto ao impacto dos modernos meios de comunicação sobre padrões estéticos), postulo esse conceito de experiência estética em Frankfurt como alienando um aspecto fundamental da mesma, a saber, aquele da “catarse”: a descarga emocional associada aos efeitos de certos gêneros dramáticos (como o da tragédia) sinalizam, especialmente para Adorno, uma espécie de domesticação das paixões que reforça ordens sociais e culturais, principalmente no contexto do capitalismo. Meu intento é o de problematizar tais implicações, a partir do contraste com certa reabilitação do sentimento catártico, como aspecto da comunicabilidade própria à experiência estética: em autores da Escola de Konstanz (como Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss), observo que a implicação entre engenharias poéticas das obras e seus horizontes de efeito estético reclamam a necessidade de recolocar o problema da resposta emocional às obras, e dos regimes comunicacionais em que ocorrem, como assuntos centrais de uma teoria estética. 

 

1 Sedimentos de uma crítica da indústria cultural, na teoria estética de T. W. Adorno

Ao se considerar o sistema dos dispositivos tecnológicos que constituem a cultura dos modernos meios de comunicação, há um caráter de padronização que relaciona esses produtos com a dimensão econômica de sua gênese cultural e circulação simbólica – o que, é claro, acarreta também consequências de ordem estética: de acordo com Adorno, esses padrões unificados da circulação simbólica não só são justificáveis em termos dos modos predominantes de produção cultural no capitalismo tardio, como também pressupõem uma relação característica com tradições culturais – de tal maneira a sublinhar um valor estético no qual tais obras são destituídas da substancialidade de seus vínculos sociais e históricos de origem. Ao caracterizar mais tarde, na forma de uma certa vulgata do conceito mesmo de “indústria cultural” (que ele e Horkheimer cunharam, em 1947, na Dialética do Esclarecimento), Adorno declara:

A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo para ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total (Adorno, 1986. p. 92-93).

 

Uma possível síntese dos pensamentos de Frankfurt sobre a indústria cultural se exprime através da ideia de uma experiência das obras que apenas preserva, de sua relação com a tradição, a noção de uma reprodução perpétua de estruturas sociais, indevidamente impostas à maioria de seus membros. Sob um regime próprio aos modos de circulação globalizados da produção cultural, é o aspecto revelador das produções do espírito que se vê afetado, pelas imposições que recaem sobre sua relação com forças sociais e políticas predominantes: segundo Adorno, ao se tornarem “mercadorias”, submetidas às injunções dos processos econômicos de circulação do valor, as obras de arte são subtraídas do papel no qual poderiam exercer algum tipo de autonomia (sua qualidade estética mais proeminente), em relação aos processos materiais da existência.

A cultura que, de acordo com o seu próprio sentido, não somente obedecia aos homens, mas também sempre protestava contra a condição esclerosada na qual eles viviam, e nisso lhes fazia honra; essa cultura, por sua assimilação total aos homens, torna-se integrada a essa condição esclerosada (...). As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente (Adorno, 1986, p. 93-94).

 

O campo da experiência musical é particularmente exemplar da forma como Adorno pensa essa degenerescência promovida pela mercantilização das obras: reconhecendo os perigos de uma fala sobre a “decadência do gosto” musical (com a assimilação irrefletida da música aos regimes celebratórios do Estado, desde os tempos de Platão), Adorno prefere pensar essa questão pelo prisma da unidade estética das obras – esta sim decomposta pelos regimes industriais da circulação de bens culturais. Esta é a questão da “fetichização da música”, como traço característico do gosto estético contemporâneo – com sua resultante mais forte na dissociação das obras musicais de sua estruturação unitária: suas instâncias mais evidentes são a valorização extremada de elementos isolados (tais como a voz, os instrumentos e os temas musicais), em detrimento dos aspectos que caracterizam sua presença, na estruturação integral das obras musicais. Esse caso é particularmente ilustrado pela valorização de movimentos sinfônicos separados, enquanto matrizes de uma popularização da música de concerto, em contextos de circulação massiva.

Face ao que vimos dizendo, é imperioso aceitar que a prática dos arranjos musicais se tem imposto em virtude de motivos sui generis. Antes de mais nada o objetivo visado é tornar assimilável a grande música distante do homem, que sempre possui traços de caráter público, não privado. O homem de negócios, que volta para casa exausto, consegue digerir e até fazer amizade com os clássicos “arranjados” [...]. Os momentos de encantamento dos sentidos, que resultam das unidades isoladas e decompostas, são em si mesmos – pelo fato de serem apenas momentos separados do conjunto – demasiadamente fracos para produzir o encantamento dos sentidos que deles se exige, e para cumprir os requisitos publicitários que lhe são impostos (Adorno, 1980, p. 176).

 

Ainda no campo da música, deve-se considerar o resultado de uma tal alienação do sentido de unidade artística das obras, a partir do conceito de “fetichismo”: segundo Adorno, é aí que se avaliam os produtos da indústria cultural, em sua dimensão esteticamente deletéria; trata-se do sentido “regressivo” da escuta musical contemporânea (e que se prolonga à experiência do cinema e da arte, no mesmo contexto). A “regressão da audição” da música massiva nos coloca em face dos problemas estéticos derivados da crítica adorniana à indústria cultural: o modo “atomístico” da escuta (derivado do culto fetichista de aspectos parciais das obras) resulta em um tipo de resposta espiritual à música, manifesta por um contentamento prazeroso com tal parcialidade da apreensão musical.

A instância mais evidente desse regime estético é o fato de que a música (a ligeira, em especial) é apreciada por uma atitude essencial de “distração” – portanto, não apenas com um foco parcial e atomizado da sensibilidade, mas como constante variação de interesse, na maior da parte das vezes conferida pela forma de acolher a música, em regimes de excessivo sensualismo; é o fato de que, por exemplo, nos padrões da música ligeira, as associações timbrísticas e rítmicas se sobrepõem em tal nível à unidade harmônica e melódica, resultando menos numa escuta musical do que numa resposta corporal – na forma da dança e do ritual social que a circunda.

