Teleontologia: a expressão metafísica da modernidade tardia
Henrique Azevedo[1]
Resumo: Esta é uma primeira tentativa do autor de propor um modelo metafísico de interpretação da modernidade tardia (que emerge na metade do século XVIII e vai até o fim da II Guerra), por meio do conceito de teleontologia. Assim, a teleontologia é o procedimento do espírito desse tempo de deslocar a ontologia (investigação sobre o ser enquanto ser, à qual a existência é um atributo) para uma teleologia, na qual a essência deve ser conquistada e revelada ao final de um processo progressivo. Em vez do Ser, o homem se tornou o grande objeto dessa investigação, e a pergunta sobre o ser enquanto ser deu lugar ao conceito iluminista de ser-homem (nunca realizado) e à finalidade de alcançá-lo, para satisfazer o que a razão projetou à espécie humana. No entanto, à medida que o projeto de atingir o nível do ser-homem avançava, clareava a sua verdadeira natureza, a saber, a expansão capitalista/colonial como força unilateral e arbitrária, a qual forçou todos a seguir paradigmas teleontológicos. A teleontologia demonstra que a metafísica (greco-cristã) é um elemento particular (e nunca universal) submetido a uma cultura e expressando, no caso aqui em questão, a estrutura de pensamento eurocentrado que se mundializou, através da expansão do capital/colonização. Neste escrito, propõe-se pensar sobre 1 – o que é a teleontologia, 2 – quais são os seus objetos, 3 – e qual é a sua origem.
Palavras-chave: Teleontologia. Ser. Ser-Homem. Colonialismo. Capitalismo.
Introdução: que é isto, a teleontologia?
Heidegger, em diálogo com Hegel e a Ciência da Lógica (2014a), afirma:
A metafísica pensa o ente enquanto tal, quer dizer, em geral. A metafísica pensa o ser do ente, tanto na unidade exploradora do mais geral, quer dizer, do que toda parte é indiferente como uma unidade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de tudo. Assim, é previamente pensado o ser do ente como fundamento fundante. Por isso, toda metafísica é, basicamente, desde o fundamento, o fundar que presta contas do fundamento; que lhe presta contas e finalmente lhe exige contas (Heidegger, 2018, p. 37).
Ao pensar o ser do ente como unidade fundante da história da metafísica, Heidegger parece fazer o movimento contrário ao de Hegel (2014a), ou seja, se este pretendia, em sua ontologia, estabelecer dialeticamente (quer dizer, por contradições e oposições) um padrão e demonstrar como este foi atingido, ao suprassumir todas as contradições da história (e da filosofia) e lhes conferir inteligibilidade, Heidegger, por outro lado, propõe que a metafísica entrou em declínio após Aristóteles, uma vez que ela “[…] não é apenas teo-lógica, mas também onto-lógica. A metafísica não é apenas também uma e outra coisa” (Heidegger, 2018, p. 39). Isso significa que “[...] muito antes ela é teo-lógica, porque é onto-lógica. Ela é isto porque é aquilo. A constituição onto-teológica da essência da metafísica não pode ser esclarecida nem a partir da teológica nem partindo da ontológica” (Heidegger, 2018, p. 39).
Ora, Heidegger (2004) também reivindica a tese de que a metafísica é um saber que historicamente se erigiu na identidade entre ser e ente, e que, ao desenvolver-se, a diferença entre ambos fora ocultada, dando lugar a um ente supremo como significação da essência de um ser supostamente já disponível de antemão. O diálogo de Heidegger com Hegel não tergiversa a relação entre metafísica e história, tampouco escapa à visão de que em metafísica o que importa mais é a forma como o ente e o ser foram pensados, ao longo das experiências históricas. Entretanto, Heidegger formula uma posição fundamental que vai de encontro a Hegel, a saber, o declínio da metafísica é concomitante ao desenvolvimento da técnica e do progresso tecnológico em contradição com as forças da natureza. Assim, no que Hegel (2014b) via progresso (a corporificação do universal em uma comunidade ética visando a um propósito), Heidegger (2020) enxerga declínio ou, precisamente, naquilo que Hegel (2014b) vê identidade da diferença e da identidade, Heidegger vê a diferença fundante e inconciliável na experiência do ser.
O grande problema dessa perspectiva de Heidegger se assenta em sua universalidade abstrata e abarcante de uma pretensa tradição do modo de pensar, genuinamente, humano; essa tradição deve ser compreendida como perpassada pela experiência de pensar o ente como parte de uma cultura superior de pensamento capaz de, completamente, dar conta do fundamento da problemática sobre o que significa refletir. Pretendemos, inicialmente, chamar atenção sobre a geopolítica contida nos enunciados de Heidegger, a saber, contra esse pensador, pensamos que é apenas na modernidade (exatamente, no crepúsculo da Escolástica tardia, na virada do século XVI ao XVII) que foi possível compreender a totalidade mesma conceitualmente; precisamente, nós nos referimos à ressignificação daquilo que, na metafísica greco-cristã, era abordado como ser. O ser passa a significar totalidade real ,no início da modernidade, de modo a demarcar sua diferença para com as particularidades, como fundamento central de uma metafísica na qual desponta o universal como categoria fundante.
Antes disso, o universal (ou os universais) era provinciano. Na modernidade primeva, no entanto, a marcha do universal se apresentava não apenas no pensamento, mas também na expansão geopolítica dos domínios que a Europa colonial empreendeu, naquele período. Daí fazer-se necessário perguntar em que medida tanto o problema de Hegel quanto o de Heidegger, os quais se apresentam com um viés ontológico, devem ser, verdadeiramente, compreendidos como contendo caráter geopolítico latente? Ou mesmo, é possível derivar a ontologia da cultura, uma vez que esta fundamentaria aquela? A estranheza de se colocar essas questões se dissolve, ao pontuarmos, de fato, o lugar desde o qual essa relação é pensada. Pensamos aqui a metafísica como um elemento cultural, e não o contrário, de sorte que a maneira pela qual o ente é pensado depende da posição geopolítico-cultural de quem o pensa. Não há posição privilegiada, tampouco uma metaposição enunciadora dos fundamentos do todo.
Isto se torna materialmente experimentável ao pensar cristão-eurocentrado, quando a metafísica do século XVI em diante teve como desafio, primeiramente, pensar entes que não estavam catalogados na relação transcendental estática entre ser e pensamento da Escolástica medieval; segundo, a metafísica não soube como lidar com entes que nunca antes haviam sido representados, sendo necessário acomodá-los em uma ontologia do ente possível. Francisco Suárez (1960) é o primeiro autor moderno que compreendeu esse desafio, pois ressignificou a pergunta de Tomás de Aquino, a saber, o que é o ente enquanto ente? Ele o fez em dupla forma: primeiro, Suárez concebe que a essência é o elemento mais primordial, sendo a existência um complemento e realização daquela; segundo, ele mostra que a problemática do ente é dupla, pois este se apresenta tanto como objeto primordial (ens supremum), em sua forma suprema, quanto como objeto mais adequado ao intelecto (ens commume), em sua forma mais geral. Contudo, o ente supremo apenas pode ser inteligível em um discurso, se antes for pressuposto que o objeto mais adequado para o pensamento é o ser que se relaciona com todos os entes existentes. Por qual motivo Suárez empreende essa divisão, na abordagem do ente? Em uma resposta possível, por conta dos novos entes que entraram no radar da racionalidade da escolástica tardia.
