Assimetria entre verdade e falsidade e a fecundidade da falsidade

 

César Augusto Battisti[1]

 

Resumo: O objetivo do artigo é evidenciar quão fecunda é a falsidade, no âmbito de sua posição assimétrica com a verdade. O núcleo da discussão pode ser sintetizado por meio da seguinte afirmação: se de verdades só se podem tirar verdades, não é possível dizer que a verdade não possa ser tirada da falsidade. A tese central do texto é a de que o comportamento assimétrico da falsidade promove a dissociação entre critério (pautado na conservação da verdade) e campo de validade, de modo que este último, mais amplo que o primeiro, incorpore o movimento, não só da verdade para a verdade, mas também de falsidade para a falsidade e, principalmente, de falsidade para verdade. A distinção entre os campos simétrico e assimétrico permite compreender, por exemplo, a emergência de certas falácias lógicas, a separação entre demonstração e dedução, a tese do falibilismo popperiano e o uso do método hipotético-dedutivo. A verdade, definitivamente, não tem funções análogas às da falsidade.

 

Palavras-chave: Comportamento assimétrico da falsidade. Dissociação entre critério e campo de validade. Demonstração versus dedução. Assimetria e método hipotético-dedutivo. Falibilismo.

 

Introdução

O presente artigo se propõe examinar certas características das noções de verdade e de falsidade, com o intuito de mostrar o comportamento assimétrico que apresentam e de chamar atenção para certas consequências daí decorrentes. O confronto dessas duas noções evidencia, por um lado, um campo no qual suas relações são simétricas, algo amplamente reconhecido intuitiva e conceitualmente, desde a lógica antiga. Esse dado não impede, por outro lado, que essas noções se comportem também assimetricamente, sendo as relações daí emergentes reveladoras de certos fatores ou determinações, os quais, embora também conhecidos, não têm sido referidos ao âmbito da assimetria como seu lugar de emergência ou de nascimento.

Admitidos os dois comportamentos distintos dessas noções, cada um deles com predomínio em determinado campo de atuação, almejamos cumprir três objetivos, nesta pesquisa: 1) analisar o tema da assimetria (e sua abrangência) como elemento que dá origem e manifestação a certas relações entre verdade e falsidade; 2) atribuir à falsidade e ao seu campo de atuação o papel de fator que torna possível a emergência dessas relações; 3) destacar a função singular desempenhada pela falsidade, sem correspondência com as exercidas pela verdade, em razão dessa diferença de comportamento assimétrico entre tais duas noções.[2]

 

1 Simetria entre verdade e falsidade

Verdade e falsidade são noções tradicionalmente concebidas como simétricas, seja a partir de um ponto de vista intuitivo e do senso comum, seja em função de uma perspectiva lógica e filosófica. Em síntese, isso significa que, para cada proposição verdadeira, há outra, a sua oposta, que é falsa; ou, então, que verdade e falsidade são como duas faces de uma mesma moeda, as quais se implicam mutuamente por oposição e exclusão. Aristóteles afirma, no tratado Da Interpretação, que, dentre as sentenças, são “[...] proposições somente as que encerram verdade ou falsidade em si mesmas” (Aristóteles, 2010, Da Int., IV, 17a 2-3) e que “[...] tudo o que se possa afirmar é possível também negar, e tudo o que se possa negar é possível também afirmar” (Aristóteles, 2010, Da Int., VI, 17a 30-31). Disso se pode concluir, continua o filósofo, que “[...] toda afirmação terá sua própria negação oposta, tal como toda negação terá sua própria afirmação oposta” (Aristóteles, 2010, Da Int., VI, 17a 31-32) e que “[...] todas as afirmações e todas as negações têm que ser ou verdadeiras ou falsas” (Aristóteles, 2010, Da Int., IX, 18b 4-5).

Aristóteles enuncia o Princípio de Não Contradição e o Princípio do Terceiro Excluído como determinantes da simetria proposicional apresentada acima.[3] Quanto ao primeiro princípio, afirma ele: “É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto” (Aristóteles, 2005, Met., IV, 3, 1005b 19-21); quanto ao segundo, frisa: “[...] não é possível que exista um termo médio entre os contraditórios, mas é necessário ou afirmar ou negar, do mesmo objeto um só dos contraditórios, qualquer que seja ele”. Isso fica evidente, continua o filósofo, “[...] pela própria definição do verdadeiro e do falso: falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser não é. Consequentemente, quem diz de uma coisa que é ou que não é, ou dirá o verdadeiro ou dirá o falso” (Aristóteles, 2005, Met., IV, 7, 1011b 23-27). Assim, toda proposição é V ou F[4] e admite uma outra oposta correspondente, também V ou F, não havendo terceira opção ou opções intermediárias.

Ainda que haja, mesmo dentro da perspectiva clássica, certas variações sobre o entendimento desses princípios lógicos, eles determinam a total oposição entre o verdadeiro e o falso e entre uma proposição afirmativa e sua negação. Por isso, V e F se põem como polos antagônicos, como dois valores de verdade excludentes, os quais não admitem concorrentes ou outras opções distintas de si mesmas. A contraposição entre afirmação e negação e entre verdade e falsidade instaura o que aqui chamamos de campo de simetria entre verdade e falsidade: se um enunciado p for V, não-p deve ser F, e, se p for F, não-p deve ser V; se um enunciado não-p for V, p deve ser F, e, se não-p for F, p deve ser V.

