O ser e o nada: “A Temporalidade. Um guia de viagem

 

Alexandre de Oliveira Torres Carrasco[1]

 

Resumo: O presente artigo apresenta-se como um guia de leitura do capítulo "A Temporalidade", de O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre. Para levar a cabo a tarefa, porém, ele articula dois momentos complementares. O primeiro momento funciona como construção de um ângulo de ataque e de um modo de aproximação do texto sartriano em questão. Nele são dadas as condições preliminares de leitura e os elementos de legibilidade do problema, tornando possível que o leitor se instale, por assim dizer, no contexto propriamente sartriano da questão, oferecendo, assim, as condições para sua leitura, o que também passa pela maneira pela qual se desenvolve o tema, nas investigações prévias. A nosso juízo, são esses elementos que, ao dar eficiência analítica para a leitura do problema e para esclarecimento do tema, tornam o texto legível, prova que se faz no segundo momento do artigo.

 

Palavras chave: História da filosofia francesa. História da filosofia francesa contemporânea. Fenomenologia. Existencialismo. Sartre. O ser e o nada.

 

Introdução

O ser e o nada é um livro cuja recepção e, em sentido específico, leitura foram sempre marcadas por mediações muito próprias, não raras vezes extratextuais. Seja durante a guerra, na França ocupada, seja durante os “anos Sartre”, a complexidade do texto fez par com a complexidade de seu contexto e de sua recepção.

A primeira providência, portanto, é localizar o chão do texto e de seus problemas, uma diligência miúda e necessária.

Primeira providência e primeiro juízo, bastantes simples, com o seguinte adendo: só recentemente, em fins do século passado e começo do atual, é que leituras ricas, rigorosas e modestas, em suas pretensões não textuais, permitiram relevar as ondulações, as marcas, as desinências próprias do texto sartriano, que passavam despercebidas tanto diante da presença algo solar do autor, sombreando quase permanentemente seus textos, quanto pelo contexto em que ambos se inscreveram, paradoxalmente. Na história desses qüiproquós, o contexto muitas vezes mais desserviu a leitura do que a serviu, o que, à primeira vista, ou à primeira lida, pode parecer um contrassenso. Sobre essas leituras, que se vejam as seguintes, não as tomando exaustivamente: Coorebyter (2000), Cabestan (2004) e Flajoliet (2008).

Lembremos, para dar um fecho a estes primeiros parágrafos cheios de boas intenções, aliás, daqueles primeiros leitores, nos idos dos anos quarenta do século passado, nossos ancestrais. Eles foram os que puderam por pouco escapar do imbróglio, favorecidos, em parte, pelas circunstâncias de ler um texto novo de um autor moderadamente desconhecido. A lembrança desse intervalo de leitura, o olhar fresco que fazia par com a novidade impertinente da “ontologia fenomenológica” é o que possibilita que nos reencontremos com eles, nós, os últimos leitores. Os últimos leitores, nós mesmos, podemos refazer a aventura, replicando a fortuna dos primeiros, com algum esforço técnico e existencial: lendo um autor conhecido, com a pretensão interessada de o não tomar por conhecido demais. Só assim poderemos, talvez, o conhecer, lendo-o.

Desse modo, o último leitor pode entrar em comunidade silenciosa com aquele primeiro leitor mítico: reencontrar o encanto da primeira vez de cada coisa, anos vividos, textos lidos. É em boa medida o que pretendemos aqui, na leitura primeira que aqui propomos para o capítulo sobre “A temporalidade” de O ser e o nada. Logo, a modéstia, a leitura ao rés da linha, tanto é pré-requisito metodológico quanto ética de leitura. Eis o sentido desse guia.

            Tudo dito, ocorre que a modéstia da intenção não sublima ou esquiva a complexidade do texto e do problema, e, com isso, chegamos à real complexidade que nos interessa.

 

1 A temporalidade e seus pressupostos de leitura

A temporalidade, capítulo, tema e problema de O ser e o nada, pode ser entendida como o núcleo teórico da segunda parte do livro de 1943. Está exatamente no miolo – material e imaterial – da segunda parte do livro, entre as “estruturas imediatas do para-si” e a transcendência”. Faz a mediação entre a descrição dessas estruturas (1. A presença a si; A facticidade do para-si; 3. O para si e o ser do valor; 4. O para-si e o ser dos possíveis; 5 O eu [moi] e o circuito da ipseidade), com a própria temporalidade. As estruturas imediatas do para-si podem ser compreendidas, por sua vez, como elementos do tempo antes da temporalização, por assim dizer, elementos que operam sem que se os tome de modo temporal, em um nível de análise prévio e mais exterior, isto é, “fora” da ordem e do fluxo do tempo, logo, sem a unidade sintética e imediata que a só a temporalidade poderá fornecer.

Não sem razão, esse nível de análise Sartre chama e o apresenta justamente como “estruturas imediatas”, e a imediatidade aqui tem que ver com o modo de tomar analiticamente o material. Será no fim da mesma segunda seção, a “Transcendência”, capítulo III da segunda parte de O ser e o nada, que o outro do para-si poderá, então, ser descrito em termos ontofenomenológicos, já levando em conta o modo como o nada que define o para-si é da ordem do tempo e se temporaliza e temporiza a relação com outro, nos termos que se dão ao problema, a partir da reflexão, o momento final do capítulo sobre a temporalidade.

Do ponto de vista da exegese da temporalidade – capítulo e problema – a compreensão prévia, ainda que sumária, do primeiro capítulo da segunda parte, as estruturas imediatas, parece-nos central. Se as estruturas imediatas do para-si, tal como indicadas, representam um primeiro esboço do que virá a ser a estrutura temporal e seus momentos ek-estáticos, elas são, portanto, o primeiro trato crítico-fenomenológico (em sentido amplo) do problema e o repertório de seus materiais.

Reiteremos: há um aprofundamento do problema, do ponto de vista da exposição, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, mais cadenciado pela própria ordem da exposição do que função da natureza do próprio problema, vale notar. Assim, Sartre não atribui vulgarmente predicados ao para-si, à medida que o texto avança, na passagem do primeiro ao segundo capítulo dessa segunda parte; pelo contrário, é o avanço do texto que permite uma predicação mais complexa do problema. Sartre avança no problema, à medida que avança no texto, ascendendo em complexidade e detalhamento. Essa constatação do modo de composição de O ser e o nada dá uma diferença entre dois regimes de escrita: por agregação simples e por acúmulo crítico. O ser e o nada, operando no último regime, indica a natureza do adensamento que orienta sua composição: o sentido da investigação sartriana não é horizontal, mas vertical. Seria menos uma descrição geográfica, muito mais uma prospeção geológica.

Como as estruturas imediatas do para-si, a temporalidade se inscreve no centro vazio – nadificante – do para-si, modalizando-o sob uma unidade sintética que estava apenas pressuposta, quando da descrição das estruturas imediatas do para-si[2]. Traz consigo a verdade do famoso circuito, estrutura-chave para compreensão do para-si. Não são poucos os momentos em que Sartre indica o recobrimento descritivo e conceitual, digamos, dessas duas instâncias, fazendo algo como uma explicação pelas causas, quase à maneira espinosana, do circuito da ipseidade pela temporalidade, já no escopo do capítulo sobre a temporalidade. Será a temporalidade do para-si um tipo especial de unidade sintética, fundamento ontofenomenológico do nada constitutivo do para-si.

