Comentário ao Artigo: “Uma visão de mundo filosófica”: VISÕES DE MUNDO FILOSÓFICAS E VISÕES DA FILOSOFIA


Gregory Gaboardi1


Referência do artigo comentado: CID, R. R. L. Uma visão de mundo filosófica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 571-596, 2023.


Cid (2023) apresenta uma visão de mundo filosófica. Meu acréscimo será sobre visões da filosofia. Algumas visões da filosofia acomodam uma visão de mundo, como a de Cid, outras não. Podemos partir de certa visão da filosofia, para então considerar quais visões de mundo filosóficas são apropriadas, ou podemos fazer o caminho inverso: assumir uma visão de mundo filosófica, para então considerar quais visões da filosofia podem acomodá-la. Não assumirei que um desses caminhos tenha privilégio sobre o outro. Desenharei um mapa, mas não indicarei rotas nele.

Penso que há dois eixos perpendiculares, ao longo dos quais podemos situar visões da filosofia. Cada eixo é identificável por uma pergunta: a posição ocupada nele é determinada por nossa resposta. O primeiro eixo é identificável por esta pergunta: uma afirmação ou visão de mundo filosófica deve ser submetida a algo, como testes de resistência? Resistir seria se adequar às evidências. É não ser falsa ou provavelmente falsa. O segundo eixo é identificável por esta pergunta: uma afirmação ou visão de mundo filosófica deve ser submetida a algo, como testes de fertilidade? Ser fértil seria propiciar formas de agir (incluindo pensar) inovadoras ou frutíferas. É ser, de algum modo, reveladora ou inspiradora. O primeiro tipo de teste é comum nas ciências, o segundo tipo é comum nas artes.

Os dois eixos geram quatro quadrantes, uma vez que cada pergunta seja respondida com “sim” ou “não”. Quem responde “sim” a ambas as perguntas fica no quadrante que chamarei de “cognitivista”. Quem responde “não” a ambas as perguntas fica no quadrante que chamarei de “quietista” (poderia também ser “eliminativista”). Quem responde “sim” para a pergunta da resistência e “não” para a pergunta da fertilidade fica no quadrante que chamarei de “minimalista”. Quem responde “não” para a pergunta da resistência e “sim” para a pergunta da fertilidade fica no quadrante que chamarei de “vanguardista”. Não estou satisfeito com os rótulos, contudo, não pretendo que capturem perfeitamente o teor de cada quadrante. Basta que sejam sugestivos.

A divisão é um tanto idealizada e artificial. Dificilmente, em uma reflexão filosófica, alguém não daria peso nenhum para considerações sobre verdade e evidências ou para considerações sobre relevância e utilidade. Mas essas considerações podem ser marginalizadas ou deliberadamente restringidas. Quando isso ocorre, garante que alguém fique mais claramente situado em um quadrante do que em outro. Para meus propósitos, não é um problema se ninguém ficar inteiramente situado dentro de um quadrante.

Alguns desses quadrantes têm estado pouco ocupados. O quadrante que me parece mais vazio é o quietista. Alguém que estaria em grande parte nele é Wittgenstein. Uma parte menor de Wittgenstein e dos seus seguidores se prolonga para dentro dos quadrantes cognitivista e minimalista, todavia, está em um constante cabo de guerra para manter a maior parte do corpo fora, no quadrante quietista (ou fora da área de quarentena, se isso for mais adequado ao jargão wittgensteiniano). Em resumo, o quadrante quietista é aquele no qual fica quem pensa que, seja em termos de resistência, seja de fertilidade, testar afirmações ou visões filosóficas é uma atividade que deveríamos superar ou minimizar.

O quadrante que me parece mais ocupado é o cognitivista. Nele estariam filósofos muito diversos: Aristóteles, Kant, Murdoch, Srinivasan. É o quadrante em que fica quem pensa que afirmações ou avaliações filosóficas devem ser adequadas às evidências e que pensa que considerações sobre fertilidade são pertinentes, na medida em que determinam um ajuste melhor ou pior com as evidências. Para cognitivistas, as duas perguntas que formam os eixos não são totalmente independentes: uma afirmação ou visão filosófica precisa ser resistente e fértil, e fertilidade seria indício de resistência. Para alguns cognitivistas (aqueles que aceitam certos tipos de coerentismo), vale também o inverso: uma afirmação ou visão filosófica precisa ser fértil, para ser resistente.

Em qualquer um dos casos, contudo, assume-se uma concepção restritiva de fertilidade: a fertilidade que interessaria seria apenas aquela envolvendo virtudes explanatórias, ganhos teóricos. Ter uma concepção de fertilidade que não assumisse conexão com resistência (isto é, conexão com a verdade) automaticamente faria seu proponente avançar dentro do quadrante minimalista ou do quadrante vanguardista. No quadrante cognitivista fica quem pensa que a filosofia é uma atividade teórica na qual buscamos resolver certos problemas, responder a certas perguntas, amparados por razões que estabeleçam a verdade de alguma alegação pertinente. Essa alegação pode ser uma teoria, inclusive uma teoria que conflite com o senso comum.

O quadrante minimalista é ocupado por filósofos como Sexto Empírico, Carnap, Dummett e Van Fraassen. É o quadrante em que fica quem pensa que considerações sobre fertilidade não têm valor cognitivo ou que, de todo modo, não podem gerar valor cognitivo em reflexões filosóficas. Seriam inapropriadas para a filosofia, ainda que nem por isso a filosofia deixasse de ter algum valor cognitivo. Um efeito disso é uma minimização das pretensões da filosofia (daí “minimalismo”): filosofia seria questão de colocar a “casa” (o estado de espírito, nossos esquemas conceituais ou a ciência) em ordem, sem trazer “móveis” (como teorias metafísicas e morais) novos e sem poder jogar coisas (do senso comum ou da ciência) fora. É onde fica quem tende ao ceticismo não quietista sobre a filosofia.

Finalmente, o quadrante vanguardista é ocupado por filósofos como Nietzsche, Derrida, Deleuze e Badiou. É o quadrante no qual fica quem pensa que, em filosofia, o que realmente importa é ser fértil: gerar novos conceitos, novas valorações, novos hábitos de raciocínio e por aí vai. A preocupação com verdade e evidências, com argumentos e objeções seria um erro ou algo periférico, de interesse ou importância menor. É onde fica quem tende ao relativismo ou a um tipo de expressivismo sobre a filosofia.

Os quatro quadrantes formam um mapa que uso para navegar no território contemporâneo. Creio que a visão de mundo filosófica de Cid se encaixa melhor no quadrante cognitivista de visão da filosofia. Mas, cada quadrante, exceto pelo quietista, pode acomodar alguma visão de mundo filosófica: o que mudará, em cada caso, é o que se pretende com uma visão dessas. Seja como for, penso que o mapa tem valor. Não nego que o que há de idealizado ou artificial nele crie distorções que alguns vejam como caricaturas de suas posições, porém, não sei se há algum mapa que não corra esse risco. E, apesar dessas limitações, ele tem sido útil. Reconheço que, embora eu me situe no quadrante cognitivista dentro de meu mapa, eu o desenhei com um pé timidamente dentro do quadrante vanguardista. Assim, espero que a utilidade aos demais compense as imprecisões.

Agradeço a Cid (2023) pela oportunidade de comentar seu texto, que resultou nesta reflexão.


Referência

CID, R. R. L. Uma visão de mundo filosófica. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 571-596, 2023.



Recebido: 16/05/2023

Aceito: 22/05/2023

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS – Brasil. Orcid 0000-0002-1651-0350, e-mail: ggaboardi@outlook.com.