E, por mais que tais determinações não deem conta de todas as relações que se estabelecem entre verdade e falsidade – como veremos mais adiante, elas não se estendem às relações compreendidas pela noção de validade –, a simetria não deixa de conferir, dentro de seu domínio, um estatuto lógico idêntico à verdade e à falsidade: simetria significa não imputar comportamentos distintos a uma proposição, em razão do seu valor de verdade, quando comparada à proposição que é sua negação. Comparadas entre si, não há privilégio nem status diferenciado entre uma e outra.

A simetria, além disso, não fere a superioridade comumente atribuída à verdade, em outros âmbitos. Muito embora, sob diferentes aspectos, a verdade seja superior à falsidade ou, mesmo, seja apenas ela que tenha valor,[5] o peso lógico idêntico entre elas se mantém. Em síntese, a oposição frontal e direta entre V e F faz parte daquelas distinções lógicas mais fundamentais e mais profundas de nosso pensamento.

Todavia, nem por isso devemos deixar de reconhecer os limites dessa perspectiva ou pretender defendê-la para além de sua abrangência legítima. O objetivo até aqui consistiu em apresentar e delimitar a tese da simetria, para examinarmos em seguida em que medida verdade e falsidade são também noções lógicas assimétricas e têm comportamento, implicações e poderes distintos entre si. É isso que se pretende examinar a seguir: mostrar o comportamento assimétrico entre verdade e falsidade e suas diferentes funções lógicas, com o intuito de evidenciar os poderes da falsidade.

 

2 A tese da assimetria

Comecemos a análise da tese da assimetria por meio do exame de uma proposição qualquer e de sua negação, para além de elementos já expostos.

Quando afirmamos como V a proposição “a neve é branca”, indicamos precisamente a cor da neve: ela é branca; quando afirmamos como V a proposição “a neve não é branca”, permanece indeterminada a cor da neve: ela pode ser de qualquer outra cor. De modo análogo, quando afirmamos como F a proposição “a neve é branca”, permanece indeterminada a cor da neve; mas, quando afirmamos como F a proposição “a neve não é branca”, determinamos como branca a sua cor. O que evidenciam tais exemplos? Ainda que simétricas as relações proposicionais entre p e não-p, o nível informativo dessas proposições simétricas é assimétrico. Se imaginarmos “extrair” outras proposições de cada uma dessas dadas acima, o que teríamos? Da verdade de “a neve é branca” e da falsidade de “a neve não é branca”, nenhuma informação nova seria possível acrescentar: a determinação precisa da cor inviabiliza, evidentemente, que a neve possa ter outras cores. No caso da falsidade de “a neve é branca” e da verdade de “a neve não é branca”, à indeterminação da cor corresponde a instauração de um espaço de possibilidades: a neve pode ter qualquer outra cor. Assim, as informações trazidas por proposições simétricas já não são simétricas, e isso nos encaminha para o campo da assimetria: embora duas proposições opostas se relacionem de modo simétrico, cada uma delas abre um campo de relações distintas, uma delas pautada pela existência de limites e determinações precisas e a outra marcada pela indeterminação. Vale, portanto, chamar atenção para essa assimetria e para o que esse campo de indeterminação, aqui detectado, poderá significar.

Outro caso elucidativo de emergência da assimetria são as proposições que compõem, dentro da tradição aristotélica, os silogismos categóricos. Se analisarmos o chamado quadro de oposição tradicional, formado pelas famosas proposições categóricas (A, E, I e O), veremos que, para além das proposições contraditórias[6] (A – O; E – I), os outros tipos de relações representam casos nos quais V e F não se excluem totalmente e não têm características simétricas. O que queremos mostrar é que V e F têm comportamentos diferenciados, de maneira que, em um mesmo caso, veremos diferentes combinações entre os valores de verdade.

Examinemos o caso da subalternação. Se tomarmos uma proposição A como V, segue-se que a proposição I correspondente também será necessariamente V. Por exemplo, da verdade de “todos os homens são carnívoros” segue-se a verdade de “alguns homens são carnívoros”. Portanto, da verdade de A segue-se necessariamente a verdade de I, pois o que vale para todos vale para alguns. Entretanto, o que acontece se a proposição A for F? Disso não se segue que a proposição I também seja F: ela pode ser tanto F quanto V, pois da falsidade de A pode ocorrer a verdade de I (quando apenas alguns homens são carnívoros). Isso significará também que, se partirmos de I como V, não se segue a verdade de A, ao passo que, de I dada como F, segue a falsidade de A. Com efeito, se alguns homens são carnívoros, não se segue que todos sejam; contudo, se nem mesmo alguns o são, com certeza todos não o serão.