Pois bem, avançamos no seguinte sentido: pareceu-nos importante localizar preliminarmente o lugar do capítulo e do tema, na economia conceitual do livro. O material descritivo prévio à temporalidade está no capítulo anterior, o que parece segredo de polichinelo, todavia, de um modo não tão óbvio quanto pareceria, à primeira vista: as estruturas imediatas do para-si apresentam um conjunto de modos de ser do para-si, sempre lembrando que o ser do para-si é a sua não coincidência com seu próprio ser, cujo não fundamento de sua unidade, por assim dizer, sua unidade nadificante e nadificadora, só poderá ser fornecida pela temporalidade, mas não sem um ônus, que se diga. O ônus está tanto na unidade na forma de circuito, o que as estruturas imediatas antecipam, quanto na emergência subsidiária e necessária do psíquico como unidade reflexiva e degradada, no final do capítulo da temporalidade, unidade que se desdobra da temporalidade originária no nível ontofenomenológico de sua descrição.

Logo, a passagem de um capítulo ao outro não é mera soma, é um tipo específico de acúmulo, negativo e crítico: a leitura da temporalidade obriga a releitura das estruturas imediatas do para-si, por contraste. O que o capítulo da temporalidade põe retrospectivamente pode ser lido de maneira pressuposta, no capítulo acerca das estruturas imediatas do para-si. A paciência do leitor faz par com a pedagogia do conceito. Completemos essas preliminares com outros dois elementos necessários de leitura.

Em livro importante, Alain Flajoliet (2008) propõe, não exatamente nesses termos, um elemento subsidiário de leitura do que ele chama, reforçado pelo título do livro, de “a primeira filosofia de Sartre”. Esse elemento é uma espécie de pressuposto genético para uma leitura estrutural, em sentido amplo, da produção sartriana prévia e preparatória ao livro de 1943. Esse elemento paratextual, diligentemente elaborado pelo autor, tem a ver mais com a questão sobre “o que” faz Sartre ler do que com a questão (em certo sentido, mais textual e prosaica) sobre “como” Sartre leu aquilo que elegeu como leitura. A primeira filosofia sartriana, para fins de esclarecimento, é que vai da formação de Sartre até às vésperas do livro de 1943, O ser e o nada, englobando tudo o que se pode imaginar. Evidentemente, não é o caso de recuperar os detalhes dessa reconstrução rigorosa, por óbvio, do livro de Flajoliet, mas tão somente dar relevo a esse elemento de leitura que fica à margem – à margem do texto, como marginália e anotação –, decantado pela leitura desse conjunto, pois é aquilo que muitas vezes lemos junto, sem lermos exatamente no e com o texto, com o que Flajoliet faz, a seu modo, uma espécie de biografia existencial do pensamento sartriano. Obviamente, sendo nosso propósito menor e mais restrito, faremos um uso mais instrumental e circunscrito desse expediente.

Diz-nosSalienta Flajoliet (2008, p. 17):

Propomos chamar “atratores de campo” as experiências metafísicas que se impõem, que se evocam no seio do campo onto-fenomenológico: 1. o hipotético evento do surgimento do para-si pela interrupção de um projeto de auto-fundação do em-si; 2. a hipotética retomada, pelo para-si, do projeto inicial que se interrompeu, sob a forma do projeto do para-si de ser em-si-para-si – o fracasso desse segundo projeto constituindo a própria ipseidade mundana.[3]

 

Esse elemento à margem, elemento “genético” do percurso sartriano e da leitura que lhe cabe, Flajoliet chama, em tradução literal nossa, de “atrator de campo”. Poderíamos traduzir de modo algo impreciso como o “centro de gravidade [do texto] que permanece fora do texto”, o qual realiza o que só a gravidade faz, no mundo dos objetos da física: uma atração à distância, quando não uma deformação à distância. Assim, a imprecisão literal de nossa versão pode ser atenuada pelo efeito de precisão que a extravagância de tradução produz, para fins de compreensão: há um elemento metafísico, materialmente falando, que pouco a pouco Flajoliet deslinda e explicita, algo em torno do tema recorrente da brutalidade maciça das coisas, aquilo que Sartre denomina gratuidade do em-si de quem o para-si é tributário, como tentativa vã de encontrar o próprio fundamento, e cujo efeito é a contingência radical do para-si em relação à densidade monolítica do em-si, um romance da matéria.

Por exemplo, tomando uma tópica sartriana já clássica, a descrição da raiz selvagem do castanheiro, em A náusea, que desafia Roquentin e o mundo humano, a partir da sua gratuidade radical, contaminando os parcos e enfadonhos esforços de sentido daquele historiador bissexto de província. O pressuposto metafísico do que virá a ser a impossibilidade de realizar a coincidência metafísica do em-si em relação ao para-si polariza, desde muito cedo, as leituras e os problemas que Sartre elege como os seus, e essa impossibilidade metafísica de recobrimento e identidade do para-si em relação ao em-si (e suas variantes) figura todo espasmo somático do para-si, na forma de náusea, elemento que cadencia o romance sartriano. Mesmo “fora” da textualidade estrita do texto sartriano, o tema permanece a tensionar metafisicamente, agora do ponto de vista formal, o próprio do texto sartriano e seus problemas como uma espécie de tese sartriana “não escrita", mas passível de ser lida.

Eis a tese de Flajoliet, e a tomamos de empréstimo, para um uso mais restrito e modesto. Aqui, há que se notar o quanto a inflexão de leitura que Flajoliet constrói, de modo muito erudito, e que rende analiticamente muito, nos dá o contorno do problema do tempo, que é o que nos interessa, uma vez que torna mais inteligível a forma pela qual o projeto de fundação do para-si será sempre fracassado, e exige necessariamente a descrição, por contraste, desse não fundamento – da impossibilidade de fundação e começo –, destrinchando o quanto as pretensões de fundações e começos ontológicos e metafísicos mascaram e ocultam a gratuidade que não funda, mas dá o começo (não fundacional) àquela relação paradigmática de que parte Sartre, o ser e o nada; daí a linha consequente de interpretação que atesta que será uma eidética da má-fé o fio que atravessa todo o livro, como seu modo de exposição, por excelência.

É em função desse ângulo que se pode tomar a contrapelo o problema clássico acerca do "ser e seus modos", em chave espinosana, pois estará na Ética a forma, por excelência, mais radical de fundamentação metafísica do mundo e da experiência, a ordem geométrica de tudo. Por óbvio, completamente infensa ao tempo, à contingência e sobretudo ao não necessário, cuja expressão exige e pressupõe uma causa metafísica cuja chave sintático-semântica é sua própria insuficiência como causa, na ausência fatal de um Deus como causa de si mesmo, de modo que sua atualização pelo avesso só poderia ser possível por meio dos expedientes discursivos e descritivos não geométricos, por assim dizer. Expedientes, como se pode notar, consequentes como a forma barroca e algo digressiva do discurso de ontologia-fenomenológica – o avesso formal e material de uma ética à maneira geométrica. Há que se notar, certamente, a versão heideggeriana para tal subversão, como a que opera, por exemplo, em A essência do fundamento, não sendo o caso de a explicitar neste texto.

Direto ao ponto, diríamos o seguinte: o problema da temporalidade tem a ver com a necessária tarefa sartriana de pensar in limine a metafísica da contingência que o próprio tempo colocou, quando se assume que nele está expresso o núcleo constitutivo do para-si. Por que o em-si se deixa degradar em para-si, em busca do que o para-si não pode oferecer, ou por que o para-si não é capaz de reencontrar-se com o em-si? Esse problema metafísico, por outro lado, só pode ser alcançado através de um ensaio de ontologia fenomenológica; a natureza do problema exige uma adaptação da ordem da forma. Indiretamente, esse problema metafísico aparece na última parte de O ser e o nada, mas, novamente, não é bem esse nosso ponto, nem o caso deste texto.