O modo do comportamento perceptivo, através do qual se prepara o esquecer e o rápido recordar da música de massas, é a desconcentração. Se os produtos normalizados e irremediavelmente semelhantes entre si exceto certas particularidades surpreendentes, não permitem uma audição concentrada sem se tornarem insuportáveis para os ouvintes, estes, por sua vez, já não são absolutamente capazes de uma audição concentrada. Não conseguem manter a tensão de uma concentração atenta, e por isso entregam-se resignadamente àquilo que acontece e flui acima deles, e com o qual fazem amizade somente porque já o ouvem sem atenção excessiva (Adorno, 1980, p. 182).

 

Tal implicação entre a parcialidade “fetichista” da música e os regimes “regressivos” da audição caracterizam, na perspectiva de Adorno, um modo de pensar a dimensão estética da experiência cultural sob o capitalismo tardio – e que se explicam pelo processo de racionalização da vida espiritual, como um todo: é o aspecto racionalmente “planejado” das produções do espírito que o leva a caracterizar a indústria cultural como questão de “relações públicas”. A racionalidade técnica que impera nesse contexto, segundo ele, é menos relativa à divisão do trabalho na instância da produção (embora essa possa ocorrer, em domínios como o da música e do cinema), e mais como circulação e consumo culturais, cujas matrizes estéticas agora se deixam assimilar a princípios de visibilidade, valor de troca, rentabilidade, os mesmos que valem para o universo das commodities.

Resulta disso que sua legitimidade cultural, advogada por vastas porções do campo acadêmico, especialmente nos Estados Unidos, derive fundamentalmente do fato de que seus produtos promoveriam uma universalização cultural, na esteira daquilo que a filosofia iluminista do século XVIII associara ao cultivo da arte e da relação com a natureza. Adorno destaca, em sua argumentação, que tal ilustração é, como tudo o que caracteriza o modo de produção e de reprodução capitalista, da ordem de uma mistificação – resultando mais em conformismo do que propriamente em universalização. Nesse ponto, suas observações sobre a indústria cultural recuperam um aspecto de sua elaboração originária, na sua relação com a dialética mesma da racionalidade iluminista: pensada como fator de autonomização espiritual, ela redunda na assimilação das massas à forma predominante da produção material, aquela do capital.

Pretendendo ser o guia dos perplexos, e apresentando-lhes de maneira enganadora os conflitos que eles devem confundir com os seus, a indústria cultural só na aparência os resolve, pois não lhes seria possível resolvê-los nas suas próprias vidas. Nos produtos dessa indústria, os homens só enfrentam dificuldades a fim de poderem safar-se ilesos – na maior parte dos casos, com a ajuda dos agentes da coletividade benévola, para aderir, numa vã harmonia, a essa generalidade que eles já deveriam ter reconhecido como incompatível com seus próprios interesses (Adorno, 1986, p. 98).

 

Levando-se em conta que tais aspectos sombrios de representação frankfurtiana da modernidade social e cultural já sejam tão conhecidos, meu principal interesse recai sobre a peculiar dialética entre esse sentido filosófico da modernidade (como primado da racionalidade instrumental, projetando dominação sobre as forças naturais) e os elementos regressivos da implementação da modernidade cultural – em que a racionalidade instrumental domestica a “negatividade” própria às obras de arte, naquilo que respeita suas relações com a normatividade social. Nesse sentido, a característica central da condenação lançada sobre quaisquer ambições estéticas dos produtos da indústria cultural é o questionamento radical que Adorno faz sobre a prevalência da tecnologia como um sintoma da racionalidade moderna.

O conceito da técnica na indústria cultural só tem em comum o nome com aquele válido para as obras de arte. Este diz respeito à organização imanente da coisa, à sua lógica interna. A técnica da indústria cultural, por seu turno, na medida em que diz respeito mais à distribuição e reprodução mecânica, permanece ao mesmo tempo externa ao seu objeto. A indústria cultural tem seu suporte ideológico no fato de que ela se exime cuidadosamente de tirar todas as consequências de suas técnicas em seus produtos. Ela vive, em certo sentido, como parasita sobre a técnica extra-artística da produção de bens materiais, sem se preocupar com a determinação que a objetividade dessas técnicas implica para a forma intra-artística, mas também sem respeitar a lei formal da autonomia estética (Adorno, 1986, p. 95).

 

2 A crítica estética como demarcação pela modernidade artística, em Walter Benjamin

Em contraste com tais perspectivas, a reflexão de Walter Benjamin, fonte alternativa das abordagens estéticas nas teorias da comunicação, recoloca a questão da técnica e da reprodutibilidade que ela potencializa, em perspectiva histórica (“mesmo por princípio a obra de arte sempre foi suscetível de reprodução”), na precisa medida na qual sua configuração moderna altera radicalmente não apenas os modos de produção característicos do universo da arte, mas também os sistemas de valor sob os quais seu julgamento transformou as obras em “objetos de culto”.

É nesse ponto que Benjamin introduz a questão da “crise da aura”, como manifestação da unidade fenomênica da obra – supostamente infensa à reprodução, ao menos na perspectiva pela qual as tradições artísticas a consagraram: com a consolidação cultural do cinema e da fotografia (enquanto curiosidades científicas, meios técnicos da reprodutibilidade e regimes da expressão artística do século passado), Benjamin nos lança a um universo da produção artística que não mais se refere à reprodutibilidade, senão como o próprio fundamento de um modo de produção, com resultantes sobre a experiência cultural de nossos dias.

Para estudar a obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, é necessário levar em conta esse conjunto de relações. Ele faz surgir um fato verdadeiramente decisivo e que vemos aparecer pela primeira vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte da existência parasitária que lhe era imposta por sua função ritual. Reproduz-se cada vez mais obras de arte que foram feitas justamente para ser reproduzidas. De uma negativa em fotografia, por exemplo, pode-se tirar um grande número de copias; seria absurdo perguntar qual delas é autêntica (Benjamin, 1982, p. 217).