Em outras palavras, a proposição A, se falsa, pode conviver com a correspondente I verdadeira, mas a proposição A verdadeira exclui necessariamente a correspondente I falsa. Por sua vez, a proposição I falsa determina a falsidade de A, enquanto a verdade de I deixa indeterminado o valor de verdade de A. Vemos aqui, pois, um outro exemplo de comportamento diferenciado dos valores de verdade, V e F, na relação de “ida e volta” entre duas proposições. Da verdade de A segue-se necessariamente a verdade de I, porém, da falsidade de A, não se segue necessariamente a falsidade de I; por sua vez, da falsidade de I, segue-se necessariamente a falsidade de A, mas da sua verdade não se segue a verdade de A. Temos um claro sinal de assimetria entre V e F, pois, em uma mesma relação (subalternação): a) quando da verdade se segue a verdade, da falsidade não se segue a falsidade; b) quando da falsidade se segue a falsidade, da verdade não se segue a verdade. Tais noções se apresentam como assimétricas, porque, se da verdade se segue necessariamente a verdade, da falsidade, contrariamente ao que se poderia esperar, segue-se tanto a falsidade quanto a verdade; e, se da falsidade se segue necessariamente a falsidade, da verdade, contrariamente ao que se poderia esperar, segue-se igualmente seja a falsidade seja a verdade. Em outros termos, quando da verdade se segue a verdade, da falsidade segue-se a indeterminação; quando da falsidade se segue a falsidade, da verdade segue-se a indeterminação.

Paralelamente ao exemplo examinado, há outros nos quais verdade e falsidade se comportam semelhantemente, dentro do quadro de oposição tradicional. Tal é o caso de duas proposições universais A e E: se “todos os brasileiros são vegetarianos” é verdadeira, “nenhum brasileiro é vegetariano” é falsa; contudo, se a primeira, A, for falsa, não significa que a segunda, E, seja verdadeira. Logo, de proposições contrárias podemos afirmar que ambas podem ser falsas ao mesmo tempo (no caso de alguns brasileiros serem e outros não serem vegetarianos), contudo, não podem ser simultaneamente verdadeiras. Por sua vez, duas proposições subcontrárias (I e O) podem ser ambas simultaneamente verdadeiras, mas não podem ser ambas falsas: se alguns brasileiros são carnívoros, outros podem não o ser (sendo I e O verdadeiras), no entanto, jamais pode ocorrer ser falso que alguns sejam e que estes mesmos alguns não o sejam. Assim, proposições contrárias e subcontrárias tampouco se comportam simetricamente: elas não têm comportamentos simétricos, em suas relações.

Assim, tivemos um segundo quadro de comportamento assimétrico entre verdade e falsidade. É verdade que esse quadro tampouco invalida a tese da simetria anteriormente exposta, visto que, aqui, já não se trata da relação de uma proposição e de negação, mas de outros tipos.[7] E, embora se trate de um quadro de oposição, o termo “oposição” é utilizado em um sentido mais amplo (incluindo oposição parciais e total), englobando, portanto, os diferentes tipos de relações entre as proposições categóricas definidas especificamente dentro desse quadro.

O quadro de oposição tradicional, contudo, serve apenas como porta de entrada para o exame do problema em questão, neste artigo, o que significa que podemos ampliar a análise e o alcance da tese da assimetria. Alguém poderia questionar, por outro lado, nossa análise, ao argumentar que o quadro já não é visto desse modo pelos lógicos, em razão da interpretação atual de que proposições universais não pressupõem conteúdo existencial.[8] Essa mudança de compreensão do quadro de oposição não altera, entretanto, os resultados do tema que examinamos, se mantidos os pressupostos da perspectiva tradicional, mas apresenta um quadro distinto, no qual já não aparecem as relações examinadas. Um ponto mais relevante talvez seja o fato de que as relações entre V e F, até agora expostas, não esgotam a totalidade de suas relações e, por conseguinte, não esgotam o alcance do tema da (as)simetria. Cabe-nos, portanto, essa tarefa de ampliar o seu exame, e isso será feito a partir da noção de validade de argumentos.

Podemos afirmar que um argumento é válido, quando a conclusão é uma consequência lógica das premissas, quando as premissas impliquem logicamente a conclusão. Todo argumento válido determina que, caso as premissas forem (assumidas como) verdadeiras, será impossível à conclusão ser falsa: a conclusão deve ser necessariamente verdadeira, se suas premissas forem verdadeiras.[9] Isso não significa, evidentemente, que a conclusão e as premissas sejam efetivamente verdadeiras, porém, que a conclusão deva sê-lo, se as premissas também o forem, não havendo, pois, nenhum caso possível com premissas V e conclusão F.[10] Assim, podendo a validade ser testada por meio da simulação de um argumento com premissas tomadas como verdadeiras[11] e sendo inadmissível a combinação de premissas V e conclusão F, permanecem como possíveis de validade as outras três combinações: de V para V; de F para F; e de F para V.

Tomemos como exemplificação a ser examinada, através da técnica das tabelas de verdade, o argumento chamado de “silogismo hipotético”: p→q, q→r; p→r.

 

Tabela 1 – Silogismo Hipotético

p          q          r

pq    qr     pr

V         V         V

V         V         F

V         F          V

V         F          F

F          V         V

F          V         F

F          F          V

F          F          F

V         V         V

V         F          F

F          V         V

F          V         F

V         V         V

V         F          V

V         V         V

V         V         V

Fonte: Elaborada pelo autor

 

Como mostra a tabela, das oito combinações possíveis, em quatro delas as premissas são todas V (linhas 1, 5, 7 e 8) e, em todas essas ocasiões, a conclusão é também V. Logo, não há no argumento nenhum caso no qual as premissas são V e a conclusão seja F; portanto, ele é universalmente válido, isto é, ele é válido independentemente das combinações dos valores de verdade das premissas. Ou seja, ele é válido, porque não há nenhum caso com conclusão F e premissas V, embora haja casos com alguma premissa F (linhas 2, 3, 4 e 6) e casos com premissa e conclusão F (linhas 2 e 4).[12] Logo, a validade, ao incorporar esses últimos casos, não se restringe ao movimento de V para V.