Cabe, tTodavia, cabe reforçar, nesse contexto, o quanto a fenomenologia serviu otimamente a esses propósitos, o que tem tanto ou mais interesse.

De um ponto vista precário, poderíamos sustentar que o capítulo da temporalidade é um movimento que vai da metafísica geral à metafísica especial, feitos os ajustes que degradam fatalmente o gênero, no seguinte sentido: o justo oposto do clássico problema metafísico da substância, devendo-se dizer o que o permanente aceita de transitório se transmuta no problema (também moderno, porém crítico) de como do transitório, do finito, pode-se predicar permanência, como pode haver um ser da impermanência que seja transfenomenal e o que se predicaria dele, a partir de um lugar – lógico e metafísico – no qual não mais vigeria o antigo esteio metafísico da substância e seus predicados. Como se a temporalidade, de um ponto de vista metafísico e seus pressupostos, fosse (como é) aquele mesmo problema clássico, contudo, tomado pelo avesso. Não apenas oposto, mas o avesso ao problema da permanência e, igualmente o da predicação, tendo que se haver com eles; e, por esse meio, invertido, de sorte a se medir o quanto essa tradição metafísica não mais realiza seu ímpeto discursivo, à medida que a finitude não apenas a limita, mas passa exigir da promessa da substância as contas das promessas não cumpridas. O avesso da substância espinosana é a temporalidade. A medida dessas contas que não mais fecham quem dá é a gramática da temporalidade, na versão de O ser e o nada, que é, afinal, seus modos de temporalização.

Veja-se, localizando esse problema bastante amplo numa fórmula sumária: seria como se o avesso metafísico da idea idea espinosana (malbaratando Espinosa, a ideia verdadeira deve convir ao ideado, de maneira que a ideia verdadeira é índice de si mesma, o sentido metafísico desse deve decorre do fato de que a ideia verdadeira é ela própria a causa de seu efeito, a coincidência como ideia em relação ao ideado) fosse o reflect-reflectant sartriano, em outro regime discursivo, cuja assimetria original da última expressão ocupasse o lugar da rigorosa adequação metafísica do primeiro par. Não sem interesse, diríamos, o avesso do capítulo sartriano sobre a temporalidade é o livro I da Ética de Espinosa. Frisa Flajoliet (2008, p. 907):

Em O ser e o nada a análise é evidentemente muito mais aguda, mas prolongando esse esboço dos Cadernos. A necessidade para o ipse de ter um passado é, dirá Sartre, a necessidade de ter surgido de maneira completamente contingente no mundo. “Não é necessário acreditar que o para-si exista inicialmente e surja no mundo na absoluta novidade de um ser sem passado, para se constituir, pouco a pouco, com um Passado [o problema do fundamento]. Qualquer que seja a irrupção do para-si no mundo, ele vem ao mundo na unidade ek-estática de uma relação com seu Passado”. Quanto ao presente, ele é, para os Cadernos, esse novo para-si que surge em coexistência com a totalidade do em-si. “O para-si não saberia fazer a irrupção no mundo sem coexistência no presente com a totalidade do em-si e sem uma ligação precisa com um tendo-sido que é e não é simultaneamente.” A constituição do presente não é, pois, dissociada dessa “banda” (CDG, p. 440) que projeta o para-si presente em direção a seu futuro irrealizável ensaiando (em vão) de o arrancar do passado. “O para-si não pode ser investido pelo em-si que em se deslocando em direção à “causa sui” que ele é-para-ser. A causa sui é dada […] como isso pelo que o para-si foge da facticidade”. A ideia essencial que guiará a dinâmica da temporalidade em 1943 é adquirida: a temporalização não significa de nenhum modo que alguma coisa do futuro torne-se presente, para, em seguida, afundar-se no passado (como afirmam as descrições husserlianas do tempo originário retencional-protencional). O ipse produz-se ex nihilo para o futuro no fulgurante do instante em que ele deixa lá o que ele não é mais, é necessário pensar juntamente o descolamento do novo presente dele mesmo em direção ao futuro, e a preterificação brusca do antigo presente deixado lá (com as modificações em cascata que isso engrena gradualmente para o passado anterior em relação ao passado simples, e para o futuro distante em relação ao futuro iminente.

 

Estendamos um tanto o argumento a partir da longa passagem que citamos de Flajoliet. Enquanto a estrutura de investigação metafísica, retomemos grosseiramente, da Ética de Espinosa, é a ideia adequada, cuja operação é dar a causa da coisa por meio do pensamento como atividade que põe essa causa como causa pensada e pensável, cujo fundamento decorre da ideia de substância que abre a Ética, da qual a natureza, mal resumindo, arrima a causa como expressão da substância, incorporando à causa eficiente a causa final, a estrutura de investigação ontológica de O ser e o nada é a temporalidade (a verdade da ipseidade), cuja natureza é dar-nos a experiência fundamental de descompressão, de distância e de diáspora do ser, tomando o reflect-refletant como par degradado – temporal – da ideia ideada espinosana. Ocorre que essa descompressão e distância do ser, o tema recorrente do sentido diaspórico do para-si, implica que a fuga do para-si seja sempre fuga em direção ao em-si a ser tomado como causa sui e, ensaiando retomar o fundamento metafísico de si, fuga em direção a uma necessidade que fundamentalmente lhe falta. A medida ontológica do em-si, a brutalidade da sua unidade substancial, é retomada nos termos sem medida muito próprios da temporalidade: essa desmedida é o próprio tempo que se dá como uma permanente diferença ontológica.

Nessa chave, o para-si subverte o fundamento clássico da causação metafísica: o efeito deve ter no máximo a mesma medida ontológica (de realidade, de substância) da causa que o produz, uma causa menor que um efeito produzido não pode causar aquele efeito. Ora, o para-si pretende justamente isso: produzir uma efeito maior do que a medida ontológica que o define (como causa), ser em-si-para-si a partir do para-si. Daí o sentido de O ser e o nada ser uma eidética da má-fé. Má-fé, de alguma forma, é a metafísica sem a crítica (sem crítica de seu não fundamento, é a metafísica de um fundamento que não há, e não pode haver senão como falta de fundamento). Logo, o homem é uma paixão inútil; toda ocasião em que procurar, com base na medida de si, sua causa em-si (causa sui), encontra má-fé ou nada.

A exploração dessa inversão dá uma das chaves de compreensão do problema da temporalidade. O sentido da temporalidade será o de erodir permanentemente o ser da causa, na expectativa de que o efeito tenha mais substância do que a causa que o põe. Daí o cúmulo de dificuldade para compreensão intuitiva da temporalidade, na caso sartriano. Não se trata mais da enésima retomada da máxima agostiniana, tão recorrente como aquisição quase insuperável de nossa tradição metafísica do tempo: se não pergunto – o que é o tempo – sei; se pergunto, não sei (1984, Confissões, livro XI). A relação entre saber e perguntar pelo saber está dada no sujeito da questão: só poderá saber – em se tratando de uma questão que envolve o próprio sujeito que a põe – aquele que põe o sujeito, anterior à questão e ao sujeito. O sujeito que pergunta e não pode responder será ele mesmo o limite epistemológico da questão, o qual só pode ser ultrapassado por aquele que o põe. Perguntar por quem põe o sujeito é o rearranjo ontológico que permite entender por que colocamos a questão do tempo, mas apenas Deus, que é infinito em ato, é Aquele quem a pode responder, por não ser temporal. Desse arranjo seco vem a epistemologia da graça: o que Deus nos dá a saber, sendo infinito em seus predicados, e nós, finitos? Só podemos saber por intermédio da graça.

