Ser para a morte, possibilidade existencial e finitude da existência em ser e tempo

 

André Luiz Ramalho da Silveira[1]

 

Resumo: Em Ser e Tempo, Heidegger apresenta a finitude da existência humana, a partir do conceito de ser para a morte. Ao interpretar a existência humana como possibilidade existencial, torna-se possível compreender adequadamente a morte existencial como distinta da morte, em sentido vital. Tendo em vista característica projetiva da compreensão, Heidegger mostra que a projeção em possibilidades está sempre sujeita ao risco e ao fracasso, uma vez que aquilo que sustenta o aspecto “existencial” da possibilidade existencial é a projeção na mesma. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é apresentar e discutir os conceitos de morte, possibilidade existencial e finitude existencial, em função da tese interpretativa de que a elaboração heideggeriana do conceito existencial de morte possui independência do sentido comum e mundano de morte, apresentado mediante o conceito de falecer, partindo da tese proposta por Heidegger de que a morte é a possibilidade da impossibilidade da existência em geral.

 

Palavras-chave: Heidegger. Ontologia. Ser para a morte. Finitude. Possibilidade existencial.

 

Apresentação do problema

É possível dizer, não sem reservas, que a existência acontece em meio ao impossível, sobretudo quando se tem em vista a relação entre a existência e o fenômeno da morte. Essa afirmação busca indicar o fato de que a existência humana sempre ocorre na possibilidade da não existência. Para que o problema da morte seja adequadamente compreendido, o pressuposto conceitual de que a morte é apenas acontecimento não se mostra o suficiente. Caso a morte seja entendida como um acontecimento natural e fisiológico, bastaria frisar que ela é uma possibilidade cuja efetivação se daria em algum dado momento, na linearidade temporal. No entanto, essa perspectiva encobre justamente o caráter central da relação da existência humana com a morte, que é o caráter de possibilidade existencial.

A perspectiva apresentada na ontologia fundamental por Heidegger lida com o difícil problema de compreender ontologicamente a morte, a partir das dimensões ôntica e ontológica na qual o ser-aí humano lida com a possibilidade da sua morte. Mesmo onticamente, experimentamos a morte, mas continuamos vivos – seja na experiência de adoecer, seja na morte dos outros humanos e animais que nos circundam. A aparente obviedade dessa consideração não deve ofuscar o cerne da concepção heideggeriana de ser para a morte, qual seja, a de que a morte é compreendida como a possibilidade da impossibilidade da existência em geral. Assim, o que significa pensar o conceito de morte enquanto possibilidade? Fenomenologicamente, a investigação precisa mostrar que tal experiência seja acessível facticamente. Ora, no caso de uma possibilidade extrema, como a da morte, o que significa acessá-la enquanto fenômeno? Além disso, se entendermos a morte apenas no sentido do fim de um processo vital, como compreender o fenômeno da morte, se eu não estaria mais aqui para compreendê-la, tendo em vista que já estaria morto?

Para realizar uma abordagem existencial[2] do fenômeno da morte em ST, o passo metodológico adotado por Heidegger é o mesmo utilizado em outros momentos, na abordagem de outros conceitos: a destruição hermenêutica. É preciso, diz Heidegger, distinguir os significados possíveis pelos quais o fenômeno da morte é compreendido e, isso, em suas distintas áreas. Desse modo, é crucial estabelecer uma adequada situação hermenêutica, para compreender existencialmente a morte em seu sentido ontológico. Em uma abordagem existencial e ontológica, é preciso saber o que a interpretação sobre o fenômeno da morte não pode perguntar e não pode esperar saber (Heidegger, 2009, p. 263/GA 2, p. 327).

Uma das características centrais da existência humana é o fato de ela ser transpassada pelo nada, o que, em termos ônticos, significa que o ser-aí humano comporta-se com a falta e a ausência, em diversos níveis. Comportar-se com a falta, seja no âmbito existencial, seja no âmbito das relações existenciárias – tanto no contexto utensiliar do mundo quanto nas relações cotidianas com outras pessoas –, denota justamente a falta de fundamento e a permanente inconcludência na existência humana. Essa inconcludência ocorre não apenas no âmbito ôntico e mundano, nos projetos e nos afazeres a que cotidianamente estamos comprometidos, mas também em nível ontológico. A permanente inconcludência da existência se deve justamente à finitude da existência humana. Através das características do poder-ser e do antecipar-se-a-si, Heidegger constata que o ser-aí, ao projetar-se para uma possibilidade, a ele é sempre pertinente um ainda-não. Em relação à morte, o que isso significa? Um dos conceitos centrais investigados no capítulo em que o fenômeno da morte é pensado é o conceito de totalidade. Então, pergunta Heidegger, é possível apreender ontologicamente o ser todo do ser-aí? Qual o sentido desse “todo” em questão?

É preciso discriminar dois aspectos presentes no uso do conceito de totalidade usado por Heidegger. Um deles é aquele utilizado para designar estruturas, tal como o cuidado é entendido enquanto a totalidade do todo estrutural do ser do ser-aí, ou o conceito de ­ser-no-mundo[3], cuja totalidade é composta por três momentos igualmente originários. Por outro lado, no caso da morte, o que se tem vista é tanto o instante em que essa totalidade estrutural possa ser visada em sua verdade originária, quanto a possibilidade de se compreender a totalidade, a partir da historicidade do acontecimento do ser-aí, esse ente que existe entre nascimento e morte[4]. Considerando-se que é preciso compreender o ser-aí enquanto uma totalidade, como compreender a totalidade da existência, quando essa totalidade passa a ser disponível apenas quando esse ente passa a não existir mais, isto é, quando esse ente passa a ser “finalizado”? Ou será que o conceito de possibilidade aí empregado não está suficientemente elucidado?

Para elucidar essas questões e, consequentemente, dar uma adequada resposta a elas, Heidegger precisa mostrar que, caso o conceito de totalidade seja pensado enquanto uma soma de partes ou momentos vividos do ente que existe, essa totalidade seria completada e finalizada somente com a morte. Se a possibilidade da morte for entendida como a possibilidade de um utensílio, cuja realização de sua possibilidade significa a sua utilização de acordo com a finalidade no todo de remissões de significatividade, então, a possibilidade da morte significaria de fato apenas o findar do ser-aí. Ora, mas desse modo seria impossível compreender a totalidade do ser-aí humano, a não ser através da experiência da morte de outro ser-aí, uma vez que eu nunca teria um acesso privilegiado a essa possibilidade.

Entretanto, a compreensão da morte de outro ser humano só elucidaria o problema da totalidade, se a morte fosse um fenômeno igual para cada ser-aí. O caso é que, na antecipação para a morte, ocorre a singularização do ser-aí, na medida em que ninguém pode morrer a morte de outra pessoa. A morte, no sentido existencial, apresentada na analítica existencial, evidencia que, mesmo que um ser-aí supostamente morra heroicamente por outro ser-aí, a rigor, o que ocorre é que esse ser-aí morre por si mesmo em função de um outro ser-aí, pois é sempre a morte de si próprio que está em questão, justamente porque é a existência de um determinado ser-aí que está em questão. Heidegger é muito claro nesse ponto: somente eu posso morrer a minha morte, justamente porque somente eu posso existir a minha existência.

