A positivação do Ubuntu como um princípio jurídico e político-constitucional da África

Arménio Alberto Rodrigues da Roda[1]

 

Resumo: A expressão Ubuntu é apresentada muitas vezes como uma mera cosmovisão ontológica, filosófica africana. Entretanto, este artigo tem objetivo de equiparar a filosofia Ubuntu como uma categoria de princípios jurídicos abertos de natureza constitucional, que, embora não estejam plasmados formalmente, nas Constituições escritas dos países da África austral, que partilham da cultura bantu, possuem um caráter deôntico normativo. Portanto, vale frisar que essa categoria de pensamento está presente socialmente como uma norma de razão prática, da qual emana o conceito de justiça dos povos bantus, os quais preservam uma identidade cultural comunitarista, ao invés do liberalismo ocidental individualista. A proposta deste estudo é associar essa cosmovisão a um fundamento constitucional dos Estados africanos, sobretudo os da África austral, equiparando com os princípios da dignidade humana, igualdade e liberdade etc., sendo importante para a consolidação dos direitos humanos na África. Por outra perspectiva, confronta-se essa cosmovisão em virtude dos paradigmas pós-modernos do liberalismo global, que também está amalgamado atualmente, nos países africanos. E, para concreção desse objetivo, a pesquisa será conduzida por uma metodologia pautada na revisão bibliográfica e por método de abordagem dedutiva, coadjuvada pelos elementos da dogmática jurídica constitucional.

 

Palavras-chave: Ubuntu como princípio constitucional. Ubuntu como um parâmetro de justiça. Globalização da democracia liberal. Comunitarismo africano.

 

Introdução

A dimensão política, social e jurídica pós-colonial dos Estados africanos é marcada por combinações de princípios locais indígenas e outros fragmentos axiológicos importados do modelo da democracia liberal europeia, baseado no individualismo da vida política e social do Homem, que propõe uma razão da vida parcialmente antagônica aos costumes ou valores político-sociais da África, a qual possui uma historicidade baseada no comunitarismo relacional, representando a espinha nevrálgica das sociedades africanas que compartilham a filosofia Ubuntu, na qual a valorização da comunidade ou do coletivo se sobrepõe ao indivíduo, ou seja, enfatiza-se em primeiro lugar o bem comum, que pretere o interesse individual em benefício da coletividade. A compreensão comunitária da vida não está imune às críticas, que podem ser deduzidas à luz das ideias da democracia liberal, a qual concebe um indivíduo como ser autônomo.

Em um contexto de recrudescimento global do capitalismo e neoliberalismo, torna-se difícil estabelecer dicotomias puras de regimes comunitaristas ou liberais, sendo que a pós-modernidade propõe uma estrutura mais voltada para políticas que maximizam a individualidade do Homem e, por conseguinte, a difusão de ideários que mercantiliza a relação social para um parâmetro puramente econômico e egocêntrico; nesse contexto, as Constituições africanas, para além de conter diversos axiomas, fruto da colonização europeia, também passam a incorporar princípios políticos e constitucionais extraídos das imposições das globalizações atuais.

Por outro ângulo, vislumbra-se nitidamente uma fraca preocupação dos Estados africanos em introduzir legislativamente os costumes, as dimensões filosóficas e as normativas pré-coloniais dos povos africanos, os quais pregam a comunitariedade da vida, isto é, uma ideologia normativa pautada na partilha existencial ou ontológica vai repercutir materialmente nas interações humanas daqueles povos.

Neste trabalho, ressalta-se a importância jus-filosófica do Ubuntu, enquanto um princípio de natureza político-constitucional de matriz comunitária, ainda que essa filosofia seja majoritariamente discutida no campo da filosofia política africana, enraizada na cultura banta; contudo, há uma importância de se invocar o Ubuntu para um debate jurídico-constitucional, pelo menos nos Estados africanos pós-coloniais, dada a sua importância ético-normativa.

E, neste cerne de ideias, o objetivo do presente artigo é propor a constitucionalização do Ubuntu como um princípio de natureza jurídica, capaz de responder a diversas demandas sociais, econômicas e políticas atravessadas no continente africano, tendo em conta que Ubuntu é concebido como uma maneira de vida que orienta os indivíduos inseridos nas sociedades africanas. Nesse sentido, cabe-nos a tarefa de resgatar e ressignificar a dimensão ontológica e teórica do Ubuntu, para uma concepção deontológica, assumindo a categoria de um princípio constitucional aberto, equiparado à dignidade humana e aos demais princípios, visando a constituir-se um fundamento dos Estados africanos, podendo ser útil no âmbito de questões hermenêuticas e argumentação jurídica. Não obstante, urge conferir ao mesmo princípio uma posição barométrica da moralidade pública, nos Estados africanos, ao invés de uma versão única derivada dos parâmetros unidimensionais de justiça, calcada no constitucionalismo liberal.

Para lograr os objetivos pretendidos, a pesquisa será baseada na revisão bibliográfica de natureza qualitativa. coadunada a uma abordagem interdisciplinar inerente à política e à sociologia. Ademais, será necessário desenvolver o trabalho através de uma discussão crítica pautada na dogmática jurídica, como mecanismo de recepcionar as abordagens ético-filosóficas propostas pelo Ubuntu.