Transportando com um grão de sal essa questão ampla para o caso sartriano, nota-se a inversão de seus termos: não é o sujeito que encontra seus limites, ao pôr a questão, ao perguntar o que não pode responder; é a questão que, nos limites das possibilidades finitas do sujeito, o ultrapassa e para qual não há resposta crítica. À medida que a ipseidade – estrutura da unidade do para-si – é a própria temporalidade, não ter “a resposta”, isto é, não poder falar do tempo fora dele, é a forma adequada de responder à pergunta. A pergunta pelo tempo só pode ser temporal e a resposta, no tempo, só pode ser na forma de não-ser, uma quase resposta que se estende pelo tempo que a degrada. Vejamos no texto sartriano: “O que quer dizer que a temporalidade não pode senão designar o modo de ser de um ser que é ele próprio fora de si. A temporalidade deve ter a estrutura a ipseidade”. Adiante, completa: “A temporalidade não é, mas o para-si se temporaliza à medida que existe”(Sartre, 1998, p. 172).

Recapitulemos: neste desvio que fizemos está implícita um exigência específica de leitura do capítulo. Essa exigência acaba por dar um novo contorno à tradição da metafísica do tempo, em relação à qual o texto produz uma inflexão. Evidentemente, não é exatamente isso que está na linha de conta de Frajoleit, mas o ganho que os novos elementos de leitura que ele mobiliza produzem acabam por nos levar a essas últimas considerações.

            O derradeiro elemento de leitura que levamos em conta nesse beadeker é a relação desse capítulo, a temporalidade, com o desenvolvimento que o tema tem, na “primeira filosofia sartriana”, tomando essa relação de modo imanente. Vejamos estas considerações iniciais sobre o modo como o tema se organiza, na Transcendência do Ego (Flajoliet, 2008, p. 80).

O problema do tempo e da temporalidade na Transcendência do Ego já rendeu alguma tinta. Ao que parece, está pacificado, pelo menos em um sentido: há um clara distância entre o modo como o problema do tempo é enquadrado, no texto de 1936, sua forma e sua função, e como ele é pensando e adquire centralidade relativa no livro de 1943, amplamente reformulado. Mesmo que se se leve em conta o escopo fenomenológico-transcendental da Transcendência, o qual acarreta outras condições de enunciação, diferente do discurso de ontologia fenomenológica, ainda assim a distância é significativa, para além das diferenças de gênero. O que chamamos a atenção é que a diferença de tratamento não se resumiria a uma diferença de discurso, apesar de também implicar isso. Digamos que o investimento que faz Sartre em estender os fios do problema da unidade fenomenológico-transcendental de Ideias I às Lições sobre o tempo (Husserl, 1964, 2001) indica mais uma busca por uma unidade pré-egológica dos vividos do que um esforço em tematizar o tempo enquanto tal, uma vez que a pretensão sartriana, em 1936, é usar o momento descritivo da fenomenologia como antídoto ao seu destino transcendental, tal como vaticinado em Ideias I. As Lições, em 1936, servem muito mais para estruturar de maneira impessoal o campo transcendental e muito menos para uma investigação do sentido próprio do tempo.

De fato, colocando o problema em perspectiva, vê-se como a presença das Lições desaparece, à medida que nos aproximamos do livro de 1943; chegando a 1943, quase já não deixa rastros visíveis, apesar da densidade da especulação sobre o tempo, havendo uma citação discreta das Lições em todo o extenso capítulo sobre a temporalidade. Ora, essa constatação não é sem consequências. Se aplicarmos as medidas de 1943 ao metro de 1936, nós nos damos conta de que a operação do campo transcendental prescinde do tempo, em sentido próprio: ela não se temporaliza enquanto tal, pois funciona como criação continuada que se renova ou se relança, no instante. A positividade do instante, como unidade performática, relevada em função da sobrecarga dos momentos descritivos por oposição aos momentos normativos do campo transcendental, ademais, bloqueia o que adiante Sartre entenderá como a investigação da temporalidade, em seu sentido próprio.

Em A transcendência do Ego, por oposição à unidade lógico-transcendental do Ego que passa a salvaguardar a função de unidade dos vividos em Husserl de Ideias I, por exemplo, contra a qual se mobiliza a interpretação que dá Sartre da fenomenologia, no texto de 1936, a função de unidade dos vividos dá-se em um nível pré-egológico e, como consequência, tem-se um Ego rebaixado a resíduo psicológico, A função da unidade recai sobre o próprio campo transcendental, anônimo e impessoal, e o problema é menos o de saber se o campo transcendental se temporaliza e mais o de como e por meio de quais recursos ele se unifica, ao unificar os vividos. A unidade de unificação dada no instante faz coro com o recorte empírico-transcendental das Lições, paradoxalmente. Eis o papel da Lições, cujo efeito, na economia do texto sartriano de 1936, é salvaguardar a unidade, positiva, da atividade (o fluxo do tempo é plasmado à atividade do campo transcendental, há uma “redução" do destino transcendental do problema ao escopo de sua ordem descritiva) e não dar a medida das descontinuidades negativas próprias do tempo, muito menos em termos ek-estáticos, às novas formas de unidade que aparecerão na reformulação do problema, em 1943. Não nos surpreenderia se, a se investigar a fundo o esquema temporal husserliano das Lições, coisa que aqui não é o caso, se desse conta das dificuldades formais que ele impõe à investigação das descontinuidades temporais, o que subsidiariamente e com algum mediação é possível notar em Merleau-Ponty, grande leitor das Lições.

Senão, vejamos. Há duas referências explícitas das Lições husserlianas sobre o tempo, na Transcendência do Ego (Sartre, 2001, p. 97, doravante TE):

Poder-se-ia dizer, no entanto, que é necessário um princípio de unidade na duração para que o fluxo contínuo das consciências seja suscetível de pôr os objetos transcendentes fora dele. É necessário que as consciências sejam sínteses perpétuas de consciências passadas e da consciência presente. Exato. Mas é revelador que Husserl, que estudou em A consciência íntima do tempo esta unificação subjetiva das consciências, nunca recorreu a um poder sintético do Eu. É a própria consciência que se unifica e concretamente por meio de um jogo de intencionalidades “transversais” que são retenções concretas e reais de consciências passadas.

E:

Se, por exemplo, quero lembrar-me de tal paisagem percebida ontem no trem, é possível que eu lembre da paisagem enquanto tal, mas eu posso também me lembrar de que eu via esta paisagem. É o que Husserl chama em A consciência íntima do tempo de a possibilidade de refletir na lembrança. Dito de outro modo, eu sempre posso operar uma rememoração qualquer por meio do modo pessoal e o Eu aparece imediatamente. Tal é a garantia de fato da afirmação de direito kantiana. Assim parece que ele não é uma das minhas consciências que eu aprendo como provida de um Eu. (Sartre, 2001, p. 99).

 

Os elementos do tempo, reduzidos a protensões e retenções, funcionam como elementos heterogêneos de unidade do campo, e o fim do argumento, digamos assim, é mostrar sob quais condições a heterogeneidade performativa dos vividos não impede a unidade do campo, antes, pelo contrário, a favorece. A unidade pressuposta do campo transcendental, assegurada pelo empirismo transcendental da Lições[4], capaz de assegurar unidade em fluxos de atividade heterogêneos por definição, ainda assim, reforcemos, não se temporaliza em sentido próprio, mesmo que, na dobra do campo transcendental, a reflexão dê acesso a uma duração que sucede em outra região que a da imanência antepredicativa própria da atividade da consciência irrefletida. Nesse sentido, há mais marcadores temporais no psíquico, sob a forma de duração, do que no campo transcendental, nos quadros da Transcendência do Ego.

