A fisiologia da arte em Nietzsche: entre a décadence moderna e a arte da transfiguração[1]
Clademir Luís Araldi[2]
Resumo: Investiga-se, neste artigo, como as abordagens de Nietzsche sobre a fisiologia da arte se tornam operatórias, no último ano de sua produção filosófica, para consumar a crítica da décadence moderna. Através da embriaguez, da transfiguração e do aumento de poder, a fisiologia da arte poderia revelar novos caminhos para expressar os valores da vida ascendente, em contraposição aos movimentos decadenciais. Questiona-se, enfim, se a vontade de poder é um critério satisfatório para a afirmação e a transfiguração artística da existência.
Palavras-chave: Décadence. Fisiologia da arte. Transfiguração. Vontade de poder.
Introdução
No ano de 1888, Nietzsche investiga os movimentos modernos da décadence, buscando construir um contramovimento a ela, através de uma arte afirmativa. Nesse sentido, o projeto da “fisiologia da arte” (die Physiologie der Kunst) adquire contornos mais nítidos em relação aos escritos dos anos anteriores, principalmente com respeito aos temas da embriaguez e do aumento de poder. Investigarei como essa consideração sobre a arte e sobre a modernidade, em seu conjunto, será tratada, em pontos dispersos, no Crepúsculo dos ídolos[3], nos Fragmentos Póstumos de 1888 e em O Caso Wagner. É nesse escrito polêmico (CW) que a fisiologia da arte possui sua aplicação mais contundente e prática, ao artista moderno decadente típico, Wagner. É nessa época também que surgem os maiores desafios, de relacionar os tipos ascendentes e decadentes em face da tarefa valorativa posta por Nietzsche. Mostrarei, enfim, como as novas considerações fisiológicas sobre a embriaguez, o poder e a transfiguração são os elementos mais afirmativos do contramovimento à arte da décadence moderna.
1 Wagner como tipo de artista decadente
A ocupação intensa de Nietzsche com o problema da décadence resultou na elaboração do escrito polêmico O caso Wagner. À diferença das anotações para a preparação à “Fisiologia da arte”, o panfleto dedicado a Wagner foi pensado como uma “recreação” em meio à seriedade do grande projeto da “vontade de poder”. Entretanto, apesar da leveza e do tom polêmico, o inimigo declarado de Wagner tem uma grande pretensão com seu escrito, que é a de criticar o esgotamento e a negação da vida, na modernidade. Ele se volta a Wagner como uma lente de aumento para a décadence moderna, pois o próprio Wagner resumiria a modernidade, como consta no final do Prólogo.
Nos fragmentos póstumos da primavera de 1888, nos quais estão os escritos preparatórios a O caso Wagner[4], Wagner é designado como tipo de artista da décadence, juntamente com Baudelaire e Victor Hugo. O escrito póstumo 15[6] é a primeira versão coesa, organizada em oito parágrafos, para a obra O caso Wagner, a qual será finalizada somente em julho desse ano. Vários temas ali presentes, como o gênio teatral e dramático de Wagner, a ausência de estilo de sua música e os traços decadentes do artista e de sua música são retomados e elaborados no livreto publicado. Mas há algo de relevante nesse escrito póstumo, que não é desenvolvido na obra publicada, acerca do pathos wagneriano:
A sensibilidade de Wagner não pertence à Alemanha: ela é encontrada entre os parentes próximos de Wagner, os românticos franceses. A paixão, assim como Wagner a entende, em todo caso é o equivalente da “liberdade de espírito da paixão”, para falar com Schiller, da sensibilidade alemã-romântica. Schiller é tão alemão quanto Wagner é francês. Seus heróis, seus Rienzi, Tannhäuser, Lohengrin, Tristão, Parsival – têm sangue no corpo, sem dúvida –, e certamente nenhum sangue alemão! (Nietzsche, 1988, p. 407. FP 1888 15[6] §7).
Nietzsche começa esse escrito póstumo afirmando que Wagner ainda permanecia uma terra incognita, que ele era mal compreendido pelos alemães, sobretudo pelos “wagnerianos”. Justamente por ser Wagner o “último grande evento da arte”, Nietzsche coloca uma pergunta que o inquietava bastante: se existiria alguém preparado, ou seja, alguém que seria doente o bastante para o “problema” Wagner? Eis sua resposta: “Quando muito na França: Ch. Baudelaire, p. ex., talvez também os irmãos Goncourt. Os editores de ‘Faustine’ certamente adivinhariam algo de Wagner, mas lhes faltava a música no corpo” (Nietzsche, 1988, p. 404, FP 1988 15[6] §1). Mas Baudelaire tinha “música no corpo”! Nietzsche ficou muito impressionado com a sua descoberta da correspondência inédita entre Wagner e Baudelaire, em fevereiro de 1888. Como ele expressa, na carta a Peter Gast, de 26 de fevereiro, a admiração recíproca entre ambos ocorreu principalmente pela música e pelo pathos poético:
“Quem até agora estava melhor preparado para Wagner? Quem era wagneriano de modo mais natural e íntimo, apesar de Wagner e sem Wagner?” Desde muito tempo havia dito a mim mesmo sobre isso: era aquele bizarro três quartos de louco Baudelaire, o poeta das Fleurs du Mal. Lamentei não ter descoberto ainda em vida esse espírito fundamentalmente afim a Wagner; sublinhei as passagens de seus poemas em que há uma espécie de sensibilidade wagneriana, que não encontrara ainda nenhuma forma na poesia (– Baudelaire é libertino, místico, “satânico”, mas sobretudo wagneriano).[5]
O escrito póstumo retoma as inquietações dessa carta, pois Nietzsche está preocupado em determinar o que há de comum na sensibilidade de Wagner e na de Baudelaire. Não há uma influência recíproca, pois Baudelaire já era “wagneriano”, mesmo sem Wagner. E Wagner parecia já ter essa sensibilidade aguçada, antes mesmo de conhecer Baudelaire. O poeta francês e o músico dramático alemão compartilhariam uma mesma sensibilidade: a do romantismo tardio francês. Isso é muito importante para Nietzsche, pois ele quer ressaltar o solo comum, o qual permitiria tratar dos dois como tipos da décadence, que dominaria sempre mais a arte e a literatura francesa do séc. XIX. Na carta inédita, Wagner agradece a Baudelaire pelo artigo elogioso escrito pelo último, em 1861[6], no qual defendia o drama musical de Wagner das críticas feitas pelos franceses.