Esses novos entes possuem referência: são os indígenas que, desnudos, recebiam navegadores (ou vestidos e com impérios formidáveis, tais como os casos dos Incas, Maias e Astecas) e que, por vezes, comiam carne humana; ou animais nunca dantes vistos por olhos europeus, tais como papagaios e periquitos; territórios vastos e quase inabitados etc. Ora, investigar o que é o ente enquanto ente, nesse contexto, difere fundamentalmente daquele dos séculos XII e XIII, quando a cosmologia europeia estava reduzida a territórios espremidos por árabes ao sul, vikings a nordeste e eslavos a leste. Some-se a essa relação entre ser e ente moderna a expansão capitalista que se iniciava sem obstáculos, quer em um contexto de acumulação brutal de riquezas nos territórios britânicos, quer no fervor comercial e colonial-exploratório na Península Ibérica, cujos lucros no século XVI pelo transporte de mercadorias advindas da China e da Índia eram os maiores já conhecidos, até então, além de iniciar, naquele período, a exploração colonial na América.
Poder-se-ia objetar que a metafísica feita pela escolástica, desde seu início, no século XI, sempre foi aberta a pensar novos entes, visto que a grande influência das escolas de pensamento da Europa eram os filósofos árabes. No entanto, esse argumento não é válido, pois a Falsafa era principalmente constituída por leitores de Aristóteles e da filosofia do período helênico; a pressuposição da unidade entre pensamento e ser, que foi se constituindo no pensamento escolástico dos séculos XII, XIII e XIV, nada tem a ver com assimilar uma diferença, mas reorganizar a sua própria essência de pensamento: a ciência grega do Ser. Suárez entende, inclusive, que a metafísica é fundamental e incontornável para pensar Deus, o que significa que pensar o absoluto requer uma metodologia específica que reconhece a diferença entre Deus e os entes particulares; mas esta é uma falsa diferença. A metafísica somente é, de fato, confrontada sobre a questão da diferença radical, quando a colonização da América se consolida, na virada do século XVI ao XVII, aprofundando o argumento central para pensar a diferença desde Tomás de Aquino, a saber, a analogia, aqui compreendida como método, tanto para provar a existência do ente supremo quanto para organizar a totalidade daquilo que existe no mundo como unidade que deriva do ente supremo; o ponto é saber a natureza desses entes específicos, em relação ao ente supremo.
Se retrocedermos mais um pouco ao passado da metafísica, ter contato com novos pretensos entes não era, inclusive, algo completamente alheio à metafísica de Aristóteles tanto que, segundo Pierre Aubenque (2012), o que emerge de toda a história ocidental da metafísica é a tentativa que se inicia com o Estagirita de atualizá-la, de modo que sua estrutura interna seja concertada, na medida em que, recorrentemente, surgem falhas internas em sua viagem histórica (tal como, por exemplo, afirma o próprio Aristóteles, a falha de Platão em separar realidade daquilo que ela realiza); essa viagem não teria fim, enquanto houver humanos. Isso significa que, ao ser confrontada com novos entes, a metafísica tem de ser a ciência que primeiro deve acomodá-los na unidade, pois nada deve escapar desta. Contudo, chamamos atenção à tensão entre a natureza metodológica da metafísica para aprumar novos entes dentro de si[2] e sua real efetividade para fazer isso, quer na antiguidade (a qual não será objeto desta investigação), quer na modernidade, isto é, seria a força das espadas mais importante do que a força das ideias, para a realização da unidade e o espalhamento da metafísica?
Obviamente, essa viagem histórica levou a problemática do ser do ente para todos os continentes e a todos os povos, principalmente via catequização. Não é fortuito, com isso, que o ponto, para Aubenque, seja saber se “[...] a questão da metafísica só pode ser onto-teo-lógica?” (2012, p. 26), ou seja, se é possível haver outras formas de abordar a questão da universalidade do Ser, pressupondo, obviamente, o que se quer provar. Desse modo, não é possível identificar o problema metafísico proposto por Heidegger, senão como forma social que se expressou como universal, quando era, em realidade, uma visão de mundo particular que se expandiu. Para que o Ser fosse, de fato, universal, não seria necessário que cada povo não eurocentrado também tivesse sua maneira de abordá-lo? E que esses modos de abordar o Ser fossem perfeitamente identificáveis por todos, uma vez que sua universalidade seria patente? E se o grande problema geopolítico da universalidade do ser do ente estiver assentado na expansão militar desse conceito para o mundo da vida de outros povos? E se a corporificação do ser como Espírito nos sujeitos, tal como propõe Hegel[3], e a constituição onto-teo-lógica de Heidegger forem apenas ficções narrativas que ajudaram a consolidar o processo histórico de mundialização da Europa, via expansão colonial do capitalismo?
Precisamente, defendemos ter havido uma fermentação do grande problema metafísico da diferença e da identidade do ente e do ser entre os séculos XV e XVIII, cujo ponto central foi a entrada em cena, no final do século XVIII, de paradigmas metafísicos que elevaram esse saber à ciência que deve tratar da experiência da consciência, e cuja novidade era a percepção do real em movimento, vertiginosamente, acelerado.[4] A identidade, possivelmente, apreendida entre ente e ser, nesse contexto, é tênue e sempre ressignificada, posto que o real passou a se movimentar em uma velocidade nunca dantes experimentada e a estabilidade que sempre fora esteio do pensamento metafísico passou a ser buscada na própria dinâmica do movimento da modernidade, mas sem a ideia de que seria possível a apreensão de qualquer essência com pretensão absoluta. A metafísica, com isso, passou de fundamento da realidade para ser algo não mais aceito como saber que dá conta do real; as ciências naturais tomaram o lugar da metafísica, pois aquelas conseguiam dar conta da dinâmica requerida para pensar o existente, de modo acurado, na experiência sensível medida matematicamente.
O saber metafísico e os acontecimentos históricos, mutuamente, se determinam e não se dissociam, pois a visão metafísica greco-cristã de mundo refletia as relações sociais postas, organizando-as em teorias da unidade, na antiguidade, e da totalidade, na modernidade, coisa que Marx já identificara no século XIX (ao afirmar que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante e que, em sua época, a burguesia operadora do capital representava essa classe, a qual maneja a totalidade mesma posta por ela). Isso significa que apenas da segunda metade do século XVIII em diante foi possível estabelecer que a metafísica ocidental, de fato, se refere à totalidade verdadeira (consolidada após um processo que durou o decorrer de toda a modernidade primeva), pois é ali que a Europa, enquanto tenso consórcio estatal, religioso, militar e colonial, iniciou um domínio imperial mundial. Esse domínio conjugava o poder do Estado de organizar populações, tanto sob regimes, inicialmente, monárquicos, juntamente com a Igreja Católica Apostólica Romana, quanto sob o poder empresarial, cujos artífices eram, principalmente, acionistas de empresas marítimas de comércio e transporte de pessoas escravizadas e soldados, para fins de dominação colonial (Williams, 2012).