Com um olhar um pouco mais amplo, e se detendo menos aos detalhes em um e outro caso, pode-se, no entanto, notar no texto de 1936 um contorno similar ao contorno mais grosso do capítulo sobre a Temporalidade do livro de 1943. Em 1936, há uma instância antepredicativa, irrefletida, no caso, o próprio campo transcendental, cuja operação de unidade (arrimado em um esquema “temporalque não se temporaliza no sentido de 1943, e cuja matriz é abandonada, aliás) permite que uma degradação reflexiva torne acessível uma região cuja “temporalidade” (naquele caso, a duração como correlato psíquico do instante) não seja mais visada de modo imanente, mas transcendente. Eis o psíquico, com seus marcadores temporais degradados, importante elemento de organização do texto de 1936. No texto de 1943, dá-se o mesmo contorno, com muito mais complexidade e sofisticação, uma vez que há todo outro investimento na natureza propriamente temporal do para-si; a unidade que se perfazia no instante agora é dada de modo ek-estático, e isso se soma a um detalhamento inédito do problema da reflexão. Da descrição fenomenológica do tempo ao seu fundamento ontofenomenológico também se desdobrará o psíquico, a partir do problema da reflexão, muito mais amplo e cujo tratamento é extenso, pois o problema da reflexão (pura e impura) adquire uma dimensão temporal que não havia no texto de 1936.

A ideia, retomada em 1943, de uma remissão no tempo, de voltar a um vivido passado – o clássico problema da memória –, no texto de 1936, está inscrita na retomada da unidade passada da consciência, por meio de uma atitude reflexiva específica do presente. A diferença temporal, em 1936, é dada por diferentes modos de unidade: o elemento que Sartre destaca do clássico texto husserliano sobre o tempo é o elemento de unidade impessoal, não egoica, que atravessa retenções e proteções, que, sendo dimensões temporais constitutivas na descrição husserliano, no texto sartriano, ficam em segundo plano como tema propriamente temporal.

Rememorar, na TE, é modular a unidade da consciência por meio de unidades diferenciais da mesma consciência, sob um fundo de identidade própria do campo transcendental. A diferença do mesmo dá no estatuto da reflexão, no texto de 1936. É sintomática a diferença de lugar do cogito de 1936 a 1943. No texto de 1936, o cogito organiza o problema da reflexão no centro do problema do texto, o “Eu” é um resíduo reflexivo que, hipostasiado, dá no psíquico. Em 1943, o cogito pré-reflexivo funciona elemento que prepara a prova ontológica, apresentando as condições do problema ontológico de O ser e o nada, a diferença ontológica entre esse e percipi, e a reflexão, em sentido próprio, é desdobramento temporal do para-si, a partir daquela prova ontológica, o que a torna muito mais complexa.

Esse conjunto de observações são, porém, precauções prévias de leitura. Passemos à segunda parte desse guia.

 

2 Fenomenologia, ontologia e reflexão

A descrição dos três ek-stases temporais, que abrem o capítulo, leva-nos à ontologia da temporalidade, passagem que a fenomenologia do tempo torna necessária. De um ponto de vista ontológico, a questão passa a ser a da unidade dos três ek-stases, de dois pontos de vista, indicados por Sartre, o estático e o dinâmico. É preciso, porém, lembrar que a descrição fenomenológica da dimensão ek-stática do futuro, de certa maneira, antecipa o problema da unidade das dimensões ek-státicas do tempo.

            Do ponto de vista estático, já no registro da ontologia do tempo, a unidade diz respeito à ordem do tempo, na forma da relação antes-depois. Do ponto de vista dinâmico, ao fluxo temporal, na forma da passagem do tempo.

            O problema da unidade passa a ser decisivo, quando se passa da descrição fenomenológica do tempo à descrição ontológica. Há uma mudança de plano de discurso e de plano de análise. Esse jogo de planos, por sua vez, constitui o coração do ensaio de ontologia fenomenológica. Essa mudança aparece bem indicada, no âmbito da temporalidade estática: a unidade sintética das três dimensões ek-estáticas exigiria um intemporal para fins de coesão, indicando que o limite fenomenológico da descrição tem implicação ontológica? Essa questão põe melhor os termos do problema de uma ontologia do tempo: como pensar a unidade da temporalidade, em função da investigação fenomenológica prévia das dimensões do tempo. Aquelas descrições permitem investigar até que ponto se pode pensar sua unidade, por meio de um intemporal.

Ora, o problema da unidade – e da exigência ontológica dessa unidade – repõe o problema do intemporal. Sartre não se furta em mostrar os limites dessa solução e sua impossibilidade em relação às descrições já feitas das dimensões ek-státicas dos tempo. Não mais caberia o retorno à instância do instante, tal como no texto sartriano de 1936. Essa falsa pista, pois desconsideraria as descrições fenomenológicas dos momentos do tempo, no livro de 1943, serve em alguma medida para recuperar o modo de tratamento da tradição em relação ao problema da unidade do tempo. É a tradição quase imemorial da metafísica do tempo que reaparece. De Agostinho, passando por Descartes, Leibniz, Kant, e mesmo em Bergson, toda a discussão acerca do tempo converge para um intemporal, como forma de arrematar e arregimentar a unidade do tempo, do instante replicado e soldado aos outros instantes, através da criação continuada cartesiana, da apercepção transcendental kantiana, unidade crítica e não metafísica da duração, à duração bergsoniana, a qual toma a intuição como método para alcançar a dimensão metafísica da experiência. Seria próprio do tempo devorar sua unidade, se abandonado no curso de seu próprio fluxo.

            A exceção: o caso em que o ser do tempo coincida com o ser do que se temporaliza como falta de ser, o para-si. Aquilo que está em cada uma das dimensões do tempo e realiza sua ordem – antes e depois – por dentro deve estar aqui e alhures, sem ser aqui e alhures. Será sendo nada, sob a forma de não-ser, aqui e agora, antes e depois. Melhor: se a temporalidade não pode ter uma forma de unidade que o seja em sentido positivo – aqui sinônimo de intemporal –, sob pena de deixar de ser, em seu sentido próprio temporal, como as descrições fenomenológicas das dimensões ek-státiticas do tempo que abrem o capítulo atestam, que forma haveria de ter, para a qualidade temporal-chave do antes e do depois, seja sem o ser sob sob a forma lógica de unidade, seja sob a forma crítica ou mesmo transcendental, sem que ela fosse da ordem de uma sucessão do em-si? Como reconhecer em outros termos que não os positivos e já consagrados que o que está antes seja reconhecido naquilo que está depois? O que haveria de haver? Ei-lo:

Apenas um ser de uma certa estrutura de ser pode ser temporal na unidade de seu ser. O antes e o depois não são inteligíveis, como notamos, senão como relação interna. É lá, com depois que o antes se faz determinar como antes e reciprocamente.

Em uma palavra, o antes não inteligível senão se é o ser que é antes dele mesmo. Isto é, a temporalidade não pode senão designar o modo de ser de um ser que é si mesmo fora de si. A temporalidade deve ter a estrutura da ipseidade. (Sartre, 1998, p. 172).