 

Em primeiro lugar, o aspecto singular da reprodutibilidade que interessa a Benjamin é aquele que caracteriza as formas culturais do cinema e da fotografia: nelas se exprime, talvez pela primeira vez na história da cultura (tomada em sua totalidade, pois, em segmentos da tradição artística, esse fenômeno se verificava em certas técnicas, como as da escultura em cobre), a mais radical separação entre o sentido da unicidade que estrutura as modalidades de apresentação das obras que se podem reproduzir (como cópias ou falsificações) e aquelas que resultam da reprodução como marca de origem das mesmas. Assim, o cinema e a fotografia se constituem como exemplos de uma reprodutibilidade que é o próprio modo de produção da arte, na modernidade dos últimos dois séculos.[6]

O aspecto importante desse fenômeno é aquele que conjuga as posições de Adorno e Benjamin em uma aparente – e, sob certos aspectos, surpreendente – confluência: da mesma maneira que seu colega frankfurtiano, Benjamin indica o aspecto no qual as técnicas de reprodução no campo da arte afetam o tipo de relação que as obras retinham com a tradição, justamente em função de sua manifestação enquanto unidade fenomênica de aparição. Este é, por exemplo, o famoso tema da “crise da aura”, através da qual Benjamin diagnostica os efeitos da ampliação da presença das formas reprodutíveis no tecido cultural da contemporaneidade – o que é interpretado por muitos como uma espécie de condenação da modernidade cultural.

Poder-se-ia condensar todos esses desaparecimentos recorrendo-se à noção de aura e afirmar: na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na obra de arte é sua aura. Esse processo tem valor de sintoma; sua significação ultrapassa o domínio da arte. Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto produzido do domínio da tradição (Benjamin, 1982, p. 213).

 

Pois é precisamente nesse ponto que emergem as observações de Benjamin sobre o quanto tal centralidade das tecnologias de transmissão cultural se vincularia a um horizonte estético de sua motivação: há uma famosa passagem de seu ensaio clássico, no qual essas questões são expressamente articuladas, como uma postulação estética dos fenômenos associados à modernidade cultural – precisamente aquela que orienta a discursividade predominante das aproximações estéticas nas teorias da comunicação.

Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de sentir e perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana assume – o meio em que ela se realiza – não depende da natureza, mas também da história. Na época das grandes invasões, nos artistas do Baixo Império, nos autores da Gênese de Viena, não se encontrava apenas uma arte diversa da dos antigos, mas também uma nova forma de perceber (Benjamin, 1982, p. 214).

 

De minha parte, tais considerações benjaminianas ainda guardam pouca correlação com os alegados “modos de sentir e perceber” aos quais ele se reporta, na terceira parte de seu famoso ensaio – estando mais concernidos com a emergência dessas técnicas e os “modos de fazer” que caracterizam a produção no campo das artes. Quando se encaminha para o fim de sua argumentação é que o vemos elaborar questões sobre o tipo de atitude própria ao espectador do cinema, relativamente àquele da arte moderna – quando constata que “[...] muito reacionária diante, por exemplo, de um Picasso, a massa torna-se progressista diante, por exemplo, de um Chaplin” (Benjamin, 1982, p. 230).

Em tal contexto, Benjamin identifica o descompromisso entre fruição e crítica como traço característico da experiência do cinema: e, de fato, algumas dessas observações nos fazem pensar sobre a escuta da música massiva, em Adorno, ambas tipificadas sob o traço da “distração”, convertida em regime estético. De toda maneira, vemos que os novos regimes perceptivos da arte, associados aos comportamentos do público do filme, resultam da configuração material que define as obras dentro desse formato cultural: trata-se, por exemplo, do fato de que a câmera e os recursos de montagem, no cinema, permitem uma equiparação entre elementos humanos e não humanos que povoam as imagens. O deslocamento da argumentação benjaminiana faz com que a questão da sensibilidade própria ao filme apareça como uma consequência dos “modos de fazer” próprios à dominância moderna das técnicas de reprodução no campo da arte.

Ampliando o mundo dos objetos que passamos a levar em consideração, tanto na ordem visual quanto na ordem auditiva, o cinema trouxe, consequentemente, um aprofundamento da percepção. Que suas realizações possam ser analisadas de modo muito mais exato e num número de perspectivas bem maior do que o oferecido pela pintura é algo que assinala apenas a outra face da situação. Com relação à pintura, a superioridade do cinema reside em permitir analisar melhor o conteúdo dos filmes e assim fornecer um inventário incomparavelmente mais preciso da realidade (Benjamin, 1982, p. 232).

 

Em boa medida, a reivindicação benjaminiana sobre o que há de esteticamente adventício no cinema e na fotografia é menos relativa a tais regimes da sensibilidade (históricos ou não) e muito mais implicada pelos efeitos disruptivos da reprodutibilidade sobre os preceitos críticos da experiência cultural da tradição artística: em suma, a influência do ensaio de Benjamin sobre a reprodutibilidade é proporcional a uma certa esperança “moderna” de reconhecimento do advento da técnica – com sua correspondente cota de liquidação da unicidade, da aura e das funções ritualísticas da experiência das obras de arte.

No que respeita o repto adorniano à indústria cultural, pode-se dizer que as posições características das polaridades críticas de Frankfurt exprimem uma curiosa comunidade, a saber: a de uma identificação da modernidade artística como matriz para estipular um certo desiderato da experiência estética – e, mui especialmente, o lugar de uma filosofia crítica da arte para a definição mesma desse destino. Na verdade, tanto Adorno quanto Benjamin identificam em determinadas balizas dessa mesma cultura artística as instâncias reveladoras do tipo de enlace que conjuga diferentes segmentos dessa produção – na medida em que ambos se reportam a figuras modelares, como Franz Kafka, Marcel Proust, Charles Baudelaire e, por que não dizer, também Charles Chaplin.

Em suma, ao se reconhecer o papel de uma pedagogia das abordagens estéticas sobre fenômenos, processos e produtos do campo da comunicação, como decorrências de uma certa transmissão das ideias frankfurtianas, é necessário identificar também uma ideação da experiência estética implicada por essas relações: naquilo que conjuga as visões de Adorno e Benjamin, esse espaço comum é delimitado pela modernidade artística – não obstante as diferenças de sua qualificação entre os dois autores; no plano específico da formulação adorniana, essa definição de um núcleo estético da modernidade se exprime através de uma forte demarcação entre tradições artísticas, resultando na identificação do fenômeno comunicacional adjacente à experiência das obras de arte – e o fato de que tal comunicação delimita o que é próprio à lógica instrumental, a qual captura as obras da indústria cultural, de um lado, e aquelas que exprimem uma radical negatividade, com respeito à ordem social vigente enquanto obras de arte, de outro.