A pretensão de Heidegger é demonstrar como ocorre o comportamento significativo do ser-aí humano com a possibilidade da sua morte, seja na cotidianidade imprópria, seja de modo autêntico. A partir desse pressuposto é que se insere a tese interpretativa do presente artigo, cuja pretensão é a de mostrar que, para a adequada compreensão da finitude existencial, é preciso apresentar não apenas a vinculação entre possibilidade existencial e morte, mas também investigar a maneira pela qual o sentido existencial de morte possui independência do sentido comum de morte. A possibilidade da morte será pensada contiguamente à possibilidade existencial, a fim de expor um tipo de comportamento com o nosso fim que não implica uma morte fisiológica. Para elucidar esse ponto, Heidegger refere-se, em um primeiro momento, ao ainda-não que o ser-aí haverá de ser como sendo um resto pendente, isto é, aquele momento disponível que haverá ainda de ser completado em uma suposta linearidade temporal (Heidegger, 2009, p. 258/GA 2, p. 322). No entanto, conclui Heidegger, não se pode tomar o ainda-não pertinente ao ser-aí como um resto pendente, pois assim se tomaria tanto o ser-aí como um ente disponível quanto à temporalidade a partir da linearidade temporal (Heidegger, 2009, p. 261/GA 2, p. 324). É justamente a vinculação com a noção de possibilidade existencial que precisa ser pensada, quando se visa esse ainda-não do ser-aí enquanto um aspecto existencial.

 

1 A possibilidade existencial e os três sentidos do conceito de morte: morrer, falecer, perecer

Heidegger pretende desvelar fenomenologicamente como algumas interpretações não existenciais aparecem para o ser-aí humano como fenômenos, discriminando assim distintos sentidos pelos quais a morte é compreendida. Este é um ponto central para a investigação, pois pretendo aqui apontar que, ao pensar um conceito existencial de morte, Heidegger estabelece um sentido para o conceito de morte cuja radicalidade permite abordá-lo não apenas como uma morte vital. O que está em jogo, nesta importante discussão, é a investigação da finitude do ser-aí humano e de como é possível pensar o fim da existência, em função da analítica existencial, de sorte que somente a partir de uma situação extrema, como a da possibilidade da morte, é que será possível pensar a autenticidade.

Um dos aspectos centrais da analítica existencial consiste em expor o seguinte: mesmo sendo possível[5] abordar ontologicamente o ser-aí humano com o pressuposto ontológico usado para abordar os entes que são determinados por substratos de propriedades, essa interpretação mostra-se como inadequada e injustificada ontologicamente. Em Ser e Tempo, Heidegger apresenta os entes subsistentes (Vorhandenheit) enquanto determinados como substratos de propriedades, cuja modalidade determinante é a efetividade, de modo que, ontologicamente, os entes subsistentes são abordados através de categorias. Quanto à existência do ser-aí, a pergunta “o que é esse ente” não é adequada, pois a ontologia fundamental estabelece uma concepção de existência na qual uma abordagem que parta do pressuposto essentia/existentia não se sustenta. Nesse sentido, a existência humana será pensada não com base em um conjunto determinado por propriedades, todavia, como possibilidade de ser: o ser-aí humano se perfaz em modos de ser. Sobre isso, Heidegger (2009, p.162/GA 2, p. 190-191) destaca:

Aquilo que existencialmente “se pode” no compreender não é uma coisa, mas sim o ser enquanto existir. No compreender reside existencialmente o modo de ser [Seinsart] do Dasein enquanto poder-ser [Seinkönnen]. O Dasein não é um ser subsistente e que possui, adicionalmente, a faculdade de poder algo, mas ele é primariamente um ser-possível [Möglichsein]. O Dasein é sempre o que pode ser e no modo de sua possibilidade. O essencial poder-ser do Dasein concerne aos modos já caracterizados do ocupar-se do “mundo”, da solicitude pelos outros e, em tudo isso e desde sempre, o poder-ser em relação a si mesmo, em-virtude-de si.

 

            A noção de possibilidade atribuída à existência não tem o sentido de possibilidade modal atribuída ao ser da subsistência (Vorhandenheit). Essa observação é feita por Heidegger justamente na sequência dessa passagem, observando que, enquanto para os entes subsistentes o possível é somente aquilo que não é real e que jamais é necessário, a possibilidade ontológica é a derradeira determinação ontológica do ser-aí humano: o primado do possível sobre o efetivo. A importância disso se dá, na medida em que, ao pensar o ser-aí como poder-ser, o ser-aí está sempre lançado facticamente em possibilidades.

            Ao pensar a existência a partir da estrutura ser-no-mundo, a existência humana é compreendida enquanto abertura (Erschlossenheit), isto é, uma abertura compreensiva para os diversos sentidos de ser. Nesse sentido, o comportamento intencional e significativo do ser-aí, tanto em-virtude-de si mesmo quanto em relação a outros entes distintos, ocorre na abertura de mundo.

            Tendo em vista que o ser-aí é essencialmente compreensão de ser, todo seu comportamento se constitui como um projetar-se estruturado temporalmente para possibilidades. Dessa maneira, na preleção Problemas Fundamentais da Fenomenologia, Heidegger apresenta a intencionalidade como pertencente à existência (Heidegger, 2012, p. 231/GA 24, p. 224). Com isso, Heidegger busca mostrar que o ser-aí já sempre se relaciona com o ente, sem que isso precise ser explicitado objetivamente. Em termos hermenêuticos, essa relação revela que, embora haja sempre uma possível relação com o ente, ela depende da temporalidade ekstática que possibilita a compreensão de ser e, desse modo, o comportamento para com o ente. É nesse sentido que o comportamento do ser-aí para com os entes é caracterizado por ser intencional, pois Heidegger considera a intencionalidade como aquele aspecto do “[...] ser se comportando junto ao ente” (Heidegger, 2012, p. 231). Sobre o aspecto central da intencionalidade na fenomenologia, no PFF, Heidegger (2012, p. 389/GA 24, p. 379) explicita o seguinte:

A intencionalidade – o estar-dirigido para algo e a co-pertinência que reside aí entre a intentio e o intentum – que é designada pura e simplesmente na fenomenologia como o fenômeno originário derradeiro, tem a condição de sua possibilidade na temporalidade e em seu caráter ekstático-horizontal. O ser-aí só é intencional porque ele é determinado em sua essência pela temporalidade. Do mesmo modo, está em conexão com o caráter ekstático-horizontal a determinação essencial do ser-aí, o fato de ele em si mesmo transcender.