 

O que isso significa? Para além da resposta que dá Sartre, na sequência, de que o para-si só pode ter a forma da temporalidade, isso significa que Sartre crê, primeiro, que a ipseidade, como circuito, antecipa a forma da unidade do tempo, que ambas as estruturas – ipseidade e temporalidade – são homólogas, que a unidade de ambas vem de uma forma que medeia, nadificando, as nadificações das dimensões ek-státicas. O antes e depois é dado pelo nada na forma de unidade de dispersão temporal do para-si. Uma das faces dessa unidade diaspórica dá na pessoalidade do para-si, ademais, antecipada na descrição do circuito da ipseidade. A exigência do nada do para-si não é apenas nadificar, também é nadificar-se. Diz-nos Sartre (1998, p. 173):

O para-si é um ser que deve existir simultaneamente em todas as dimensões. Aqui, a distância, concebida com distância de si, não é nada real, nada que seja de maneira geral como em-si: é simplesmente nada [rien], o nada [néant] que é tendo sido como separação. Cada dimensão é uma maneira de se projetar em vão o si, de ser o que se é para-além de um nada, uma maneira diferente de ser esse enfraquecimento [condescendência] (fléchissement) de ser, esta frustração de ser que o para-si tem de ser.

 

A gratuidade do para-si, que faz par com a noção de transcendência e com a noção de liberdade, não é mero pressuposto metafísico, é modo do nada nadificar e constituir uma unidade nadificadora nesse processo. A compreensão da ordem do tempo, por meio da temporalidade estática, é trabalho prévio para a investigação da dinâmica da temporalidade, cujo detalhe vem de uma descrição ontológica ainda mais fina do ser do tempo. Parte-se de uma estrutura da temporalidade cuja unidade é dada pelo nada organizador do circuito da ipseidade, o qual, agora, como antecipado, encontra a sua verdade como temporalidade. O tempo tudo devora, menos o para-si, nós que somos sua própria sanha de devorar antes da fome, de maneira reflexionante, na expectativa vã de nos saciarmos. Aqui, o núcleo especulativo-fenomenológico da teoria sartriana do desejo.

Se a temporalidade de um ponto de vista estático nos dá o problema da ordem do tempo, e esse problema exige que se repense seu fundamento em uma ordem temporal e sem recurso ao que Sartre chama de intemporais, a temporalidade, de um ponto de vista dinâmico (e ontológico), exige que se repensem as mesmas condições da ordem do tempo, do ponto de vista do fluxo do tempo e de sua determinação” recíproca:

[...] o surgimento de novo presente preterificando (passéifiant) o presente que ele era, e preterificação (passéification) de um presente conduzindo a aparição de um para-si para o qual esse presente se converterá em passado. O fenômeno do devir temporal é uma modificação global, pois um passado que fosse passado de nada já não seria passado, e um presente deve ser necessariamente presente desse passado (Sartre, 1998, p. 177).

 

Vejamos:

Como podemos explicar o caráter dinâmico da temporalidade? Se ele não é – e esperamos o ter mostrado – uma qualidade contingente que se soma ao ser do para-si, é necessário poder mostrar que sua dinâmica é uma estrutura essencial do para-si concebido como o ser que tem em seu ser seu próprio nada. Nós nos reencontramos, parece, em nosso ponto de partida (Sartre, 1998, p. 182).

 

A dinâmica do tempo exige o esforço para descrever o movimento próprio de deslocamento do não fundamento (da não fundação) permanente da passagem do tempo, seu fundamento propriamente temporal, sua ordem e seu fluxo, para a determinação recíproca das dimensões ek-estáticas do tempo, sua passagem, de sorte a manter a coesão excêntrica do próprio sentido da temporalidade, coesão na forma de circuito. Aqui, a coesão e a unidade dizem respeito ao modo de relação das dimensões ek-estáticas do tempo, de maneira qualitativa. A dispersão e a diáspora do para-si também se dão na passagem do tempo, pois a passagem do tempo replica nela mesma o próprio nada nadificante do para-si, que é seu ser, produzindo diferenciações cruzadas. Daí o recobrimento da ipseidade pela temporalidade, estruturas rigorosamente análogas. A exigência descritiva, do ponto de vista (ontológico) dinâmico, é mostrar como a estrutura temporal se unifica qualitativamente, a partir dos modos próprios de seus ek-stases temporais.

O ganho crítico, nessa perspectiva de investigação do tempo, a que reencontra temporalmente o problema de sua passagem e mudança, é dar novo relevo ao problema-chave da espontaneidade, o qual, na Transcendência do Ego, ocupava parte do lugar que o problema da temporalidade ocupa, em O ser e o nada. Eis como já se anuncia a terceira seção do capítulo, a que trata do tema-chave da reflexão. Esse viés ajuda a repensar o problema do instante e o modo como Sartre lida com o instantaneísmo de sua “primeira filosofia” (veja Alt, 2017):

Nós escapamos do instantaneísmo na medida em que o instante seria a única realidade em-si limitada por um nada de futuro e um nada de passado, mas se recaímos nisso, teríamos que admitir, ainda que implicitamente, uma sucessão de totalidades temporais em que cada uma seria centrada em torno de um instante. Em uma palavra: nós dotamos o instante de dimensões ek-státicas mas nós não suprimimos, o que significa nós fazemos suportar a totalidade temporal pelo intemporal, o tempo, se ele é, torna-se um sonho. Mas a mudança pertence naturalmente ao para-si em enquanto esse para-si é espontaneidade (Sartre, 1998, p. 183).

 

O que antes perfazia o instante como limite ek- estático do passar do tempo, com o ônus dele mesmo ser uma unidade atemporal (do) si – um positivo situado de nada a nada, espécie de derivação empirista da lição husserliana sobre o tempo e que punha a fenomenologia nos limites de um empirismo transcendental, muito em consonância com Jean Whal, nos idos dos anos trinta –, agora é a própria temporalidade que perfaz, estendendo as dimensões ek-státicas do tempo até o centro da unidade sintética ontofenomenológica que lhes dá coesão, a própria temporalidade como nada nadificador e nadificante. Uma vez isso colocado, fica modestamente mais claro o sentido da última seção do capítulo da temporalidade.

 

3 Reflexão Pura e reflexão impura

A discussão sobre o estatuto da reflexão e as consequências que se pode tirar daí dá o arremate do capítulo sobre a temporalidade. O terço inicial dessa seção, a última do capítulo e a que trata especificamente do problema da reflexão, vem do caráter não intuitivo e, ainda, central desse problema, em O ser e o nada: como e de que modo o problema da temporalidade desemboca no problema da reflexão? Em parte, isso vem do fato como, na tradição moderna, a reflexão tipicamente sobrepuja o tempo, arrancando o pensamento – o instrumento de imanência, por excelência – do instante e do imediato, em benefício de um sujeito que ultrapassa o tempo, graças a uma garantia que ultrapassa o sujeito, sabendo como sabemos que o último deve estar fora do tempo. Aqui, tal recurso não mais prospera em função do esforço descritivo prévio, a unidade da reflexão não pode mais coincidir com a unidade do sujeito, o que tem repercussão fatal no estatuto da reflexão. A reflexão como ato privilegiado de imanência, “presente e instantâneo”, não dá mais conta do problema, pois o tempo não tem mais relação acidental com o sujeito, agora passando a constituí-lo e a contaminar o problema da reflexão.

O caráter propriamente reflexivo do para-si, o para-si consciente de si mesmo, exige que a reflexão reponha o que antes fora unidade não tética e diaspórica do para-si, em outro modo: como duração. Em alguma medida, o desdobramento reflexivo é um desdobramento discursivo, pois exige um outro gênero de unidade. Será a duração o efeito imediato da metabasis própria da reflexão em relação à temporalidade originária. Da duração como efeito da reflexão, na economia do texto sartriano, a forma de explicitar como opera a reflexão, a partir da historicidade do para-si, é que decorre a temporalidade psíquica, desdobramento “impuro" dessa novíssima ordem reflexiva. “Assim, o fenômeno da reflexão é uma nadificação do para-si que não lhe advém de fora, mas que ele tem de ser” (Sartre, 1998, p. 188). A reflexão, assim, institui uma imanência específica, reflexiva, trazendo para-si a unidade da ipseidade que, do ponto de vista original e predicativo, aparece fora. Essa operação, porém, é incapaz de suprimir as marcas temporais originárias, próprias do para-si, apesar da unidade imanente que a reflexão põe: reflexivo e refletido trazem na sua diferença a diferença ontológica e temporal que a temporalidade originária lhes impõem.