O que importa aqui é perceber como Nietzsche amplia a teoria da décadence literária, em relação a Baudelaire, feita nos Essais de Psychologie Contemporaine, aplicando-a a Wagner. Nietzsche passa a se considerar o mais preparado para compreender Wagner, como tipo decadente, como “problema”, como músico e ator. Mas ele, que fora tão atraído pela sensibilidade romântica e pelo gênio dramático-musical de Wagner, irá contrapor, em O caso Wagner, a música de Bizet, com sua sensibilidade meridional, com sua leveza e caráter afirmativo. Entretanto, Wagner continuou sendo um grande problema para Nietzsche.
É assim que o autor de O caso Wagner aborda os tipos de décadence, na filosofia (Schopenhauer), na religião, na moral, sem mencionar diretamente a sensibilidade tardo-romântica francesa. Foi Schopenhauer, o filósofo da décadence, defensor da compaixão e da resignação, que teria revelado “[...] o artista da décadence a si mesmo” (Nietzsche, 1988, CW 4). Wagner passa a ser caracterizado como “o artista da décadence”, como “típico décadent” (Nietzsche, 1999, p. 18, CW 5). Há um apanhado de observações psicológicas (como tipos psicológicos, as heroínas de Wagner seriam doentes) e de considerações fisiológicas, à medida que Wagner é o caso mais interessante para “médicos e fisiólogos” e para o próprio Nietzsche. Importa, nos limites deste artigo, investigar os recursos fisiológicos empregados para provar que Wagner, o artista moderno par excellence, tornou a arte doente.
Como as questões da exaustão, do esgotamento e da histeria remetem tanto à psicologia quanto à fisiologia, é preciso mostrar como a fisiologia é importante para Nietzsche, nessas análises, justamente porque a “cor do som”, o timbre falaria às entranhas, encantaria “a medula espinhal” (Nietzsche, 1999, p. 21, CW 6). A música de Wagner, com sua teatralidade e arrebatamento, tem uma relação íntima com a fisiologia, de modo que Nietzsche quer explicitar os defeitos, a degenerescência fisiológica da arte de Wagner. No início da seção 7, após esboçar o quadro do declínio da arte, do artista e de seu caráter, Nietzsche menciona novamente sua intenção de desenvolver o capítulo “Fisiologia da arte”:
Terei oportunidade (num capítulo de minha obra principal que levará o título de “Para a fisiologia da arte”) de mostrar mais detalhadamente como essa metamorfose geral da arte em histrionismo é uma expressão de degenerescência fisiológica (mais precisamente, uma forma de histerismo), tanto quanto cada corrupção e fraqueza da arte inaugurada por Wagner: [...] Wagner era algo perfeito, um típico décadent, no qual não há “livre-arbítrio”, e cada feição tem sua necessidade (Nietzsche, 1999, p. 22, CW 7).
Nas seções seguintes da obra, Nietzsche discorre um pouco sobre o histrionismo da arte de Wagner como manifestação da décadence fisiológica. Ele opera, contudo, um desvio da análise, quando afirma que irá concentrar-se na questão do estilo. É nesse momento que ele vai inserir a análise psicológica da décadence literária de Paul Bourget (sem citar a fonte):
Como se caracteriza toda décadence literária? Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo – o todo já não é um todo[7] (Nietzsche, 1999, p. 23, CW 7).
Nietzsche vai contrapor o “grande estilo” ao estilo decadentista da música de Wagner. Nas suas considerações sobre a vontade de poder como arte, em um fragmento póstumo que tem como subtítulo “Música” – e o grande estilo, ele pretende medir a “grandeza de um artista” pelo grau com que ele se aproxima do grande estilo. O grande estilo, também chamado de estilo clássico, é caracterizado pela calma, pela simplificação, pela concentração nos sentimentos de poder mais elevados do artista. Importa nele a configuração do querer e o modo como a paixão é extravasada: “Assenhorear-se do caos que se é; coagir seu caos a tomar forma; tornar-se necessidade na forma: tornar lógico, simples, inequívoco, matemática; tornar lei –; essa é a grande ambição.”[8] Entretanto, logo em seguida, Nietzsche retorna ao problema do ator, ao gênio teatral de Wagner e ao caráter patológico de seu histrionismo.
Há uma surpreendente imbricação, em O caso Wagner, entre uma fonte literária, a teoria da décadence de Bourget, e uma fonte científica, a teoria da degeneração fisiológica de Féré. Nos escritos póstumos da época de elaboração do escrito polêmico sobre Wagner, Nietzsche tecia uma consideração mais ampla sobre o caráter doentio (histérico) do ator:
O artista moderno, em sua fisiologia aparentado ao histerismo, é atraído também enquanto caráter a essa enfermidade. O histérico é falso: ele mente pelo prazer na mentira, ele é digno de admiração em toda arte da dissimulação – [...]. A irritabilidade absurda de seu sistema, que torna todas as crises em vivências e traz “o dramático” para os mínimos acasos da vida, toma-lhe tudo o que é previsível: ele não é mais nenhuma pessoa, no máximo um encontro de pessoas, das quais ora esta, ora aquela arroja com certeza desavergonhada. Justamente por isso ele é grande enquanto ator: todos esses pobres indolentes, que os médicos estudam de perto, espantam por sua virtuosidade na mímica, na transfiguração, na admissão de quase todo caráter exigido (Nietzsche, 1988, p. 517, FP 1888 16[89]).
Em O caso Wagner, ele diagnostica em Wagner essa fisiologia afim ao histerismo[9]. O mesmo é definido como um grande histrio, um mímico, como gênio teatral, como grande encenador, que “[...] aumentou desmesuradamente a capacidade de expressão da música” (Nietzsche, 1999, p. 25, CW 8). Isso, em si, não é um problema, pois os artistas afirmadores também possuem uma intensificação das capacidades expressivas, sob o influxo da embriaguez. Assim, Wagner não poderia ser criticado somente por suas faculdades artísticas de dramatização e de imitação, pois elas são vistas como sintomas de saúde, no histrio dionisíaco. Qual é a diferença básica entre o histrio decadente e o histrio dionisíaco? Em O nascimento da tragédia, Nietzsche não se cansava de louvar a natureza dionisíaca da arte dramática de Wagner. Em 1888, ao contrário, o expressivismo histriodionisíaco, os excessos expressivos de Wagner são interpretados no registro da doença, como histeria[10] ou neurose, por seus efeitos de superexcitação nervosa.