Em Adorno, tal ethos modernista da experiência estética é particularmente expresso, ao modo mesmo de um programa crítico, em sua Teoria Estética: nesse contexto de argumentação, ele demarca os espaços entre a produção artística governada por preceitos da indústria cultural (ou mesmo aqueles que exprimem um sentido de plena continuidade entre a arte e uma ordem social prevalente) e os casos mais próprios da modernidade artística, nos quais se exprime um ideal estético de “negatividade”. Para o presente, avaliarei a prevalência da lógica cultural do capitalismo como sendo a única a ser debitada dos processos de “desartificação da arte”, mencionada por Adorno – e, ao menos para certos comentadores, postulada na linha de continuidade com teses hegelianas sobre o “fim da arte”: para além do fato de que essas teses impliquem polaridades críticas sobre os enlaces da estética com a produção cultural, na época dos meios de comunicação[7], o aspecto mais saliente das mesmas diz respeito a uma determinada repulsa sobre as modalidades da interação entre arte e sensibilidade, sendo a crítica adorniana à catarse sua face mais visível – menos pelos aspectos psicagógicos que informam a programação poética das emoções, e mais naqueles que concernem ao fator pedagógico dos afetos próprios ao trágico para uma educação civil.

A purificação das emoções na Poética de Aristóteles já não professa interesses tão nítidos pela dominação, mas, no entanto, ainda os conserva, na medida em que o seu ideal de sublimação encarrega a arte de instaurar a aparência estética como satisfação de substituição, em vez de uma satisfação física dos instintos e das necessidades do público visado: a catarse é uma ação purgativa das emoções que se harmoniza com a repressão. A catarse aristotélica é arcaica enquanto parcela da mitologia da arte, inadequada aos efeitos reais. Eis porque, mediante a espiritualização, as obras de arte realizaram em si o que os gregos projetavam no seu efeito exterior: no processo entre a lei formal e o conteúdo material, elas são a sua própria catarse (Adorno, 1993, p. 267).

 

O aspecto crítico da atitude estética implicada nos reparos de Adorno a essa programação emocional, nas obras da tradição, alcança também os tipos de resposta sensível às obras da indústria cultural – os “filmes de papai” a que se reporta, em um de seus mais famosos ensaios sobre o cinema moderno alemão. Neles, reflete-se um preceito do gosto modernista que se alinha com certas passagens de Benjamin, quando caracteriza as atitudes próprias a uma massa de consumidores destinados pelos produtos das técnicas de reprodução: é nesse contexto que se pondera o otimismo benjaminiano face às potencialidades perceptuais do cinema, sobretudo no contexto da produção de uma experiência de distanciamento dramático, não raras vezes identificada com os modelos poéticos do cinema soviético ou do drama épico de Brecht – ou, no caso do clássico ensaio sobre a reprodutibilidade, com os alinhamentos entre o dadaísmo e a arte do filme:

Seu objetivo era, sobretudo, chocar a opinião pública. De espetáculo atraente para a vista ou de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, com o dadaísmo, tornou-se choque. Projeta-se contra o espectador ou ouvinte. E favorece assim o gosto pelo cinema, que também possui a característica da diversão, graças aos choques provocados no espectador pelas mudanças de lugar e de cenário (Benjamin, 1982, p. 235).

 

Decorrem dessas observações dois pontos que explorarei adiante: primeiramente, o do escândalo com o qual esse sistema do gosto crítico qualifica fenômenos como o da emoção – aspecto que não passa despercebido de certas correntes do pensamento estético situadas nos estudos literários contemporâneos; em segundo lugar, na decorrência desse potencial estético da catarse, pode-se avaliar – agora à luz da forma como o pensamento de Frankfurt plasmou as matrizes estéticas da crítica aos meios de comunicação – até que ponto os enlaces entre comunicação e experiência estética não deveriam contemplar o apelo afetivo próprio às obras, para além da caracterização de seus modos de produção, no quadro de uma lógica instrumental própria ao capitalismo. Em minha proposição, isso significa pensar as distâncias – não apenas geográficas, mas conceituais – entre os modelos que norteiam a crítica estética de Frankfurt e aqueles oriundos da “estética da recepção” e da teoria do “efeito estético” na Escola de Konstanz.

 

3 A recepção como problema de comunicação: indeterminabilidade e efeito estético, em Wolfgang Iser

Pois bem, um primeiro traço dessa outra inflexão sobre a experiência estética advém do lugar atribuído à recepção, no pensamento de autores como Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss[8]: constituída à sombra do projeto de conferências Poetik und Hermeneutik, na Universidade de Konstanz, entre 1964 e 1994, esses autores firmaram uma perspectiva de abordagem de questões da análise e da crítica literárias – aí incluindo uma intensa polêmica com respeito a tradições e matrizes estéticas dominantes nesses campos, com consequências para a avaliação dos enlaces entre experiência estética e os produtos da modernidade cultural. No contraste com aquilo que demarca um cânone estético da primeira geração de frankfurtianos, o que se destaca aqui é a importância atribuída aos aspectos interacionais que governam a relação entre formas expressivas e seus horizontes de compreensão e significação – de alguma maneira, alinhadas às tradições filosóficas da hermenêutica e da fenomenologia.

Proponho examinar as inflexões que as teorias de Konstanz realizam, quanto às relações entre obras de arte (em especial, a literária) e os regimes de sua leitura, particularmente aqueles atinentes a uma teoria estética: no caso de Iser, isso se postula a partir de uma concepção sobre “estruturas de apelo” do texto literário – tomadas como vetores de uma experiência estética própria à sua leitura e orientadas sobre a noção de uma potencial “indeterminabilidade” de certos aspectos de sua significação. Esse fenômeno se corporifica nos “vazios” que constituem a composição do texto literário, contaminando parcialmente sua estrutura semântica (por exemplo, a motivação dos personagens) e, principalmente, a sintaxe do texto narrativo (na suspensão temporária de resoluções episódicas, visando ao efeito estético do suspense), pelo modo como a multiplicidade das “vistas esquemáticas” liberadas pela estrutura narrativa da ficção apresentam seus objetos de maneira constitutivamente “incompleta”.