O estudo é dividido em três partes essenciais: a primeira, dedicada aos conceitos do Ubuntu enquanto uma categoria ético-normativa e de pensamento africano; em segundo momento, o trabalho vai apresentar uma concepção dialógica entre questões da moral política e dogmática jurídico-constitucional, realçando, desse modo, o papel desse princípio no âmbito hermenêutico, decisório e aspectos que têm a ver com os direitos sociais e difusos. E, na terceira parte, voltar-se-á para uma análise econômica do Ubuntu, a partir da lógica capitalista e liberal amalgamada no neoliberalismo.

 

1 Conceito político-filosófico sobre Ubuntu e a pós-modernidade liberal

A tradução do Ubuntu para línguas germânicas não apresenta um conceito tão preciso, tratando-se de uma cultura intrinsicamente banta e com um corpo de linguagem próprio, o que acaba não permitindo uma exploração cabal desse ideário filosófico africano. Portanto, no processo de tradução para língua portuguesa ou inglesa, alguns elementos não são aproveitados na sua totalidade, a fim de clarificar e formular o sentido real dessa cosmovisão africana.

E por uma questão metodológica, Ubuntu é concebido como uma categoria de pensamento e forma de vida dos povos bantus, amparado no idealismo comunitário africano, que parte da premissa ontológica da famigerada frase: motho ke motho ba batho ba bangwe/umuntu ngumuntu ngabantu, que, traduzida literalmente, significa que uma pessoa só pode ser uma pessoa por meio das outras. Dito de outra maneira, a concepção de humanidade centrada no Outro, como referencial central para existência dos Homens (Ramose, 2002). Na questão ontológica, Ubuntu refere-se à essência humana, que deve pautar-se no respeito mútuo, buscando preservar determinados valores, como dignidade, compaixão, hospitalidade, generosidade, perdão, solidariedade, compartilhamento e honra para com o próximo, de maneira que todos os membros de uma sociedade tenham uma vida pacífica.

De acordo com Magobe Ramose (2002), Ubuntu são duas palavras que consistem no prefixo ubu- e a raiz -ntu, os quais evocam a ideia geral de ser-sendo. É o ser-sendo encoberto antes de se manifestar na forma concreta ou no modo da existência de uma entidade particular. Na linguagem ordinária, ser-sendo traduz o sentido de ser-sendo humano o criador das leis morais, da política e da religião.

Ubuntu, usado numa linguagem coloquial de línguas não bantas, expressa a ideia de um indivíduo capaz de sustentar um comportamento harmonioso, reconhecendo a dignidade do Outro. A essência do Ubuntu reside em tratar todo ser humano com a mesma dignidade e igual valor. Na cultura Ubuntu, existe, por assim dizer, uma articulação relacional do indivíduo inserido no âmbito de uma coletividade, que procura desenvolver-se com Outros, de maneira sadia (Sibusiso, 2017, p. 239). A ideia do ubuntismo também carrega o significado de togetherness, na língua inglesa, que se configura como unidade e solidariedade (Kayange, 2018).

As narrativas conceituais sobre Ubuntu, enquanto um conceito fundamentado no escopo comunitário, não está imune às críticas elaboradas por alguns filósofos africanos, como Matolino (2021), que vai entender Ubuntu como uma concepção moral e política não compatível com o padrão da democracia liberal moderna, que corresponde ao padrão de socialidade dos povos africanos da atualidade, cujo funcionamento se distancia das cosmovisões paroquiais. Por outro lado, a mesma filosofia perde a essência diante de uma economia globalizada, a qual possui uma linguagem própria e um código de funcionamento autônomo, independente das vontades das categorias societárias, impondo que os indivíduos ajam de acordo com a linguagem econômica, como, por exemplo, um comportamento ou ação baseada no lucro e a maximização do interesse próprio.

Nessa ótica, a concepção dessa filosofia demonstraria o retrocesso social, sendo equiparado a um socialismo esvaziado, na lógica africana, permitindo um dogmatismo comunitário e que, em certas circunstâncias, pode ser manipulado pelas elites políticas para não conformação dos direitos e liberdades individuais; assim, para esse autor, a mesma filosofia se encontra desaparecida ou a caminho de uma erosão plena, no panorama das sociedades atuais africanas (Matolino, 2015, p. 215).

Em um segundo momento, o mesmo autor alega que a concepção do Ubuntu não é compatível com os direitos individuais, e aceitar essa narrativa na modernidade pós-industrial seria ir na lógica inversa do funcionamento dela, afetando a liberdade individual e os direitos humanos atualmente conquistados, tendo em consideração que a orientação coletiva proposta pelo Ubuntu não se adequa aos paradigmas estruturais do Estado neoliberal (Peter, 2018). Assim, conceber a dimensão coletiva dessa cosmovisão abriria espaço para sacrificar-se a autonomia do indivíduo em favor da coletividade abstrata, ensejando uma subjugação do indivíduo pelo critério majoritário embasado do dogmatismo cultural (Matolino, 2013, p. 197).

Em um terceiro momento, a rejeição dessa filosofia assenta no fato de a mesma corrente possuir um sentido semântico vago, oriundo da linguagem dos povos Nguni, não fornecendo qualquer conteúdo específico, capaz de guiar a moralidade pública. Nesse cerne, o Ubuntu traduz ideias típicas de sociedade primitiva, pré-colonial ou de grupos de comunidades de pastores de gados.

Por outra perspectiva, Metz (2021) destaca a importância do Ubuntu enquanto cosmovisão africana, que enaltece a experiência do africano, no universo; nesse contexto, Metz (2021) justifica a relevância dessa categoria, à luz da teoria moral normativa, partindo do pressuposto de que Ubuntu é uma forma de humanidade, uma razão prática, a qual ultrapassa limites semânticos do liberalismo pautado no sujeito individual. Com efeito, Metz argumenta que toda concepção do Direito é sempre resultado de uma concepção extraída materialmente de uma moralidade e experiências comunais, que vai conduzir as ações performativas, no âmbito do convívio social.