 

Na medida em que a intencionalidade é fundada na temporalidade, a compreensão é já intencional. Ao partir da premissa de que compreensão de ser é projetar-se para possibilidades, o comportamento para com os entes é intencionalmente significativo e estruturado temporalmente. Nesse sentido, ao apresentar o modo de ser do ente ser-aí como existência, em uma indicação formal, isso quer dizer: o ser-aí é, enquanto poder-ser compreensivo (verstehendes Seinkönnen), aquele ente que em tal ser está em jogo o seu próprio (Heidegger, 2009, p. 247/GA 2, p. 307). Essa definição intencional indica a existência não enquanto definida de antemão pela efetividade, porém, como poder-ser. Por conseguinte, essa característica expressa um dos pontos centrais do conceito de existência elaborado por Heidegger, qual seja, que existência é possibilidade existencial.

Neste ponto, é preciso comentar um aspecto central da presente análise, embora elaborada de maneira muito sutil, em ST, que é a diferença entre os sentidos de ser da existência e da vida. Tendo em vista que a analítica existencial apresenta a existência enquanto modo de ser do ser-aí, uma interpretação da existência humana que tome o modo de ser da vida (orgânica) como critério para interpretar o ente ser-aí acaba por não ser uma interpretação adequada. Concernente ao sentido de ser da vida[6], Heidegger expõe, de forma bem restrita, em ST, um método hermenêutico para que ela possa ser interpretada originariamente, respeitando assim sua identidade ontológica irredutível. Esse método foi chamado de interpretação privativa, o qual, tomado grosseiramente, consiste na destruição e visualização de pressupostos hermenêuticos e ontológicos na base da estrutura ser-no-mundo, em uma operação de privação na intepretação que pode vir a encobrir esse fenômeno, sobretudo quanto às interpretações ônticas e científicas[7].

Com respeito ao fenômeno da morte, Heidegger enfatiza que o falecer ou deixar de viver, enquanto aquilo que é experimentado e compreendido cotidianamente, se mostra como um fenômeno intermediário[8] e codeterminado existencialmente. Internamente ao desenvolvimento da analítica existencial, a possibilidade da morte desvela, de forma singular, a finitude do ser humano como possibilidade de ser. Antes de apresentar os sentidos que Heidegger atribui ao fenômeno da morte, é importante pontuarmos o debate sobre esse tema. Ian Thomson (2013) articula, de maneira excelente, essa discussão, ao distinguir basicamente duas vertentes antagônicas de posições acerca desse problema. De um lado mais amplo, frisa Thomson (2013, p. 263), estariam os intérpretes mais tradicionais, como Mulhall (2005) e Hoffman (1993), que entenderiam a morte como mortalidade e falecimento, não elaborando uma distinção muito precisa entre a morte vital e a existencial.

De outro lado, estaria um grupo bem menor, entre os quais ele se refere a Blattner (1999), Haugeland (2000) e White (2005), que pensariam o conceito de morte como um colapso de significatividade ou de compreensibilidade. Thomson assumirá, em boa parte, a interpretação de Blattner e entenderá a morte a partir da noção de possibilidade – a possibilidade mais extrema e intransferível –, de modo que ele dirá que, para Heidegger, a morte é uma ruptura, um colapso de minhas possibilidades, mas que, justamente com esse colapso, eu posso assumir a minha existência de maneira insigne (Thomson, 2013, p. 272). A morte será um colapso de mundo, através do qual todos os meus projetos existenciários (papéis sociais, projetos pessoais etc.) entram em colapso, restando apenas um projeto primordial de ser.

Levando-se isso em conta, agora é possível falar com mais clareza sobre os distintos sentidos ontológicos circunscritos ao ser para a morte, distinguidos entre o deixar de viver ou falecer (Ableben), perecer (Verenden) e morrer (Sterben), como afirma Heidegger (2009, p. 263-4/GA 2, p. 328):

Por sua vez, no interior da ontologia do Dasein, prévia a uma ontologia da vida, a análise existencial da morte está subordinada a uma caracterização da constituição fundamental do Dasein. O terminar do vivente nós temos chamado de perecer. Na medida em que o Dasein também “tem” sua morte fisiológica, vital, ainda que não onticamente isolada, senão co-determinada pelo seu modo originário de ser, e na medida em que o Dasein pode terminar sem que propriamente morra, e que, por outro lado, como o Dasein não perece pura e simplesmente, nós designaremos este fenômeno intermediário com o termo falecer. Por sua vez, o termo morrer nós reservamos para o modo em que o Dasein está voltado para sua morte. Segundo isso, é preciso dizer: o Dasein nunca perece.

 

Em um primeiro momento, interpretar existencialmente a morte significa compreendê-la a partir do ser-aí enquanto poder-ser, isto é, a partir do ser-aí humano enquanto projeção lançada, enquanto um ente que se projeta para possibilidades. Tendo em vista que o ser-aí é essencialmente compreensão de ser, todo seu comportamento se constitui como um projetar-se estruturado temporalmente para possibilidades. Assim, ao entender a morte como uma possibilidade primordial e ao compreender o ser-aí com base na transcendência para possibilidades, a morte vital e fisiológica do ser humano ocorre de um modo já interpretado. Nessa perspectiva, o morrer é interpretado por Heidegger em função de um sentido existencial, recaindo diretamente sobre a noção de possibilidade existencial.

Por sua vez, esse sentido de morrer significa algo como a experiência do colapso existencial do mundo, a partir da qual a angústia revelaria o nada e a falta de fundamento da existência (Thomson, 2013, p. 274). A morte vital e fisiológica do ser humano tem o sentido do falecer, significando assim a forma corrente e cotidiana pela qual a morte é interpretada. O fato de já ser um fenômeno interpretado significa que o fenômeno do falecer é codeterminado ontologicamente pelo ser do ser-aí. Nesse sentido, a analítica existencial mostra que a morte existencial precede o fim das funções vitais, embora um ser humano possa falecer sem propriamente morrer (Heidegger, 2009, p. 264/GA 2, p. 328-329). Concernente ao perecer, Heidegger reserva esse sentido de findar para os entes que são determinados pelo sentido de ser da vida (reino animal e vegetal). Desse modo, o ser-aí humano nunca pode ser entendido como um puro perecer.

É comum Heidegger investigar os conceitos filosóficos pela sedimentação histórica segundo a qual esses conceitos são disseminados na cotidianidade do ser-aí, pois é na riqueza da multiplicidade cotidiana que é possível visualizar o comportamento não teórico da existência. Nesse sentido é que urge a pergunta: como o ser-aí compreende impessoalmente a possibilidade do seu fim?

 

2 Tolstói e a morte na cotidianidade

No início do parágrafo no qual discute sobre o ser para a morte, na cotidianidade do ser-aí, Heidegger (2009, p. 269/GA 2, p. 339) assevera o seguinte:

No ser para a morte o Dasein comporta-se em relação a si mesmo enquanto eminente poder-ser. Mas o si mesmo da cotidianidade é o impessoal [das Man], o qual é constituído no estado interpretativo público que se expressa no falatório. Este último, por conseguinte, é o que deve tornar manifesto o modo como o Dasein cotidiano interpreta para si mesmo seu ser para a morte.