Nesse contexto, o continente americano, por exemplo, serviu como laboratório para o domínio mundial de potências estatais europeias (Dussel, 1993); tal domínio teve seus fundamentos estabelecidos pela filosofia/teologia, cuja substância era provida pelas teorias morais (com fundamentações metafísicas) de justificação da superioridade intelectual, devido à sua suposta expertise para pensar a totalidade verdadeira e também os destinos de todos os entes; se esses novos entes eram, realmente, novos no século XVI, não mais o eram no século XVIII, pois já haviam sido mapeados segundo um novo paradigma metafísico, que reinventou o método para abordar o real, a fim de dar conta da totalidade acelerada. Antes de expormos essa faceta metodológica, é preciso dizer que tal método só poderia ser posto em conciliação com um novo objeto privilegiado. O fato de as metafísicas da modernidade experimentarem a realidade como movimento descontrolado suscita a proposição de um objeto não apenas privilegiado, mas também possivelmente controlável, o qual deve ser o eixo de perseguição da verdade do real. Esse objeto é o Homem, enquanto tal, cunhado no século XVIII, isto é, esse ser consciente da experiência real de sua consciência e do mundo que ele mesmo, enquanto gênero, se autointitulou construtor.
Em suma, propomos conceituar esse processo (que diz respeito à percepção do real sempre em expansão progressiva, nem sempre linear, mas direcionada ao futuro e que tem o Homem como objeto privilegiado) de Teleontologia, que significa o deslocamento da questão sobre o ser enquanto ser para a investigação sobre o significado de alcançar o conceito de Ser-Homem. O ponto central desse processo é a ressignificação da ontologia moderna[5], ao acrescentar a teleologia à reflexão, a qual tem a espécie humana como objeto privilegiado que deve atingir seu conceito no final de um processo progressivo. O Ser do Ente não deixa de ser objeto da reflexão, todavia, é deslocado em sua posição e ordem para o pensamento, ou seja, o Ser do Ente, enquanto Ser-Homem, necessita ser conquistado e, uma vez alcançado, será possível ter a posse do conhecimento de um Ser manejável, completamente.
O conceito de teleontologia, assim, consegue captar a tendência arbitrária e unilateral da modernidade tardia à universalidade, tal como exposta nessa articulação; por modernidade tardia compreendemos as filosofias que se estabeleceram após Kant e sua Crítica da razão pura (2010), as quais se propunham pensar o real como objeto passível de ser possuído pela consciência; tal posse desempenha e contém uma dupla função, primeiramente, uma de caráter lógico sobre as condições de possibilidade de o intelecto adquirir conhecimentos, ao moldar o mundo segundo sua própria forma e, segundo, de caráter econômico-moral, por meio da forma social de acumulação de riquezas, através da propriedade privada.[6]
A forma social da propriedade se consolidou e foi respaldada racionalmente por conta do avanço das teorias modernas do direito (desde o direito natural ao direito positivo), que tinham como missão justificar os motivos pelos quais os territórios da América, da África, da Ásia (explorados por europeus e, posteriormente, conquistados ao longo do século XIX) e da própria Europa (vide a política de cercamentos inglesa) (Oliveira, 2018), poderiam ser possuídos por Estados e indivíduos (Anghie, 2004). Era pressuposto, no caso colonial, que aqueles que habitavam certos territórios não faziam parte de uma ordem social capaz de reconhecer a posse jurídica e, portanto, não precisavam ser consultados[7]; também é salutar notar que o ápice dessas teorias (que ocorre na virada do século XVIII ao XIX) aparece após três séculos do estabelecimento colonial na América, por diversos Estados europeus.
Pretendemos desenvolver o argumento de que a teleontologia é o paradigma metafísico que responde aos anseios da modernidade tardia de fazer o real (aqui na forma conceitual que também significa Mundo e Totalidade) funcionar segundo a ordem da racionalidade metafísica, mas sem uma realidade transcendente que garanta uma essência absoluta estável, a qual poderia ser alcançável; a racionalidade metafísica foi conservada enquanto atitude para tentar dotar o mundo, esse ente vertiginosamente dinâmico e, desse modo, instável, de alguma regularidade. É na modernidade tardia que se apresentam os grandes sistemas que propõem capturar a tendência acelerada da modernidade e direcioná-la para reconstituir unidade perdida. Com isso, apresentaremos 1) o objeto da teleontologia, o qual se divide em objeto explícito (o homem) e implícito (a instabilidade) e 2) como a modernidade tardia deslocou a questão sobre o ser enquanto ser para a investigação acerca do ser-homem, revelando, como contrapartida, uma tentativa de recuperação da provincial unidade perdida e o esquecimento do não-ser radical (não-ser, conceitualmente, homem em todas as suas expressões).
1 Qual é o objeto da Teleontologia?
Para desvendar o objeto da teleontologia, é necessário, primeiramente, entender como ele se expressa. Ora, não é possível enfocar esse objeto sem vinculação à sua expressão, pois ele é uma reação contra a obsolescência da onto-teo-logia, principalmente na segunda metade do século XVIII. O objeto da teleontologia, com isso, se expressa de modo instável, sendo, pois, primariamente, uma posição teórica; ele é algo apenas admitido ou por vezes pressentido, mas nunca capturado completamente; assim, o objeto da teleontologia, em vez de ser o Ser do Ente, ou o Ente enquanto Ente (domado, na medida em que carregaria um núcleo estático acessível ao intelecto, por meio do uso do método mais acurado e correto), ele é a própria instabilidade. Este é o objeto implícito, que não foi devidamente tematizado, no decorrer da modernidade tardia e que fora sublimado, quando os objetivos se tornaram realizar o progresso histórico, moral e científico. A categoria do progresso representou a nova experiência do tempo, constituindo a forma possível para dotar o caos de alguma regularidade, posto que as verdades (culturais, metafísicas, teológicas etc.) gestadas ao longo do medievo e da modernidade primeva não mais satisfaziam à dinâmica cultural de mundo que despontava após o século XVII.
Assim, o mundo medieval da Europa entre os séculos XIII e XVI era, sobretudo, composto pelo poder político e espiritual da Igreja Católica, que o dotava de certa estabilidade simbólica; do ponto de vista intelectual, havia a estabilidade dos objetos de pesquisa, os quais tendiam a Deus, além de usar a filosofia como escada para a teologia. Desde o século XVI, entretanto, tal estabilidade perece, lentamente, devido a diversos motivos: primeiro, por conta da entrada em cena da reforma protestante e, em seguida, por causa do início e expansão do capitalismo na Inglaterra, denotando novas formas de relações sociais na, até então, periferia da Europa; segundo, a conquista da América e o comércio de especiarias com a Ásia, alargando o mundo (de unidade para totalidade) até então conhecido; terceiro, a revolução científica tomou o lugar da especulação metafísica como instância mais precisa de conhecimento sobre o real; quarto, a entrada em cena no final século XVII do movimento do iluminismo com sua contestação das posições sociais há séculos estabelecidas; quinto, a formulação do conceito de homem, esse sujeito universal, cujo escopo inicial seria a reestruturação de sua essência, em meio à expansão de mundo em curso.