No que concerne a tais “vistas”, esse termo indica a influência que Iser recebe das ideias do filósofo húngaro Roman Ingarden, discípulo de Edmund Husserl e autor do clássico A Obra de Arte Literária (Ingarden, 1973), na qual ele descreve essas estruturas narrativas da ficção, em sua particular forma de empregar sistemas de expectativa da leitura (constituídas em um “mundo das ações”, próprio à vida cotidiana), valendo-se dos mesmos para apresentar situações ficcionais sob um determinado estado de “indeterminabilidade”.

Em outras palavras, entre as ‘vistas esquemáticas’, há uma terra de ninguém de indeterminabilidade, a qual resulta precisamente da determinabilidade da sequência de cada vista individual. Vazios são destinados a abrir-se, oferecendo um jogo livre de interpretação para o modo específico no qual as várias vistas podem ser conectadas entre si. Tais vazios conferem ao leitor uma chance de construir suas próprias pontes, relacionando os diferentes aspectos do objeto que haviam até então sido revelados a ele (Iser, 1972, p. 11).

 

Não se deve desconsiderar, ainda por cima, que a perspectiva de Iser é mais dirigida a um tipo preciso de “experiência estética”, a qual é aquela dos textos literários ou ficcionais: nesse caso, os adversários de sua tese são, ao menos em primeira instância, as ideias vigentes do estruturalismo linguístico e semiológico, contemporâneas àquelas do grupo de Konstanz, assim como repercutidas em ramos das ciências sociais do mesmo período; em tais termos, evidentemente, o caráter constitutivamente “relacional” ou “interacional” da experiência da fruição literária assume uma feição distinta em Iser – ao menos no modo como ele a enuncia, logo ao início de um de seus primeiros textos mais conhecidos sobre essas questões:

Se textos possuíssem realmente apenas os significados trazidos à luz pela interpretação, então haveria muito pouco mais para o leitor. Ele poderia apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo, ou deixá-lo para lá. A questão fundamental é, portanto, o que realmente se passa entre o texto e o leitor? É possível olhar para dentro desta relação absolutamente, ou estaria o crítico apenas mergulhando em um mundo provado no qual apenas ele pode fazer conjecturas e especulações vagas? Seria alguém capaz de exprimir algo que seja sobre estas altamente heterogêneas reações que ocorrem entre texto e leitor? Ao mesmo tempo, deve-se indicar que um texto apenas ganha vida quando é lido, e se ele deve ser examinado, deve ser assim estudado através dos olhos do leitor [...]. Em que consiste, então, o processo da leitura? (Iser, 1972, p. 2-3).

 

Segundo Iser, essas questões estão particularmente associadas a uma característica distinta dos textos literários ou ficcionais – a saber, o fato de que se constituem a partir de uma espécie de autonomia do nível “pragmático” de sua estrutura textual e de seu “modo de endereçamento”: tomando de empréstimo a terminologia da filosofia da linguagem de J. L. Austin, Iser identifica os textos ficcionais ou literários como guiados por um ethos mais “performativo” do que “constatativo” – significando, com isso, que o sentido de realidade que são capazes de instilar não depende dos poderes previamente referenciais ou semânticos da linguagem, mas de uma dimensão mais associada aos regimes “ilocucionários” de sua manifestação (aqueles associados aos proferimentos da promessa, da aposta e do desejo)[9].

Para além da referência à pragmática linguística, Iser evoca sobretudo as ideias do historiador da arte E. H. Gombrich, sobre a psicologia da representação pictórica, em seu clássico Arte e Ilusão (Gombrich, 1960):

Um texto literário nem representa nem cria objetos do modo que nós os descrevemos; na melhor das hipóteses, podemos dizer que eles são a descrição de nossas reações a objetos. “Toda arte se origina”, E. H. Gombrich observou certa feita, ‘em nossas reações ao mundo, mais do que no mundo visual em si mesmo’. É por isto que reconhecemos na literatura tantos elementos que cumprem um papel em nossa própria experiência. Eles são simplesmente postos juntos em uma forma diferente – em outras palavras, eles constituem um mundo familiar reproduzido em uma forma não-familiar (Iser, 1972, p. 7-8).

 

Um luminoso exemplo histórico de uma experiência literária constituída sobre a sedimentação de tais “técnicas da indeterminabilidade” é o caso do romance oitocentista, na França e na Inglaterra: a unidade das formas literárias, consagradas sob a forma do livro (como no caso de Charles Dickens), se ofereciam primeiramente em uma organização serializada – não muito distinta daquela que tipifica a estrutura episódica da ficção televisiva contemporânea; dessa estrutura resulta uma experiência de leitura pautada pela indeterminabilidade periódica de situações momentaneamente decisivas – que se transmite à recepção como um registro passional, o qual Iser qualifica como seu efeito estético mais próprio. Ao transpor a eficácia desse procedimento poético na literatura de massa contemporânea, Iser atribui essa permanência aos fatores estéticos da recepção desse modo de organização textual, mais do que a quaisquer determinações específicas da produção material na lógica do capitalismo, por exemplo.

De um ponto de vista estético, portanto, é o vínculo entre os aspectos de estruturação textual e os “horizontes de expectativas” da recepção que configuram os regimes de leitura sobre os quais vigora um dado modelo dessa estruturação textual, pautada pela indeterminabilidade: o que interessa aqui é o conjunto de técnicas de montagem e recorte que consagram a forma romanesca, algo que levará Iser a uma busca daquelas marcas pelas quais o texto endereça ou instrui um modo de leitura – e que, ainda assim, apenas se efetivará pelo empenho do leitor em experimentar essas suspensões eventuais, enquanto sinais para o investimento de suas próprias capacidades de apreensão (o repertório de ações que ele carrega previamente), concretizando-as finalmente através de “atos de leitura” (Iser, 1978).

No plano das técnicas literárias e narrativas para a construção desse efeito, Iser não se exime de discriminá-las, em um estado quase estrutural: elas compreendem tanto os modos de administrar os regimes de andamento temporal dos acontecimentos quanto a fixação dos valores associados aos personagens eventualmente introduzidos na trama narrada; em ambos os casos, opera um regime igualmente sistemático de supressão de informações e adiamento de resoluções, que conduz a graus de indeterminabilidade que a leitura não qualifica enquanto defeitos, mas precisamente valorizados no aspecto do quadro receptivo que as qualifica esteticamente.