 

A discussão que Heidegger inicia tem o objetivo de salientar que essa “relação a si mesmo” não se dá apenas de um modo, isto é, ela pode ocorrer de modo autêntico ou inautêntico. Não é demais lembrar que, na segunda parte de Ser e Tempo, as estruturas ontológicas elucidadas na primeira parte da obra – em especial os conceitos de ser-no-mundo e cuidado – são reinterpretadas, agora a partir do horizonte temporal e finito da existência. Nessa linha, a investigação precisa dar conta de como se estrutura a relação cotidiana que o ser-aí tem com a possibilidade da morte. Ao mostrar que é com base no falatório que o ser-aí interpreta cotidianamente a possibilidade de sua morte, Heidegger reitera que toda interpretação possui como fundamento uma compreensão e, co-originariamente à compreensão, há uma disposição afetiva. Tendo isso em vista, a pergunta sobre como se abre a possibilidade da morte no impessoal fica mais complexa.

Uma característica central pertinente ao estado interpretativo público cujo conviver cotidiano se desdobra é o nivelamento das possibilidades de ser. Essa característica revela que os eventos cotidianos são dotados de uma falta de notoriedade, em que algo facilmente passa a ser substituído com grande velocidade e interpretado de maneira rasa. Ao ser absorvido no comportamento impessoal, o discurso público encobre o sentido existencial de morte. Isso significa que a morte enquanto possibilidade é velada, restando assim um tipo específico de certeza com relação à possibilidade da morte, isto é, uma certeza da morte enquanto morte vital e que acontece apenas com os outros, nunca consigo próprio. A morte passa a ser um evento público, no qual a interpretação impessoal contabiliza esse fenômeno e o vê apenas de um modo ambíguo e externo, isto é, apenas “o outro é que morre”.

Quando se diz “alguém morre”[9], ou “se morre”, ou “pessoas morrem”, queremos dizer (para usar uma expressão heideggeriana), no mais das vezes, que outras pessoas morrem, mas eu e meu mundo, de alguma forma, continuam aqui. A desconsideração da morte do outro na cotidianidade exemplifica, de modo insigne, a desconsideração da existência do outro enquanto outro, já que tudo fica nivelado na absorção do mundo. Por conseguinte, o intento da análise de Heidegger é compreender quem é esse “sujeito” e como se estrutura a compreensão – e, consequentemente, a abertura de mundo – dele, no que diz respeito à sua possibilidade mais própria. Por um lado, o si mesmo impessoal resguarda-se na mais potente segurança e solidez que o estado interpretativo público proporciona. Por outro lado, essa segurança e estabilidade possuem uma dinâmica que mantém esse si mesmo impessoal distante de si mesmo (distante das possibilidades próprias desse si mesmo) e dos entes com os quais se relaciona.

Concernente à abertura de mundo, ela é configurada a partir dos existenciais da compreensão, disposição afetiva e discurso (Heidegger, 2009, p. 152/GA 2, p. 177). Cabe ao discurso articular o sentido e a compreensibilidade do ser-no-mundo; ao fazer isso, o discurso também articula a convivência do ser-aí. Por outro lado, há igualmente uma configuração específica para a abertura de mundo impessoal, através dos existenciais do falatório, curiosidade e ambiguidade. É no falatório que se articula a inteligibilidade do estado interpretativo público. Ao falar e interpretar a morte como a possibilidade mais própria do poder-ser, cotidianamente essa interpretação turva e encobre justamente o caráter de possibilidade da morte. O ponto central é o seguinte: tendo em vista que o si mesmo impessoal é um “ninguém” específico, ao interpretar a morte como algo que acontece a todos, esse “todos” é também ninguém em específico, inclusive esse si mesmo passa a ser entendido como ninguém. Desse modo, quando “se morre”, eu ainda permaneço aqui. Nas palavras de Heidegger (2009, p. 269/GA 2, p. 336):

A análise deste “morre-se” revela, inequivocamente, o modo cotidiano ser para a morte. [...] O “morre-se” difunde a convicção de que a morte atinge, por assim dizer, o impessoal. A interpretação pública do Dasein diz: “morre-se”, porque dessa maneira qualquer um outro e o próprio impessoal pode dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém. O “morrer” é nivelado à condição de um incidente que, não obstante atinja ao Dasein, não pertence propriamente a ninguém. Se alguma vez a ambiguidade é própria do falatório, ela é nesse dizer sobre a morte.

 

Se a disposição afetiva é co-originária à compreensão e ao discurso, também é pertinente ao estado interpretativo público uma disposição de humor. Segundo Heidegger, em função de a interpretação cotidiana encobrir o fenômeno da morte, esse encobrir é também um esquivar-se da morte. A segurança e tranquilidade articuladas no impessoal evidenciam que, no fundo, há um medo da morte. Esse medo toma a morte como algo real, mas que não acontece nunca consigo mesmo. Em contraponto a esse medo estaria a angústia, esta sim como uma disposição afetiva que abriria de modo próprio essa possibilidade mais própria do ser-aí. A imposição da norma pública em tranquilizar o fato de que “a morte acontece, menos comigo”, acaba por levar o ser-aí a projetar-se em possibilidades que não são as suas, e a temer a sua morte, ao invés de compreendê-la como a sua possibilidade mais própria.

Para exemplificar esse ponto, sacrifico aqui a criatividade e acato uma referência feita por Heidegger, em Ser e Tempo, sobre uma obra de Lev Tolstói. Heidegger faz uma referência à novela A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói (2006), amparando-se em âmbitos literários para dar conta do significado da morte, na alteridade, especificamente como se desdobra a compreensão na convivência impessoal do ser-aí, ao lidar com aquele que está falecendo. De acordo com Heidegger, o que Tolstói faz é apresentar de uma maneira exemplar os fenômenos da comoção e do colapso impessoalmente entendidas. A novela tem como personagem central o juiz Ivan Ilitch, ora inteligente e agradável, ora frio e pedante, com uma vida dominada pela sua ocupação, determinado pela firmeza da estabilidade que a vida social burocrata proporciona.

Ao começo da novela, ficamos sabendo da doença desse personagem, conjuntamente aos comentários de seus colegas de trabalho, comentários estes que orbitam apenas no nível de interesses e finalidades sobre seu cargo e seus bens. Mesmo no âmbito de sua família, os interesses concernem à posição ocupada por Ivan, na família, mesmo a sua morte e doença passam a ser também vulgares. Quando a doença o acomete, Ivan é como que excluído do mundo dos vivos, isto é, do mundo social, público e familiar, das interações interpessoais e perdendo também sua autonomia prática, devido à doença. Ivan, que viveu na dissimulação, sempre absorvido em escolhas e responsabilidades que não eram as suas, de sorte que se pode dizer que nada teve realmente de seu, é relegado a uma extrema solidão por aqueles que julgava serem de sua confiança.