Estas são apenas algumas características que deslocaram a reflexão do Ser para a do Ser-Homem (deslocamento que será aprofundado no próximo tópico), posto que a metafísica escolástica do ente se tornou defasada, em vista da velocidade sob a qual esses novos entes se apresentavam à experiência. Experimentar o desconhecido sem uma teoria que a abarque plenamente foi percebido como desamparo, ou seja, o tempo de desarranjo do tecido social correu mais rápido do que o tempo das reformulações da metafísica para dar conta de prover respostas. Entretanto, que metafísica era esta que se tornou inadequada para pensar o real ampliado e em aceleração constante? Para responder a tal questão, nós nos valemos outra vez de Pierre Aubenque (2012), o qual mostra que a obsolescência da metafísica não diz respeito ao seu suposto desenvolvimento disfuncional, mas, antes, está associada ao déficit de objeto intrínseco à formulação inicial de Aristóteles sobre a ciência primeira. A ciência primeira é aquela que deve tratar da questão “o que é o Ser enquanto Ser?”, mas, logo de início, um problema se apresenta, qual seja, a impossibilidade de tornar o Ser um objeto válido à reflexão. Precisamente, segundo Aubenque, há aqui
[u]m primeiro deslize fatal para o projeto aristotélico de uma metafísica, porque a ciência exige um objeto do qual se possa dizer que ele é, sua essência. Ora, não se pode dizer do ser que ele é antes de saber o que é o “é”. Assim, nesse caso particular, é impossível a preexistência do objeto e do objeto previamente determinado pela ciência que se quer elaborar para tal objeto, e essa preexistência é condição de cientificidade [...] Será possível objetivar a condição inobjetivável de toda objetivação? (Aubenque, 2012, p. 28-29).
O problema é que o objeto dessa ciência não se deixa apreender de modo previamente determinado, não podendo ser, de fato, ciência em pleno sentido, pois esta nada é sem se relacionar com seu objeto; o Ser não se deixa apreender, como exige a ciência primeira. Assim, para que a metafísica possa responder à questão sobre o Ser enquanto Ser, e levando em conta a sua característica de ser não objetivável, ela precisa, antes de qualquer coisa, responder como o Ser se expressa. Ora, para que não haja uma investigação infinita, posto que o Ser é polissêmico, Aristóteles propõe que a substância (ousia ou essência ou substância) deve ser o sentido primeiro, aquele que tem primazia sobre todos os outros sentidos, de maneira a atenuar tal polissemia e facilitar, metodologicamente, a pesquisa. Logo, todos os outros sentidos devem ser derivados deste. Além disso, o Ser não pode expressar-se por meio dele mesmo, pois isso o tornaria plenamente objetificável; então, para que seja possível pensar o Ser, é necessário expressá-lo através dos infinitos Entes determinados, visto que estes são objetificáveis por conta de estarem ao alcance do discurso que se refere a algo imediato.
Isso significa que a única maneira possível de haver um objeto para a ciência primeira é se esta tratar, prioritariamente, do Ente. Aristóteles, quando formulou essa maneira de abordar a ciência primeira, não estava tratando de uma instância além da física, tal como apressadamente se poderia imaginar, porém, acima da física, mais exatamente de uma hiperfísica da hierarquia dos Entes. Todas as vezes que se investigar o Ente, reflexamente, se investiga o Ser. A substância passa a ser o princípio de inteligibilidade que possui a primazia gnoseológica e o primado cronológico, no que concerne a eventuais determinações do Ente. Entretanto, essa maneira de formular o objeto da metafísica entra em declínio após Aristóteles, quando a teologia natural passa a ser a principal ciência da metafísica. Contudo, tomemos cuidado para não confundirmos o declínio do modo comedido de Aristóteles investigar o Ser enquanto Ser, com o declínio do próprio Ser como objeto da investigação.
Aubenque (2012, p. 32) afirma que “[...] todo o declínio da metafísica pós-aristotélica seguirá o rumo de uma interpretação progressiva do fundamento como fundação, da suspensão como derivação, da condição necessária como condição suficiente, do ‘aquilo sem o que’ como ‘o pelo que’”. Entra em cena, no medievo escolástico, a teologia natural como ciência principal, ciência teorética que trata do principal Ente, o ens supremum, acarretando uma metaphysica specialis, ou seja, a ciência da essência divina. Isso implicará a assimilação do
[...] ser enquanto ser ao ser divino, o ens comum ao ens summum. Dessa identificação nascerá a vulgata metafísica segundo a qual Deus dá o ser aos entes em virtude de sua própria essência e na proporção da respectiva essência dos diferentes entes. Arremata-se, assim, a unidade da teologia e da ontologia numa ontoteologia (Aubenque, 2012, p. 33.)
Aubenque aqui formula a famosa tese de Heidegger (2004) sobre o esquecimento do Ser[8], em vista da tematização do Ente. Entra em cena para dar conta do Ente supremo a noção de analogia, a qual tem o demérito, segundo Aubenque, de perverter a filosofia primeira de Aristóteles como teologia fundamental. Tomás de Aquino é o responsável por tal perversão, pois substitui a metafísica do ser pela dos graus de ser, proporcionando não somente um maior controle da diversidade polissêmica, mas também retirando de Deus a qualidade de pura essência: Ele é, pelo contrário, pura existência da qual todos os ens dependem para existir, agregando à existência uma essência. Contudo, tanto para Aubenque quanto para Gilson, a tese de Heidegger não se sustenta, não porque seja falsa a tese sobre a não tematização da questão sobre o ser, mas por conta de nunca ter havido em Aristóteles uma ciência do ser que desse segurança à investigação. Aristóteles estava ciente de que sua ciência primeira, ao mesmo tempo que continuava a tradição de Parmênides, Zenão e Platão, também restringia o objeto, de sorte que era necessário haver um grande esforço para, de algum modo, sustentá-lo como possível.
Seguindo o espírito aqui posto, procuramos também perverter as teses de Heidegger sobre o sentido do Ser, enquanto seu esquecimento na história da metafísica; pensamos que não apenas este foi esquecido, mas também o foi seu correlato mais imediato, o não-ser radical. Apenas à guisa de adendo, é necessário diferenciar entre o não-ser oposto ao ser e o não-ser radical. Obviamente, o não-ser, como contradição do ser, foi tematizado tanto pela história da filosofia quanto pelo próprio Heidegger, contudo, como reduzidos à lógica da identidade da tradição parmenideana ou lógica ontológica greco-cristã. Já o não-ser radical, no sentido de não pertencer a essa tradição, não foi tematizado, senão enquanto forçosamente parte do campo de sentido da investigação sobre o Ser.