Nietzsche aplica as teorias da degenerescência fisiológica e da psicologia da decadência à arte de Wagner e ao próprio músico histriônico. Ou seja, o próprio Wagner seria uma neurose; por causa disso, ele tornou a arte doente, e os seus admiradores exaustos, ainda mais exaustos. Os esgotados não conseguem perceber o que lhes é nocivo; por isso, eles seriam atraídos pela arte de Wagner, como um narcótico, como um excitante para seus “nervos cansados”. O artista decadente, com sua arte hipnótica, subjugaria os exaustos, sedentos de estimulantes sempre mais fortes[11]. O efeito do gênio teatral de Wagner, enfim, seria a intensificação da décadence fisiológica. A causa fisiológica desse histrionismo é o debilitamento dos instintos, o esgotamento da força vital. Mas Nietzsche não possui instrumentos para medir esse esgotamento, embora ele tenha essa pretensão. Quando investiga a vontade de poder enquanto vida, ele pretende medir o esgotamento como um decréscimo da vontade de poder: o esgotamento seria uma “[...] perda mensurável de força” (Nietzsche, 1988, p. 360, FP 1888 14[174]). A embriaguez como pressuposto fisiológico dos fracos e esgotados resulta em exaustão, em diminuição do sentimento de prazer, ao passo que, nos tipicamente sadios, o estado fisiológico da embriaguez atua como sentimento de intensificação do poder e do prazer.
Entretanto, esse transbordamento dos sentimentos e das paixões não pode ser mensurado, pois percebemos apenas os sintomas, e não o crescimento ou decréscimo efetivos dos centros de força. Esse é o problema de transpor os processos fisiológicos para os processos de interpretação da vontade de poder[12]. O desperdício de poder (die Vergeudung der Macht)[13] ou da força (die Vergeudung der Kraft)[14] ocorre tanto nos fortes quanto nos fracos. A diferença, para Nietzsche, consiste no “fato” (apenas pressuposto) de que os fortes possuiriam uma grande saúde, forças vitais inesgotáveis, um grande capital acumulado, enquanto os fracos se consumiriam no seu irremediável processo de esgotamento, pois são fisiologicamente doentes, ou seja, padecem do decréscimo da “força vital”[15]. Todavia, essa força vital só pode ser proclamada a partir da perspectiva valorativa adotada por Nietzsche, a saber, da perspectiva da vontade de poder da vida ascendente. Não se pode reduzir o valor de uma ação a “valores fisiológicos”, porque, em si mesma, a ação não possui valor[16]. É o ser humano que atribui valor às coisas e que embeleza o mundo. Apesar dessas objeções, Nietzsche procederá à redução dos valores estéticos a valores fisiológicos, os quais seriam aplicados a tipos de homens, e não às ações.
Wagner é o protótipo do gênio neurótico, do “histerismo como música” (Nietzsche, 1988, p. 510, FP 1888 16[75]). A histeria é apresentada de maneira sucinta como doença da vontade, como automatismo, como irritabilidade exacerbada, como fraqueza nervosa, como induction psycho-motrice, que acometeria artistas (Artisten) e o gênio[17]. Entretanto, a arte afirmativa, dionisíaca e ascendente também atua como suggestion, como meio expressivo, como “domínio de invenção da induction psycho-motrice”. No “estado dionisíaco normal”, no histrionismo dionisíaco, essa força de sugestão seria portentosa. De modo semelhante a certos histéricos, esse estado se caracteriza pela “incapacidade de não reagir”, pela facilidade em se metamorfosear, por uma excitação e “descarga geral dos afetos”. A música também seria essa descarga, mas Nietzsche quer nos reconduzir a um mundo expressivo bem mais pleno, o qual perfaz a totalidade viva dionisíaca, como ele salienta, no Crepúsculo dos ídolos. Ao contrário da embriaguez apolínea, concentrada na excitação da visão, no estado dionisíaco,
[t]odo o sistema afetivo é excitado e intensificado: de modo que ele descarrega de uma vez todos os seus meios de expressão e, ao mesmo tempo, põe para fora a força de representação, imitação, transfiguração, transformação, toda espécie de mímica e atuação (Nietzsche, 2006, p. 66, CI. Incursões de um extemporâneo, 10).
Nietzsche, enquanto escritor, assumirá nos meses seguintes essa inspiração artística dionisíaca, em sua autoencenação filosófica[18]. Antes disso, porém, ele precisa radicalizar a crítica ao neurótico e histérico Richard Wagner. Sem mostrar em que consistem as “neuroses da sanidade”[19], ele se preocupa mais em diagnosticar o histerismo[20] na música de Wagner, sua irritabilidade doentia e “estados de emergência fisiológicos” (Nietzsche, 1988, p. 510, FP 1888 16[74])[21]. Depois de criticar o histrionismo decadente de Wagner, Nietzsche poderia atuar no palco do mundo moderno como um histrio dionisíaco redivivo, tendo uma “grande saúde” ao fundo. Para tanto, ele precisa afirmar o valor da arte como contramovimento à décadence, ao esgotamento moderno.
2 Embriaguez e transfiguração
Após mostrar que a redenção prometida pela arte dramática wagneriana é um engodo, o qual acelera a décadence, Nietzsche propõe o seu modelo de arte como contramovimento à décadence e a todas as formas de niilismo:
A arte e nada mais do que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora para a vida, o grande estimulante da vida.
A arte como a única força superior em contraposição a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excelllence.
A arte como a redenção do que conhece, – daquele que vê, que quer ver o caráter terrível e problemático da existência, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age, – daquele que não apenas vê o caráter terrível e problemático da existência, mas ama-o, quer amá-lo, do homem trágico-guerreiro, do herói.
A arte como a redenção do que sofre, – como caminho para estados em que o sofrimento é desejado, transfigurado, divinizado, em que o sofrimento é uma forma do grande encanto (Nietzsche, 1988, p. 520, FP 1888 17[3])[22].