Ora, é importante salientar, desde já, que a validade se utiliza da noção de verdade: o critério de validade exige que o movimento seja de V para V. Não há, por sua vez, uma noção de “consequência lógica” entre falsidades; dito de outro modo, talvez alguém pudesse imaginar que, se um argumento for válido na medida em que a verdade de suas premissas implica necessariamente a verdade da conclusão, ele o seria também na medida em que a falsidade de suas premissas implicasse necessariamente a falsidade da conclusão. Não é esse o caso! Não há determinação lógica a partir da falsidade.

O comportamento assimétrico aqui é evidente!

 

3 Validade e assimetria

Mas, afinal, quais elementos presentes na definição de validade nos interessam analisar e de que forma evidenciam a tese da assimetria? O que há neles de fundamental, quando se examina o tema da validade? Defendemos que a concomitante associação-dissociação entre verdade e validade é reveladora de um conjunto de relações muito rico e cheio de consequências, cabendo uma função especial, nesses casos, à noção de falsidade e ao campo em que ela atua.

Comecemos recordando a distinção entre verdade e validade. V e F são atribuições dadas a proposições; validade e não validade são atribuições dadas a argumentos. Como um argumento é uma combinação entre premissas e conclusão (ambas podendo ser tanto V quanto F), teremos quatro configurações possíveis.[13] A relação estabelecida, em um argumento, na direção das premissas para a conclusão, pode ser: de V para V; de V para F; de F para V; e de F para F. Dentre essas quatro combinações, a validade proíbe apenas, mas categoricamente, o segundo tipo (de V para F); permite, portanto, os demais casos (de V para V, de F para V e de F para F).[14] Temos, assim, um critério para a validação ou avaliação de argumentos pautado na relação necessária entre verdades (de V para V; isto é, de conservação da verdade), todavia, que deverá ser aplicado aos três casos permitidos; ou, dizendo de outro modo, temos uma noção de validade (ou de consequência lógica) que estabelece uma implicação da verdade das premissas para a verdade da conclusão, mas que se aplica também a casos de premissas falsas com conclusão tanto verdadeiras quanto falsas. Eis o lugar de emergência da tensão oriunda que chamamos associação-dissociação entre verdade e validade.

O que percebemos, quando confrontamos o critério de validade e o campo de abrangência da validade?

Trata-se, primeiramente, de demarcar a ocorrência desse “desajuste” entre critério de validade e campo de validade, de sorte a podermos evidenciar a maior amplitude do último em relação ao primeiro, sem que se possa considerá-lo como sua mera extensão: a validade (critério) permanece atrelada à verdade (movimento necessário de V para V), ao mesmo tempo que seu campo de atuação é mais amplo (de V para V, de F para V e de F para F).

A noção de verdade e o tema da simetria, por um lado, nos permitem afirmar que da verdade só se podem extrair verdades, e verdades só podem ser extraídas de verdades:[15] comparada a uma árvore, a verdade teria apenas verdades como seus frutos, e verdades seriam frutos colhidos apenas da árvore da verdade. O critério de validade incorpora isso: só haverá consequência lógica da verdade para a verdade; há validade quando, em todos os casos possíveis de uma forma de argumento, premissas (supostamente) verdadeiras implicam automaticamente uma conclusão verdadeira.

Ocorre, porém, que o campo da validade não se restringe aos limites do princípio da conservação da verdade (de onde provém o critério), ao possibilitar colher verdades a partir da falsidade: se da verdade só nascem verdades, não se pode dizer que a verdade só nasce de verdades. Aqui não é um jogo de palavras: se a árvore da verdade só produz verdades, não se pode dizer, analogamente, que uma árvore da falsidade só produzirá falsidades.[16] É dentro dessa perspectiva que se fez necessária a introdução da distinção entre validade e correção: corretos são argumentos que satisfazem a duas condições, serem válidos e terem apenas premissas verdadeiras, ao passo que os válidos não exigem a verdade das premissas. Por isso, a validade é insuficiente para estabelecer que um argumento seja correto, embora a não validade prove definitivamente que um argumento não é correto: a não validade detecta a não conservação da verdade (por atuação do critério), entretanto, a validade não garante a sua conservação (dada a maior abrangência do campo de validade).

Nesse contexto, se, por um lado, o critério de validade retém o princípio de conservação da verdade presente na simetria, ele o faz, contudo, pela introdução de algo de natureza extrínseca à conservação da verdade, por meio da introdução de uma regra de natureza formal: foi preciso decretar a necessidade de se proceder de V para V. Assim, ele não se contenta com uma configuração do tipo de V para V, mas impõe a sua necessidade de se proceder de V para V.