Precisamente, o não-ser radical deixou de ser tematizado, de modo que, por exemplo, na modernidade setecentista, ninguém conseguia pensar o não-ser radical como ente autônomo, ou seja, este foi inserido no ser e pensado ou como impossibilidade no seio da linguagem que expressa o ser (o não-ser como oposição) ou como aquilo ainda não inserido completamente na lógica do ser; mostra-se, com isso, que a lógica, essa ferramenta ainda remetida a Aristóteles (todavia, completamente perpassada pela metafísica transcendental do ens supremum), não conseguia vislumbrar a diferença enquanto diferença radical. O não-ser radical sempre foi forçosamente inserido como parte do Ser, como a diferença domada pela identidade constituída pelo pensar metafísico.
Este é um dos motivos que fizeram com que a metafísica do ente tenha se revelado incapaz de dar conta do mundo da modernidade tardia, pois a percepção do mundo moderno como expansão deixava lacunas irresolúveis para uma ciência que se relacionava de forma petrificadamente hierarquizada e estática com seu objeto. Tais lacunas podem ser formuladas em termos pragmáticos, como saber se há alma nos indígenas, se há outras formas de cultuar divindades, por meio das manifestações da natureza, se se pode conceber o lucro como algo divino etc. Estas que, em uma análise apressada, podem parecer não ser questões da metafísica acabam se tornando primordiais para a economia política e as relações geopolíticas modernas, acarretando que a metafísica, esse saber ao qual nada deve escapar, nada tenha, paradoxalmente, a dizer sobre isso, e tampouco consiga propor teoricamente qualquer saída não clássica sobre como resolver essas questões.
Contudo, apesar de se saber incapaz de resolver tais problemas, a metafísica ainda foi o princípio, através do qual outras ciências poderiam se valer logicamente, no proceder para resolver aqueles problemas. A metafísica é também uma cultura de pensamento, traço característico revelado no cotidiano (ex.: o monismo epistemológico de Parmênides não pode ser dissociado de uma sociedade eleata extremamente religiosa, de culto órfico, cujo ponto de apoio era a ideia de que nada nem ninguém podem sair abruptamente do real, senão por meio de trabalho da alma).[9]
A velocidade com que se substituíam, nas modernidades, as questões fundamentais, somada ao esquecimento de como abordar a diferença, tornou a metafísica um saber de eruditos que não conseguia dar conta objetivamente da totalidade do real (pois tematizava sua unidade) e nem podia competir com a dinâmica da ciência e da história, como explicações coerentes do processo progressivo da realidade. Ora, essa crise nada mais era do que a crise da própria experiência estável de mundo, a experiência na qual o não-ser era algo atrelado inevitavelmente ao ser. A solução tentada para resolver esse problema de estabilidade veio com a substituição do método da metafísica, a saber, em vez de investigar o que é o ente enquanto ente, buscaram-se os conteúdos que poderiam resultar da experiência da consciência; o primeiro a proceder dessa maneira foi Kant (2010), o qual propôs o deslocamento do tratamento sobre o ser para a investigação sobre o intelecto do Homem (Azevedo, 2019), o qual possui um conceito estável para moldar o real em vista de estabilizar-se nesse conceito. Para tal, era necessário seguir os preceitos e ditames da racionalidade iluminista[10]; no entanto, a instabilidade, apesar de não tematizada, foi o grande objeto implícito da tentativa de resolver o problema epistemológico da metafísica, mas que, explicitamente, tematizou o Homem como verdadeiro objeto capaz de resolver os problemas deixados pelo declínio da metafísica e pela aceleração do real; entretanto, essa investigação se revelou desleixada, um esquecimento, que se recusou a assimilar de modo efetivo aqueles que não-eram-homens, conforme o modelo conceitual teleontológico.
2 A Origem da Teleontologia: deslocamento do Ser ao Ser-Homem ou sobre o esquecimento do não-ser radical
Só é possível perceber a instabilidade e torná-la objeto, ao analisarmos o que de fato estava em primeiro plano, naquela alvorada teleontológica; nossa hipótese é que o homem é o principal vetor para satisfação teleológica do ser possível, tomando para si, ao mesmo tempo, o papel performático de ente e de substância, mas sem uma base fixa, sem fundamento. Ora, o homem, como ser explícito e principal pretendente a Ser manejável com segurança científica, surgiu no século XVIII (Foucault, 2000) e foi posicionado como ponto explícito da reflexão da modernidade tardia. Já a instabilidade foi aquilo que implicitamente substanciou tanto a experiência moderna de percepção de mundo (acelerado e em progressiva expansão, que deixa restos pelo caminho) quanto a tentativa de promover um objeto, cuja estabilidade poderia não apenas ser controlada, mas também ter seus resultados colhidos, plenamente, em um futuro próximo e cujo horizonte se apresentava, de maneira metodologicamente grandiosa. Satisfazer o futuro pensado pela razão tinha como pano de fundo a sublimação da indeterminação e seu envelopamento como racionalidade histórica (relação não nostálgica com o passado e abertura de perspectivas grandiosas).
O deslocamento da investigação sobre o Ser (Parmênides) para a pesquisa sobre o ente supremo (Tomás de Aquino), deste ao ente possível (Suarez) e daí ao Ser-Homem (Kant) acabou suprimindo não propriamente o sentido inaugural do Ser (Heidegger), entretanto, sobretudo, as formas de lidar com a diferença, ou seja, com o não-ser radical. Trata-se de diferença radical que se expressa também como incomensurabilidade cosmológica, distinção política, diferença cultural etc. Não é fortuito que a doutrina principal que embalou a viagem moderna do Renascimento filosófico foi o neoplatonismo de Marsilio Ficino, perpassado pela noção de Uno de Plotino (aquilo a partir do qual nascem ser e pensamento) e pelo humanismo, ao qual o trabalho de cultivo de si aumenta a capacidade de Ser-Homem (Gandillac, 1995).
Com efeito, em nossa visão, esse neoplatonismo renascentista também se vincula à própria noção de Platão de que aquilo que dá realidade às coisas empíricas é a ousia, a qual não se encontra no mesmo plano que aquilo que ela realiza. Isso significa que a essência é idêntica a si, pois o que é, é, antes de tudo, si mesmo; exclui-se dessa equação aquilo que não é, cujo real é identificado sem ousia verdadeira. Este é o limite da ontologia de Platão, porque, à medida que a identidade é igualada à realidade (isto é, a identidade do real consigo mesmo), o outro é excluído, e o é de modo tal que se pode inclusive chegar ao ponto de expulsar o outro (poeta) da esfera da cidade. Precisamente, se, para Platão, há uma clivagem clara entre inteligibilidade (real) e empiria (simulacro), para o neoplatonismo do Renascimento, o real pode ser postulado desde que se trabalhe a si mesmo para tal, excluindo o outro não apenas do ponto de vista ontológico, mas também social. Entretanto, esse ponto por nós levantado se põe de forma ainda embrionária na alta escolástica. Nesse sentido, salienta Henrique Lima Vaz (1997, p. 350-351):
A passagem a outro regime noético-especulativo se deu quando, por obra de Duns Scot, o princípio platônico-aristotélico da identidade intencional entre o intelecto em ato e o inteligível em ato como estrutura fundante da intelecção (nous = noeton → noesis) foi substituído pela primazia da representação que, do esse objectivum de Scot e dos escolásticos do século XIV à ideia objetiva de Descartes e ao transcendental kantiano, faz refletir para o sujeito o princípio último da fundamentação do ser. A metafísica enquanto metafísica da subjetividade, terá então assumido os traços da antropologia como ciência primeira na estrutura do campo epistemológico.