Para Metz (2011), a afirmação de que uma pessoa é uma pessoa por intermédio da Outra é, na verdade, um chamado a desenvolver a própria personalidade (moral), uma receita para a construção e o desenvolvimento da humanidade. Como Desmond Tutu (2000) observa, quando queremos dar um grande elogio a alguém, dizemos Yu u nobuntu: “O fulano tem Ubuntu”. A afirmação de que se pode obter Ubuntu “por meio de outras pessoas” significa, para ser mais explícito, através de relações comunitárias com outras pessoas. Nesse sentido, o autor trabalha em dois aspectos fulcrais da natureza de comunidade, que são a identidade e a solidariedade.

Para ele, a obrigação mais profunda de um indivíduo, na sociedade, é tornar-se cada vez mais humano, o que pressupõe um laço mais profundo com a comunidade, isto é, “os Outros”. Ademais, Metz submete essa filosofia a um teste de racionalidade, questionando se o povo sul-africano teria atualmente aderido a essa filosofia. Nesse caso, a resposta seria afirmativa, pois a maior parte dos sul-africanos diria que uma pessoa que é incapaz de se relacionar com os outros não é pessoa. Esse enunciado só é possível se se aferir à luz da ideia comunitária do Ubuntu.

Conforme Letseka (2014), citando Louw, aponta que o Ubuntu não é contrário aos direitos individuais, ou seja, o Ubuntu garante o respeito pela particularidade dos outros que estão intimamente ligados. Além disso, Ubuntu condiz com o respeito às subjetividades individuais. Isto sucede, porque essa cosmovisão define o indivíduo em termos de seu relacionamento com os outros (Letseka, 2014, p. 544).

Sendo Ubuntu uma narrativa ética, a qual parte da ideia Batho Pele, que significa “primeiro as pessoas”, traduzindo um compromisso do dever de cuidar de todos os seres humanos, então, o Ubuntu é desejável, para corrigir as injustiças presentes nas sociedades africanas, como a pobreza, desigualdades sociais e econômicas.

Nessa concepção moral, o Ubuntu se assenta na ideia de que uma comunidade ideal é aquela que se manifesta através da solidariedade e identidade. Destarte, mostrar solidariedade é demonstrar-se apto a desenvolver ajuda mútua entre membros de um grupo, agir de maneira que cada membro se beneficie na proporcionalidade da vida. E o facto de as pessoas não estarem aptas a demostrar solidariedades não significa que não estão interessadas no florescimento do Outro. Essa dimensão moral extraída desse princípio africano é um paradigma moral para afastar as atitudes egocêntricas propostas pelo liberalismo e capitalismo ocidental.

Por sua vez, a identidade é a medida que permite às pessoas se sentirem pertencidas como membros do mesmo grupo, poderem se orgulhar e ou se envergonhar do padrão da moralidade do grupo. Os indivíduos se consideram parte integrante de toda a comunidade. O Ubuntu desencoraja as pessoas de buscarem o seu próprio interesse, entremete, encoraja o espírito de que as pessoas devem viver para si e para outros. Nas sociedades africanas, a imoralidade é a palavra ou a ação que mina a comunhão. Nessa perspectiva, deve-se evitar hostilidade ou agir de forma que ameaçaria os laços comunitários (Metz, 2011, p. 532-559).

Partindo para uma dimensão jurídica do Ubuntu, é possível constatar que essa perspectiva se enquadra como uma teoria normativa e moral, que abarca outras categorias dos direitos humanos, por exemplo, e interesse difusos e coletivos da sociedade, tais como o respeito pelo meio ambiente. Trata-se de um campo menos respeitado pela lógica da economia de mercado liberal, a qual permite o desflorestamento e outras catástrofes ambientais em prol de lucro de uma minoria que controla o capital global.

Para Metz (2011), uma das relevâncias do Ubuntu, na contemporaneidade africana, demonstra-se com a ideia dos direitos humanos, na medida em que os direitos humanos são passíveis de eficácia, quando os indivíduos de uma sociedade têm o dever de respeitar, com base no paradigma compartilhado com outros seres humanos. Nesse sentido, a violação de um direito humano é uma violação de direito moral contra os outros (Metz, 2011, p. 532-559). A espinha dorsal dos direitos humanos repousa em tratar o outro com dignidade. Ou seja, uma inversão dos direitos humanos universais para uma visão de deveres humanos universais. E, nesse contexto, uma violação de direitos humanos é uma falha em honrar a natureza especial das pessoas. A dignidade, no cenário sul-africano, assenta na ideia de relacionamento com os outros indivíduos. Para um conceito de dignidade extraído à luz da África austral, os indivíduos têm dignidade em virtude de sua capacidade de comunhão, enquanto, na teoria kantiana, o indivíduo tem valor, porque tem capacidade de autonomia. Já numa narrativa afrocentrista, o indivíduo tem capacidade, quando pode reciprocamente manifestar a solidariedade e a identidade para com os outros, ou quando possui capacidade de amar, respeitar os outros e de se relacionar, de maneira comunitária. Dito doutro modo, a capacidade articula-se com a predisposição de os indivíduos cumprirem com os deveres mínimos (Metz, 2011, p. 533).