Essa compreensão da arte resume bem os esforços afirmativos de Nietzsche de 1888. É uma referência ao valor da arte, em O nascimento da tragédia, agora reassumida na configuração da fisiologia da arte e da vontade de poder enquanto arte[23]. Mas que “arte” é o grande estimulante da vida? Ao se encaminhar para o encerramento do Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche alude ao dionisíaco e ao trágico como suas grandes inovações da juventude, às quais ele retorna com renovado entusiasmo: “E com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti – o Nascimento da tragédia foi minha primeira transvaloração de todos os valores [...]” (Nietzsche, 2006, p. 106, CI. O que devo aos antigos, 5). Não é o caso de analisarmos aqui as implicações de Nietzsche se assumir como “o último discípulo do filósofo Dioniso”, ou como “mestre do eterno retorno”. Todavia, importa investigar que tipo(s) de arte(s) Nietzsche contrapõe à décadence. Se o simbolismo da arte dionisíaca grega é o mais elevado para a afirmação da vida, é preciso demonstrar como os pressupostos fisiológicos dessa arte resultam na criação e expressão desse mundo simbólico. Com isso, chegaríamos aos limites da fisiologia da arte.
Nas muitas anotações póstumas que têm como título “Contramovimento: a arte”, Nietzsche reforça que o essencial na embriaguez é o sentimento do aumento de poder, o sentimento de plenitude, de felicidade. O sentimento de embriaguez que a música, a primavera e a dança propiciam corresponderiam a um “[...] aumento efetivo da força” (Nietzsche, 1988, p. 294, FP 1888 14[117])[24]. Nietzsche compreende a arte, de modo genérico, como esse estado “[...] em que o ser humano transforma as coisas – até serem reflexos de sua perfeição” (Nietzsche, 2006, p. 68, CI. Incursões de um extemporâneo, 9). Ou seja, é um processo de embelezamento, ou de transfiguração, como veremos adiante.
Lembremos que um dos estados fisiológicos, cultivado pelo artista e que pode ser aplicado a qualquer pessoa, é a necessidade de imitação:
3. o precisar-imitar: uma irritabilidade extrema, em que se comunica de forma contagiosa um modelo dado, – um estado já é adivinhado e apresentado por meio de símbolos... Uma imagem, que surge no interior, já atua como movimento dos membros... (Nietzsche, 1988, p. 356, FP 1888 14[170]).
Ao contrário do décadent, a “irritabilidade extrema” do artista criador e do seu receptor afirmativo resulta na intensificação do poder e do sentimento de poder, expressando-se simbolicamente como sugestão, como automatismo dos movimentos e gestos. Mas a embriaguez apolínea, concentrada na força da visão e expressa pelo poeta épico e pelos artistas figurativos, transmite de uma forma mais serena esse embelezamento do mundo. Fisiologicamente falando, trata-se da força configuradora da vontade nesse “embelezamento”:
O “embelezamento” é uma consequência da força elevada
Embelezamento como consequência necessária do aumento de força
Embelezamento como expressão da vontade vitoriosa, de uma coordenação intensificada, de uma harmonização de todos os desejos fortes, de um peso perpendicular infalível (Nietzsche, 1988, p. 294, FP 1888 14[117]).
Esse embelezamento é avaliado por Nietzsche positivamente, enquanto grande estilo, resultante de uma vontade de simplificação, de harmonização e coordenação. É a retomada da arte da bela aparência, na qual o belo expressa o sentimento de poder elevado. Contudo, não podemos esquecer que é também a “vontade de ilusão” e do engano, da boa vontade para com as aparências, como Nietzsche descreve em sua alusão à fisiologia da arte, em Genealogia da moral (Nietzsche, 1998, p. 98, GM III 8) e em vários esboços para a fisiologia da arte: “A vontade de aparência, de ilusão, de engano, de devir e de mudança vale aqui como mais originária, mais “metafísica” do que a vontade de verdade, de efetividade, de ser: – a última é somente uma forma da vontade de ilusão” (Nietzsche, 1988, p. 229, FP 1888 14[24]).[25] O sentimento do belo, no entanto, só é possível dentro dos estreitos limites, da simplificação e da organização perspectivista do mundo que diz respeito ao ser humano. Com base em seus estados fisiológicos, o artista embeleza o mundo, mas isso não quer dizer que o mundo efetivamente tenha se tornado mais belo:
No belo, o homem se admira enquanto tipo: em casos extremos, ele adora a si mesmo. É próprio da essência de um tipo, que ele fique feliz somente com sua própria visão, – que ele afirme a si, que ele somente afirme a si. O homem vê o mundo tão sobrecarregado de belezas, ele sempre o sobrecarregou com sua própria “beleza”: ou seja, ele acha belo tudo aquilo que o faz lembrar do sentimento de perfeição, com o qual ele, enquanto homem, está entre todas as coisas. Se ele realmente embelezou o mundo com isso?... E, aos olhos de um juiz superior do gosto, não deveria o homem ser, talvez, nem um pouco belo? Não quero com isso dizer coisas indignas, mas um pouco cômicas? (Nietzsche, 1988, p. 499, FP 1888 16[40]).
Ao elaborar essa forma de arte como contramovimento à décadence, Nietzsche parece aposentar o “guerreiro do conhecimento”, aquele que luta contra “verdades feias”[26]. A questão agora não seria mais: “Quanta verdade ousa um espírito?”, mas: “Quantas verdades feias ele soterrou, transfigurou e mascarou?” O problema da verdade retorna aqui, como um antagonismo difícil de superar. Nietzsche compreende a vontade de verdade, nesse apontamento, como “sintoma de degeneração”. É nesse momento que ele entroniza o valor superior da arte: “A verdade é feia: nós temos a arte, para não perecermos da verdade” (Nietzsche, 1988, p. 500, FP 1888 16[40] 6). Em outros comentários ao Nascimento da tragédia, ele havia dito que, em sua obra juvenil, o niilismo valia como a verdade (Nietzsche, 1988, p. 524, FP 1888 14[24] e 17[3]).
Ele continua ainda com esse “pavor sagrado” ante a discórdia entre arte e verdade, quando propõe a arte como único remédio ao esgotamento. E continua acreditando que não é possível viver com a “verdade”. Não há verdades belas, há ilusões com as quais a vida se torna bela e desejável de ser vivida. Isso é embelezamento, o admirar-se enquanto tipo. Assim, Nietzsche tira as consequências: a vontade de poder aumenta com o belo e diminui com o feio. É um processo que ocorre somente no ser humano, de tal maneira que a impressão que o feio nos causa poderia ser “[...] medida com o dinamômetro” (Nietzsche, 1988, p. 499, FP 1888 16[40] 4). Entendo que essa compreensão da arte e do belo possui um bom desenvolvimento nos escritos póstumos dessa época e no Crepúsculo dos ídolos.