Vejamos. Na Transcendência do Ego, a emergência do psíquico, tema-chave que organiza aquele texto, decorre de um desdobramento reflexivo – específico – da espontaneidade do campo transcendental articulada por meio do cogito como consciência reflexiva. A superfície do campo transcendental se dobra, para ganhar uma profundidade ad hoc, derivada e imprópria. A única marca temporal daquele cogito, nos termos da TE, é a unidade não egoica, referiam as Lições husserlianas sobre o tempo. Fora isso, ele é infenso a qualquer diferença temporal constitutiva: a espontaneidade da atividade pre-reflexiva desliza pela superfície transparente do campo transcendental. O psíquico, como essa dobra do campo transcendental, decorre de certo resíduo reflexivo impróprio – daí impuro – da operação propriamente reflexiva que o campo transcendental legitimamente permite, e torna possível a derivação transcendente que desemboca no psíquico.

Portanto, o problema do psíquico lá se organiza, em perspectiva, pela maneira como a reflexão impura – o desdobramento específico de que falávamos – ultrapassa do limites de propriedade do ato reflexivo – os limites da reflexão pura – em relação ao fundo de espontaneidade – transparente e translúcido – próprio do campo transcendental. Aqui, em O ser e o nada, se o problema é análogo, é significativamente mais complexo, porque a temporalidade passa a ocupar o lugar que a mera espontaneidade do campo transcendental ocupava, nos quadros da Transcendência do Ego, e a operação reflexiva é dada segundo a ordem do tempo e não mais estritamente circunscrita àquele cogito instantâneo da TE, o qual lá arrima e reforça o instantaneísmo da solução. O problema, em 1943, mais complexo, reiteremos, está no mesmo lugar gnosiológico, ainda que com um outro arranjo de elementos. Vejamos:

Assim, a conquista reflexiva de Descartes, o cogito, não deve ser limitada ao instante infinitesimal. Aliás, é o que se poderia concluir do fato de que o pensamento é um ato que se compromete com passado e se faz pré-esboçar pelo porvir. Duvido, logo sou, diz Descartes. Mas o que restaria da dúvida metódica se pudéssemos limitá-la ao instante? (Sartre, 1998, p. 191).

 

Lendo o problema e o tema retrospectivamente, vê-se que aquilo que, em 1936, Sartre chamava de cogito como consciência reflexiva muda de lugar na economia da questão. Em 1943, o cogito pré-reflexivo funciona como medida da prova ontológica que abre o livro e atesta a não coincidência ou o não recobrimento do esse pelo percipi. A reflexão, ao levar a cabo a operação de duplicação e espelhamento da temporalidade, reforça o começo sem origem do para-si, e lá está o sentido profundo do par reflect-refletant, assimilado na ordem reflexiva ao par reflexivo-refletivo.

Eis, pois, o rigor das exigências teóricas da seção sobre a reflexão do capítulo da temporalidade: não basta, como em 1936, esquadrinhar as condições de derivação imprópria do psíquico, com base no par reflexão impura e reflexão pura, mas é preciso partir de um novo estatuto da reflexão que leve em conta a diferença ontológica que constitui o para-si como instância propriamente temporal. Reflexão pura e impura, como par analítico, seguem no livro de 1943, porém, partem de um desenho mais complexo de reflexão. Assim, a retomada reflexiva da temporalidade se dá na forma da duração, porque o para-si é temporal. O psíquico, o grande efeito dessa operação reflexiva, considerando todas as mediações descritas e exigidas, é uma espécie de espaço exterior de sua própria imanência.

Refaçamos essa pequena excursão. Tomemos a reflexão, de modo imanente, respeitando os limites da imanência que a reflexão põe. Estamos na ordem da reflexão pura. Nesse caso, apenas desmobilizamos a “vida” dos elementos pré-téticos do para-si, de sorte a visá-los abstratamente, "fora" dos atos que os põem, conservando, em gênero reflexivo, as diferenças temporais que constituem o próprio do para-si. É uma primeira alienação transcendente da estrutura sintético-temporal do para-si, nos dá a rememoração como ato, a duração como efeito desse ato (por óbvio, teticamente motivada), operado a partir da temporalidade original, que mantém sua marcas e salvaguarda os limites desse ato tético. Eis a reflexão pura. Se tomamos esses mesmos elementos, de forma radicalmente transcendente, cortando seus laços de origem, os limites da imanência reflexiva – um e outro modo tem a ver com qualidade própria da reflexão – “caímos”, por assim dizer, na ordem do psíquico, e a temporalidade passa a ser um transcendente em relação ao conteúdos vividos, também transcendidos, segundo os modos de estados, qualidades, ações.

Essa operação pode ser decifrada por meio da reflexão impura, instrumento analítico próprio para desbravar o psíquico. Agora, estamos de pleno direito no solo de sentido das representações psicológicas típicas e das representações temporais não originárias. “A reflexão é o para si consciente dele mesmo. Como o para-si é já consciência não tética (de) si, tem-se o costume de representar a reflexão como uma consciência nova, que aparece bruscamente, apontando para a consciência refletida e vivendo em simbiose com ela. Reconhece-se a velha idea ideae de Espinosa ” (Sartre, 1998, p. 186). Essa ultrapassagem define as condições gnosiológicas das representações e objetos do psíquico, deformados e degenerados em relação às condições da temporalidade original, mas não menos concretos por isso. É o lugar do pensamento mágico e da patologia, pois suas representações, conteúdos e objetos (pseudo-objetos) trazem em si a contradição performativa de sua origem, aparentam estar vivos, serem intencionalmente animados, todavia, sua típica é tal que sua aparência não corresponde à sua essência.

Há um elemento-chave, próprio da mudança de gênero, que implica a emergência da reflexão tematicamente considerada e a passagem da reflexão pura à reflexão impura, cujo detalhamento oferece enorme ganho analítico: o reflet-refletant transmuta-se em reflexivo-refletido, na última espuma dessa singular metabasis. Essa transmutação põe as condições prévias das alteridades, as quais aparecerão decantadas e deformadas no psíquico – o primeiro e mais íntimo “fora" do para-si –, e serão retomadas e explicitadas por meio do para-outro.

Não sem motivos, há de se notar como o retorno da velha idea ideae espinosana, não mais vista diretamente, à maneira do século XVII, mas vista por um espelho, vista de passagem, obliquamente, pelo espelho sartriano do reflet-refletant (em função de nova unidade do para-si instituída pela reflexão, esse duplo reaparece igualmente no par reflexivo-refletido): a assimetria de origem dada pela natureza diaspórica da temporalidade (que é a do para-si), mediada pela duração como unidade posta pela reflexão pura, subverte-se em uma objetividade psíquica que só pode funcionar magicamente. Da imagem da ideia espinosana chega-se às razões do psíquico que atualizam a eficiência mágica do antigo problema das causas finais, locus e tópica de toda ordem de superstição. A volta, e com razões, das miríades de superstições típicas das causas finais, diria Espinosa, está em lugar errado, no fim e não no começo, ao que Sartre retrucaria, com muita consideração, não há mais o lugar justo, um começo que coincida com a origem, logo etc. A enigmática assimetria especular do começo "produz" objetos cujas emanações e eflúvios vivem de encantamentos e encantamentos, do ponto de vista da substância metafísica e suas formas de nostalgia. De um certo modo, oblíquo e obscuro, também a má-fé aí se assenta. O psíquico não é apenas a metafísica sem crítica, mas também é a metafísica sem crítica vista por um espelho.