Fica clara a relevância desse princípio filosófico, na contemporaneidade, podendo ser útil para fundamentar a moralidade pública, desempenhar um papel na resolução dos conflitos e fornecer elementos de justiça capazes de orientar o Judiciário, à luz de uma concepção ética universalizável proposta por Metz (2011).

Desses argumentos acima apresentados, constata-se que o conceito de Ubuntu, até então focalizado, é baseado numa concepção ético-moral e política; o esforço que tomaremos, em seguida, é de reaproveitar esses conceitos, para conferir ao Ubuntu uma dimensão do dever ser, transformando-o numa normatividade constitucional, capaz de orientar vários aspetos de natureza econômica, social e político-constitucional e servir como parâmetros ou fundamento das Repúblicas africanas.

 

2 A concepção do Ubuntu como um princípio do Direito

Conceber a ideia de Ubuntu como um princípio de Direito Constitucional pressupõe, antes de mais, aceitar essa ética como um princípio, situado no plano do dever ser, ou seja, uma norma abstrata, porém de conteúdo deôntico, cuja efetividade dependerá da possibilidade argumentativa da mesma. Ora, o princípio Ubuntu será capaz de orientar vários aspectos, no âmbito do ordenamento jurídico, o que significa ultrapassar a dimensão ontológica do ser; para propor uma dimensão normativa, com potencial para fundamentar às questões de justiça e direitos fundamentais, contudo, não se poderia desvincular-se totalmente da dimensão ético-normativa aferida anteriormente, mas chamar a colação para um debate situado no campo da dogmática constitucional, de maneira a amparar esse pensamento nas Constituições africanas, especialmente nos países da África austral e nos demais que compartilham os mesmos valores.

Guastini (2009), citando Paulo Bonavides (2001), ressalta que princípios são normas ou disposições que exprimem normas providas de alto grau de generalidade. Para filósofos contemporâneos da filosofia de Direito, como Alexy (2009) e Dworkin (2010), princípios são tidos primeiramente como razões morais, institucionalizadas pelo Direito. E, nessa esteira de ideias, a filosofia do ubuntismo dispõe de mesmas razões morais de um princípio, pese embora ainda não positivado nas Constituições africanas.

De acordo com Paulo Bonavides (2001), os princípios são valores dos critérios diretivos para interpretação dos critérios programáticos, com o intuito de progresso da legislação. Nessa senda, o Ubuntu partilha das mesmas qualidades dos princípios abertos equiparados à liberdade, igualdade e dignidade humanas etc. Sem embargo, são caraterísticas dos princípios possuir a dimensão ética, cuja juricidade emana da constitucionalização desses.

Em um panorama constitucional dos pós-positivismo, no qual se verifica o diálogo entre o direito e a moral, não nos parece problemático conceber Ubuntu como um princípio constitucional, o qual aperfeiçoa o conceito de justiça e a dignidade humana, à luz da cosmovisão africana, ampliando a concepção dos direitos humanos. Ademais, concebido Ubuntu como princípio constitucional, ele pode estar associado à ideia de bem comum e bem-estar, que são valores já reconhecidos pelo constitucionalismo liberal.

A invocação da moral pelo direito constitucional não constitui uma novidade, todavia, com a ascensão da corrente pós-positivista e o neoconstitucionalismo, que veio quebrar o monopólio do direito lógico dedutivo, formal, metódico e normativista, passa-se a compreender argumentações morais, decorrentes de princípios abertos. Nesse leque de ideias, torna-se evidente e cabível compreender a dimensão principiológica do Ubuntu, enquanto fundamento constitucional dos povos da africanos.

Os pós-positivistas Alexy (2009) e Dworkin (2010) vão admitir uma forte conexão entre o Direito e a moral, sendo que o Direito, do ponto de vista substantivo e procedimental, vai buscar elementos da moral para fundamentar as questões jurídicas em casos difíceis, por meio de princípios jurídicos (Alexy, 2009) os quais revestem uma substância moral que tem auxiliado na operacionalização do Direito e funciona de maneira aberta com respeito aos princípios morais (Alexy, 2009).

Apaziguada a dicotomia entre o Direito e a moral, cabe-nos aproximar a dimensão do Ubuntu enquanto um princípio moral não incorporado nas Constituições jurídicas africanas, porém, encontrando-se vigente na lei em ação, isto é, nas interações dinâmicas dos povos que prezam por esse princípio.

Nesse âmbito, seria razoável afirmar que o Ubuntu constitui um princípio material das Constituições africanas, o qual não foi assumido ou recepcionado pelas Constituições socialistas e liberais pós-independência, em países como Moçambique, Malawi, Botsuana, África do Sul, Zimbábue e outros. A ideia do reconhecimento dos direitos africanos não vincou, preferindo-se uma lógica totalmente importada dos modelos europeus de um Direito monista e de conteúdo europeu.

Nessa senda, essa cosmovisão, enquanto princípio, ocuparia aqui uma função ratio legis, assumindo o caráter de normas constitucionais norteadoras, ou seja, o princípio do Ubuntu não estaria vinculado ao conceito de norma, no sentido regras jurídicas e com eficácia imediata. Todavia, funcionaria como diretriz orientadora do pensamento jurídico africano.