E o critério impõe o caráter de necessidade de V para V, exatamente porque a verdade pode provir também da falsidade. O fato relevante, aqui, é o de que podemos proceder validamente, não só de F para F, mas também de F para V. Como ressaltava Aristóteles, se, por um lado, “[...] é impossível tirar uma conclusão falsa de premissas verdadeiras”, por outro, “[...] é possível tirar uma conclusão verdadeira de premissas falsas” (Aristóteles, 2010, Anal. Ant., II, 2, 53b 6-8).[17] É verdade que Aristóteles, no mesmo ponto, nos alerta de que a verdade da conclusão é independente da força do silogismo, mas isso não o impede de reconhecer que a relação entre proposições F e conclusão V permite a validade, algo que não ocorre no caso inverso.[18]

Isso torna possível afirmar que a falsidade tem um comportamento inferencial distinto do da verdade: dela se pode “tudo extrair”.[19] Essa indeterminação da falsidade frente ao acarretamento necessário da verdade faz com que não consigamos determinar, diante de uma conclusão verdadeira, se as premissas também o são. Como é possível haver uma conclusão verdadeira de premissas falsas, o critério de validade precisou incluir, em sua determinação, não apenas a exigência do movimento de V para V, mas a sua necessidade: ao que era um movimento interno “natural” no âmbito simétrico (a conservação da verdade) foi preciso introduzir uma exigência de ordem extrínseca (formal), no âmbito da validade. E, com isso, o critério de validade pôde abarcar o campo inteiro da validade. Assim, a incorporação da sequência necessária de V para V evidencia a cumplicidade entre validade e verdade.

Ocorre, porém, que a falsidade já não se comporta simetricamente no âmbito da validade. Caso isso ocorresse, não seria permitida a relação válida de F para V. Logo, se há cumplicidade entre verdade e validade, há também dissociação entre elas, sendo a mediação feita pelo critério de validade: o critério resgata a tese da conservação da verdade, no interior do campo da validade, por instituir como obrigação (formal) a tese da conservação.

A dissociação entre verdade e validade se dá em razão do comportamento assimétrico da falsidade. A indeterminação é a marca da falsidade: se do V se segue apenas o V, do F segue-se qualquer coisa. É nesse campo de indeterminação que a falsidade exerce sua fecundidade, e é a partir dele que emergem, como mostram a história da epistemologia e da filosofia da ciência, tanto tensões e embates, quanto tradições, no âmbito argumentativo.

A indeterminação da falsidade frente ao acarretamento necessário da verdade tem sido avaliada, em geral, negativamente. O peso metafísico, epistêmico e moral da verdade nos tem forçado a enquadrar a validade à verdade e à correção, sem ter dado espaço suficiente à exploração desse campo de indeterminação como exercício da liberdade lógico-argumentativa. Ou, então, se esse espaço apareceu, foi a duras penas e como movimento reativo.

 

4 A assimetria e seus desdobramentos: exemplificações

A assimetria entre verdade e falsidade traz um conjunto bastante amplo de consequências ou desdobramentos, no âmbito das relações tanto lógicas quanto argumentativas. Exploremos alguns casos ou exemplos, como forma de evidenciar a sua fecundidade e mostrar que, graças a ela e à fecundidade da falsidade, um novo mundo se abre.

Permaneçamos ainda um tempo no âmbito da lógica.

Muito provavelmente, todo professor de lógica deve ter vivenciado experiências em que determinado estudante tenha feito argumentos do tipo: “se eu não tivesse estudado tanto, não teria sido aprovado”. Esse tipo de argumento é em geral inválido, como também este outro, do tipo: "se fui aprovado, é por que estudei muito”. Tais argumentos falaciosos (chamados, respectivamente, de falácias da “negação do antecedente” e da “afirmação do consequente”) são muito comuns, dada sua semelhança com os argumentos válidos, denominados modus tollens (negação do consequente: se p, então q; não-q; logo, não-p) e modus ponens (afirmação do antecedente: se p, então q; p; logo, q).[20]

Ora, não é difícil percebermos que estudar muito pode ser considerada uma condição suficiente, mas não necessária para alguém ser aprovado, visto que alguém pode ser aprovado tendo estudado pouco ou mesmo sem ter estudado. A questão importante aqui é a razão pela qual se encontram interditados tais argumentos falaciosos (e outros, de natureza condicional), ao mesmo tempo que se é levado a pensar na sua validade. Falácias formais, como as aqui examinadas, são cometidas por uma contaminação da tese da simetria, no interior dos argumentos, entre verdade e falsidade: trata-se de uma invasão ou intromissão indevida do campo simétrico na região de domínio do âmbito assimétrico; a simetria nos conduz inadvertidamente a pensar em um paralelismo inexistente entre argumentos “semelhantes”. Em outras palavras, a simetria nos conduz inadvertidamente a pensar que, se p implica q, não-p implica não-q; e, da mesma forma, se p implica q, q implica p. Esses raciocínios são um atestado da intromissão da simetria no campo da assimetria.[21]

Avaliando como suficientes essas considerações dentro do campo da lógica, passemos, na sequência, para o das relações argumentativas mais amplas.