A novela serializada, assim, resulta em um tipo especial de leitura. As interrupções são mais deliberadas e calculadas do que aquelas ocasionadas por razões acidentais para o leitor de um livro. O leitor é forçado pelas pausas impostas a imaginar mais do que ele o faria se sua leitura fosse contínua e, assim, se o texto de uma novela serializada faz uma impressão diferente daquela do texto em forma de livro, isto se deve principalmente pela introdução de vazios adicionais, ou alternativamente, por acentuar vazios existentes por meio de uma quebra até o próximo episódio (Iser, 1972, p. 17).

Nessa vista esquemática das ideias de Iser, vislumbram-se, ainda que parcialmente, as linhas de demarcação de uma determinada concepção de experiência estética, a qual pressupõe um modelo comunicacional – sem identificá-lo com as lógicas e infraestruturas materiais da transmissão cultural, própria aos modernos meios de comunicação: em seu lugar se impõem “matrizes interacionais”, inicialmente identificadas com as estratégias de composição da ficção literária – mas que se deixam facilmente interpelar por produtos sediados em outras bases materiais, como no caso do cinema e da ficção seriada televisiva. Mas esses pontos ainda genéricos não permitem compreender o status estético dos afetos mobilizados por esse mesmo tipo de organização textual das formas expressivas – sendo este um fator que ainda ensejaria fazer resistência ao conceito de experiência estética proposto por Iser: por essa razão, é necessário suplementar suas visões por aquelas que derivam da perspectiva pela qual Hans Robert Jauss aborda o problema, com especial ênfase sobre o tema da “catarse” e sua centralidade para uma teoria da experiência estética.

 

4 A reabilitação da catarse em Hans Robert Jauss: uma outra estética da comunicação?

Como sugerido anteriormente, o perfil comunicacional do sentimento catártico designa um ponto central para o pensamento de Jauss sobre a experiência estética: pois é assim mesmo que ele correlaciona a descarga emocional programada pelas operações poéticas de diferentes gêneros literários – na exata medida em que a dimensão comunicacional desses efeitos esteja menos constrita pelos sistemas simbólicos da literatura (nas regras de composição próprias a cada gênero ou modo poéticos) e mais conectada aos quadros interacionais da experiência literária: no caso de Jauss, os atos de apreensão de obras implicam, na base de sua própria eficácia, certas experiências fundamentais de nossa relação com a ficção literária – em especial aquela que se manifesta em quadros passionais da recepção, particularmente significados pela intensificação emocional das situações narrativas (por exemplo, nos gêneros populares do suspense e mistério, particularmente associados à literatura policial).

No que me concerne, entretanto, o problema da dimensão comunicacional da experiência estética afeta precisamente o aspecto que deu partida aos modos nos quais sua interrogação implicou os dispositivos mediáticos e seu papel central cada vez mais forte, na cultura da modernidade tardia: Jauss trata dessas questões, a partir do mesmo diagnóstico que originou todo esse percurso sobre as teorias da comunicação, ou seja, como uma oscilação em torno da valoração dos graus de autenticidade dessa experiência, no quadro da cultura mediatizada tecnologicamente. O que Jauss sugere, nesse aspecto, é que o caráter comunicacional da experiência estética não pode ser definido no quadro de uma decisão determinada, em torno da questão sobre se os modernos meios de comunicação promovem ou liquidam o estético.

Nas diferentes avaliações desta oposição é que as estéticas modernas [...] de W. Benjamin e T. W. Adorno divergem mais nitidamente. Como o golfo entre a arte de massa e a vanguarda esotérica poderiam ser conjugadas novamente tem sido um problema central da teoria estética desde então. Em vista desta mais recente crise da aisthésis, na qual toda arte é ameaçada cair vítima da ideologia ou sobreviver apenas como um lugar de refúgio para alguns ‘poucos felizes’, a estética tem principalmente desenvolvido teorias que resultam em utopias de uma arte futura ou aquelas que recomendam um voltar-se para a experiência solitária da aura da arte (Jauss, 1982, p. 63).

 

No contexto em que a produção das emoções associadas à imitação das ações assume um lugar mais central, é possível identificar o núcleo mais próprio à comunicabilidade que faz se conectarem a experiência estética e os elementos propriamente estruturais da obra – como aqueles destinados ao nível de sua receptividade afetiva: em Jauss, esse aspecto da experiência estética – pelo qual o caráter de padecimento se define como aspecto mais ativo da faculdade receptiva – é precisamente aquele pelo qual a dimensão estética das obras começará um lento processo de abstração com respeito a suas determinações de caráter poético ou artístico, para finalmente enraizar-se na ideia de um sentido previamente originário da sensibilidade, no que respeita tanto a seus fundamentos sócio-históricos quanto aos fenomenológicos.

Para o nosso questionamento, é importante que a história da recepção da doutrina antiga sobre o prazer catártico tenha quase tão-só se preocupado com o seu lado psicagógico, negligenciando seu lado comunicativo, que, por isso, deve ser indagado na tradição retórica (Jauss, 2002, p. 89).

 

Em meu modo de ver, a questão está precisamente em não se aceitar esse limite instransponível entre os regimes estéticos da recepção e seus aspectos potencialmente comunicacionais: no que concerne a tal relação da estética com a comunicação, sua instância privilegiada de exame se situa nos regimes de compreensão da arte e da natureza – nos quais a comunicabilidade pode ser experimentada particularmente em sua dimensão de prazer da interação. Em Jauss, tal chave de compreensão nos leva para o domínio negligenciado da “catarse”: os sentimentos trágicos de terror e compaixão são elementos tão determinantes do valor sistemático do pôr-em-intriga que fascina as teorias poéticas quanto o é a questão da mimesis, na maneira como Aristóteles definira a finalidade mesma de toda poiésis.

No seu uso atual, o prazer perdeu muito de seu sentido elevado. Outrora, o prazer justificava, como um modo de domínio do mundo e de autoconhecimento e, a seguir, como conceito de filosofia da história e da psicanálise, as relações com a arte. Hoje, para muitos a experiência estética só é vista como genuína quando se priva de todo prazer e se eleva ao nível da reflexão estética. A crítica mais aguda a toda experiência de prazer na arte encontra-se, outra vez, em Adorno [...]. Em suma, o prazer da arte não passa de uma reação burguesa à espiritualização da arte, sendo desta forma o pressuposto para a indústria cultural da atualidade, que, no circuito fechado das necessidades dirigidas e do ersatz estético, serve aos interesses camuflados do poder (Jauss, 2002, p. 92).