Em meio à doença e à experiência do próprio falecimento que se arrasta em uma agonia, Ivan perde sua relação com o mundo de que havia participado, perde a relação com o que havia de humanidade. Por outro lado, acaba por despertar e manter uma relação de amizade com o seu empregado, cuja existência até então mal havia notado. Em meio a essa agonia do “chegar ao fim”, em meio às constantes mentiras do médico e da família, Ivan olha retrospectivamente sua vida e a toma de imediato em uma ressignificação, ainda que Tolstoi discorra sobre isso com uma sutileza ímpar. Essa clareza que até o mais torpe dos seres humanos pode ter adviria justamente da compreensão da própria finitude. O exemplo de Heidegger decorre no sentido de mostrar como o impessoal busca uma tranquilização perante a morte, uma comoção pública dissimulada que a encobre completamente. No entanto, essa compreensão da própria finitude, do colapso total da identidade que julgamos ter, poderia servir como exemplo para o sentido de morte existencial, na medida em que há a possibilidade da morte existencial desvinculada da morte fisiológica.

A interpretação da possibilidade da morte como um “caso de morte” não diz respeito a uma abordagem sociológica sobre esse fenômeno, embora essa análise ontológica ofereça pressupostos que, certamente, ajudariam a elucidar uma análise desse tipo. Ao fazer essa abordagem, Heidegger também procura apontar que essa interpretação pressupõe uma noção de realidade muito distinta da noção de possibilidade existencial por ele elaborada.

Como habilmente explica Thomson (2013, p. 264), ao encobrir a morte como possibilidade existencial, na cotidianidade, a morte é compreendida enquanto falecimento. O falecimento é entendido como o aparente fim dos projetos mundanos, o fim daquilo que medianamente se considera como existência (as relações pessoais, o colapso dos meus projetos pessoais) e, em muitos casos, esse colapso é acompanhado da experiência da morte fisiológica. Importante ter presente, ainda nesse ponto, a interpretação de Thomson, pois ele sustenta que o fenômeno da morte existencial não deve ser interpretado como completamente cindido do sentido de falecer. O fato de ser possível morrer – no sentido existencial, isto é, ter globalmente os projetos nulificados e ser transpassado pela estranheza do mundo – sem falecer significa justamente que não é preciso experimentar a morte fisiológica para que o colapso existencial ocorra[10].

O contrário também é válido, isto é, é plenamente plausível a possibilidade de se ter a experiência da morte fisiológica e tudo que ela implica (o temor e o medo pela perda dos meus projetos mundanos, sofrimento etc.), sem que haja a morte existencial. Além disso, também é possível falecer sem ter essa experiência, como no caso de um falecimento repentino, seja por acidente, seja doença. O importante, nesse caso, é que o fenômeno do falecer é concebido por Heidegger como um fenômeno intermediário, pois ele é codeterminado pelo modo de ser originário do ser-aí (Heidegger, 2009, p. 263/GA 2, p. 328). Por conseguinte, agora é preciso elucidar de forma mais clara o nexo ontológico entre possibilidade existencial e o fenômeno da morte enquanto possibilidade da impossibilidade da existência.

 

3 A morte como “a possibilidade da impossibilidade da existência em geral”

O fenômeno da morte precisa ser compreendido em uma vinculação originária com a noção de possibilidade existencial, explicada através da noção de compreensão. Nesse sentido, Heidegger afirma que compreender é “[...] projetar-se para uma possibilidade, manter-se no projeto sempre a cada vez em uma possibilidade” (Heidegger, 2012, p. 402/GA 24, p. 392). Mas, o que afinal significa o conceito de projeto (Entwurf)? Projetar-se não é uma consequência racionalizada de um comportamento compreensivo e intencional, como a ação de planejar e esboçar projetos a serem executados. O caso é que, ao apresentar o conceito de compreensão enquanto um projetar-se para uma possibilidade, o compreender enquanto tal tem a estrutura existencial do projeto (Heidegger, 2009, p. 164/GA 2, p. 194). É possível garantir que, pelo fato de as possibilidades existenciais serem descobridoras, há um sentido alético nessas possibilidades.[11] Assim, enquanto o ser-aí existir, haverá uma compreensão pré-ontológica de si mesmo e dos entes com os quais ele lida, embora isso não seja operado de modo explícito e objetivo.

Para a tese interpretativa do presente artigo, torna-se imprescindível ressaltar esse ponto, visto que essa discussão elucida o nexo ontológico entre finitude e possibilidade existencial. Ao explicar o conceito de projeto, Heidegger pretende abordar o conceito de compreensão não apenas enquanto portador do sentido restrito de compreensão de ser, mas também visa ao compreender no sentido de possibilidade existencial que constitui, a partir da temporalidade, o existir (Heidegger, 2012, p. 403/GA 24, p. 394). Esse aspecto é central para elucidar o que está em jogo no conceito de ser para a morte, na medida em que é aquilo que permite a Heidegger explicitar a radicalidade existenciária de toda compreensão existencial. Nessa perspectiva, Heidegger (2012, p. 403/GA 24, p. 394-395) ressalta: “[...] o compreender como projetar-se é o modo fundamental do acontecimento do ser-aí. Ele é, como também podemos dizer, o sentido propriamente dito do agir. Por meio do compreender, o acontecimento do ser-aí é caracterizado: sua historicidade”. Essa breve passagem descreve bem como o aspecto projetivo da compreensão caracteriza a existência do ser-aí, mostrando assim que a historicidade irrompe a partir de uma abertura para diversos sentidos de ser condicionados pela estrutura ekstático-horizontal da temporalidade[12].

Concernente à possibilidade primordial da morte, ela também é aquela possibilidade que abre o ser-aí humano para a sua futuridade (para o seu advir) e para a possibilidade de existir propriamente, no sentido específico da abertura qua verdade originária. Essa condição fica evidenciada, quando temos presente que a angústia diante da morte se constitui como a abertura para o fato de que o ser-aí existe como ser-lançado para seu fim (Heidegger, 2009, p. 268/GA 2, p. 334). É preciso, portanto, compreender a morte em função do poder-ser que é o ser-aí. É com esse pressuposto que Heidegger pensa a morte como a “possibilidade da impossibilidade da existência em geral”. Quando, na condição extrema, o ser-aí se mostra desvelado na niilidade de ser um puro poder-ser desvinculado de possibilidades existenciais, ainda há a compreensão projetiva, porém, para modos de ser que deixam de estar vigentes, numa inadequação entre poder-ser e as possibilidades. Heidegger (2009, p. 278/GA 2, p. 262) argumenta:

Quanto mais patente se compreenda esta possibilidade, tanto mais puramente penetrará o compreender na possibilidade enquanto possibilidade da impossibilidade da existência em geral. A morte, como possibilidade, não oferece ao Dasein nada que ele possa “realizar efetivamente” e nada que ele mesmo possa ser enquanto efetivamente real. A morte é a possibilidade da impossibilidade de todo comportamento para..., de todo existir. [...] O ser para a morte, enquanto adiantar-se para essa possibilidade, possibilita pela primeira vez esta possibilidade e a deixa livre enquanto tal.