A arte “redime” aquele que sofre, à medida que transfigura o sofrimento[27]. A arte propicia estados em que os sofrimentos do existir podem ser transfigurados: essa é sua “força de transfiguração” (Transfigurationskraft). O emprego do termo Transfiguration (não mais Verklärung, como ocorria nos escritos juvenis) é significativo para a fisiologia da arte, ao ser vinculada à embriaguez. É justamente o “amor” a prova da intensidade maior da força transfiguradora da embriaguez:
A embriaguez lida aqui com a realidade de um modo que a causa é apagada da memória do amante, e outra coisa parece entrar em seu lugar – um tremor e um brilho de todos os espelhos mágicos de Circe... Aqui não há nenhuma diferença entre homem e animal; ainda menos entre espírito, bem e probidade... Alguém é nutrido de modo refinado, se ele for refinado; é nutrido de modo grosseiro, se ele for grosseiro: mas o amor, e mesmo o amor a Deus, o amor aos santos das “almas redimidas”, permanece uma só coisa na raiz: como uma febre, que <tem> razões para se transfigurar, uma embriaguez, que faz bem em mentir para si... E em todo caso mente-se bem, diante de si e sobre si, quando se ama: parece-se transfigurado, mais forte, mais rico, mais pleno; é-se mais pleno... (Nietzsche, 1988, p. 299, FP 1888 14[120]).
Há um processo fisiológico na base dessa atuação artística: uma febre que se transfigura, uma embriaguez que mente bem para si. E Nietzsche reforça que, nesses estados de embriaguez, o parecer mais pleno, forte e transfigurado é o mesmo que ser mais pleno. Assim, a arte da ilusão e do engano atuaria como “função orgânica”, resultando em aumento efetivo de poder. Nisso consiste a vitória sobre a verdade. A arte “[...] é mais divina que a verdade” (Nietzsche, 1988, p. 227, FP 1888 14[21]). Se essas formas de transfiguração possibilitam um maior acúmulo de forças, então, os valores estéticos configurariam o quantum supremo de poder que o ser humano logra incorporar[28], sem esquecer que os “valores estéticos” têm em sua base “valores biológicos” (Nietzsche, 1988, p. 510, FP 1888 16[74]), assim como há “fatos” fisiológicos, na base da moral. A força da mentira não é uma mera falsificação ou fuga da realidade, mas um processo efetivo, tanto orgânico quanto valorativo, de transpor, deslocar valores, uma forma daquilo que Nietzsche chama de “transvaloração” (Umwerthung):
O amante é mais valioso, é mais forte. Esse estado impele os animais a produzir novas matérias, pigmentos, cores e formas: sobretudo novos movimentos, novos ritmos, novos sons atraentes, novas seduções. Não ocorre de outro modo no ser humano. Sua economia geral é mais rica do que antes, mais poderosa no todo do que nos que não amam. O amante se torna esbanjador: ele é rico o bastante para isso. Agora ele ousa, torna-se aventureiro, torna-se um asno em generosidade e inocência; ele acredita novamente em Deus, ele acredita na virtude, porque ele acredita no amor: e, por outro lado, crescem asas e novas capacidades nesses idiotas da felicidade, até mesmo abrem-se-lhes as portas para a arte (Nietzsche, 1988, p. 299, FP 1888 14[120]).
Apesar de enaltecer a força transfiguradora da volúpia (Wollust) própria da embriaguez dionisíaca, Nietzsche valoriza mais a embriaguez apolínea. Não só por seus efeitos mais duradouros, mas justamente porque, no “tipo clássico”, há uma concentração de forças que expressam o “[...] sentimento supremo de poder”, na calma extrema de certas “[...] sensações de embriaguez” (Nietzsche, 1988, p. 240, FP 1888 14[46]). A dificuldade, no entanto, está em distinguir as formas saudáveis das formas doentias de embriaguez, as quais se manifestam nos artistas, atores, tipos de histrio, nos gênios modernos doentios, nos neuróticos e histéricos, em geral; todos eles são grandes, enquanto atores: “[...] todos esses pobres indolentes, que os médicos estudam de perto, espantam por sua virtuosidade na mímica, na transfiguração, na admissão de quase todo caráter exigido” (Nietzsche, 1988, p. 517, FP 1888 16[89]). Não haveria nenhum artista tipicamente moderno, cuja “irritabilidade extrema” do sistema nervoso não produzisse mais esgotamento.
As novas considerações sobre Rafael e suas obras são bem elucidativas para a valoração positiva da Renascença, no registro da fisiologia da arte. Em O nascimento da tragédia, no contexto de suas elucubrações acerca da metafísica da arte, Nietzsche interpreta a metade inferior da pintura Transfiguração, de Rafael, como a “[...] reverberação da eterna dor primordial, o único fundamento do mundo” (Nietzsche, 2020, p. 33, NT 4). No contexto da fisiologia da arte, ele critica a “falsidade fisiológica” das imagens de Rafael, por irem de encontro à história natural. Nesse sentido, ele pondera que “[...] uma mulher com secreções normais não tem nenhuma necessidade de redenção” (Nietzsche, 1988, p. 267, FP 1888 14[90]). Mas essa falsificação poderia ser intencional ou estratégica, pois Rafael tinha que pintar temas cristãos para viver como artista. Como ressalta, no Crepúsculo dos ídolos, Rafael não era cristão, mas “dizia sim”, “fazia sim” (Nietzsche, 1988, CI. Incursões de um extemporâneo, 9), de sorte que seu vigor físico era condição para sua arte[29].
O grande estilo não se forma a partir desse histrionismo dionisíaco, em suas formas arcaicas no ator, no mímico, no dançarino e no músico. É em Goethe (o último alemão que ele reverencia) que Nietzsche vê o último grande rebento dessa aspiração à totalidade, em contraposição à fragmentação e ao miniaturismo da décadence moderna[30]. Goethe elevou-se à naturalidade da Renascença, à afirmação do todo, no qual a vida habitava em toda a sua exuberância natural e força do tipo elevado de homem: “Um tal espírito, que assim se tornou livre, acha-se no meio do universo, na fé de que apenas o que está isolado é censurável, de que tudo se redime e se afirma no todo – ele já não nega...” (Nietzsche, 2006, p. 99, CI. Incursões de um extemporâneo, 49).