Talvez o mais fundamental desses desdobramentos da tese da assimetria seja a distinção entre dedução e demonstração (no sentido clássico). Por que dedução e demonstração são coisas distintas? Exatamente porque a dedução se pauta pelo campo da validade, ao passo que a demonstração se guia pelo critério de validade, decorrente da tese de conservação da verdade. Como observa Aristóteles, toda demonstração é uma dedução, mas nem toda dedução é uma demonstração. Aristóteles, ao distinguir o silogismo demonstrativo (ou científico) dos silogismos em geral, ou, então, o demonstrativo do dialético (Aristóteles, 2010, Anal. Ant., I, 1, 24a 22-b15), determina que, na demonstração, ao contrário do silogismo em geral, as premissas precisam ser verdadeiras: “[...] o conhecimento demonstrativo tem que proceder de premissas que sejam verdadeiras [...]. O silogismo enquanto tal será possível sem tais condições, mas não a demonstração” (Aristóteles, 2010, Anal. Post, I, 2, 71b 20-25).[22] E, portanto, uma demonstração exige premissas verdadeiras, diferentemente de uma dedução. Não haveria essa distinção, se não houvesse assimetria!

E, a partir daí, as consequências são inúmeras.

Dentre as mais impactantes, encontra-se a que diz respeito à aceitação de procedimentos hipotético-dedutivos de todo tipo. Tais métodos não seriam aceitáveis dentro do campo da simetria: poder-se-ia sustentar que eles se voltam ao enfraquecimento da diferença entre demonstração e dedução, ao deixarem de exigir que as premissas sejam efetivamente verdadeiras. Todo método hipotético-dedutivo explora amplamente o contexto (e se beneficia) do comportamento assimétrico entre V e F, contrariamente à teoria da demonstração clássica, a qual, mantendo-se fiel às determinações da tese da conservação da verdade, considera a assimetria como lugar de nascimento de obstáculos e desafios à realização do que ela preconiza.[23] Em um procedimento hipotético-dedutivo, temos como resultado seja a rejeição de premissas, seja sua instituição como hipóteses; com efeito, se de uma hipótese H deduzirmos a conclusão C verdadeira, H continua sendo “apenas” uma hipótese, apesar de sua capacidade explicativa; ao contrário, se dessa mesma hipótese H deduzirmos a conclusão C falsa, H será necessariamente falsa. Ora, como é possível que a verdade da conclusão C não torna verdadeira a hipótese H, ao passo que a falsidade de C falsifica a hipótese H? Que poder é esse dado à falsidade que a verdade não tem?

Fica claro, com essas considerações, que procedimentos hipotético-dedutivos se pautam na tese da assimetria. Nenhum procedimento metodológico desse tipo (que reconduz a demonstração à dedução) poderia se tornar aceito ou mesmo concebido fora dessa tese. No âmbito de todo procedimento hipotético-dedutivo, as hipóteses ou premissas de um argumento são refutadas pela falsidade da conclusão, ou, então, apenas corroboradas, como ressalta Popper, no caso de a conclusão ser verdadeira. O método hipotético-dedutivo coloca no mesmo patamar as relações de V para V e de F para V. A tese da assimetria é o elemento fundante desse tipo de procedimento metodológico: caso não fosse possível extrairmos a verdade da falsidade, nenhum método hipotético dedutivo seria concebível como viável ou fecundo.

Popper elege a falseabilidade como critério de cientificidade. A perspectiva popperiana estabelece que testes bem-sucedidos de uma teoria não garantem a sua verdade, ao passo que um malsucedido é suficiente para falsificá-la; e, assim, institui o critério da falseabilidade e rebaixa todo teste positivo de uma proposição ao status de mera confirmação ou corroboração momentânea: a falseabilidade é categórica, graças ao comportamento assimétrico entre verdade e falsidade.

O falibilismo popperiano, indo além de outros procedimentos hipotéticos, explora as possibilidades da falsidade. Se são equivalentes as relações de V para V e de F para V, a fecundidade do jogo começa com as tentativas de se estabelecer uma relação com conclusão falsa. Como não há validade de V para F, estabelece-se, nesse caso, a falsidade da hipótese H diante de uma conclusão falsa, de maneira que todo argumento válido com conclusão falsa tem alguma premissa falsa. Por sua vez, se a conclusão for verdadeira, as premissas permanecem como hipóteses, visto que a verdade da conclusão não garante a verdade das premissas.[24]

Popper soube explorar com maestria a tese da assimetria. Não pretendemos restringir o falibilismo às poucas observações feitas aqui,[25] mas apenas destacar o uso bem-sucedido que o autor faz da assimetria e dos poderes da falsidade. Por mais que não se possa reduzir a avaliação de uma teoria ao teste da falsificação – uma etapa voltada eminentemente à eliminação de hipóteses –, não há dúvidas de que a riqueza comportamental da falsidade, no âmbito da validade, é elemento central do pensamento popperiano. Se o campo da validade se restringisse ao âmbito simétrico, perspectivas como estas não teriam sentido ou mesmo não seriam possíveis.