 

É importante reiterar o significado do conceito de possibilidade existencial. Investigar o caráter existencial da possibilidade significa compreender a possibilidade enquanto compreensão projetiva. Nesse sentido, para Heidegger, uma possibilidade somente é existencial enquanto ela não for tematizada, pois tematizar é privar o caráter de possibilidade do projeto (Heidegger, 2009, p. 164/GA 2, p. 192). Dessa maneira, ao investigar a morte enquanto possibilidade, o que se almeja é desvelar essa possibilidade em uma dimensão mais originária e prévia à sua objetivação, isto é, investigar o fenômeno da morte a partir do comportamento e projeção existencial do ser-aí antes de um comportamento que tome essa possibilidade como objeto de consideração.

Logo, com a tese de que a morte é a possibilidade da impossibilidade da existência em geral, Heidegger elabora um conceito de morte existencial, o qual possui independência do sentido comum e mundano de morte, apresentado mediante o conceito de falecer. Tal como foi abordado, não obstante sejam sentidos independentes, eles se relacionam. Portanto, o falecer, enquanto o modo como ôntica e mundanamente encaramos a possibilidade do nosso fim, depende ontologicamente dessa radicalidade da existência enquanto possibilidade finita de ser. A morte é entendida como “impossibilidade”, não pela aniquilação fisiológica do ser-aí humano, mas porque, como afirma Reis (2016, p. 7), “[...] o conceito existencial de morte designa uma condição de completa desvinculação de todas as possibilidades existenciais”. No entanto, esse ponto precisa ser compreendido conjuntamente ao conceito de angústia.

A morte[13] é a possibilidade primordial do ser-aí, e é uma possibilidade de ser. Essa formulação visa a descrever fenomenologicamente a experiência que singulariza o ser-aí. A singularização da existência, por sua vez, é decorrente da abertura privilegiada que a angústia enseja. É preciso ter presente que as disposições afetivas mostram como o ser-aí está (“a quantas anda seu ser”), pois, no mundo público do impessoal, os humores tendem a ser estáveis e normalizados na compreensão mediana. Essa estabilidade, por outro lado, não designa um único estado de humor. O que pode ocorrer são mudanças de humor com uma frequência muito alta; todavia, a constância em todos esses estados de humor é justamente a ausência de profundidade, de sorte a não haver nenhuma abertura originária do ser-aí, quando este está absorvido no impessoal. A cotidianidade mediana é descrita como uma aparente tranquilidade e segurança, em que nos familiarizamos e habitamos o mundo como um “estar em casa” (Heidegger, 2009, p. 207/GA 2, p. 247).

Por outro lado, para que o ser-aí se encontre consigo mesmo e para que ocorra a singularização, não basta apenas um processo de raciocínio ou uma consideração sobre si mesmo. É preciso que aconteça uma ruptura, e são os estados de humor os responsáveis por isso, em especial a angústia. Ela desestabiliza completamente essa segurança e estabilidade, de modo que o ser-aí é acometido por uma estranheza que o faz sentir-se um completo estrangeiro no mundo. Enfatiza Heidegger: “Na angústia ele sente-se ‘estranho’. Com isso, se expressa, em primeiro lugar, a peculiar indeterminação do ‘nada e em parte alguma’ no qual o Dasein se encontra enquanto se angustia” (Heidegger, 2009, p. 207/GA 2, p. 250, grifo do autor). Tendo em vista que, na cotidianidade, o ser-aí se movimenta em uma familiaridade com o mundo, sentindo-se em casa, a estranheza (Umheimlichkeit) a que o ser-aí é submetido objetiva um “não estar em casa”. Esse colapso existencial do mundo revelado pela angústia retira o ser-aí de sua absorção decadente no “mundo” (Heidegger, 2009, p. 207/GA 2, p. 251), quebrando com toda familiaridade e vinculação vigente. Nesse sentido, Heidegger (2009, p. 208/GA 2, p. 252, grifo do autor) assevera: “[...] o tranquilo e familiar ser-no-mundo é um modo da estranheza do Dasein, e não o contrário. O não-estar em casa deve ser concebido ontológico-existencialmente como o fenômeno mais originário”.

A angústia é justamente o afinamento do ser-aí com o colapso e, este, por sua vez, será interpretado aqui com Blattner[14], cujo fenômeno do colapso será entendido enquanto a absoluta incapacidade do ser-aí em projetar-se nos seus projetos existenciários e compreender-se a partir deles. O elemento que é desfeito na angústia é a significação, de forma que o ser-aí não se desintegra, nem os utensílios deixam de ter suas respectivas materialidades, mas o que ocorre é a assignificatividade global, as possibilidades perdem completamente sua força de vinculação. Se o mundo, enquanto aspecto ontológico do ser-aí aberto na unidade horizontal da temporalidade ekstática, é o local para o qual transcendemos (Heidegger, 2009, p. 380/ GA, 2, p. 484-485) e onde compreendemos os distintos sentidos de ser, é assolado pela assignificatividade, restam-nos apenas projetos sem qualquer vinculação no mundo. Contudo, mesmo que o ser-aí humano não se reconheça em qualquer identidade prática, mesmo que a totalidade dos projetos a que o ser-aí esteja vinculado entre em colapso, ainda assim, o ser-aí é possibilidade existencial, pois haverá a relação ao ser e ao projeto primordial de compreensão de ser. Nessa perspectiva, o ser humano ainda se compreenderá como um puro projetar-se[15]. Sobre o caráter de possibilidade da morte, Heidegger (2009, p. 277/GA 2, p. 347) escreve o seguinte:

[...] o ser-para-a-morte – suposto que este deva abrir compreensivamente a possibilidade já caracterizada e abri-la como tal – esta deve ser compreendida em toda sua força como possibilidade, interpretada como possibilidade e, no comportamento relativo a ela, tem de ser suportada como possibilidade.