Frisa-se que advogamos a constitucionalização da filosofia como princípio constitucional aberto, o qual detém uma importância capital dos povos africanos da parte austral da África, que caracteriza a forma e o estilo de vida dominantes dos povos bantu. Se olharmos para a singularidade histórica dos povos bantu, na África austral, encontraremos a presença do Ubuntu na Constituição social não escrita dos povos africanos, isto é, com costumes indígenas. Entretanto, a sua não captação pelas Constituições pós-coloniais se justifica com a continuidade do projeto constitucional da lógica eurocêntrica e colonial, assentada na ideologia política liberal e capitalista de uma democracia de baixa densidade participativa, a qual exclui os valores dos povos indígenas na órbita constitucional e continua reproduzindo os modelos coloniais do centralismo jurídico.

O exemplo que temos vindo a defender reflete-se na jurisprudência sul-africana, na sequência da Constituição Provisória que teve interesse em absorver o Ubuntu como um princípio de valor constitucional, mas não foi incluído na Constituição final. Sua inclusão agora é um ponto discutível, mas é curioso que não tenha sido incluído. No entanto, a jurisprudência sul-africana admitiu o valor constitucional do Ubuntu (África do Sul, 1993).

No entanto, esse posicionamento de considerar Ubuntu como princípio constitucional não está imune às críticas, porém, alguns juristas sul-africanos alegam a falta de conteúdo substancial em relação ao Ubuntu. Não obstante, conforme Radebe e Phooko (2017), citados por Irma J. Kroeze (2020, p. 5-10), há um conjunto de obrigações que podem orientar questões de justiça, extraído do Ubuntu, tais como a obrigatoriedade de os membros da família ajudarem uns aos outros, a priorização da vida em detrimento de qualquer outra coisa; outro aspecto é o dever que todas as crianças e adolescente de manter o respeito aos adultos, assim como de os adultos cuidarem de todas as crianças. Ademais, incumbe aos adultos disciplinar todas as crianças, para garantir uma conduta social e moralmente aceitável.

Outro argumento associado a esse princípio radica no âmbito penal, sobre o qual Radebe e Phooko (2020) fazem questão de mencionar: crime não é cometido contra um indivíduo, mas contra toda a comunidade. Portanto, o criminoso deve buscar a absolvição da comunidade e não do indivíduo, estabelecendo a importância da justiça restaurativa. Além disso, esse princípio dá primazia aos acordos e reconciliação como mecanismos de resolução de conflito, sem olhar para o caráter retributivo em primeiro plano.

Mokgoro (1998) sublinha que a ausência do Ubuntu só é vislumbrada quando as pessoas percebem que, mesmo com uma Constituição formal declarando direitos e proibindo violações de direitos, o crime continua sendo proliferado, de sorte que se constata que as pessoas não agem em conformidade com os ditames propostos pelo Ubuntu, não obstante, lembram-se de que é pertinente que a comunidade haja de acordo com os padrões propugnados por esse princípio (Mokgoro, 1998).

Ainda que alguns juristas sul-africanos considerem esse ideário como um pensamento incompatível com a Constituição formal, na prática, vai-se constatar que esses princípios estiveram materialmente presentes na constituição costumeira, justificados pela prática social reiterada.

Outrossim, o princípio Ubuntu foi instrumento primordial no período de transição na África do Sul, sendo instrumento de justiça utilizado pela Comissão de Verdade e Reconciliação, a qual julgou os criminosos de guerra, na época do Apartheid, no governo de presidente Nelson Mandela. Além disso, o Ubuntu assumiu a dimensão deontológica, pela qual a Constituição interina do período de transição sul-africano de 1993 concebeu o Ubuntu como pilar da nova democracia, na África do Sul, entretanto, essa previsão foi suprimida nas Constituições posteriores.

Partindo do raciocínio de que várias Constituições africanas, como a sul-africana de 1996, a Constituição moçambicana de 2004, entre outras, admitem o pluralismo jurídico, reconhecendo a existência de comunidades indígenas ou tradicionais, as quais possuem diferentes manifestações do direito consuetudinário da sociedade, é mister compreender que o Ubuntu é um princípio constitucional implícito e material, amparado pelo pluralismo jurídico, identificado no direito das comunidades indígenas ou não no Direito tradicional.

O reconhecimento do pluralismo jurídico como um princípio constitucional emancipador pressupõe o reconhecimento dos princípios informais presentes dos povos africanos. O Ubuntu não se trata apenas de um mero ideal de uma moralidade social; pelo contrário, constitui um fundamento intrínseco dos povos bantus, que atualmente ganha notoriedade epistêmica, sendo objeto de diversas discussões políticas, filosóficas e jurídicas. A constitucionalização do Ubuntu como um princípio norteador da sociedade africana é um mecanismo que demostra a importância desse princípio, enquanto um instrumento de argumentação jurídica.

A não integração constitucional desse princípio moral pelas constituições africanas, sobretudo nos países da África austral – exceto a África do Sul, que teve essa iniciativa na Constituição provisória de 1994 –, associa-se ao fato de o projeto de colonialidade epistêmica e jurídica não contemplar os direitos indígenas ou tradicionais como normas do Estado, preferindo a reprodução colonial. A absorção desse princípio nas Constituições africanas configura uma forma de descolonização de um Direito totalmente liberal, propondo um equilíbrio entre valores que fortalecem a ideia de um Estado social.

O processo pós-colonial de constitucionalização revestiu-se de fragilidades participativas, onde a elite nacionalista não deu conta de conceber os princípios do Direito tradicional e os padrões políticos e sociais das comunidades, preferindo importar e dar continuidade a um modelo político constitucional europeu.