Se essa é a força e a fecundidade da assimetria, não poderíamos ir mais adiante, em nossas análises? Ousaríamos dizer que sim! Contentar-nos-emos, entretanto, com uma última observação.[26] Enquanto, numa perspectiva simétrica, seria possível afirmar que, em um sistema axiomático, a verdade poderia ser determinada nos dois sentidos (ascendente e descendente), é a assimetria que estabelece não haver garantias da verdade dos axiomas ou das verdades anteriores em razão da verdade das proposições derivadas (em razão de a verdade da conclusão não garantir a verdade das premissas). Dentro desse quadro, poder-se-ia mesmo pensar que muitos problemas clássicos relativos a esse tema não só não seriam os mesmos, mas até se dissolveriam, no caso (hipotético) de um domínio irrestrito da simetria, no campo de atuação da validade. Problemas relativos, por exemplo, aos primeiros princípios, como aqueles conhecidos como o “Trilema de Agripa”[27] (o da circularidade, regressão ao infinito ou arbitrariedade dos primeiros princípios) deixariam de existir.[28] A tese da assimetria é a principal responsável pela tensão e pela riqueza desse conjunto de questões que atravessa a história da filosofia.[29]

 

5 A falsidade e sua fecundidade: conclusão

Poderíamos levar adiante nossas análises e mesmo tentar imaginar como seria uma lógica fora do âmbito da assimetria? Em alguns momentos, fomos tentados a extrair conclusões nessa direção, todavia, pensar uma outra lógica a partir de nossa lógica é muito arriscado. Fato é que a assimetria é rica de consequências, e nosso intuito foi chamar atenção de algo não ou pouco tematizado.

A falsidade tem comportamento distinto da verdade. Ela não é apenas oposta à verdade. Ela não é apenas inferior à verdade, sob diferentes perspectivas ou valores. Seria ela superior à verdade, no âmbito argumentativo e talvez até, sob alguns aspectos, também no valorativo?

Somos (quase) tentados a responder que sim, na medida em que a indeterminação da falsidade nos dá mais possibilidades do que a fixidez da simetria ou do que a linearidade do fluxo contínuo da verdade. A falsidade é um campo aberto de opções (pois permite que se vá de V para V, de F para V e de F para F, ao passo que a verdade só permite que se vá de V para V): enquanto a verdade se restringe a si mesma e à sua própria continuidade e conservação, a falsidade é aberta e acolhedora da própria verdade.

A própria verdade cede à falsidade, ao se colocar no lugar dela. É assim que nasce o critério de verdade como simulação de um movimento necessário de V para V, mesmo nos casos nos quais se configura um movimento de F para V ou de F para F.

A lógica e o campo argumentativo são complexos e mais ricos, graças à assimetria e à fecundidade da falsidade.

 

Asymmetry between truth and falsehood and the productivity of falsehood

Abstract: This article aims to highlight the productivity of falsehood in the context of its asymmetrical position with truth. The core of the discussion can be summarized in the following statement: if only truths can be drawn from truths, it cannot be said that truth cannot be drawn from falsehood. The central thesis of the text is that the asymmetrical behavior of falsehood promotes the dissociation between the criterion (based on the conservation of truth) and the field of validity so that the latter, broader than the former, incorporates the movement not only from truth to truth, but also from falsehood to falsehood and, above all, from falsehood to truth. The distinction between the symmetrical and asymmetrical fields allows understanding, for example, the emergence of certain logical fallacies, the separation between demonstration and deduction, the thesis of Popperian fallibilism, and the use of the hypothetical-deductive method. Truth does not have functions analogous to those of falsehood.

 

Keywords: Asymmetrical behavior of falsehood. Dissociation between criterion and field of validity. Demonstration versus deduction. Asymmetry and the hypothetico-deductive method. Fallibilism.

 

Referências

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SCHORN, R. Duas correções à epistemologia de Popper. Sofia, v. 7, n. 1, p. 163-77, jan./jun. 2018.

 

Recebido: 11/07/2023 - Aceito: 08/09/2023 - Publicado: 13/02/2024



[1] Docente do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR – Brasil. https://orcid.org/0000-0001-9259-5563. E-mail: cesar.battisti@hotmail.com; cesar.battisti@unioeste.br.

[2] O artigo, mantendo-se dentro do âmbito da lógica clássica, não tem intenção de proceder a nenhuma crítica de quaisquer pontos ou teses no campo da lógica.

[3] É matéria de discussão o modo de compreensão dos princípios da lógica clássica, bem como o seu número e sua melhor formulação. Não nos interessam essas discussões aqui, mas apenas a exposição do tema quanto à sua contribuição para a caracterização do tema da simetria (cf., p. ex., Kneale; Kneale, 1980; Mortari, 2001, p. 352-353; Copi, 1978, p. 256-258; Branquinho; Murcho; Gomes, 2006). A respeito desses dois princípios, em especial, cf., p. ex., Almeida (2008) e Lukasiewicz (2009).

[4] A partir deste ponto, utilizaremos, quando oportuno e por brevidade, V e F para verdade (verdadeiro(a)) e falsidade (falso(a)).

[5] Não é intenção do artigo destituir a posição que a verdade ocupa, no âmbito da vida humana e da reflexão filosófica, nem fazer uma crítica a alguns dos elementos que a configuram. Que a verdade seja superior à falsidade pode-se derivar da tese da “igualação” do verdadeiro com o que é, e do falso com o que não é, de modo que, sendo o que é superior ao que não é, também o verdadeiro será superior ao falso. Cf., acima, a definição aristotélica de verdadeiro e falso.