 

Por outro lado, como foi na retórica que essa inclinação pragmática se definiu como critério do êxito nessa ordem da prática discursiva, tais questões foram assumidas como estranhas a uma consideração da experiência estética, segundo Jauss. Particularmente notável, naquele sentido do prazer estético que evocam Aristóteles e Agostinho (ao exprimirem, pelos pares conceituais aisthésis/kathársis e voluptas/curiositas), é a conjunção entre a ordem dos efeitos poéticos, da sensibilidade estética e da descarga passional que resulta dessa experiência: nesse âmbito, a catarse e a curiosidade são mais bem definidas como aspectos ou faculdades da experiência estética, nos quais podemos identificar mais claramente o caráter pragmaticamente orientado de nossa receptividade.

Em sua luta secular contra a filosofia e a teologia, a retórica foi sempre acusada de certa ambivalência de seus meios estéticos. Ainda no recente debate entre a hermenêutica e a crítica da ideologia reencontra-se a dupla face da persuasão e da indução, sob os títulos atuais de consenso e manipulação. Para o nosso questionamento, é importante que a história da recepção da doutrina antiga sobre o prazer catártico tenha quase tão-só se preocupado com o seu lado psicagógico, negligenciando seu lado comunicativo, que, por isso, deve ser indagado na tradição retórica (Jauss, 2002, p. 89).

 

É nessa junção entre a sensibilidade e seus potenciais comunicacionais que se exprime igualmente um sinal das prescrições pelas quais se identificam, em cada um dos gêneros dramáticos, seus respectivos programas de produção do efeito – em termos, o sentimento catártico próprio a cada um deles. Com o auxílio de Jauss, podemos vislumbrar esse longo processo através do qual a modernidade estética propiciou uma completa remoção de qualquer vestígio do prazer como núcleo da experiência, especialmente em Adorno: juntamente com essa rejeição da catarse, essa unidade comunicacional da sensibilidade e da ação foi sendo subtraída de qualquer consideração, no que respeita à dimensão estética e constitutivamente ativa da recepção.

 

Conclusão

De minha parte, procurei me deter especialmente na consideração sobre o caráter potencialmente intersubjetivo das descargas catárticas, como eixo a partir do qual podemos examinar a experiência estética em sua condição de atividade sensível: na letra de Jauss, mais do que na aisthésis ou na poiésis, é na intensificação passional própria da katharsis que se vislumbra essa dimensão da sensorialidade e dos afetos, redundando em atividade da receptividade - pois é na experiência catártica que a paixão se performa mais nitidamente, realizando-se numa significação encarnada de sensibilidade; é nessa ordem da experiência estética que posso afirmar, por outro lado, que essa sensibilidade se traduz em compreensibilidade, para além do patamar de uma estrita subjetividade, sendo sobre seu fundamento que podemos falar de uma necessária comunicabilidade das paixões.

Se conjugamos as ideias de Jauss sobre os potenciais comunicacionais do sentimento catarse com aquelas de autores como Herman Parret, igualmente situado contra os enclaves de um fundamento ético da racionalidade comunicativa, na última geração de frankfurtianos (com Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas), o problema de uma estética da comunicação nos situa precisamente no desafio heurístico embutido em tal comunicabilidade das paixões – do mesmo modo como, ainda segundo Parret, o juízo de gosto se concebera em Kant, sob uma antinomia de dois termos, com sua matriz enraizada na dimensão subjetiva do ser afetado, mas também contemplando o horizonte da potencial comunicabilidade do gosto, em sua face judicativa e promissora de uma universalidade do sentimento estético. Este é um tema particularmente caro ao sentido que a crítica kantiana impõe, por exemplo, ao sensus communis:

É o sensus communis que será responsável pela universalidade do gosto enquanto resultado do livre jogo das faculdades, essencialmente o entendimento e a imaginação, e enquanto liberado de qualquer forma de condição “privada”, como a emoção ou qualquer tipo de motivação pessoal da parte daquele que julga com gosto (Parret, 1997, p. 194).

 

Para além disso, reitero nessa intensificação afetiva uma espécie de “força ilocucionária” da significação da experiência estética, seja no modo como a pensaram os filósofos da linguagem, seja em certas teorias da percepção – quando conectam os estados afetivos a um quadro de potencial motricidade que orienta a criatura viva, em sua interação com o ambiente: numa linhagem fenomenológica e vitalista que nos chega de Henri Bergson a Merleau-Ponty – e que atualmente é cifrada em termos de um cognitivismo que visita problemas filosóficos, como o da percepção e da consciência – é esse aspecto encarnado de nossos estados intencionais que serve de campo de provas sobre a necessária fuga a certos preceitos, tais como os de um fundamento privado ou radicalmente subjetivo desses mesmos estados.[10]

É, portanto, nesse quadro pragmático da partilha estética que Jauss identifica na catarse uma faculdade sensível que sobreviveria às circunstâncias históricas da poiésis e à subjetividade extremada da aisthésis. Ousamos propor sobre essas bases uma nova maneira de conjugar a experiência estética e os fenômenos da comunicação – sem alienar de nosso exame, com essa opção, o alcance crítico sobre as produções culturais que tipificam a contemporaneidade atravessada pelos modernos meios de transmissão cultural. Na resultante de todas essas questões, o contraste entre as perspectivas estéticas oriundas de Konstanz e de Frankfurt (ao menos aquelas que, encarnadas nos textos de Adorno e Benjamin, corporificaram uma pedagogia que orienta a reflexão estética no campo de estudos da comunicação), proponho aqui como inflexão mais saliente dessas reconsiderações sobre a experiência estética – e mui especialmente sobre os aspectos de “efeito” e de “catarse” que a delimitam como fenômeno – que a retomada de um conceito de experiência estética no campo de pesquisa da comunicação talvez nos exija uma pergunta mais fundamental, a saber: de qual comunicação estamos falando, ao reclamar sobre ela uma dimensão de carga estética?