 

3 Ubuntu como parâmetro de justiça afrocêntrica e os direitos fundamentais de segunda e terceira geração

Justiça é um termo polissêmico, o qual, discutido em diversos campos da ciência, na Filosofia, Direito, Economia e Literatura, entre outros, visa a encontrar critérios de equilíbrio ou proporcionalidade aplicados em diversas esferas das relações humanas, assumindo diversas modalidades de justiça.

Perelman (1996) trata de diversas modalidades de justiça, agrupadas da seguinte maneira: a) A cada qual a mesma coisa – segundo esse modelo, todos seres devem ser tratados da mesma forma, sem nenhuma distinção; b) A cada qual segundo seus méritos – aqui vale o esforço e a aptidão; c) A cada qual segundo as suas obras, levando em conta o resultado da ação; d) A cada qual segundo suas necessidades – nesta, não se levam em conta os méritos nem os resultados, mas se objetiva reduzir os sofrimentos e do que necessita. Por outro lado, há a justiça distributiva e a comutativa; a primeira pauta-se numa igualdade, contudo, levando em conta o esforço individual, para concessão de vantagens; a segunda modalidade busca proporcionar igualdade em cada ato jurídico, no qual um contrato não pode beneficiar apenas uma parte e arruinar outra (Chaim, 1996, p. 6-21)

Ainda no debate sobre justiça, é pacífica a ideia de justiça como igualdade formal entre os indivíduos, reafirmada pela teoria política de Jonh Rawls (2002), a qual compreende a justiça como equidade, fruto de um contrato social em que os cidadãos estariam aptos a agir de acordo com os princípios de justiça eleitos pelos membros de uma sociedade, na posição inicial em que todos os indivíduos se encontram, à luz de um veio da ignorância, assentado no contrato social hipotético, em situações nas quais os indivíduos desconheçam as vantagens sociais inerentes a cada um.

Amartya Sen (2009) argumenta que a noção de Rawls (2002) de justiça como equidade está ligada a uma justiça baseada nas instituições perfeitamente justas, a qual se associaria a uma ideia de justiça extraída de uma concepção indiana antiga, que é niti, relacionada à adequação da organização e à correção comportamental. Entretanto, a maior preocupação da teoria moral de Sen (2009) sobre justiça assenta no nyaya, que diz respeito ao modo em particular das vidas que as pessoas realmente levam. Não obstante, o Ubuntu oferece uma concepção de justiça voltada para ambas as categorias, que vai se preocupar com a justiça institucional, assim como com a justiça voltada à humanidade do outro, neste caso, o indivíduo inserido no mesmo átomo (Nusband, 2011, p. 21-22).

Letseka (2014) assemelha o Ubuntu com a justiça proposta por Rawls, sugerindo que se  aproveitem os elementos tradicionais oferecidos pelo Ubuntu e os combinem, de forma a consolidar a democracia nos países da África austral.

O Ubuntu, como uma concepção de justiça comunitária africana, incorpora valores morais que ditam o que é fazer o certo, no âmbito africano; nesse contexto, Letseka (2014, p. 544) não para por aí, mas entende que a justiça como equidade está ancorada ao contrato social. Assim, a cosmovisão africana do Ubuntu é, ao mesmo tempo, um contrato social e um compromisso moral público, que sujeita os cidadãos e os seus líderes. Historicamente, os chefes africanos eram obrigados a governar mediante as leis costumeiras, com o consentimento do povo. O Indaba e o lekgotla eram tidos como fóruns cujos assuntos de interesse público eram debatidos abertamente e tomando-se decisões coletivas, o que se assemelha com as teorias do contrato social proposto por John Rawls (2002).

 Ora, o Ubuntismo, enquanto uma construção epistemológica e filosófica africana, não está dissociado do teor jurídico dos direitos fundamentais, pois é possível associar essa cosmovisão africana à gramática dos direitos fundamentais, mormente os direitos de segunda e terceira geração, os quais são direitos que pressupõem a concretização do princípio da solidariedade, igualdade e universalidade.

A função social desses direitos é de resolver a profunda crise de desigualdade social, notabilizada no mundo pós-Segunda Guerra, visando a acomodar a justiça social. Para Ramose (2002), a filosofia Ubuntu é a síntese da justiça social, de acordo com a linguagem dos povos bantus.

Os direitos de segunda geração desembocam na ideia de distribuição dos bens constitucionais básicos aos membros de uma sociedade. Todavia, essa distribuição dos bens sociais se alicerça numa distribuição equitativa dos bens constitucionais dos membros de uma sociedade, tal como pondera John Rawls (2002). O Ubuntu, enquanto um instrumento de justiça a serviço de uma comunidade, apresenta uma linguagem semelhante à de direitos fundamentais, baseada na igualdade e solidariedade e, sem dúvidas, essa cosmovisão contempla o somatório dos direitos básicos, como o direito ao trabalho, o direito à educação,  o direito à saúde etc.

No tocante aos direitos de fraternidade, conhecidos como direitos de terceira geração ou dimensão, que, segundo Paulo Bonavides (2001), concernem a direitos dotados de altíssimo teor de humanismo, destinados a um grupo e não ao indivíduo em si, têm como destinatário o gênero humano, em qualquer lugar em que se encontre. Por conseguinte, são direitos dessa dimensão: direito à paz, desenvolvimento, ambiente equilibrado, direito ao patrimônio comum da humanidade, que, na sua substância, não se dissociam com a espinha dorsal do conteúdo pregado pelo Ubuntu.