 

O ser-para-a-morte, como a possibilidade mais própria do poder-ser que é o ser-aí, é um modo de ser em que o ser-aí é para sua morte. Nesse sentido, de acordo com Heidegger, o comportamento próprio e autêntico para a possibilidade da morte é o do “adiantar-se para a possibilidade” (Vorlaufen in die Möglichkeit) da morte e define do seguinte modo o conceito ontológico-existencial pleno da morte: “[...] a morte, como fim do Dasein, é a possibilidade mais própria, não-relacional, certa e, como tal, indeterminada e insuperável do Dasein” (Heidegger, 2009, p. 275/GA 2, p. 343-344, grifo do autor). A morte é a possibilidade mais própria, pois somente se adiantando para essa possibilidade pode o ser-aí romper com o impessoal; ela é não-relacional, pois ela singulariza o ser-aí, ao isolá-lo do impessoal, trazendo-o de volta ao ser-cada-vez-meu próprio a cada ser-aí; é certa empírica e ontologicamente; é indeterminada quanto ao seu “quando”, de sorte que sempre se está sob a ameaça da morte; é insuperável, pois, no caso da morte existencial, só se pode existir através do que a morte desvela e, do ponto de vista do falecer, não se pode afirmar que há algo para além desse fim. Portanto, a problemática da morte, trabalhada por Heidegger, com base no conceito de ser-para-a-morte, revela-se como a instância que pode singularizar o ser-aí humano, ao iluminar de maneira insigne a existência enquanto tal.

 

Considerações finais

Por fim, é necessário fazer um comentário sobre a presente discussão, concernente à incompletude do presente artigo. Na discussão sobre o ­ser-para-a-morte, Heidegger focaliza o conceito de antecipação. O passo além estipulado por Heidegger – e não discutido aqui – se dá apresentar o conceito de consciência, a partir do qual se busca compreender como é o poder-ser ôntico e como esses fenômenos se encontram entrelaçados. Mais do que isso, é em função do conceito de consciência que Heidegger elabora o importantíssimo conceito de decisão. Ao articular as noções existenciais de decisão e antecipação, a investigação heideggeriana pretende mostrar, pela decisão antecipatória, que a interpretação existencial da possibilidade da morte parte justamente do testemunho de uma possibilidade existenciária.

Com base nesse ponto, inserem-se na discussão três dos conceitos centrais da ontologia heideggeriana, que são a temporalidade, o difícil conceito da verdade e a historicidade. Esses aspectos são essencialmente ligados, porque, na ontologia de Heidegger, é na decisão antecipatória que ocorre a abertura privilegiada da existência humana e a verdade originária se abre. A finitude existencial, por sua vez, é determinada pela temporalidade finita, pois é na possibilidade da morte que o futuro originário é desvelado. Todos esses elementos perfazem o núcleo da discussão heideggeriana sobre a finitude existencial, algo que não haveria como ser exporto neste artigo.

A partir do exposto, o fenômeno da morte foi aqui interpretado de um modo não convencional, uma vez que o conceito de morte existencial não foi compreendido enquanto mortalidade. Mas, o que significa compreender a morte enquanto mortalidade? A perspectiva de que Heidegger parte, para analisar o conceito de ser para a morte, sem dúvidas pode permitir – e permitiu – a leitura de que a possibilidade da morte seja entendida enquanto mortalidade. Entender a morte como mortalidade não significa simplesmente tomar a possibilidade da morte como um acontecimento inevitável. A morte enquanto mortalidade significa compreendê-la em função do conceito de realidade, ou efetividade, pois, nessa leitura, tanto a morte existencial quanto a morte vital coincidiriam. Para ser justo, mesmo com base na leitura que toma o fenômeno da morte enquanto mortalidade, alguns pesquisadores[16] conseguiram pensar consequências importantes, por essa perspectiva. O exemplo mais evidente diz respeito ao existir autêntico, compreendido a partir do fato de que somente ao compreender a minha mortalidade eu poderei ser autêntico. Nessa compreensão, estaria implícito o fato de que minhas escolhas são limitadas pela possibilidade de que eu, a qualquer momento, posso não mais estar no mundo. Nesse sentido, caso minhas projeções para as minhas possibilidades sejam autênticas, eu as tomaria partindo da minha finitude, levando em conta o fato de saber que eu vou morrer existencialmente e vitalmente.

No entanto, a tese interpretativa que proponho, neste estudo, parte de outra perspectiva. Ao ser uma constante em toda possibilidade existencial, a possibilidade da morte existencialmente compreendida mostra que, em todo horizonte semântico, a partir do qual atribuímos forma e sentido à nossa existência, o cuidado enquanto ser do ser-aí está em jogo. O decisivo nessa discussão concerne à maneira pela qual a existência humana é determinada pela possibilidade da morte, em seus diferentes modos.

Um dos objetivos centrais do presente estudo foi o de pensar a perspectiva da possibilidade da morte vinculada à possibilidade existencial. A partir dessa possibilidade primordial, intransferível e que nos revela pela primeira vez o futuro originário, nós podemos nos singularizar, uma vez que a possibilidade da morte é aquela que singulariza o ser-aí humano. O conceito existencial de morte se mostrou como o colapso global dos projetos existenciais, não possuindo assim muita similaridade com o conceito comum de morte. Talvez o aspecto existencial mais insigne da possibilidade da morte para a singularização do ser-aí humano seja o fato de essa possiblidade não ser relacional, pois seria a única possibilidade intransferível, a única possibilidade que é minha por excelência. Podemos perceber também que, ao compreender a minha finitude, eu compreendo o ser-aí no outro ser-aí enquanto finito, rompendo com o nivelamento impessoal. Portanto, ao compreendermos a morte como possibilidade fundamental que nos permite compreender de forma originária a nós mesmos, de modo singular, essa compreensão também permite que a compreensão dos outros enquanto outros ocorra. Esse aspecto é fundamental, sobremaneira, no aspecto da historicidade humana, pois a compreensão da finitude humana abre um modo genuíno de nos relacionarmos com a história. A responsabilidade de pensar o legado e explicitar os pressupostos que nos determinam é a tarefa do pensar que parte da perspectiva da finitude.

 

Being towards death, existential possibility and finitude existence in Being and Time

 

Abstract: In Being and Time, Heidegger presented the finitude of human existence from the concepts of being towards death and anticipatory resoluteness. By interpreting human existence as existential possibility, it becomes possible to properly understand existential death as distinct from death in the vital sense. In view of the projective characteristic of understanding, Heidegger shows that projection into possibilities is always subject to risk and failure, since what sustains the “existential” aspect of existential possibility is projection in it. In this sense, the objective of this article is to present and discuss the concepts of death, existential possibility and finitude existence based on the interpretative thesis that Heidegger's elaboration of the existential concept of death is independent of the common and mundane sense of death, presented through the concept of demise, based on the thesis proposed by Heidegger that death is the possibility of the impossibility of existence in general.

 

Keywords: Heidegger. Ontology. Being-towards-death. Finitude. Existential possibility.

 

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Recebido: 06/08/2023 - Aceito: 23/09/2023 - Publicado: 13/02/2024



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. Professor na Educação Básica pelo Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1068-902X. E-mail: andre.r.silver@gmail.com.

[2] Para evitar confusões, uma nota de tradução: o termo “existencial” enquanto tradução do termo alemão “existenzial”, e “existenciário” enquanto a tradução do termo alemão “existenziell”.

[3] Os momentos que compõem a estrutura ser-no-mundo são: o mundo; o ente que existe no mundo, pelo qual se pergunta quem é o ente que existe na cotidianidade mediana; e a forma pela qual se configura a abertura para mundo do ente que existe, o ser-em.