Visto que Nietzsche batizou essa crença como o nome de Dioniso, temos sérios problemas, porque Goethe não é um artista e poeta que glorifica os estados trágico-dionisíacos; é sobretudo um poeta épico ou metafísico, do qual ele até zombou, em Assim falou Zaratustra. Assim, como Goethe pode ser o modelo privilegiado para a afirmação trágico-dionisíaca da existência? No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche tenta concluir com a afirmação da totalidade da existência, cujo modelo principal para ele é a arte trágica (junto com o dionisismo arcaico que a gerou). Quando trata do dionisíaco dizer-sim, da “medida de valor dionisíaca”, o artista da transvaloração Nietzsche não menciona Goethe, mas a si mesmo, aquele que redescobre os conceitos de “pagão”, “clássico” e “nobre” (Nietzsche, 1988, p. 492, FP 1888 16[32]). E, nos esboços para a fisiologia da arte, ele trata do “problema da arte trágica”[31], até mesmo questiona “como é possível a arte trágica?”[32]
Nietzsche retrocede da posição de que a mentira é um dos poderes superiores do ser humano. Se, como artista, o ser humano “[...] frui de si mesmo como poder, frui da mentira como poder” (Nietzsche, 1988, p. 521, FP 1888 17[3]), por que não exaltar o “gênio da mentira”, as faculdades artísticas do ser humano como seus poderes afirmativos superiores? O problema é que, na análise da décadence moderna, Wagner é a encarnação do gênio da mentira. Nietzsche, que presume ser o “gênio da verdade”[33], enquanto o desmascarador da décadence, necessita ainda de um “critério da verdade”, precisa agarrar-se ao “método científico”[34], nas suas análises da fisiologia da arte. Contudo, é esse antagonismo entre a arte como vontade de ilusão e mentira e a vontade de verdade que, a meu ver, leva Nietzsche a abandonar as investigações sobre a fisiologia da arte, no interior do plano da obra “A vontade de poder”.
No último esboço de plano para a “A vontade de poder”, de 26 de agosto de 1888[35], o primeiro livro tinha como título “O que é a verdade?” Após as considerações psicológicas sobre o erro e sobre o valor da verdade e do erro, ele retoma a desprezada vontade de verdade, agora “[...] somente justificada no valor afirmativo da vida” (Nietzsche, 1988, p. 537, FP 1888 18[17]). Ele havia estabelecido, um pouco antes, em outro plano de sua obra grandiosa, o “critério da verdade”, qual seja, a “vontade de poder”, como “[...] vontade da vida ascendente” (Nietzsche, 1988, p. 516, FP 1888 16[86]). Não se trata propriamente de um critério de verdade, mas de uma prova da força, de comprovar a “verdade” de algo pelos seus efeitos de poder. A arte, como o maior estimulante da vida, desse modo, seria a arte que expressa a vontade de poder da vida ascendente. Parece que Nietzsche aplica esse critério, quando opera um ensaio de “transvaloração dos valores” à ópera moderna[36]. Porém, Nietzsche não possui instrumentos ou recursos argumentativos para provar isso, limitando-se a inserir a mentira como “suplemento do poder”, nesse seu problemático “novo conceito de verdade” (Nietzsche, 1988, p. 439, FP 1888 15[45]).
Considerações finais
Se Nietzsche compreende a vontade de poder como uma nova versão, pluralista, da “força artística elementar” (künstlerische Urkraft)[37], então todos os processos da vida humana expressariam esse ímpeto configurador, o “triunfo de artista” que anseia pelo aumento do poder e do sentimento de poder. Contudo, essa vontade de ilusão não pode ser conciliada com a vontade de verdade, nem com os métodos das ciências naturais. Se todos os valores da moral, da religião e da ciência são rebentos da vontade humana de arte e de mentira[38], por que valorizar somente os estimulantes da vida trazidos pela arte que aumentem efetivamente o poder? Ou as formas saudáveis de embriaguez? Não podemos negar que Nietzsche tem dificuldades enormes em justificar o critério da vontade de poder da vida ascendente, como critério válido em seus planos da “fisiologia da arte”. Falta um aprofundamento da arte da ilusão e da transfiguração, nos esforços para construir um contramovimento coeso à décadence moderna.
A mudança de planos, ocorrida no final de agosto de 1888, é sintomática para essas dificuldades em avançar no desenvolvimento da fisiologia da arte. Mas o abandono do projeto da vontade de poder, e da “fisiologia da arte”, como um momento necessário para os aspectos afirmativos da transvaloração, não significa a perda da importância da arte, na filosofia e na vida de Nietzsche. O ator Nietzsche retorna ao palco do pensamento filosófico, com novas estratégias de encenação e de autoencenação, em que o “gênio da mentira” e o artista da transfiguração não terão propriamente nenhuma verdade a revelar, mas se esforçarão por configurar os impulsos artísticos, num mundo abalado pela decadência.
Nietzsche’s physiology of art: between modern décadence and the art of transfiguration
Abstract: In this paper I investigate how Nietzsche’s approaches to the physiology of art become operative in the last year of his philosophical production to consummate the critique of modern décadence. Through intoxication, transfiguration, and increased power, the physiology of art could reveal new ways to express the values of ascendant life as opposed to decadential movements. I question, finally, whether the will to power is a satisfactory criterion for the artistic affirmation and transfiguration of existence.
Keywords: Décadence. Physiology of art. Transfiguration. Will to power.
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Recebido: 20/07/2023 - Aceito: 26/08/2023 - Publicado: 13/02/2024
[1] Este artigo foi possível graças ao apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Agradeço a Ernani Chaves os comentários e sugestões à primeira versão do artigo.
[2] Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS – Brasil. https://orcid.org/0000-0002-8255-2946. E-mail: clademir.araldi@gmail.com.
[3] Serão utilizadas as seguintes abreviaturas, para citar as obras de Nietzsche: NT (O nascimento da tragédia), BM (Além do bem e do mal), GM (Genealogia da moral), CW (O caso Wagner), CI (Crepúsculo dos Ídolos) e FP, para os Fragmentos Póstumos por nós traduzidos, conforme a convenção adotada pelos editores G. Colli e M. Montinari, na Kritische Studienausgabe (KSA), que é seguida por Paolo D’Iorio, na edição eletrônica e-KGWB: http://www.Nietzschesource.org/#eKGWB.
[4] Cf. Nietzsche, 1988, p. 403. FP 1888, 15[6]; 16[33-38].
[5] Carta a H. Köselitz (Peter Gast), de 26 de fevereiro de 1888. Disponível em: http://www.Nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1888,1000. Acesso em: 10 mar. 2023.
[6] Trata-se de um artigo de Baudelaire, publicado na Revue européenne, em abril de 1861.