Metz, um dos teóricos africanos, que enfatiza o resgate do Ubuntu como cosmovisão africana, sugere que a compressão dos direitos difusos, acima mencionados, só é eficaz por meio de uma compressão da cooperação e iteração dos membros de uma comunidade, que é a base do Ubuntu, enquanto forma de vida que parte dessa dimensão comunitária, almejando ressalvar os interesses gerais de cada ser humano e, com isso, garantir à preservação da humanidade.

O direito ao meio ambiente equilibrado, à paz, ao respeito pelo patrimônio cultural, em geral, pressupõe um dever coletivo em que cada cidadão se compromete a defender a natureza, garantir a reciprocidade, para manter os interesses das coletividades intactas. Ou seja, são direitos que também merecem uma intervenção do Estado, sobretudo em caso de uma ação ou omissão dos particulares, para a efetividade plena desses direitos. Nessa perspectiva, o Ubuntu oferece um arcabouço teórico capaz de compreender o dever de cada membro do grupo com maior profundidade.

 

4 Deveres jurídicos e os direitos fundamentais à luz do Ubuntu

A ontologia proposta pelo Ubumtismo tem como paradigma fulcral a observância dos deveres para com o outro, ou seja, o compromisso moral com deveres pressupõe uma garantia plena para a fruição dos direitos civis e políticos. No âmbito africano, os bens jurídicos tutelados pelo direito penal, como a vida, a integridade física, psicológica etc., só são plenamente resguardados, quando os membros de uma sociedade limitam a sua liberdade externa em favor do Outro – e isso ocorre, quando a sociedade está atenta aos seus deveres.

Nas culturas liberais, vislumbra-se o oposto, dando-se primazia à existência dos direitos em relação aos deveres, que não têm recebido o mesmo tratamento. Dito de outra maneira, a maior parte dos Cartas constitucionais de modelo liberais são prolixas em exprimir os direitos que os indivíduos possuem, sublinhando de forma módica o compromisso com os deveres dos cidadãos. Já na cultura africana, a ideia de deveres é tratada com maior ênfase, de tal forma que um dos instrumentos normativos regionais africanos, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, consagra com o mesmo grau os direitos e os deveres dos cidadãos, sublinhando que o indivíduo tem deveres com sociedades, família, instituições, além do dever de respeitar a natureza. Essa consagração decorre de um princípio extraído da cultura do Ubuntista.

Do ponto de vista dogmático, a eficácia da dignidade humana, o direito à vida, à integridade física e moral, o direito à imagem e ao bom nome, às liberdades negativas de não intervenção ou privação, advém essencialmente da observância dos deveres dos indivíduos, de sorte a não prejudicar o direito do outro, o sujeito idealizado pelo Ubuntu para a existência do Eu. Os direitos individuais, em sua maior parte, são eficazes quando os indivíduos se comprometem com o dever de respeitar os direitos do outro.

A inobservância dos deveres na interação pública ou coletiva conduz a um constitucionalismo de meras declarações e promessas constitucionais, sem margem de elevado grau de efetividade, ainda com os direitos e as garantias previstos em texto constitucional e em leis ordinárias. Não obstante, as atrocidades e violações continuam ocorrendo. Exemplo disso pode ser observado facilmente em vários países, como Honduras, Venezuela, Lesoto, El Salvador, México, Brasil, Colômbia, entre outros, onde, mesmo com uma Constituição brilhante, que consagra a soma de direitos fundamentais, a cada minuto há um homicídio, violência doméstica, estupro e outros crimes hediondos, o que não ocorre com a mesma frequência e proporcionalidade nas sociedades indígenas e tribais, seja na América Latina, seja na África, com toda ressalva de ser uma comparação numericamente desproporcional. Porém, pretende-se com isso ilustrar empiricamente o descompromisso ético-moral que se tem, em relação à integridade e dignidade do Outro.

O constitucionalismo liberal na África pode reaprender a lidar e aceitar os inputs da tradição jurídico-filosófico africana, enquanto uma concepção moral e política daquele povo. Frise-se que essa concepção, arraigada fortemente em deveres, não reduz a importância dos direitos individuais, portanto, configura-se um ideário capaz de combinar a lógica dos direitos e com a dos deveres, dando-se primazia a ambas as categorias.

 

5 Ubuntu como fundamento do Estado

A defesa do Ubuntu como um princípio aberto de matriz político-constitucional não se esgota em questões de juricidade, pois, antes de mais, o Ubuntu constitui um parâmetro, político, econômico e ideológico de um Estado, mesmo que alicerçado em democracias liberais.

Assim, pensar no resgaste epistemológico do Ubuntu demonstra-se pertinente, em contexto em que se agudiza a crise da desigualdade social, corrupção, pobreza extrema e depredação da natureza, a qual tem se tornado maior óbice do desenvolvimento na África, onde as políticas de globalização econômicas, assentadas no liberalismo e no capitalismo, vão imperando nos países globalizados. Logo, torna-se crucial o resgate dessa cosmovisão de matriz africana proposta pelo Ubuntu, visando a maximizar a ideia de solidariedade nacional, o bem-estar comum, a valorização da justiça social, a transparência pública e a boa governação.

Para Peter (2018), citando Magobe Ramose (2002), há a importância de resgatar o Ubuntu enquanto um princípio distributivo econômico, orientado para o seguinte aforismo africano: “Feta kgomo tshware motho”, que se traduz em postulado distributivo, colocando o compartilhamento mútuo, o cuidado e a preservação da vida acima da acumulação individualista da riqueza.