Fundamentalmente, Lima Vaz esclarece a ruptura sutil, porém precisa, de Duns Scot em relação aos seus antecessores, ao produzir uma metafísica que depende do sujeito para haver inteligibilidade na própria estrutura cognitiva do esse; todavia, pensamos que essa metafísica da subjetividade de viés antropológico é incapaz de substituir plenamente a antropologia, pois aqui não se trata, principalmente como fica claro após Kant, de compreender o homem como objeto cuja inteligibilidade é transparente. Pelo contrário, o homem passa a obscurecer o debate, por conta dos vários modos culturais em que este se expressou, ao longo da história e entre distintos povos. De fato, o princípio de universalidade greco-cristã, de que todos são criaturas que advieram do ens supremum, foi universalizado colonial e militarmente, após Scot e também Ficino; ambos podem ser tomados como pano de fundo de uma tradição em convergência histórica, cujo ápice foi o colonialismo moderno, o qual não somente universalizou seu desenvolvimento interno, por meio de orações, espingardas e espadas, mas também teve que reconfigurar seu tecido teórico, ao perder a base cosmológica que representava tranquilamente o Ser como fundamento do cosmos.
O esquecimento do não-ser radical, paradoxalmente, coincide com um afã de recuperação da unidade cindida pela eclosão da modernidade primeva e sua abertura ao novo. Era necessário catalogar, representar em uma totalidade possível, hierarquizar etc., todos os novos entes que entraram na esfera da inteligibilidade do Ser. A diferença se apresenta como dúvida, como obscuridade, como incompletude etc., como negação. O problema de fundo aqui é que a unidade metafísica representada na apreensão do Ser desses novos entes possui inteligibilidade mais simples do que, por exemplo, a representação da totalidade social que se complexificou, no início da modernidade.
Apesar de a modernidade, desde seu início humanista, procurar postular o homem como ponto de partida ontológico da reflexão, homem este com todas as suas características já pré-definidas (racional, capaz de se organizar em estado, regulado por uma constituição, possuidor e constituidor de propriedade privada, livre etc.), mostrou-se impossível em seu desenvolvimento, no decorrer dos três primeiros séculos da modernidade (XVI, XVII e XVIII), ao não conseguir acochambrar a totalidade dos homens no conceito de homem.[11] A totalidade social moderna é, por definição, cindida, contraditória e inconciliável; sua complexidade não permite que aquilo que uma cultura específica, ou grupo de pessoas, projetou ao humano em geral seja, verdadeiramente, alcançado (Koselleck, 1999). Essa é também uma das definições específicas de teleontologia, visto que as tendências arbitrárias e unilaterais do pensamento europeu moderno de unificar o Ser através do homem falharam, de sorte a resultar em um mundo contemporâneo, paradoxalmente, com tecido social esfarelado e totalizado em único sistema (capitalista) sem unidade; o resultado é um planeta, dentro em breve, sem condições de abrigar qualquer tipo de vida.
O deslocamento do Ser em detrimento do Ser-homem também se apresenta como tentativa de não perder a conexão fundamental com a noção de verdade, isto é, com o universal. No entanto, o que se evidencia como verdade é a tendência ao nada; o paradoxo reside no fato de que, ao se associar o homem a uma forma essencial específica de Ser (cidadão regido por uma constituição, mediado pelo estado e suas diversas instituições), não apenas revelou o incômodo com o não-ser-homem, mas também que todas as implicações do ser-homem nos levaram a uma crise climática gravíssima, à tendência ao não-ser total. A teleontologia também fez eclodir uma mudança na experiência de mundo; desde o crepúsculo da modernidade tardia capitalista de viés teleontológico (pós-II Guerra em diante), percebemos o mundo como algo em retração, em que a totalidade está regredindo de modo a devorar tudo, em algum momento, e a consumir a si própria. Nós seremos destruídos por essa totalidade que tende ao nada, pela própria insistência em um tipo de Ser-homem. Esta é uma mudança de rumos do sentido teleontológico, porém, conservando a noção de um mundo percebido como em movimento.
Dessa forma, a teleontologia se apresenta como conceito capaz de explicar o movimento das ideias modernas que se sustentam na tentativa de manter a estrutura de pensamento da metafísica, mas com outras finalidades e configurações, promovendo a tentativa de prover o Ser de alguma estabilidade, em meio à aceleração que se configurou nesse período. O Ser-Homem passou a referenciar a única possibilidade de recuperar algo rompido pelo próprio movimento de imposição das ideias da modernidade: a sensação de incompletude, de algo ainda por ser alcançado, de necessidade de reestruturação social etc. Isso mostra que a teleontologia é um conceito que consegue explicar o procedimento cultural da modernidade tardia, tanto de unificação do ser-homem conforme a ordem social capitalista quanto de tendência, não apenas ao esquecimento do ser, mas também, sobretudo, à nadificação da vida na terra. Portanto, a teleontologia já possui seu desfecho na sua origem, e sua relação com um mundo em movimento ganha um novo elemento, no século XX: o Antropoceno e a sensação de que o mundo está se retraindo e o futuro está sendo cancelado lentamente.
Considerações Finais: Nadificação, Superação do Ser-Homem e Sujeito-Zumbi
O Antropoceno é o lento destino para o qual caminhamos, em vista da tendência à nadificação do Ser, sendo aquele, pois, um problema eminentemente humano (Danowski; Viveiros de Castro, 2014). Precisamente, este é um problema humano, na medida em que a humanidade é um conceito artificialmente erigido e difundido, a partir da modernidade eurocentrada liberal-burguesa-iluminista, que proporcionou o espetáculo colonial e a expansão da mercadoria como meio universal de relações sociais. Esse conceito de humano foi universalizado e, junto a ele, a sua cultura, cujo pensamento tinha como principal fundamento a metafísica do ente (supremo), não importando a forma com que esta se apresentava (como moral e direito naturais, como democracia liberal, como mercadoria enquanto mediação universal das relações sociais etc.). É esse humano que está em crise e de cuja maldição nenhum de nós, contemporâneos, escapamos. Aquele que primeiro identificou a aberração, a qual se tornou o ser-homem, foi Nietzsche (2017), propondo, inclusive, que este deveria ser superado. Segundo Nietzsche (1992), o primeiro passo para superar o Humano é compreendê-lo em sua realidade mesma, a saber, ele nos foi imposto e somos humanos contra nossos interesses; o segundo passo para superar a humanidade é entender que a metafísica é parte da cultura, e não o contrário, de modo que, quanto mais forte for uma cultura, mais fará parecer que suas demandas ontológicas são universais.