[7] Cf. Bourget, 1993, p. 14: Acerca da apropriação da teoria da décadence de P. Bourget para a compreensão de décadence fisiológica da arte de Wagner, cf. Müller-Lauter, 1999, p. 12-15.
[8] Cf. Nietzsche, 1988, p. 247, FP 1888 14[61]. Cf. também Nietzsche, 1988, p. 240, FP 1888 14[44].
[9] Ernani Chaves interpreta a figura do ator, com foco em R. Wagner, no registro da décadence. As expressões do ator e comediante só poderiam ser compreendidas a partir de uma “fisiologia da histeria”, a qual seria aplicada também às crises histéricas induzidas por hipnose, nos grandes espetáculos que Charcot propiciou. Essa fisiologia consiste em “[u]m processo de ‘transfiguração’, onde um evento traumático encontra sua descarga na inervação somática” (Chaves, 2007, p. 61). Entretanto, é preciso mencionar que há em Nietzsche outras formas de transfiguração artística, que não são subsumidas à fisiologia da histeria, como é a arte da ilusão e da transfiguração do tipo de artista saudável e afirmativo, no contramovimento à décadence.
[10] G. Moore analisou como a histeria foi relacionada ao gênio, no século XIX, por meio de distintas patofisiologias e patografias, elaboradas por L.-F. Lélut, J. J. Moreau de Tours, assim como por Morel, Lombroso e Magnan. Charcot teria sido o responsável por criar uma “epidemia de histeria”. Cf. Moore, 2001, p. 247; Moore, 2002, p. 116-126. Esse interesse médico-psiquiátrico pela patologia do gênio é forte também no Nietzsche tardio, o qual partilharia essa angústia que dominava sempre mais a imaginação do fin-de-siècle, de um temor de uma degeneração progressiva dos povos, até mesmo de seus indivíduos mais elevados. Ao concentrar o diagnóstico da degeneração no “caso Wagner”, Nietzsche tenta reunir condições para uma terapia dessas doenças da vontade, principalmente por meio do contramovimento da arte, como pretendo mostrar.
[11] Cf. Nietzsche, 1999, p. 19, CW 5.
[12] Para W. Müller-Lauter, há três determinações gerais do conceito de fisiologia, em Nietzsche, que se sobrepõem com frequência: 1) o uso da palavra “fisiologia”, conforme as ciências da época; 2) o fisiológico é o que determina de modo “somático” os seres humanos, ou seja, refere-se às funções orgânicas e ao “afetivo”, no modo amplo como Nietzsche o compreende e 3) a interpretação dos processos fisiológicos como luta dos quanta de poder. Nesse último sentido, a fisiologia “bem-entendida” seria a própria doutrina da vontade de poder, a qual é interpretação, assim como os quanta de poder são, em seu caráter plural, interpretação. Cf. Müller-Lauter, 1999, p. 21s. Entendo que se trata de dois sentidos de fisiologia, porque o segundo está incluído no primeiro. Ou seja, Nietzsche faz um uso próprio e bastante livre do termo “fisiologia”, sendo bastante tendencioso em relação às pesquisas científicas da época. Ele não se interessa pelas questões fisiológicas em si mesmas, no contexto da discussão estritamente científica, mas, desde o início, transpõe suas leituras seletivas para a sua própria concepção de funções orgânicas e de afetos e impulsos. E suas leituras são um tanto diletantes, de obras com caráter de divulgação científica. Esses sentidos da fisiologia, descritos por W. Müller-Lauter, são, em certo sentido, incompatíveis, pois se referem a domínios distintos, que Nietzsche presume unificar, através de sua interpretação da vontade de poder. Como mostrou Gregory Moore, as principais leituras de fisiologia feitas por Nietzsche, desde os tempos de professor na Basileia, do mesmo modo que o seu interesse por medicina prática, dietética, ginástica, nutrição, metabolismo e climatoterapia, possuem um caráter amplo e concentrado nos seus próprios problemas filosóficos. O interesse crescente pela fisiologia, a partir de 1881, se insere nessa tentativa de fornecer uma nova interpretação para todo o acontecer e para a vida humana, os quais irão resultar na construção da vontade de poder. Cf. Moore, 2004, p. 71-88.
[13] Cf. Nietzsche, 1988, p. 361, FP 1888 14[174].
[14] Cf. Nietzsche, 1988, p. 366, FP 1888 14[182].
[15] Para G. Moore, essa força vital (Lebenskraft) seria compreendida como força artística: “O Nietzsche tardio chama de vontade de poder essa ‘força artística primordial’ comum ao estado estético e à vida animal” (Moore, 2002, p. 109). É importante destacar, nesse contexto, que Nietzsche assume, no mundo pós-darwiniano, que os valores estéticos repousam em valores biológicos, para sustentar sua hipótese evolutiva oposta, de que o aumento de poder e o avanço da vida ocorrem a partir desse impulso vital, artístico, configurador, da vontade de poder. Essa assunção está sempre presente nos desenvolvimentos da fisiologia da arte, como bem analisa G. Moore. Entretanto, discordo de Moore, quando ele afirma: “Nietzsche simplesmente reitera os muitos erros e mal-entendidos perpetrados por seus contemporâneos” (Moore, 2002, p. 55). Na fisiologia da arte, ao esboçar os tipos da décadence, assim como o tipo de artista afirmativo, Nietzsche não segue simplesmente o “velho conceito idealista de ‘tipo’”, mas fornece novas configurações à tipologia, em função de seu método genealógico e de suas transposições metafóricas da fisiologia na vontade de poder.
[16] Cf. Nietzsche, 1988, p. 371, FP 1888 14[184]. Nessa anotação póstuma, Nietzsche compreende os “valores biológicos” e os “valores fisiológicos” como sinônimos.
[17] O gênio (das Genie) e a força de sugestão da arte moderna seriam formas de neurose. Contudo, o artista afirmativo (der Künstler) não teria esse caráter doentio, já que teria uma força vital e uma saúde vigorosa (Cf. Nietzsche, 1988, p. 297, FP 1888 14[119]).
[18] Edmilson Paschoal interpreta em sentido afirmativo a autoencenação filosófica de Nietzsche, nas suas obras tardias, principalmente em Ecce homo. O “modo autorreferencial e autobiográfico na exposição” teria um valor positivo, como adoção de um estilo que seria o desdobramento de sua própria filosofia. A narrativa de si como experimento filosófico, enfim, é vista na perspectiva de “criação artística de si mesmo” (cf. Paschoal, 2019, p. 158-166). Os maiores empecilhos para essa forma de criação artística, a meu ver, são o questionamento sobre o valor da verdade e da mentira, e a desvalorização de si mesmo como artista nas estratégias de autodesmascaramento, nos escritos de 1888.