[6] Proposições contraditórias são aquela em que, se uma é V, a outra é F, e se uma é F, a outra é V. Não podendo serem ambas V nem ambas F, elas são a negação uma da outra. No âmbito do quadro de oposição tradicional, elas não se formam pela simples introdução do operador “não”: a proposição “Todos os homens são carnívoros” (A), por exemplo, é negada pela proposição “Alguns homens não são carnívoros” (O).

[7] Como observamos, nossa intenção não é negar a tese da simetria entre uma proposição e sua negação, mas mostrar a riqueza da relação assimétrica entre proposições no interior de um argumento.

[8] Nesse caso, só resta a relação entre as proposições contraditórias, onde a tese da simetria se verifica integralmente.

[9] Para que haja validade de um argumento, “[...] a conclusão precisa ser verdadeira quando as premissas são verdadeiras” (Salmon, 1973, p. 35).

[10] Será válida certa forma de argumento, “[...] se qualquer circunstância que torna suas premissas verdadeiras faz com que sua conclusão seja automaticamente verdadeira” (Mortari, 2001, p. 19).

[11] Há diferentes modos de definir a noção de inferência (ou consequência) lógica e de se proceder ao teste da validade de (uma forma de) um argumento.

[12] Ainda que esse exemplo não ofereça casos com todas as premissas F, há argumentos válidos nos quais isso ocorre. É interessante notar que, na maioria dos casos válidos, há uma ou mais (ou todas) proposições simples (p, q e r) falsas.

[13] Desconsideraremos os casos em que, havendo duas ou mais premissas, elas tenham entre si valores de verdade distintos.

[14] Não se pode confundir a mera combinação de V para V com a necessidade de se proceder de V para V. Uma combinação de V para V pode ser inválida ou não, sendo válida, se sua forma lógica trouxer necessidade na relação.

[15] Podemos pensar isso analiticamente: pelo princípio de identidade, sendo uma verdade idêntica a si, ela só poderá conter, ou dela serem derivadas, verdades.

[16] Permanece aqui a dificuldade de se imaginar o que seria produzir algo (como entender a noção de consequência lógica), a partir da falsidade. O âmbito da simetria parece nos autorizar, contudo, algo desse gênero no âmbito da falsidade, dado que, da mesma forma que a verdade, ela se conserva numa operação simétrica como a da dupla-negação.

[17] Aristóteles fornece o seguinte exemplo: toda pedra é animal; todo homem é pedra; logo, todo homem é animal.

[18] Alguém poderia questionar essas afirmações, argumentando que, rigorosamente, a verdade não pode brotar da falsidade. A observação é, mais uma vez, a de Aristóteles: “[...] é possível tirar uma conclusão verdadeira de premissas falsas, apenas com a ressalva de que a conclusão será verdadeira não no que ser refere à razão, mas ao que se refere ao fato” (Aristóteles, 2010, Anal. Ant., II, 2, 53b 8-9). Nossa análise, contudo, não considera a “verdade material” de um argumento, mas apenas o seu âmbito formal.

[19] Poderíamos citar a frase bastante conhecida dos latinos: “ex falso sequitur quodlibet” (do falso segue qualquer coisa).

[20] Esses argumentos falaciosos podem ser configurados da seguinte forma: “se eu estudar muito, serei aprovado; ora, não estudei muito; logo, não serei aprovado” (falácia da “negação do antecedente”); “se eu estudar muito, serei aprovado; ora, fui aprovado; logo, estudei muito” (falácia da “afirmação do consequente”).

[21] Se admitíssemos hipoteticamente essa invasão, já não distinguiríamos condições necessárias das condições suficientes, nem uma proposição condicional de uma proposição bicondicional. Ao contrário do que efetivamente ocorre (em que, numa condicional do tipo p→q, p é condição suficiente e q é condição necessária), uma proposição condicional seria verdadeira somente quando antecedente e consequente tivessem o mesmo valor de verdade (como na bicondicional).

[22] Sobre esses temas, cf., dentre outros, Angioni (2012) e Kneale e Kneale (1980).

[23] Poder-se-ia mesmo traçar, desde os gregos, uma história do embate entre simetria e assimetria e do paulatino reconhecimento da assimetria como espaço de jogo e de determinação do que se entende por conhecimento, demonstração e método científico. Por um longo período, desde a proposição do modelo de demonstração dos Analíticos Posteriores de Aristóteles, houve o predomínio da tese da conservação da verdade, e um dos objetivos da teoria da demonstração era determinar no que consistia a demonstração propriamente dita ou a mais perfeita e no que ela diferia da dedução (ou do silogismo em geral). Este não é mais o quadro dominante há já algum tempo.

[24] Sobre esses temas, cf. Popper (1972).

[25] Cf., p. ex. Schorn (2018), sobre a teoria da verdade e sobre outras tensões no interior do pensamento de Popper.

[26] Essa tese tem consequências que se estendem desde o modo como concebemos a organização do saber até a forma como produzimos conhecimentos e elaboramos raciocínios.

[27] Também chamado de Trilema de Münchhausen (Albert, 1976).

[28] Assim, também, não se pode construir um sistema axiomático de proposições falsas, pois do falso pode provir também o verdadeiro.

[29] Como afirma Corcoran (2010, p. 301-302): “O fato de que seja possível fazer deduções baseadas sobre premissas que não sejam conhecidas como verdadeiras é central para a nossa vida intelectual”.