Nietzsche criticou fortemente o caráter metafísico dos menores gestos da vida cotidiana, os quais são, mormente, dominados por uma maneira cristã de proceder; isso envolve negar a vida e tudo aquilo que é real pela experiência imanente do viver, negar tudo aquilo que fortalece e torna a vida saudável, em vista de se apegar a uma fé cega, em uma dimensão completamente assentada na promessa. Desse modo, moldados pela cultura cristã (o platonismo para as massas) todos já estaríamos, de antemão, acostumados a buscar o nada, não sendo este de modo nenhum estranho. Seguindo a pista de Nietzsche, pensamos que a superação do humano tem de se dar por meio da superação da teleontologia, de maneira que a forma imediatamente mais acurada para tal tem de ser desontologizar o humano (se possível, aniquilá-lo em sua conceituação mesma). Ora, o declínio da ontologia modernamente construída está posto e a perda da ideia de unidade total (em que não há um Ser fundamental à mão ou uma totalidade física do universo já conhecida etc.) permeia a maioria das filosofias preocupadas em reerguer o humano, mas com sinal trocado, segundo outras perspectivas (marxista, anarquista, ecossocialista etc.).
O paradoxo da perda da totalidade é que esta, de fato, foi entendida como perdida, no momento mesmo em que foi formulada. Isso quer dizer que foi somente na modernidade que uma noção como totalidade pôde aparecer, e isso se deu devido ao fato de que, na tradição greco-cristã, pensar o cosmos não significava em um primeiro plano pensar o todo, contudo, pensar o fundamento do Ser como unidade. Pensar esse Ser fundamental equivalia a pensar provincialmente, ou seja, tanto no caso grego quanto no cristão, dizia respeito a pensar o fundamento de suas cosmovisões, perpassadas por várias nações diferentes que comungavam da mesma cultura (sejam as cidades-estados gregas, sejam mesmo os reinos cristãos). Na modernidade, pensar o todo equivale a ir além da província ou, mesmo, além do próprio planeta, mas em um contexto de incerteza sobre tudo o que se pode encontrar e, com isso, sobre a totalidade mesma. A totalidade, como forma englobante do todo que possivelmente existe, substitui o fundamento do ser.
Em suma, nossa posição não é a de recuperar outra significação do humano, mas abandoná-lo como peça de museu, a qual fora um dia importante, porém, que perdeu toda sua significação diante dos desafios atuais. Nesse sentido, a perda da totalidade que tudo regula deve ser encarada de forma construtiva e irrevogável, de sorte que, inclusive, deveríamos assumir seus resultados e tentarmos organizar o caos instalado, sem cometer o pecado de voltar ao anterior paradigma humano.
Concretamente, essa perda da totalidade total, na modernidade, suscitou, como contrapartida, uma reação à teleontologia, através das identidades sociais; isso significa que, à medida que a teleontologia se tornou o paradigma de reflexão e o padrão ao qual deveria se recorrer para construir a totalidade do ser-homem, também corria em paralelo a contestação dessa unidade, por meio da não identificação ao ser-homem e da luta contra esse destino colonialmente imposto a todos, principalmente àqueles na periferia do capitalismo. Tanto os conteúdos políticos baseados nas identidades (negra, indígena, mulheres etc.) quanto os neofascismos que se apresentam, atualmente, parecem ser frutos diretos dessa contestação, de maneira que a principal estratégia parece ser a luta por assumir a fragmentação real. Tal fragmentação atual é, de fato, fruto do avanço do capitalismo modernidade adentro, de modo a, ao mesmo tempo, totalizar a vida na terra sob um único sistema e fragmentar pela lógica da mercadoria a relação entre as pessoas (e outras formas de vida).
A fragmentação atual capitalista apresenta-se de forma mais patente, naqueles sujeitos que nunca se identificaram muito bem com a identidade antes imposta, mormente a de pertencentes à humanidade, cujas premissas para ser parte efetiva, e não somente potencial membro dessa identidade, se baseiam nas características das sociedades de cultura europeia; os outros precisariam de um esforço maior, para alcançar culturalmente esse nível (Krenak, 2020). A humanidade é o ente que se apresenta como, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da história universal, como cognitivamente moldada para pensar e alcançar o conceito de Ser como instância última, como necessariamente habitante do mesmo campo moral, como subjetividade coletiva. A consciência social contemporânea descentrou a ideia de humanidade, de modo tal que esta não faz mais sentido nenhum, sem sua associação à totalidade e, em reação a isso, outras formas de expressar o que significa habitar o mundo humano emergiram. Humano não mais significa um conceito com sentido único, tampouco uma forma única de abordar o comum. Teríamos como evidência, desse modo, a morte do sujeito? Penso que não; as identidades que emergiram dessa fragmentação se entendem muito bem como constituídas de sujeitos que desejam libertar-se completamente do jugo daquela noção de humanidade e cujo ponto comum é a afinidade eletiva (de raça, de gênero, de pensamento etc.).
A morte do significado de humano, como reação e contrapartida da teleontologia, não somente não significou a morte do sujeito, mas também, sobretudo, libertou certa potência que deformou o objeto explícito da teleontologia, de sorte que este não significa mais nada propositivo, mas apenas uma forma de manter respirando por aparelhos uma noção cuja morte cerebral já foi diagnosticada. Pensamos que as identidades que buscam por reconhecimento estão não somente pleiteando ser integradas no capitalismo (pensar apenas isso é tanto reduzir demasiadamente a luta por melhores condições de existência quanto falsamente pensar que há atualmente alguma instância que escapa das garras do capitalismo), mas também, sobretudo, estão abalando a base do capital com suas idiossincrasias, por serem historicamente formadas como aquilo que foi rejeitado pelo capital. Essa contradição é capaz de nos apontar formas de superar o capital, por meio de fragmentação real, de maneira a emergir modos de pensar que não são comensuráveis à lógica do ser (e do não-ser) greco-cristão-identitário-branco-masculino, o qual gestou o capitalismo. Entretanto, o desenvolvimento dessa tese ficará para o próximo escrito.
Portanto, a teleontologia é o modo como podemos identificar que, em vez do esgotamento das possibilidades metafísicas, tal como Heidegger (2010) interpreta Nietzsche, temos um redirecionamento dessas possibilidades, de maneira que a metafísica se mostra, paradoxalmente, em sua própria essência, quando sua queda é patente, ou seja, ela é o ponto nevrálgico do Ocidente, revelando seu caráter, propriamente cultural, em vez de efetivamente universal. A cultura que consolidou a noção de homem se esgarçou e não sabe mais como e para onde se expandir, senão em guerras de aniquilação total; contudo, a morte do homem (não importando que seja a da forma-sujeito, da forma-cidadão, da forma-civilização etc.), a qual se apresenta como constatada atualmente, não aponta para a superação da cultura metafísica eurocentrada, contudo, para um grande limbo entre o ser-homem que teima em quedar-se em seu caixão e não deixar-se ser enterrado, tal como um zumbi, mesmo após morto, e a completa indeterminação de como conciliar as particularidades (das identidades) com uma não totalidade. Isso ocorre não porque não há meios para pensar a superação do homem (tanto há, que apontei a questão das identidades, no parágrafo anterior), todavia, por conta de sua superação ser bloqueada, ao ser elaborada somente pela mesma matriz cultural que erigiu o problema. Também desenvolverei esses pontos em outra ocasião.