[4] Quando Heidegger investiga a historicidade da existência, a totalidade do acontecimento do ente que existe entre nascimento e morte, ele afirma que a investigação sobre o ser para a morte ficou um tanto unilateral, ressaltando que morte é um “fim” do ser-aí, mas que há outro fim, o nascimento: “Porém a morte não é senão o ‘fim’ do ser-aí e, em termos formais, somente um dos fins que englobam a totalidade do ser-aí. O outro ‘fim’ é o ‘começo’, o ‘nascimento’. Só o ente que existe ‘entre’ nascimento e morte exibe o todo buscado” (Heidegger, 2009, p. 387/GA 2, p. 493). Sobre esse assunto, cf. Reis (2004, p. 53-77).

[5] Na analítica existencial, vemos que essa possibilidade é, em verdade, um aspecto normativo da interpretação mediana da cotidianidade. Em geral, a interpretação mediana compreende a pluralidade ontológica a partir de uma completa indiferença, de forma que comumente o ser-aí humano compreende a existência como vida ou utensílio, e assim por diante.

[6] Cf. Silveira, 2014, p.138-168.

[7] Um dos pontos mais delicados na obra de Heidegger é a maneira como ele compreende o sentido de ser da vida. Esse conceito, tratado apenas em algumas passagens em Ser e Tempo, com base na interpretação privativa – e, esporadicamente, em outros escritos da década de 1920 -, torna-se fundamental na preleção de 1929/30, sendo responsável por apresentar um novo sentido de finitude, não mais ligado à morte existencial, mas à finitude de ser. Além da abordagem própria ao âmbito da vida orgânica, que se torna insigne pela originalidade, embora com muitos problemas. Concernente à ontologia da vida orgânica e ao círculo ambiental animal, cf. Buchanan (2008). Sobre o conceito de natureza – em especial o conceito de physis -, e a maneira como o ser humano existencialmente habita o mundo e a natureza, cf. Foltz (1995); quanto ao âmbito da vida e da natureza em um sentido amplo, especificamente à temporalidade, cf. McNeill (2006). Sobre a relação desse problema em Ser e Tempo, cf. Reis, Róbson R. & Silveira (2010). A respeito desse problema, a partir do conceito de verdade, na preleção de 1929/30, cf. Silveira (2015).

[8] Esse fenômeno é chamado de intermediário, em função dele ser codeterminado pela estrutura existencial do ser-aí humano e pelo cuidado, o ser do Dasein. Com base na leitura de Heidegger, a interpretação que fazemos é a de que o falecer é um fenômeno entre o âmbito fisiológico e o âmbito existencial. No entanto, na medida em que ele sempre ocorre de uma maneira já interpretada pelo ser humano, o âmbito ontológico é o determinante dessa compreensão. Obviamente, esse ponto levanta muitas questões quanto à existência humana na analítica existencial, uma vez que a discussão precisa dar conta de um grande problema, a saber: em que medida e em que sentido a natureza é parte da estrutura existencial do ser humano? A resposta de Heidegger, ao menos em ST, consiste em apresentar o ser-aí humano em função de uma ontologia existencial, cuja consequência é a separação abissal entre existência e vida. O ponto delicado se dá justamente no fenômeno da possibilidade da morte. Na preleção de 1929/30, Heidegger opera a partir de outra perspectiva, ainda que mantendo a diferença abissal, ao sustentar que nós acompanhamos a natureza sempre parcialmente, porque a natureza e a vida não se mostram integralmente, dada a sua (e a nossa) condição ontológica finita. Sobre os conceitos de abertura, mundo, natureza e a discussão sobre finitude da existência e finitude de ser de Ser e Tempo à preleção de 1929/30, cf. Silveira (2019).

[9] “Das Man” quer dizer impessoal, mas, muitas vezes ocorrem variações na tradução. Fausto Castilho traduz por “a gente”; Jorge Rivera traduz por algo como “se”, no sentido de “se faz algo”. Tenho preferido traduzir pela palavra “impessoal” e, quando é o caso, qualificar com outros termos o sentido da frase. No caso específico, poderia ser bem adequado utilizar a expressão “quando se morre”, porque esse “se” diz respeito ao sujeito do impessoal, que é ninguém.

[10] A morte existencial também pode ser entendida como o colapso de um mundo, de tal modo que se abre para o existente humano assumir suas próprias possibilidades, a partir da aniquilação global de possibilidades fortuitas. Mulhall (2005) escreve uma interessante contribuição a esse ponto, na qual ele analisa Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein, em função da relação deles com o mito da queda. Quanto ao existencialismo cristão, essa característica pode ser visualizada tanto pela angústia em face de Deus quanto pelo salto absurdo da fé para encontrar Cristo, no caso de Kierkegaard. Para Kierkegaard, a vida autêntica mostra-se como o renascimento de uma vida espiritual a partir da morte de um mundo material, mas ainda sem a morte vital.

[11] Sobre isso: “Em relação a este aspecto dos modos de ser como possibilitadores da fenomenalização dos entes, a possibilidade interna também pode ser chamada de alética. Não se trata, evidentemente, do sentido alético de possibilidade tal como é entendido em relação ao modo da verdade de um enunciado, proposição ou juízo descritivo, mas sim de uma possibilidade alética de acordo com o significado básico de verdade como condição do descobrimento de entes. Se os modos de ser possibilitam a fenomenalização dos entes, que eles estejam dados de maneira determinada, então as possibilidades internas são possibilitadoras da verdade” (Reis, 2014, p. 197).

[12] A respeito da inserção da historicidade na ontologia fundamental de Heidegger, enquanto o acontecer do ser-aí, e de como esse acontecer depende da temporalidade originária, cf. Silveira (2022).

[13] A despeito da imensa variedade literária em que esse assunto é tema, um dos mais notáveis é o ensaio filosófico O Mito de Sísifo, de Albert Camus (2008).

[14] Essa é a leitura de Blattner (1999), na qual também coadunamos, pois ela permite compreender os fenômenos da morte e da angústia em uma grande proximidade com o pensamento de Heidegger concernente à possibilidade existencial.

[15] Blattner (1994) alude ao sentido fino e espesso do conceito de existência. O ser humano despido de projetos existenciários (incapaz de se reconhecer em papéis sociais, em habilidades, por ex., incapaz de se reconhecer como ser um professor, um ciclista, um comunista, um neoliberal ou mesmo um cientista, justamente porque não pode mais se compreender e porque nada disso tem a menor importância) ainda se relacionaria com o ser, pois ainda haverá a pergunta “quem sou eu?” Heidegger (2009, p. 340/GA 2, p. 430) apresenta o projeto existencial e primordial de compreensão de ser como condição de possibilidade de o ser-aí compreender-se nos seus projetos existenciários ou mundanos.

[16] Tais como Mulhall e Hoffman.