Tem-se um cenário no qual os países africanos tendem a seguir o processo da globalização e a internacionalização dos seus Estados, tal como foi aludido preliminarmente e que tem culminado com uma onda de elevado grau de privatização das instituições do Estado e da pluralização de economia de mercado; desse modo, urge capturar historicamente e culturalmente o âmago das políticas tradicionais dos Estados africanos, que desconheciam a propriedade privada, na lógica de acumulação do capital e de linguagem baseada no lucro e nos interesse individuais, as quais contrastam com a cosmovisão propalada pelo Ubuntu. De fato, essa categoria da razão prática, descrita por Immanuel Kant (2016), desvela-se como um verdadeiro fundamento das Repúblicas dos países da África austral, servindo de meio para conter as desigualdades estruturais que vão se alargando nos Estados africanos, assentadas numa política neoliberal, onde há a distribuição das riquezas e de outros bens constitucionais, como a saúde e a educação, de maneira proporcionalmente desigual.

No dizer de David McDonald (2010), Ubuntu e capitalismos são como óleo e água, eles não se misturam. Para o mesmo autor, a linguagem do Ubuntu tem sido apropriada e ressignificada, para reforçar a formulação das políticas neoliberais, desenvolvidas no período pós-apartheid, mormente na África do Sul, desejando tornar o país mais favorável a negócios. Sem embargo, uma política de mercado e a propriedade privada são tão importantes, quando equilibradas com o interesse geral da sociedade, e não uma política de mercado que serve para acomodar um grupo minoritário de indivíduos. McDonald (2010) argumenta que as atuais políticas do mercado capitalista são depredadoras dos recursos naturais, maximizam a riqueza das minorias e o empobrecimento de massas, sendo incompatíveis com o ideário propugnado pelo Ubuntu, o qual tem supedâneo no altruísmo para com o próximo.

Na verdade, o Ubuntu tem sido adaptado para colher uma filosofia de gestão local, levando à melhor governança corporativa, ligada à responsabilidade social. Entretanto, há uma onda de liberalismo individualista, que atua em favor das grandes corporações e que tem sido um problema crucial, na África, culminando com exorbitantes níveis de desigualdades sociais, apropriação de riqueza pelas multinacionais, que, por vezes, não se converte em melhoramento de vida da população nativa, que vive fustigada pela pobreza (Mwipikeni, 2018, p. 322)

Num cenário político conturbado, como sucede na África, invocar o princípio do Ubuntu como um instrumento constitucional, o qual fundamenta os Estados africanos, especialmente na África Austral, pode idealizar de uma melhor maneira a justiça social, com base na igualdade formal e material e, quiçá, vários meandros da atividade política do Estado, começando por questões ligadas às políticas públicas, econômicas administrativas e financeiras para a formação de uma Estado mais comprometido com o desenvolvimento e bem-estar da população.

O Ubuntu, como um fundamento de moralidade pública, contrapõe-se aos atos de má governação, corrupção ativa e passiva etc. O ideário dessa filosofia pode ser ressignificado para uma linguagem coloquial moderna, coadunada a padrões de transparência das atividades administrativas e políticas do Estado, com base da concepção de justiça ubuntiana.

 

Considerações finais

A incorporação do Ubuntu como um princípio constitucional não se esgota somente na ideia de decolonização do liberalismo constitucional; antes de mais, apresenta uma fórmula que compreende múltiplas dimensões da justiça, ligadas aos conceitos da dignidade, igualdade e liberdade, pautadas na alteridade. Por outro lado, esse princípio oferece um padrão de moralidade pública e privada, podendo servir como um parâmetro de argumentação político-constitucional para diferentes fins. A ideia do Ubuntu enfatiza a consolidação e o respeito pelos direitos, liberdade e garantias fundamentais, ao mesmo tempo que colabora para um Estado de justiça social, que visa a diminuir a desigualdades sociais e econômicas, dos países africanos que partilham dessa visão.

Embora esse princípio estivesse sempre presente materialmente, nas interações sociais dos povos africanos, a sua positivação no texto constitucional massificará o grau do seu reconhecimento pelos cidadãos, servindo de uma identidade cultural memorável, a qual, de certa maneira, influenciará as ações dos indivíduos nos países aqui apontados.

 

The positivization of Ubuntu as a legal and political-constitutional principle in southern Africa

 

Abstract: The term Ubuntu is often presented as a mere ontological, philosophical African worldview. However, the aim of this article is to equate Ubuntu philosophy with a category of open legal principles of a constitutional nature, which, although they are not formally enshrined in the written constitutions of southern African countries that share the Bantu culture, have a normative deontic character. Therefore, it is worth emphasising that this category of thought is socially present as a norm of practical reason, from which emanates the concept of justice of the Bantu peoples, who preserve a communitarian cultural identity rather than individualistic Western liberalism. The purpose of this study is to associate this worldview with a constitutional foundation of African states, especially those in southern Africa, equating it with the principles of human dignity, equality and freedom, etc., which is important for the consolidation of human rights in Africa. On the other hand, this worldview is confronted by the post-modern paradigms of global liberalism, which is also currently amalgamated in African countries. In order to achieve this objective, the research will be conducted using a methodology based on a bibliographical review and a deductive approach, supported by elements of constitutional legal dogma.

 

Keywords: Ubuntu as a constitutional principle. Ubuntu as a parameter of justice. Globalisation of liberal democracy. African communitarianism.

 

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Recebido: 13/07/2023 - Aceito: 11/09/2023 - Publicado: 13/02/2024



[1] Professor na Universidade Aberta (UNISCED), Beira – Moçambique. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5095-6567. E-mail: armenioroda@gmail.com.