[19] Cf. Nietzsche, 2020, p. 12s., NT. Tentativa de autocrítica, 4.
[20] G. Moore destaca que, já em 1873, Theodor Puschmann, em sua obra Richard Wagner. Eine psychiatrische Studie, compreendia a degeneração de Wagner como histeria, distinguindo-a da loucura. E o próprio Wagner descreveu sua “condição nervosa” doentia a seu amigo A. Röckel, em 1854 (cf. Moore, 2001, p. 249 s.). A pretensa originalidade de Nietzsche consiste em interpretar, em sua fisiologia da arte, a metamorfose da arte wagneriana em encenação como uma manifestação de degenerescência fisiológica, típica de histéricos. Lembremos que, assim como Charles Féré, Nietzsche compreende degenerescência como sinônimo de décadence.
[21] Cf. também Nietzsche, 1988, p. 512 ss., FP 1888 16[77] e 16[89].
[22] Uma formulação semelhante, também em referência ao Nascimento da tragédia, ocorre em Nietzsche, 1988, p. 226, FP 1888 14[17].
[23] O jovem Nietzsche já compreendia o dionisíaco e o apolíneo a partir dos “fenômenos fisiológicos” do sonho e da embriaguez (cf. Nietzsche, 2022, p. 25s., NT 2). E ponderava, em escritos póstumos da época do NT, que “Estética só tem sentido enquanto ciência da natureza: do mesmo modo, o apolíneo e o dionisíaco” (Nietzsche, 1988, p. 377ss., FP 1871-1872, 16[6] e FP 1871-1872, 16[42]). Entretanto, são leituras muito amplas e dispersas, ligadas ao vitalismo que predominava na biologia de seu tempo, por exemplo, na assunção de que há um Bildungstrieb, ou um Kunsttrieb, como impulso criativo da própria natureza. É sintomático que, em 1881, Nietzsche se expresse com sinceridade a seu amigo F. Overbeck: “Dito com confiança: o pouco que consigo trabalhar com meus olhos agora diz respeito quase exclusivamente aos estudos fisiológicos e médicos (estou tão mal-informado! – e realmente preciso tanto saber!) (Carta a F. Overbeck, de 20-21 de agosto de 1881. Disponível em: http://www.Nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1881,139. Acesso em: 6 jan. 2023). Essa carta, em que Nietzsche pede para o amigo encomendar vários livros de ciências (de O. Caspari, O. Liebmann, J. G. Vogt, entre outros), marca uma nova fase dos estudos de fisiologia, nos anos 1880, os quais serão apropriados para a formulação da vontade de poder, da teoria das forças e da fisiologia da arte.
[24] Cf. também Nietzsche, 1988, p. 356ss., FP 1888 14[170] e 17[9]. Cf. também Nietzsche, 2006, p. 67, CI. Incursões de um extemporâneo, 8.
[25] Cf. também Nietzsche, 1988, p. 226, FP 1888 14[18].
[26] Cf. Nietzsche, 1988, p. 491, FP 1888 16[30].
[27] Cf. Nietzsche, 1988, p. 520ss., FP 1888 17[3].
[28] No FP 1888 14[8] (Nietzsche, 1988, p. 221), ao tratar da incorporação do poder, Nietzsche não especifica que tipo de valores estariam na base desse processo.
[29] Como ele afirma, no FP 1888 14[117]: “[...] os artistas, quando eles valem alguma coisa, são vigorosamente constituídos (também fisicamente), excessivos, animais fortes, sensuais; sem um certo superaquecimento do sistema sexual não se pode imaginar nenhum Rafael...” (Nietzsche, 1988, p. 294).
[30] Cf. Nietzsche, 2006, p. 98-100, CI. Incursões de um Extemporâneo, 49, 50 e 51.
[31] Cf. Nietzsche, 1988, p. 296 s., FP 1888 14[119].
[32] Nietzsche, 1988, p. 529, 1888, FP 17[9].
[33] Cf. a carta a Malwida von Meysenbug, de 18 de outubro de 1888. Disponível em: http://www.Nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1888,1131. Acesso em: 09 set. 2022.
[34] Não fica claro como Nietzsche articula o “[...] triunfo do método científico sobre a ciência” (Nietzsche, 1988, p. 442, FP 1888 15[51]) a sua “metódica da verdade” com a fisiologia da arte. Se a arte possui mais valor do que a verdade, se a arte como vontade de ilusão e de mentira é central para a fisiologia da arte, a vitória sobre a “verdade” implicaria abandonar todas as formas de vontade de verdade, mesmo as suas versões “científicas”. Para formular suas objeções fisiológicas à música de Wagner, ele ainda precisa de uma justificação científica, metodológica, para garantir a validade de sua crítica. Mas Nietzsche extrapola os “métodos científicos”, quando transpõe noções de fisiologia para os processos interpretativos da vontade de poder.
[35] Helmut Pfotenhauer defende que, diante das dificuldades consideráveis encontradas no desenvolvimento das noções centrais, principalmente da “arte da fisiologia”, no contexto da vontade de poder, Nietzsche teria abandonado o projeto de sua grande obra (cf. Pfotenhauer, 1984, p. 411). Essa hipótese é plausível, mas precisa ser desenvolvida em relação às limitações das análises dos principais conceitos empregados por Nietzsche, em 1888, como o niilismo, a décadence, a vontade de poder, a transvaloração, assim como acerca da relação entre arte e verdade, entre arte e fisiologia.
[36] Em um fragmento póstumo de 1888, o qual se encerra com as palavras “Ensaio de uma transvaloração dos valores”, Nietzsche afirma que a melhor ópera moderna, para ele, é a de seu amigo H. Köselitz; a segunda melhor é Carmen, de Bizet e, a terceira é, surpreendentemente, Os mestres cantores, de Wagner (cf. Nietzsche, 1988, p. 463, FP 1888 15[96]). Nietzsche não faz objeções fisiológicas à música de Köselitz, o qual, segundo G. Moore, se queixava de histeria (cf. Moore, 2004, p. 71).
[37] Cf. Nietzsche, 1988, p. 393, FP 1887 9[102].
[38] Cf. Nietzsche, 1988, p. 520, FP 1888 17[2].