Teleontology: the metaphysical expression of late modernity
Abstract: This text represents our first attempting to offer a Metaphysic model to interpret the late modernity (which emerges in the middle of the 18th century and goes along until the end of the IIWW) through the concept of Teleontology. Thus, Teleontology means the procedure of the spirit of the late modern age to shift its paradigms from ontology (an investigation about the being as being, in which existence means an attribute) to teleology, in which essence must be conquered and revealed in the final of a progressive process. Instead of Being, Man became the main object of this investigation; the question of the being as being has given way as to an enlightened concept of being-man (never reached) as also to the task to achieve this in order to satisfy what reason designed to human species. However, as this project of achieving the concept of Being-Man advanced, its true nature became clear: a unilateral and arbitrary colonial expansion, which forced everyone to follow Teleontological paradigms. Teleontology can demonstrate that Greek-Christian metaphysics means a particular element (never universal) submitted to a specific culture and, in this case, expresses the structure of Eurocentric thought that became global by way of the expanding of capitalism/colonialism. Specifically, in this text, we propose to investigate: 1 – what is Teleontology; 2 – what are its objects; 3 – what are its origins.
Keywords: Teleontology. Being. Being-Man. Colonialism. Capitalism.
Referências
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Recebido: 16/07/2023 - Aceito: 25/08/2023 - Publicado: 13/02/2024
[1] Professor adjunto dos cursos de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0001-9600-7183. E-mail: henrique.azevedo@uece.br.
[2] Metafísica grega assimila tudo, sendo incapaz de pensar qualquer diferença radical, senão como parte do seu próprio cosmos. Sobre isso, cf. Azevedo (2017).
[3] Obviamente, Hegel tem consciência plena de que o universal é historicamente desenvolvido e dependente da ação humana, ao longo da história. Queremos chamar atenção para o fato de que, mesmo constituída dessa maneira, a universalidade foi forçada, no sentido de que a força física foi mais preponderante do que a força das ideias, sendo essa violência também constitutiva do processo dialético. Cf. Hegel (2014ª, 2020) (2014a, 2014b, 2020).
[4] A percepção do real como algo em constante aceleração se dava, sobretudo, pelas novidades coloniais e tecnológicas que foram se inserindo no mundo da vida, na modernidade, inclusive pelo fato de que as mudanças poderiam ser notadas por sujeitos, ao longo de suas próprias vidas, e não mais dependiam somente da história para saber como as coisas mudaram em um distante passado que persiste. Cf. Crary (2012); Rosa (2019).
[5] No sentido de que a existência é apenas complemento da essência, a qual é, de fato, o que há de mais real e que também não necessita daquela para constituir-se enquanto tal, conforme Suarez, Wolff e Baumgartem. Cf. Gilson (2016).
[6] Nessa perspectiva, a modernidade tardia difere de outros sentidos de modernidade. Ora, podemos compreender o início da modernidade de diversas formas e com diferentes meios de inserção. Podemos acessar o início da modernidade, por meio da escolástica tardia, principalmente o debate entre as metafísicas da essência e da existência; também podemos nos inserir no início da modernidade, através da reintrodução do ceticismo por Montaigne, para confrontar a reforma protestante de Lutero; também é possível entender o início da modernidade a partir da consolidação e espalhamento da razão de estado de Hobbes, o qual inaugura a forma moderna de governança; podemos, além disso, compreender a modernidade em seu início, com base na ascensão e consolidação da ciência moderna; além de não ser possível esquecer a ascensão e consolidação do modo de produção capitalista, o qual é o fator mais decisivo daquilo que chamamos de modernidade, por conta de sua capacidade de fagocitar todas as expressões do que pode ser considerado moderno, fazendo-as trabalhar para seu desenvolvimento. Essa pluralidade de inícios das modernidades decorre da tendência de buscar uma totalidade, ao mesmo tempo que se contrapõe ao antigo mundo, com universalidades restritas (aos povos em suas cosmovisões próprias), e esta pode ser conceituada de modernidade primeva. A modernidade tardia, por sua vez, é o momento de consolidação do capitalismo como aquilo que totaliza o mundo, na virada do século XVIII ao XIX; e, apesar de o próprio capitalismo não ser, ele mesmo, dominante em todos os povos que no mundo habitavam, naquele momento, ele, no entanto, se apresentava como tendência irrefreável e, também, de algum modo irresistível. Dessa forma, em nosso argumento, propomos o conceito de ser-homem como algo a ser alcançado no futuro, porque o projeto de ser-homem é o próprio projeto de consolidação do capitalismo, mas embebido em ideias iluministas. Ora, aqui também entendemos haver a principal convergência entre capitalismo e iluminismo, na medida em que a sociabilidade gerada pelo capitalismo, de caráter debilitante à própria existência da humanidade, foi normalizada e normativizada pelos projetos iluministas, os quais propunham um ideal abstrato de humano, igualados pela abstrata capacidade de serem indivíduos desiguais com direitos supostamente iguais. Esse foi o modo de escamotear a desigualdade real com uma igualdade irreal e inalcançável, ou seja, isso é próprio daquilo que chamamos de modernidade tardia e que se encerra com o fim da II Guerra Mundial, a invenção e o uso da bomba atômica.
[7] Não desenvolverei esse argumento aqui, de sorte que o objetivo é apenas pontuar sua importância. Para mais detalhes, cf. Squadrito (2002).
[8] Tese de que a tradição, principalmente àquela ligada à Escolástica, teria tomado como garantida a presença do ser, pois não mais se perguntava pelo “é” que compõe a busca pelo sentido preciso dos objetos. Com isso, “[...] já quando perguntamos o que é ‘ser’ nós nos mantemos numa compreensão do ‘é’, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ‘é’. Nós nem sequer conhecemos o horizonte em que poderíamos apreender e fixar-lhe o sentido. Essa compreensão do ser vaga e mediana é um fato” (Heidegger, 2004, p. 31).
[9] Cf. Capítulo IV de Burnet (2006)
[10] Não desenvolveremos esse argumento, mas concordamos, com ressalvas, com as teses de Robert Kurz (2010) sobre o iluminismo como forma colonial e sexista da modernidade, o qual precisa ser superado com uma crítica à esquerda, uma vez que a maioria das teses anti-iluministas são, atualmente, promovidas por uma direita apocalíptica, tais como as teses fascistas de Alexander Dugin (2013) e Nick Land (2019).
[11] Kant é o principal paradigma aqui. Cf. Azevedo (2019).