 

From Frankfurt to Konstanz: from aesthesis as ascesis to the communicational pleasure of catharsis

 

Abstract: Through an examination of the aesthetic ideas of the Konstanz School (in particular, in the texts of Wolfgang Iser and Hans Robert Jauss), we intend to make an inflection on the usual links between communication and the aesthetic experience – in the way they were traditionally encoded , as aspects of a critique of extreme mediatization processes, in the late stages of capitalism, illustrated by the philosophical ideas of the Frankfurt School (especially in the writings of Theodor W. Adorno and Walter Benjamin). We set up as signs of this inflection the proposal for a rehabilitation of phenomena such as the “aesthetic effect” (in Iser) and “catharsis” (in Jauss), as elements that combine affective states of the aesthetic receptivity of works of art with their potential for communicability, proposing from there another type of connection for the appreciation of phenomena, processes and communicational products, in an aesthetic key.

 

Keywords: Communication. Aesthetic Experience. Catharsis. Frankfurt School. Konstanz School.

 

Referências

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Recebido: 16/08/2023 - Aceito: 27/10/2023 - Publicado: 13/02/2024



[1] Uma versão inicial deste texto foi apresentada na forma de conferência, na programação do evento “Escola de Frankfurt, 100 anos”, realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná, em agosto de 2023. Sou particularmente grato ao Prof. Maurício Liesen, organizador do evento, que me fez o gentil convite para essa palestra e ao qual dedico este texto, em sua forma final.

[2] Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro (UFFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8982-9231. E-mail: jbpicado@hotmail.com.

[3] No que concerne ao campo de estudos da comunicação, no Brasil, esse fenômeno se reflete numa determinada pedagogia das relações entre estética e universos mediáticos, cujas matrizes se consolidaram, ao menos em um modo mais nítido, a partir do final dos anos 60 do último século: é nesse período que se sedimenta uma organização de textos oriundos de fontes diversas (sociológicas, linguísticas, da ciência política, dos estudos literários e, eventualmente, da filosofia), nas quais esses enlaces entre tecnologias da transmissão cultural e sistemas de um juízo estético sobre as obras e fenômenos desse campo se constituíram como um verdadeiro a priori crítico do pensamento comunicacional no país (Cohn, 1969; Lima, 1982).

[4] Já abordei essas questões alhures, seja sob os arcanos dessa discursividade de suspeita sobre as sombras da razão Iluminista, indicadas por fontes tão díspares, quanto as de T. W. Adorno e M. Heidegger (Picado, 1993), quanto na sedimentação de uma sensibilidade crítica que articula infraestruturas técnicas da produção cultural e as modalidades históricas do sentir e do perceber, atravessando autores como W. Benjamin, M. McLuhan e E. Panofsky (Picado, 1994).

[5] Se nos afastarmos das referências sobre o papel dos autores frankfurtianos na consolidação de um cânone das pesquisas em Comunicação, deslocando-nos para as fontes filosóficas desses discursos sobre traços deletérios da experiência cultural da modernidade, a referência incontornável entre nós é a dos escritos de Rodrigo Duarte, especialmente centrados sobre o caso de Adorno (Duarte, 2010): nessa perspectiva, sobressaem os aspectos que conectam essa reflexão da teoria crítica de Frankfurt com outras linhagens do pensamento estético contemporâneo, como a das teorias midiológicas de Vilém Flusser ou a do “descredenciamento filosófico da arte”, em Arhur Danto (Duarte, 2007, 2011).

[6] É curioso observar como, mais de três décadas após esse texto, a questão da reprodutibilidade se cifra, em pensadores como Nelson Goodman, em Languages of Art, sob um signo bem menos escandaloso: ele dá menos atenção aos estágios históricos dos modos de produção artística, reconhecendo na reprodutibilidade um aspecto inescapável de certas formas de arte (Goodman, 1968). Ademais, especialmente no caso da fotografia, historiadores como Joel Snyder acusam deficiências importantes da conceituação benjaminiana sobre a reprodutibilidade, precisamente por desconsiderar o caráter necessariamente replicativo de modos de produção pré-fotográficos, no campo da arte (Snyder, 2016). Em explorações sobre a função da repetição, na arte dos quadrinhos, já abordamos a importância dessa outra concepção da reprodutibilidade, sob o signo funcional da “iteração” (Picado; Schneider, 2020).

[7] Nesse particular, há consideráveis diferenças que afetam primeiramente as relações entre as teses de Adorno e Benjamin – por exemplo, nas considerações que o último faz sobre o quanto certos discursos críticos da reprodutibilidade se assentam sobre uma concepção “teológica” da artisticidade. Mais importante, contudo, é o fato de que a “desartificação” encarna um fenômeno distinto daquele das teses sobre o “descredenciamento filosófico” da arte” (Danto, 2014) – na medida, inclusive, em que, para Danto, é o assentamento sobre teorias estéticas que constitui impedimento para certa crítica de arte acessar fenômenos como o da Pop Art (Danto, 2015). Tais implicações críticas entre estética e filosofia da arte se acentuam, no quadro ainda mais vasto da problematização que Gérard Genette faz sobre a distância entre os “modos de existência” das obras e a questão da “relação estética” que elas propiciam, em seu L’Oeuvre de l’Art (Genette, 2010).

[8] Para além desses dois autores, no que respeita ao trato das variantes estéticas da apreciação e da significação literárias, situo igualmente os nomes de Karlheinz Stierle e Harald Weinrich.

[9] A noção mesma de “atos de leitura”, a qual designa uma das obras mais conhecidas desse autor (Iser, 1978), é um forte indicativo de seus débitos com respeito a uma teoria dos “atos de fala”: a centralidade com a qual Iser atribui à leitura uma performatividade que estrutura as características de realização dos mundos discursivos da ficção é uma evidente decorrência do estatuto com o qual Austin e Searle atribuem ao “ilocucionário” uma mesma dimensão, quanto às práticas linguísticas.

[10] Na linha de uma fenomenologia informada por um certo pragmatismo, nas teorias da percepção, indico aqui as leituras de Alva Noë sobre os enlaces entre percepção e ação, no livro cujo título declina precisamente esses dois termos (Noë, 2006): a importância dessas perspectivas mais recentes nas teorias da percepção aponta na direção de aspectos de nossa sensibilidade que, adquirindo uma expressão sensório-motora (na forma de um enactement), resultam também, ao menos parcialmente, de contextos de reforço intersubjetivo de nossas capacidades sensoriais.