 

Considerações finais

O capítulo sobre a temporalidade de O ser e o nada representa uma inflexão importante no modo como Sartre tratava o problema e o tema, em sua “primeira filosofia”. Acompanhar essa inflexão também é acompanhar a legibilidade do problema. A presença de Husserl, da fenomenologia e de Heidegger na discussão é evidente, mas nos parece insuficiente reduzir a inflexão que dá Sartre ao problema aos investimentos teóricos prévios, tanto quanto à presença importante da filosofia heideggeriana, desde 1939, no balanço sartriano do problema. Há uma especificidade propriamente sartriana no tratamento do tema e do problema, em reconstituir certas condições de legibilidade do problema e ensaiar sua leitura: o que pretendemos dar relevo neste breve texto, nós o fizemos também em função dessa inflexão. Essa especificidade que construímos não subverte, por óbvio, os expedientes fenomenológicos consagrados por Sartre, mas os ajustam aos fins propriamente sartrianos.

Sartre ordena as três seções do capítulo sobre a temporalidade de O ser e o nada em função de um pressuposto sempre reiterado, cujo modo de reiteração não é mero modo de repetição: a homologia entre o modo de ser do para-si e o modo de ser da temporalidade mediada pelo circuito da ipseidade. Essa homologia está inscrita no fato último de que a não coincidência ontofenomonológica do para-si com seu modo de ser é o próprio tempo, em suas matizes de organização. Essa, a chave da primeira leitura do capítulo, que melhor deslinda os movimentos barrocos, paradoxais, insinuantes do texto, pretendeu, em vão, alinhar, se tanto, o problema ontológico, suas descrições fenomenológicas e seu fundo ou pressuposto metafísico.

 

***

Na clínica da arte de ler, nem sempre aquele que tem a melhor visão lê melhor. Ler é uma operação que exige distância material para o foco e também distância imaterial para o sentido. Da mesma maneira, nem sempre basta olhar para decifrar, nem sempre é suficiente tudo ver para ler completamente o que não se lê à primeira leitura. A boa leitura também é forma íntima de edição do texto. Em Borges, a leitura é uma arte da distância e da escala”. Daí, a distância crítica e a sua diligência, que repõe o significado da crença ingênua no método em outro lugar, que não o da candura: é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa? Não e nem sempre: não são poucas vezes que se vê melhor de longe – do texto e de si.

 

Être et néant: «Temporalité». Un guide de voyage

Résumé: Cet article se présente comme un guide de lecture pour le chapitre "La temporalité", de L'être et le néant, de Jean-Paul Sartre. Pour mener à bien la tâche, il articule cependant deux moments complémentaires. Le premier moment fonctionne comme une construction d'un angle d'attaque et d'une manière d'aborder le texte sartrien en question. On y donne les conditions préalables de lecture et les éléments de lisibilité du problème, permettant au lecteur de s'installer pour ainsi dire dans le contexte spécifiquement sartrien de la question, offrant ainsi les conditions de sa lecture, ce qui implique également la manière dont le thème est développé dans les enquêtes précédentes. À notre avis, ce sont ces éléments qui, en apportant une efficacité analytique pour lire le problème et clarifier le thème, rendent le texte lisible, une preuve qui est faite dans la deuxième partie de l'article.

 

Mots clés: Histoire de la philosophie française. Histoire de la philosophie française contemporaine. Phénoménologie. Existentialisme. Sartre. L'être et le néant.

 

Being and nothingness: Temporality. A travel guide

Abstract: This article presents as a reading guide for the chapter "Temporality", from Being and Nothingness, by Jean-Paul Sartre. To carry out the task, however, he articulates two complementary moments. The first moment works as a construction of an angle of attack and a way of approaching the Sartrean text in question. In it, the preliminary conditions for reading and the elements of readability of the problem are given, making it possible for the reader to install himself, so to speak, in the specifically Sartrean context of the question, thus offering the conditions for its reading, which also involves the way in which the theme is developed in previous investigations. In our opinion, it is these elements that, by providing analytical efficiency for reading the problem and clarifying the theme, make the text readable, a proof that is done in the second part of the article.

 

Keywords: History of French philosophy. History of contemporary French philosophy. Phenomenology. Existentialism. Sartre. Being and nothingness.

 

Referências

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Recebido: 08/08/2023 - Aceito: 28/11/2023 - Publicado: 25/03/2024



[1] Professor Associado DF PPGFIL Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4379-1773. E-mail: alexandre.carrasco@unifesp.br.

[2] “Mas se a consciência não é só sua negação originária no sentido do em-si, resulta que não só ela é negada, continuamente, pela segunda negação, mas que é ela própria, enquanto negação do ser em-si, que deve negar-se a si mesma, para não existir como fato anterior a sua constituição ou como estrutura independente de sua atividade. Se pertence à estrutura da consciência ser imediata e mediata ao mesmo tempo, então a segunda negação, constitutiva do cogito pré-reflexivo não só é uma negação da negação, que tem um termo distinto da primeira, mas ela é ao mesmo tempo auto-negação, negação do ser que se nega a si mesma” (Müller, 1982, p. 103). O artigo de Müller vale menção igualmente, mas não só, pela investigação aguda que faz das relações Hegel e Sartre, no âmbito de O ser e o nada, chegando a esboçar uma versão sumária de uma aufhebung sartriana, a qual, a despeito do desenho sumário, é bastante convincente. Apesar de rechaçar a tese e de, hoje, a melhor bibliografia secundária diminuir significativamente a importância de Hegel no livro sartriano de 1943, Flajoliet reconhece a força desses esforços, ao citar Müller, na introdução de seu livro, La Première Philosophie de Sartre (Paris: Honoré Champion, 2008), como o melhor esforço em localizar a presença de Hegel em Sartre, a despeito de o considerar esforço vão. No caso da passagem em questão, Müller desenha, mobilizando vários recursos, um recuo ontológico específico, por meio do qual é possível pensar as condições da temporalidade e da temporalização, através de uma instância “pré-temporal” (termo que Müller usa e reconhece ser exógeno) que faria as vezes (em posição ontológica) do “eu funcional último (letzfungierendes Ich) das derradeiras análises husserlianas do tempo.

[3] O que se completa em nota (nota 19), aqui citada para um melhor esclarecimento da questão: “Conforme uma conceptualidade tornada precisa por J.-T. Desanti, quando da discussão deste trabalho. Exterior ao campo propriamente onto-fenomenológico, o atrator condiciona no interior do próprio campo a interpretação de certos fenômenos. Como, por exemplo, interpretar a “facticidade” do para-si sem mencionar o fato metafísico de que a espontaneidade da consciência poderia ter surgido da implosão da existência bruta?” (Flajoliet, 2008, p. 17).

[4] “Por outro lado, em 1934, Sartre não dota o vivido de nenhuma projeção em direção ao futuro. Víramos no capítulo 2 [Sartre face à fenomenologia] que mesmo as retenções e as protenções da Zeitbewusstseins, que dão à consciência uma amplitude temporal muito modesta, não são admitidas por Sartre que ainda se refere a isso de uma maneira quase retórica, inscrevendo-as em um quadro kantiano que reforça o instantaneísmo da Transcendência do Ego” (Correbyter, 2000, p. 609).